1 Introdução
O mais recente relatório mundial intitulado Human Rights Watch defends the rights of people worldwide expõe que milhares de pessoas com deficiências, que tenham ou não altas habilidades, superdotação e/ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), são confinadas em instituições onde podem enfrentar negligência e abuso, às vezes por toda a vida (Human Rights Watch, 2019). Concomitantemente a esse panorama, estudos indicam que, quando adultos, essa população tem um risco 1,5 vezes maior de sofrerem violência em relação às demais e, quando apresentam deficiência intelectual ou transtornos mentais, a probabilidade aumenta em 3,7 vezes, assim como quando são crianças. Somam-se a esses fatos as evidências expostas pelo World Social Report 2020: Inequality in a rapidly changing world, as quais demonstram que esse segmento populacional tem sucumbido a níveis mais altos de pobreza nas sociedades (Organização das Nações Unidas [ONU], 2020).
Nesse cenário, quando consideramos um país de dimensões continentais como o Brasil, as pluralidades de suas esferas educacionais, sociais, profissionais, políticas, econômicas, normativas e culturais, transversalizadas em seus inúmeros microcontextos locais, regionais e fronteiriços, são desafiadas a ressignificarem-se em uma perspectiva biopsicossocial, no sentido de legitimarem os direitos cidadãos. Esse processo está intrinsecamente relacionado à predisposição dos atores envolvidos em (re)conhecerem e a (des)construírem suas concepções sobre identidades e diferenças e, com base nelas, ofertarem a si e aos outros atitudes positivas ou negativas em consonância com seus contextos relacionais (Amaral, 2004; Horne, 1985; Mendes, 1995; Omote, 2018).
Contudo, atitudes negativas em relação às pessoas com deficiência ainda estão muito presentes em nossas sociedades. Segundo D'Affonseca et al. (2019), para além de violação de direitos, atitudes negativas têm sido representadas por violências dos mais diversos tipos:
negligência (omissão de cuidados relativos à alimentação, amparo/responsabilização, limpeza/higiene, medicamentos/assistência médica e abandono); [...] violência psicológica (ameaça, calúnia/injúria/difamação, chantagem, hostilização, humilhação, infantilização, perseguição); física (autoagressão, cárcere privado, homicídio, latrocínio, lesão corporal, maus-tratos, sequestro e tentativa de homicídio); violência patrimonial (abuso financeiro, destruição de bens, expropriação/apropriação de bens, extorsão, furto, retenção de salários/bens, roubo, subtração/ invalidação/ocultação de documentos); violência sexual (estupro, toques/carícias indesejadas, fala de conteúdo sexual) e violência institucional. (p. 46)
Parte disso, cumpre destacarmos, está atrelada à própria concepção que os indivíduos das mais diversas sociedades têm em relação à deficiência, construída ao longo da história, com base em diferentes princípios morais e éticos.
Atualmente, conforme Leite & Lacerda (2018), as concepções em relação à deficiência podem ser divididas em quatro categorias principais:
concepção orgânica, que interpreta a deficiência como um atributo do indivíduo, considerando o desvio do padrão orgânico de normalidade ou presença de um mau funcionamento do organismo;
concepção histórico-cultural, que entende a deficiência como sendo decorrente de uma disfunção biológica, a qual acarreta limitação e, como consequência, uma barreira social;
concepção metafísica, que entende a relação entre a deficiência a causas espirituais, religiosas e/ou sobrenaturais, a partir de uma matriz espiritual; e
concepção psicossocial5, que interpreta a deficiência como uma condição orgânica, associada a fatores ambientais, centrando a análise no sujeito.
Essas concepções recaem (in)diretamente sobre a garantia dos direitos humanos das pessoas com deficiências, por meio das atitudes e das representações sociais. Frente a isso, é fundamental que as concepções sobre deficiência que atravessam os atores das diversas sociedades sejam conhecidas e compreendidas. Afinal, com base nelas, estratégias para a prevenção dos mais diversos tipos de violência podem ser desenhadas e implementadas para a superação de situações de vulnerabilidade social enfrentadas e/ou sofridas por aquele segmento populacional (Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009; Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015).
