As políticas públicas de inclusão e suas respectivas ações acarretaram, nas últimas décadas, uma transformação radical nas propostas educacionais, terapêuticas e ocupacionais voltadas às pessoas com deficiências. Nessa trajetória, a Educação Especial vem gradativamente deslocando a concepção sobre seu público-alvo - e, consequentemente, sua esfera de atuação - da fragilidade (modelo médico-assistencialista) e dificuldade (modelo educacional) para o desenvolvimento, autonomia, competência e inclusão (que eu estou chamando de modelo psicossocial de auto-gestão).
Atualmente, não se questiona mais o direito de pessoas com deficiências frequentar escolas comuns e demais espaços sociais, além de participar da vida familiar e de sua comunidade. Em nosso país, essa garantia é dada por uma extensa legislação (Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, 2001; Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, 2008; Resolução nº 4, 2009; Decreto nº 7.611, 2011, entre outras), consolidada na recente Lei de Inclusão (Lei nº 13.146, 2015).
Essas políticas, amplamente disseminadas no espaço de divulgação que conquistaram na mídia, vêm causando um impacto profundo na vida de pessoas com deficiências e suas famílias. Ao mesmo tempo, representam um grande desafio para os profissionais da Educação Especial, na medida em que demandam uma total ressignificação de nossa área, como campo de saber e atuação.
Entretanto, para fazer frente às atuais expectativas, mais do que desenvolver novos métodos e propostas de atendimento, precisamos desconstruir a visão estereotipada de incapacidade, de dependência e de limitação que sempre marcou - aberta ou veladamente - o tratamento3 que conferimos a nossos alunos e clientes. Esse é um processo complexo, por não se tratar apenas da criação de um novo modelo ou paradigma teórico conceitual, mas, sim, de uma reconfiguração, sobretudo subjetiva da nossa profissão.
Está em pauta a transformação de atitudes e representações internalizadas sobre o papel e as funções da Educação Especial, que não é mais concebida como um sistema educacional à parte, restrito ao atendimento especializado de pessoas com deficiências. A Educação Especial do século XXI configura-se como um conjunto de conhecimentos, metodologias, recursos (materiais, pedagógicos e humanos) disponibilizado para as escolas e outros espaços sociais, de forma que possam promover a aprendizagem e a inclusão de pessoas com deficiências e outras características atípicas de desenvolvimento (Glat & Blanco, 2015; Glat & Pletsch, 2012).
Para fazer frente a esse novo cenário, o profissional de Educação Especial precisa de uma formação diferenciada daquela que nós, veteranos, recebemos. No meu entendimento, porém, esta "formação para a Educação Inclusiva" (Glat & Nogueira, 2002) pouco repercutirá se for focada apenas em transmitir conhecimentos e (alguma) experiência prática.
A formação do profissional da Educação Especial precisa tomar uma dimensão, digamos assim, mais humanista, reconhecendo e legitimando as pessoas com deficiências como sujeitos capazes de - dados os suportes e oportunidades existenciais adequadas - construir conhecimentos, se desenvolver cognitiva, acadêmica e socialmente, de modo a participar do mundo em sua volta. Em outras palavras, ser protagonistas de sua própria vida, em cada fase, na medida de suas possibilidades, de acordo com as circunstâncias, como os demais (Glat, 2017).
Partindo desse referencial, pretendo, no escopo deste ensaio, compartilhar algumas das minhas reflexões sobre essa nova configuração da Educação Especial, focando na necessidade de rever nosso posicionamento nos espaços onde agora atuamos. Mais pontualmente, problematizar a interação entre os profissionais especialistas, especificadamente os professores especialistas ou que atuam na Educação Especial4, e os docentes do ensino comum, professores "generalistas", para usar uma expressão de Bueno (1999). Nesse segundo grupo, estou considerando não só os que estão em sala de aula, mas a equipe pedagógica e de gestão escolar, de modo geral.
As políticas de inclusão escolar que garantiram o ingresso no ensino comum de alunos com diferenças significativas no seu processo de aprendizagem e desenvolvimento - que, tradicionalmente, eram responsabilidade exclusiva da Educação Especial - colocaram em cheque a concepção prevalente de escola como uma instituição meritocrática, classificatória e homogeneizadora5 (Glat, 2018). Nesse sentido,
Mais do que nova proposta educacional, a Educação Inclusiva pode ser considerada uma nova cultura escolar: uma concepção de escola que visa ao desenvolvimento de respostas educativas que atinjam a todos alunos (...). A proposta de Educação Inclusiva implica, portanto, um processo de reestruturação de todos os aspectos constitutivos da escola (Glat & Blanco, 2015, p.16-17, ênfase adicionada).