Para além de identificarem-se essas concepções à luz das narrativas de pessoas com deficiências, de seus familiares e de seus respectivos círculos sociais, importa, portanto, que se conheça as dos próprios profissionais das redes públicas de serviços para prevenção e proteção à violência. Isso porque, a depender das concepções dos agentes da assistência social, da saúde, da educação, da segurança pública, dos conselhos de direitos humanos, dos conselhos tutelares e das Organizações da Sociedade Civil (OSC), os caminhos adotados por essas redes podem, inclusive, reforçar estigmas sociais.
Nesse sentido, uma das possíveis estratégias é a oferta de cursos de capacitação ou de formação continuada voltados especificamente a esses profissionais. A depender de seus planejamentos, conteúdos, recursos, execução, gerenciamento e avaliação, essas oportunidades podem fomentar importantes reflexões e subsidiar a (des)construção de concepções que tangenciam o reconhecimento da diversidade humana, uma vez que:
Conhecer o processo de formação de conceitos, que é uma etapa de maior complexidade no desenvolvimento do pensamento humano, possibilita entender como se dá apropriação desse conceito pelos indivíduos, o que expressa a relação construída entre a concepção que se tem sobre a deficiência e as atitudes direcionadas a esse público. (Mattos, 2016, p. 61)
Assim, dentre as diversas iniciativas presentes historicamente no Brasil, conforme indicam Amaral (2004) e Jannuzzi (2012), que subsidiaram políticas de direitos humanos e ações afirmativas, importa evidenciar a atual representatividade das OSC e de seus respectivos profissionais no processo de garantia dos direitos das pessoas com deficiência.
1.1 O papel das organizações da sociedade civil na legitimação dos direitos humanos das pessoas com deficiência
As OSC6 constituem-se de parcerias voluntárias com a administração pública, sem fins lucrativos, em regime de mútua cooperação, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros. Elas têm por objetivo a estimulação da gestão democrática por meio da formulação, da execução, do monitoramento e da avaliação de políticas e de ações de interesse público e recíproco para a promoção de direitos humanos. Fundamentalmente, dedicam-se a questões que envolvem as minorias político-sociais nas áreas da saúde, da educação, da cultura, da ciência, da tecnologia, do desenvolvimento agrário, da assistência social e da moradia (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2020).
No que tange às pessoas com deficiência, as atuais 781.921 OSC7 representam um importante reforço às mais de 4.000 instituições especializadas brasileiras8 nos processos de ruptura de visões estereotipadas e negativamente discriminatórias, de reformulação de políticas e de ressignificação de culturas das diversas esferas da sociedade. Nesse sentido, por meio do envolvimento das pessoas com deficiência e de seus diversos profissionais, as OSC têm investido em formação de recursos humanos, no empoderamento de famílias e na conscientização pública em relação aos direitos e aos serviços voltados a esse segmento populacional.
No entanto, no âmbito dessas experiências, têm ficado mais evidentes alguns questionamentos: Quais concepções em relação à deficiência os profissionais das diversas áreas dos serviços públicos apresentam? Há diferenças de concepções quando considerados os contextos dos atores, sua formação e área de atuação? Cursos de capacitação ou de formação continuada podem contribuir para a mudança de concepções?
Diante de tais inquietações, o presente estudo objetivou analisar as concepções de deficiência de gestores e de técnicos de diversas áreas públicas, conselhos de direitos e profissionais de outras organizações congêneres que atuam nas redes de serviços de quatro municípios do Estado de São Paulo. Especificamente, objetivou-se:
identificar as concepções de deficiência de profissionais atuantes em rede de proteção e de prevenção à violência;
analisar a relação entre categoria profissional e concepções em relação à deficiência;
compreender e discutir se há diferenças significativas entre as concepções de deficiências em relação aos contextos de origem;
verificar se cursos de capacitação podem influenciar na variação de concepções em relação à deficiência.