As mudanças requeridas em cada unidade escolar para a implementação de uma educação para a diversidade envolvem estrutura arquitetônica e de recursos, Projeto Político Pedagógico, organização curricular, metodologias de ensino, práticas pedagógicas, sistema de avalição, programação de atividades, etc.... No entanto, para além dessas transformações, o ingresso no ensino comum de alunos com deficiências trouxe, no seu bojo, uma reconfiguração substancial das relações interpessoais entre os diferentes atores escolares.
Conforme discutido, na perspectiva da inclusão escolar, a ação da Educação Especial tem como alvo não só o apoio direto aos alunos com deficiências, mas, talvez, prioritariamente, o suporte aos professores do ensino regular para que possam, adequadamente, desenvolver a escolarização desses educandos. De fato, um dos pressupostos conceituais básicos da proposta de Educação Inclusiva é que, mesmo quando envolve a mediação de um professor especialista, a escolarização se dá no espaço da turma comum. E a tarefa de ensinar a todos os alunos - inclusive aos que apresentam necessidades educacionais especiais - é, em primeira instância, do professor regente.
Muito tem sido dito sobre a precária formação inicial e continuada dos professores e demais agentes educacionais para lidar com a diversidade do alunado, agora presente em nossas escolas. De fato, a falta de capacitação do corpo docente para atender a "alunos com significativos problemas cognitivos, psicomotores, emocionais e/ou sensoriais na complexidade de uma turma regular" (Glat & Blanco, 2015, p. 30), é considerada por diversos autores (Glat & Pletsch, 2012; Cruz & Glat, 2014; Ferreira & Ferreira, 2004; Dorziat, 2008; Pletsch, 2010) como a maior barreira para efetivação de uma Educação Inclusiva.
Vale reforçar que esse problema afeta tanto os professores do ensino comum, quanto os da Educação Especial que deveriam lhes dar suporte. Em 2012, em colaboração com Pletsch, já sinalizamos tal aspecto:
No primeiro caso, verifica-se que os professores regulares não têm experiência com esse tipo de alunado, e mal dão conta, em suas classes lotadas, de um número grande de alunos que, embora não tenham deficiências específicas, apresentam inúmeras dificuldades de aprendizagem e/ou comportamento. Os professores especializados, por sua vez, vêm construindo sua competência com base no conhecimento das dificuldades específicas do alunado que atendem, dando ênfase à diminuição ou compensação dos efeitos de suas deficiências (Glat & Pletsch, 2004, p. 2).
Ademais, a experiencia e a atuação de grande parte dos professores especialistas ainda é pautada no modelo das classes especiais, as quais, na maior parte dos casos, "são estruturadas sem um planejamento acadêmico e sistema de avaliação consistente" (Glat & Pletsch, 2004, p. 2). Assim, quando deparados com a complexidade do ensino comum, esses docentes recuam e assumem para si a responsabilidade sobre a aprendizagem e a inclusão do aluno, reproduzindo a dinâmica do atendimento especializado tradicional no contexto da escola inclusiva6. Ou seja, em vez de interagir colaborativamente com o professor regente para juntos construírem uma proposta curricular-pedagógica diferenciada - porém, contextualizada com o que é planejado para o resto da turma - se tornam o único, ou pelo menos, o mais importante referencial do aluno (e de sua família) na escola7.
Existem diversos estudos envolvendo projetos, formais e informais, de colaboração entre professores especialistas e do ensino comum, a partir de diferentes estratégias: ensino colaborativo, bidocência, co-ensino8 (Capellini, 2004; Fontes, 2007; Mendes, 2011; Braun, 2012; Glat, 2016; Braun & Marin, 2016; Oliveira, 2018, entre outros), que vêm se mostrando profícuos na promoção da inclusão e da aprendizagem de alunos com deficiências. Esses autores mostram que, nas escolas onde essa ponte é construída, o processo flui mais naturalmente. A grande vantagem dessa modalidade de suporte, que não demanda espaço diferenciado de atendimento, é que ela "favorece o desenvolvimento e aprendizagem de todos os alunos, tendo ou não uma deficiência" (Glat & Pletsch, 2012, p. 24).
No entanto, os resultados de pesquisas realizadas por diversos autores, em inúmeras escolas públicas e privadas de todo o país, mostram que a escolarização de alunos com deficiências, mesmo incluídos em turmas comuns continua, na maioria dos casos, sendo considerada uma responsabilidade quase que exclusiva da equipe de Educação Especial (Pletsch, 2010; Redig, 2010; Glat & Pletsch, 2012; Carvalho, 2017; entre outros). Ainda sobre tal aspecto entendemos que:
Um fator considerado determinante para a efetivação de uma educação inclusiva de qualidade é a interação entre o professor regente do ensino comum e o professor que presta atendimento educacional especializado, qualquer que seja a modalidade. Entretanto, os dados evidenciaram que, de maneira geral, os profissionais enfrentam dificuldades em estabelecer parcerias e desenvolver práticas de forma colaborativa (Glat & Pletsch, 2012, p. 140).
Há inúmeras variáveis que contribuem para o distanciamento entre o discurso (teoria) que reconhece a colaboração docente como fator imprescindível para promover a escolarização de alunos com deficiências e as ações (prática) que, efetivamente, se materializam quando esses atores interagem no cotidiano escolar. Sua compreensão demanda uma análise multifatorial que não pode ser contemplada no espaço limitado deste texto.
Abrindo, porém, a discussão, há de considerar-se que as políticas públicas e as construções teórico-conceituais que as originam e as sustentam se transformam e evoluem em um ritmo mais rápido do que as representações sociais9 internalizadas pelos sujeitos que são por elas impactados. Silva (1995) ressalta que a representação social é um processo de significação coletiva de conhecimentos produzidos por meio das relações de poder. Nessa direção, entendo a formação de professores como uma das origens da representação social dicotômica entre ensino comum e ensino especial, que três décadas de políticas de inclusão escolar não conseguiram desconstruir.
Desde a LDB (Lei nº 9.394, 1996), diferentes peças de legislação e diretrizes curriculares (Resolução CNE/CP nº 1, 2002; Resolução CNE/CP nº 1, 2006; Resolução CNE/CP nº 2, 2015) das licenciaturas vêm estabelecendo a obrigatoriedade de conteúdos e disciplinas voltadas a uma ação pedagógica na diversidade. Todavia, conforme apontado em trabalhos anteriores (Glat & Nogueira, 2002; Glat & Blanco, 2015), os cursos de formação de professores ainda privilegiam uma concepção clássica, estática, do processo de ensino e aprendizagem, baseada em uma noção de desenvolvimento "normal" (diga-se, "saudável") e universal para todos os sujeitos.
Assim, aqueles alunos que apresentam algum tipo de dificuldade, distúrbio ou deficiência e/ou que não conseguem acompanhar o ritmo e o padrão esperado (ou, no caso das altas habilidades, superam esse ritmo) são considerados anormais, isto é, fora da norma, e eufemisticamente denominados de "alunos especiais". Até meados dos anos 1990, estes eram alijados do sistema regular de ensino, indo para as escolas ou classes especiais, com sua lógica de funcionamento próprio e independente, sem qualquer regulamentação ou exigência curricular, conforme discutido.
Em outras palavras, essa visão dualista gerou a representação social, ainda muito impregnada no imaginário dos educadores, e do público em geral, que existem dois grupos qualitativamente distintos de alunos: os "normais" e os "especiais". E, consequentemente, duas categorias distintas de professores: os professores "regulares" e os professores "especializados". Cada segmento tem sua própria formação e competência específica, resultando em objetivos e práticas pedagógicas distintas.
Entretanto, com o advento das políticas de Educação Inclusiva e a abertura das escolas para os diversos grupos outrora excluídos, entre eles os "alunos especiais", rompeu-se a organização do sistema entre ensino regular e especial. Atualmente, todo e qualquer professor, independentemente do nível de ensino, tornou-se apto para receber em sua classe alunos com diferentes peculiaridades de desenvolvimento, inclusive com comprometimentos de ordem sensorial, cognitiva, psicológica e/ou motora.
É inegável que as licenciaturas, de modo geral, vêm incorporando em seus currículos (mais por exigência legal, do que opção político pedagógica) disciplinas voltadas à inclusão escolar de alunos com necessidades educacionais especiais. Entretanto, estas são, via de regra, consideradas matérias complementares da área de Educação Especial, mesmo quando obrigatórias (Cruz & Glat, 2014). De fato, a Pedagogia e os demais cursos de formação de professores ainda têm um viés dicotômico. Nas disciplinas que tratam do processo ensino, aprendizagem e desenvolvimento em geral, como alfabetização, didática, educação infantil, educação de jovens e adultos, currículo e psicologia, etc., dificilmente são incluídos conteúdos programáticos que abordem questões relativas a esses sujeitos.