O estudo justifica-se pela necessidade de fomentar-se, junto às comunidades científicas, acadêmicas, institucionais, governamentais e sociais, possíveis caminhos para a identificação e a análise de concepções em relação às pessoas com deficiências. Destaca-se, ainda, sua relação direta às ações cooperativas, afirmativas e de acessibilidade que envolvam as OSC, as iniciativas públicas, privadas e não governamentais, voltadas ao reconhecimento das identidades e às diferenças das pessoas com deficiências, como minorias político-sociais, e à proteção e à prevenção à violência.
2 Método
A pesquisa, cujo delineamento se baseou em um estudo multicaso, de caráter experimental, com análise quantitativa e qualitativa, atendeu a todas as exigências éticas para investigações científicas - Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) número 3.730.077, CAAE 22156719.2.0000.5504. Foi desenvolvida no Estado de São Paulo, por uma Instituição Pública da Educação Superior (IPES) em cooperação com uma Organização da Sociedade Civil (OSC)9 dedicada a ações voltadas a pessoas com algum tipo de deficiência, que tenham ou não altas habilidades, superdotação e/ou Transtorno do Espectro Autista (TEA). Dito isso, a seguir, abordamos os participantes da pesquisa; em seguida, discorremos sobre os procedimentos e os instrumentos de coleta de dados; por fim, delineamos o tratamento e a análise dos dados.
2.1 Participantes da pesquisa
O estudo foi realizado no âmbito de quatro municípios paulistas, identificados10 e selecionados aqueles: a) que participaram de alguma ação do programa de formação da OSC e/ ou de um programa estadual sobre a temática; b) com população acima de 100 mil habitantes; c) com mais de 100 habitantes com deficiência, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012)11; d) com distribuição geográfica no âmbito do estado (próximos à capital do estado, no litoral e no interior).
Nesses contextos, participaram 97 profissionais (46%)12 que atuam na assistência social, na saúde, na educação, na segurança pública, na mobilidade urbana, nas questões de direitos humanos, no conselho tutelar, nos conselhos municipais de direitos, nas instituições especializadas e/ou em outras organizações congêneres. A idade média dos participantes foi de 44,65 com desvio padrão de 9,30 e variação entre 22 e 70 anos.
2.2 Procedimentos e instrumentos de coleta de dados
Valendo-se dos procedimentos éticos da pesquisa, os referidos profissionais que concordaram em participar da presente pesquisa realizaram o curso de capacitação13 ofertado pela OSC. Na oportunidade, os sujeitos da pesquisa realizaram diversas atividades no âmbito dos quatro módulos de formação e, dentre elas, responderam à Escala de Concepções de Deficiência (ECD)14 antes do primeiro módulo (teste) e no final do último módulo (reteste).
2.3 Tratamento e análise dos dados
Os dados coletados por meio da ECD foram tabulados no software Excel, respeitando-se suas origens em relação aos municípios investigados. Para cada município, foram inseridos e calculados os escores15 para as quatro concepções de deficiência que compõem a ECD, a qual, cumpre ressaltarmos, permite apenas uma opção de resposta para cada asserção (Tabela 1).
Concordo inteiramente | Concordo parcialmente | Nem concordo nem discordo | Discordo parcialmente | Discordo inteiramente |
---|---|---|---|---|
a=4 | b=3 | c=0 | d=2 | e=1 |
Para a análise quantitativa dos dados, foi usado o software IBM SPSS Statistics Base (Versão 21.0). As análises basearam-se nos procedimentos da estatística descritiva e inferencial (Dancey & Reidy, 2006). Para todos os conjuntos de dados, foram realizados procedimentos estatísticos para a verificação da normalidade16. Nesse sentido, predominou a aplicação do teste de Shapiro-Wilk e, a depender de cada caso, prosseguiu-se com Análise de Variância (ANOVA), testes não paramétricos de Kruskal-Wallis e de Wilcoxon, testes de Post Hoc Tukey ou Dunn e Cálculo de Tamanho de Efeito (d de Cohen).