Não se trata de negar as especificidades de nossa área, muito pelo contrário! Diria até que nos últimos anos perdemos um grande espaço de formação inicial com a descontinuidade das habilitações em Educação Especial10. E os cursos de formação continuada, inclusive em nível de especialização, que proliferam pelo país, em sua maioria apresentam a Educação Especial de forma abrangente, oferecendo pouca capacitação técnica para lidar com as especificidades de nosso público-alvo11, desenvolver planos educacionais individualizados e propostas de diferenciação pedagógica (Glat & Pletsch, 2013).
Para fazer frente à demanda da escola inclusiva contemporânea, a matriz e a organização curricular dos cursos de formação docente precisam ser articuladas de tal forma que, garantindo as especificidades dos diferentes saberes e temáticas, haja uma interface e diálogo entre as disciplinas, em uma perspectiva de diversidade humana como padrão.
Quando se discutem as dificuldades de implementação da Educação Inclusiva, o foco, geralmente, recai sobre o despreparo técnico e emocional dos professores em receber alunos com deficiências e outras condições atípicas em suas classes. No entanto, o problema, ou melhor dizendo, o desafio, como já comentado, não é só do ensino comum. Muito pelo contrário, nós da Educação Especial também temos grande resistência (se não no discurso, certamente, na prática) em abrir mão do "monopólio" de atender aos alunos com deficiências e desenvolver um trabalho de colaboração de forma equitativa com os demais docentes da escola. Assim, não são só os professores do ensino comum ainda os reconhecem como "os alunos da Educação Especial" ou "os alunos da inclusão", como vêm sendo chamados. Nós também continuamos pensando neles (consciente ou inconscientemente) em termos dos "nossos alunos" - não os alunos do professor regente da classe, a quem devemos dar suporte. Essa visão dualista e estereotipada do espaço psicopedagógico dos alunos com deficiência é, para mim, a verdadeira barreira para inclusão escolar.
Essa visão do "nosso público-alvo" tem suas raízes na construção histórica da Educação Especial como sistema educacional paralelo, desvinculado do ensino comum, mesmo quando (no caso das classes especiais) ocupando o mesmo espaço institucional. Nesse contexto, a Educação Especial configurou-se como um campo de conhecimento e formação (de professores e outros profissionais) ultra especializado, o que nos conferia um saber, e, consequentemente, um "poder" absoluto sobre a população a quem atendíamos. Como lembra Foucault (1986), não há relação de poder sem a construção de um campo de saber, e todo saber engendra novas relações de poder. Esse poder se manifesta de diversas maneiras:
Em termos administrativos, decidindo sobre a alocação de recursos e política institucional; em termos clínicos, determinando o tipo de tratamento [atendimento] e os métodos educacionais que o cliente [ou aluno] receberá; em termos acadêmicos, formulando as teorias e concepções a respeito da natureza e causa das deficiências, assim como a formação da nova geração de especialistas (Glat, 2009, p. 25).
As políticas de inclusão escolar e as demandas sobre a Educação Especial que elas geraram atingiram diretamente essa tradição profissional, frustrando expectativas e colocando em questão nossos saberes, já que grande parte dos professores especialistas desconhecia ou estava afastada há muitos anos da realidade do ensino comum. Como discutido, atender alunos com um determinado tipo de deficiência12, no espaço quase que individualizado e não estruturado da classe especial, exige competências diferentes do que as necessárias para orientar e dar suporte a professores que se deparam com educandos com diferentes necessidades especiais, em turmas de 20 ou mais alunos, com propostas curriculares e de avaliação previamente determinadas. Some-se a isso o fato de que alunos com deficiências, geralmente, são incluídos no ensino comum com significativa defasagem acadêmica, e suas próprias condições internas dificultam o acompanhamento no mesmo ritmo em que os conteúdos programáticos são trabalhados.
Fontes (2007), em um dos primeiros estudos que avaliou a implementação de uma proposta de bidocência em uma rede pública municipal, identificou a "construção do saber docente para atuar em classes inclusivas", como uma das principais categorias de análise. Segundo Fontes (2007, p. 159):
Compreende-se por saber docente um conjunto de conhecimentos do ofício de ensinar resultante da produção social. Sob este aspecto, o contexto no qual tais saberes são construídos e aplicados, isto é, "as condições históricas e sociais nas quais se exerce a profissão" (Nunes, 2001, p. 34), assumem uma nova dimensão diante da perspectiva inclusiva. Numa relação dialética, tais saberes que brotam da experiência pessoal do professor influenciam e são influenciados por aspectos culturais e subjetivos, como mostra a reflexão:
"- Para quem está em sala de aula é complicado, porque a gente tem pré-conceitos sobre essa questão. Não só pré-conceitos com o aluno com deficiência, mas pré-conceitos no tipo de trabalho que a gente vai realizar em sala de aula. A nossa formação ainda é muito voltada para o tradicional..., para o grupo homogêneo. Mas, para a gente que tem a formação um pouco anterior, a gente percebe que está enraizado lá, numa questão homogênea e se libertar disso é muito complicado. É um processo interno que o professor vai ter que se trabalhar, se conscientizar" (Entrevista com a professora da sala de recursos da escola A concedida em 31 de maio de 2006, ênfase adicionada).
A tese deste artigo é que a atualização dos saberes docentes (tanto para os "generalistas" quanto os especialistas) e, consequentemente, a transformação das práticas pedagógicas, não é apenas uma questão de nova abordagem teórico-metodológica ou acadêmica. Como a professora no excerto anterior reconhece, trata-se de um processo interno de desconstrução das representações sociais sobre o papel do professor e sobre o que significa ensinar em uma escola inclusiva.
Justamente, em função dessas concepções, ainda dicotômicas e estereotipadas, a relação entre os dois grupos de profissionais é complexa e, potencialmente, conflituosa. Muitos docentes do ensino comum, mesmo quando acolhedores ou com discurso "politicamente correto" a favor da inclusão, no fundo, não acreditam que alunos com deficiências pertencem às suas turmas. É muito comum ouvirmos falas como: "eles aprenderão melhor em classes especiais", "terão mais atenção diferenciada lá, que eu posso dar aqui", "a professora do AEE quer que eu faça um trabalho diferenciado com esse aluno; mas o que eu faço, enquanto isso, com o resto da turma?". Além disso, muitos não apreciam o suporte que os professores especializados podem lhes dar, porque eles "não têm ideia do que é manejar uma turma com tantos alunos, cheia de problemas, com todas as cobranças em cima de nós!".
Os profissionais da Educação Especial, por sua vez, também não apostam nas possibilidades de desenvolvimento acadêmico desses educandos na turma regular, sem um suporte especializado direto e constante, o que nem sempre é viável ou mesmo necessário. Vale ressaltar que, em inúmeros casos, a inclusão escolar demanda somente mudanças na forma de estruturar o ensino e o manejo de sala de aula, contemplando práticas diversificadas. Por exemplo, com organização de atividades em grupos, tutoria por pares13e outras estratégias que podem favorecer a colaboração entre os alunos e facilitar a aprendizagem de todos.
Acrescente-se, ainda, o quadro das condições precárias de trabalho dos nossos docentes, tanto da Educação Especial quanto do ensino comum. A maioria tem dupla (ou, até mesmo, tripla) jornada de trabalho, o que não lhes permite compartilhar um horário para discussão de caso, preparação conjunta de materiais didáticos e adaptações curriculares. Como aponta Carvalho (2017, p. 234), "o tempo destinado a essas atividades é irrisório e os planejamentos se situam no nível da superficialidade". Em pesquisa recente, a autora analisou práticas pedagógicas e narrativas de professoras do ensino comum e de salas de recursos multifuncionais, identificando em ambos os grupos inúmeras dificuldades de interlocução, o que resultava em um trabalho com o aluno fragmentado e desconectado nos dois espaços.
Em suma, a polaridade e a tensão que se desdobra na relação entre ensino comum e Educação Especial, mais do que qualquer outro fator, representa, sem dúvida, o grande obstáculo para a inclusão, participação e aprendizagem de alunos com deficiências e outras necessidades educacionais especiais. Certamente, há muitas escolas onde está sendo construída uma cultura de colaboração, com os docentes revendo suas representações internalizadas, transformando sua prática pedagógica e suas interações profissionais (Glat, 2016; Oliveira, 2018). Contudo, em grande parte dos casos, ainda é como se tratasse, para além de suas especificidades, de sistemas distintos e incomunicáveis, mesmo que não mais o sejam.
A ausência de uma cultura de colaboração pedagógica e psicossocial entre os diversos agentes educacionais influencia negativamente - eu diria mais, inviabiliza - a efetivação das políticas de inclusão escolar. Essa colaboração, porém, precisa ser construída com base em um pacto de reconhecimento do direito e das possibilidades de desenvolvimento desse alunado, bem como no investimento em uma busca conjunta por alternativas criativas e diversificadas para aprendizagem de todos os alunos. Como bem destaca Oliveira (2018, p. 122), "a colaboração entre os professores especializados e do ensino comum quando não contempla assumir o risco de repensar práticas e tradições curriculares, assume o de compactuar com a manutenção de processos excludentes".