Considerando-se o nível de significância de α=5%, as análises quantitativas foram discutidas com a literatura científica, com vistas a conhecerem-se as concepções de deficiência dos profissionais participantes da pesquisa e, valendo-se de testes e retestes realizados no âmbito de cursos de capacitação, identificarem-se suas possíveis relações com a origem geográfica (municípios) e categorias profissionais.
3 Resultados
A análise das perspectivas de gestores e técnicos que atuam nas redes de serviços de quatro municípios do Estado de São Paulo possibilitou, dentre outros aspectos, verificar se cursos de capacitação podem promover efeitos sobre suas respectivas concepções de deficiência. Conforme destacam Leite & Lacerda (2018), importa
compreender como segmentos populacionais concebem sujeitos que, por condições diversas, se distanciam de padrões físicos, comportamentais e/ou emocionais valorizados e compartilhados culturalmente, sendo demarcados como diferentes, ao desviarem de uma dita normalidade, e considerados anormais. (p. 439)
Nesse processo de análise quantitativa e qualitativa, cumpre destacar algumas variáveis dos participantes, tais como faixa etária, contextos geográficos, formação, atuação e ocupação profissional.
3.1 Profissionais e suas concepções de deficiências
As concepções de deficiência dos 97 participantes da pesquisa apresentaram diferenças estatisticamente significantes entre si, predominando maior concordância em relação aos enunciados associados às concepções social e biológica (Tabela 2).
(n=97) | Social | Biológico | Metafísica | Histórico-cultural |
---|---|---|---|---|
Média | 11,76 | 11,07 | 9,66 | 5,97 |
Desvio padrão | 3,45 | 3,73 | 3,24 | 2,58 |
É possível notar flutuações nos valores das médias entre as concepções. Para verificar se essas flutuações podem ser consideradas significativas, foi realizada uma Análise de Variância (Anova one Way) e, com nível de confiança de 95%, o resultado reportou p<0,05. Logo, pode--se afirmar que há diferença significativa entre as médias das quatro concepções, confirmando o que os valores da Tabela 2 indicam.
Considera-se um resultado esperado, dado o contexto político e a compreensão da deficiência na realidade brasileira. Ainda que o próprio Estatuto da Pessoa com Deficiência tenha determinado a perspectiva social, as narrativas com perspectiva biomédica identificadas indicam que, tendencialmente, predomina o caráter classificatório e focado no indivíduo.
Esse resultado mostra que compreensões e concepções podem coexistir em uma mesma sociedade e que, não necessariamente, uma se anula para que a outra exista. O entendimento acerca dos diversos fenômenos sociais, bem como das deficiências, não é estático e se mantém em constante processo de mudanças que, segundo Dempsey & Nankervis (2006), ocorrem "à medida que os valores da sociedade em geral mudam" (p. 6).
3.2 Relação entre categoria profissional e dimensões de concepções de deficiência
A análise sobre a relação entre as variáveis Categoria Profissional (Gestão; Assistência Social; Educação Especial; Educação; Saúde; Psicologia; e Segurança)17 e Dimensões de Concepções de Deficiência (Social; Histórico-Cultural; Biológica; e Metafísica) foi realizada sob a hipótese de que, para uma mesma concepção, haveria diferentes concordâncias, a depender das funções dos participantes. De fato, a princípio, quando considerada especificamente a média dos dados, foi possível inferir diferenças entre os profissionais (Tabela 3).
Categoria profissional | Dimensão | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Social | Histórico-Cultural | Biológica | Metafísica | |||||
Média | Desvio padrão | Média | Desvio padrão | Média | Desvio padrão | Média | Desvio padrão | |
Gestão (n=21) | 12,52 | 4,20 | 12,33 | 3,77 | 10,81 | 3,40 | 6,52 | 3,06 |
Assistência social (n=21) | 10,90 | 3,68 | 10,19 | 3,49 | 10,05 | 3,40 | 5,67 | 1,83 |
Educação Especial (n=18) | 11,94 | 2,58 | 10,56 | 3,76 | 9,22 | 3,39 | 6,72 | 2,70 |
Educação (n=13) | 11,46 | 2,47 | 10,77 | 3,77 | 8,85 | 2,54 | 5,62 | 2,53 |
Saúde (n=11) | 12,64 | 3,67 | 12,82 | 3,03 | 8,87 | 3,07 | 5,45 | 2,81 |
Psicologia (n=9) | 12,22 | 3,38 | 10,89 | 3,41 | 10,11 | 3,41 | 5,33 | 2,55 |
Segurança (n=3) | 8,00 | 3,46 | 7,33 | 6,35 | 10 | 1,73 | 5,33 | 3,51 |
Contudo, foi necessária a verificação da significância dessa variação, para a qual prosseguiu-se com a realização de teste de normalidade (Shapiro-Wilk) e a homogeneidade de variância. De acordo com o resultado, prosseguiu-se com o teste adequado, nesse caso a ANOVA e o teste de Kruskal-Wallis. Com base nesses procedimentos, os dados apresentados na Tabela 4 são as comparações entre os fatores Categoria Profissional e intra-dimensionais.
Valor de p | ||||
---|---|---|---|---|
Categoria profissional | Dimensão Social | Dimensão Histórico-cultural | Dimensão Biológica | Dimensão Metafísica |
Gestão | 0,341 | 0,151 | 0,353 | 0,844 |
Assistência social | ||||
Educação Especial | ||||
Educação | ||||
Saúde | ||||
Psicologia | ||||
Segurança |
Os dados indicam que a distribuição de escores mensurados para cada Dimensão de Concepção de Deficiência se comporta de modo praticamente homogêneo entre as Categorias Profissionais. Isso significa que o fator Cargo de Ocupação não influencia significativamente na concordância ou na discordância de enunciados de uma determinada concepção de deficiência. Dessa forma, a hipótese de que a atuação do profissional poderia influenciar sobre a sua concepção de deficiência não pôde ser corroborada, podendo indicar que as definições de deficiência não descrevem indivíduos, mas as percepções e as expectativas da sociedade de pessoas associadas a essa definição ou classificação (Dempsey & Nankervis, 2006, p. 7).
3.3 Relação entre as dimensões de concepções de deficiências e os contextos municipais
Na perspectiva da Abordagem do Ciclo de Políticas, foram considerados os microcontextos (formação dos participantes, gestão do município, políticas municipais, etc.) dos municípios participantes e as compreensões dos profissionais em relação à deficiência. Foi verificada a hipótese na qual se concebia que uma mesma dimensão de concepção (variável dependente) divergiria (concordância/discordância), significativamente, entre os quatro municípios participantes (variável independente).
Nesse sentido e com base na ANOVA e no teste de Kruskal Wallis18, os dados apresentados na Tabela 5 indicam os valores descritivos para cada município em relação à cada dimensão da ECD, bem como seus respectivos valores de p, que indicam os resultados conclusivos dos testes.
Dimensão | Municípios | Descritivos | Valor de p | |
---|---|---|---|---|
Média | Desvio padrão | |||
Social |
1 2 3 4 |
12,38 11,86 11,50 11,64 |
4,06 4,78 3,16 3,26 |
0,865 |
Histórico-cultural |
1 2 3 4 |
11,00 11,23 11,50 10,40 |
3,62 3,82 3,83 3,72 |
0,735 |
Biológica |
1 2 3 4 |
10,38 9,09 10,65 8,36 |
3,46 3,38 2,80 3,16 |
0,032 |
Metafísica |
1 2 3 4 |
5,75 4,68 7,03 5,80 |
2,77 2,28 2,34 2,57 |
0,002 |
Fundamentalmente, os resultados destacados indicam diferenças estatisticamente significantes para as concepções Biológica e Metafísica, o que corrobora nossa hipótese de que uma mesma concepção de deficiência pode não apresentar concordância entre os municípios. Por meio de testes de Post Hoc, é possível interpretar com precisão onde se encontra essa diferença.
O teste de Post Hoc Tukey especifica que os resultados descritivos dos Municípios 3 e 4 divergem entre si em relação à concepção biológica, tendendo o primeiro município a concordar mais com essa concepção segundo os dados descritivos. O teste Post Hoc Dunn, por sua vez, revela que a diferença na concepção metafísica está presente nos Municípios 2 e 3, isso ocorrendo em maior concordância no segundo município. Os municípios não reportados apresentaram valores praticamente semelhantes.
Contudo, ao serem considerados todos os participantes do estudo, sem relacioná-los aos seus respectivos municípios, foi constatada maior concordância com a concepção social da deficiência e menor concordância com a concepção metafísica. Esse resultado indica que os atores que atuam nos serviços da rede de prevenção e de proteção à violência parecem estar consonantes com a perspectiva social, defendida pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO], 2006) e com a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015).
3.4 As concepções de deficiência: comparação entre teste e reteste
A comparação entre as concepções de deficiência de todos os participantes do estudo considerou os dados provenientes da primeira aplicação da ECD (teste), realizada no início do curso de capacitação e, na sua conclusão, da segunda aplicação da ECD (reteste), valendo-se da estatística descritiva e inferencial. Se considerássemos, nessa análise comparativa, apenas a média e o desvio padrão das concepções de deficiência dos participantes, em ocasião do teste e do reteste, poderíamos inferir que o curso de capacitação não influencia na mudança de concepções de deficiência, especialmente ao constatarmos que as variações entre os dados não indicam grandes mudanças (Tabela 6).
Município 1 | Média (teste) | Desvio padrão | Média (reteste) | Desvio padrão |
---|---|---|---|---|
Social | 12,38 | 4,06 | 13,06 | 3,32 |
Biológica | 10,38 | 3,46 | 9,75 | 2,91 |
Histórico-cultural | 11 | 3,62 | 12,50 | 4,15 |
Metafísica | 5,75 | 2,77 | 5,50 | 1,75 |
Município 2 | Média (teste) | Desvio padrão | Média (reteste) | Desvio padrão |
Social | 11,50 | 3,16 | 10,88 | 3,40 |
Biológica | 10,65 | 3,80 | 9,15 | 3,27 |
Histórico-cultural | 11,50 | 3,83 | 10,76 | 3,93 |
Metafísica | 7,03 | 2,34 | 6,20 | 2,37 |
Município 3 | Média (teste) | Desvio padrão | Média (reteste) | Desvio padrão |
Social | 11,64 | 3,26 | 11,96 | 3,58 |
Biológica | 8,36 | 3,16 | 8,32 | 3,30 |
Histórico-cultural | 10,40 | 3,72 | 11,96 | 3,58 |
Metafísica | 5,80 | 2,57 | 5,44 | 2,83 |
Município 4 | Média (teste) | Desvio padrão | Média (reteste) | Desvio padrão |
Social | 11,86 | 3,78 | 10,73 | 4,18 |
Biológica | 9,09 | 3,38 | 8,32 | 3,47 |
Histórico-cultural | 11,23 | 3,82 | 10,95 | 5,03 |
Metafísica | 4,68 | 2,28 | 4,86 | 1,35 |
Ao prosseguirmos com a estatística inferencial, por sua vez, o teste de Normalidade indicou que o conjunto de dados não obedeceram a distribuições do tipo normal. Diante disso, prosseguimos com o teste não paramétrico de Wilcoxon, de modo a sustentar a comparação entre os pares de medidas de concepções teste/reteste, considerando-se cada dimensão em cada município (Tabela 7).
Município 1 | Social | Histórico-Cultural | Biológica | Metafísica |
---|---|---|---|---|
Valor de p | 0,454 | 0,162 | 0,587 | 0,436 |
Município 2 | Social | HC | Biológica | Metafísica |
Valor de p | 0,253 | 0,169 | 0,021 | 0,147 |
Município 3 | Social | HC | Biológica | Metafísica |
Valor de p | 0,624 | 0,045 | 0,963 | 0,466 |
Município 4 | Social | HC | Biológica | Metafísica |
Valor de p | 0,112 | 0,745 | 0,249 | 0,242 |
Ao considerarmos, na comparação entre as quatro concepções de deficiência mensuradas no teste e reteste de todos os municípios, o índice de 5% (<0,05) como parâmetro de significância estatística pelo teste de Wilcoxon, nota-se que há diferença significativa apenas para a concepção Biológica (Município 2) e para a concepção Histórico-Cultural (Município 3).
Especificamente para essas duas medidas, foi realizado o cálculo do tamanho de efeito e, considerando-se os parâmetros indicados pela literatura, não se pode considerar as diferenças como tendo um efeito de grande magnitude19. Assim, esse resultado reforça que a capacitação realizada promoveu singelas mudanças nas concepções de alguns participantes, mas sem grandes efeitos sobre aquelas de todos os profissionais participantes.
Há de destacarmos, no entanto, que a maioria dos profissionais tinha uma tendência, desde o início do curso de capacitação, a concordar com a concepção social de deficiência (Tabelas 3, 4 e 5), mesmo que os índices de concordância/discordância em relação a uma mesma concepção de deficiência não tenham sido homogêneos entre os municípios.
Esses indícios convergem para aqueles encontrados por Baglieri et al. (2011), Mattos (2016) e Carballo et al. (2019), os quais identificaram a dominância da concepção social nos discursos sociais, por influências histórico-culturais mais recentes, mesmo que com alguns resquícios de concordância com a compreensão biológica da deficiência.
Além desses resultados, o estudo revelou que as categorias profissionais, em si, não influenciam sobre a concepção, ainda que os testes tenham indicado que as concepções de deficiência divergem significativamente entre os municípios. Essas nuances contribuem para sustentar a afirmativa de que as concepções de deficiência podem não ser um fenômeno facilmente observável. Contudo, aprimorar estratégias para identificá-las nas diversas esferas sociais é ação fundamental para se fomentar a ampliação de debates e iniciativas cientificamente fundamentados.
Identificar e desconstruir concepções negativamente discriminatórias sobre o fenômeno da deficiência é imprescindível no processo de superação de atitudes potencialmente violentas, nas suas mais diversas rostidades, presentes por entre os mais diversos atores sociais.
4 Considerações finais
A ampliação do debate acerca dos direitos humanos e da equiparação de oportunidades para as minorias político-sociais, nos últimos anos, tem contribuído com a (des)construção de significados e interpretações acerca das pessoas com deficiências. Somam-se a esse cenário possíveis influências de fatores sociais, culturais, políticos, geográficos, econômicos e educacionais dos diferentes microcontextos, os quais podem corroborar a superação gradativa de concepções baseadas no capacitismo, frequentemente identificáveis em narrativas de caráter biomédico (Mello, 2014).
Sugere-se que a visibilidade promovida pelas redes sociais tem influenciado as narrativas dos diversos atores sociais, sobretudo na última década. Consequentemente, os discursos social e politicamente "aceitos" ou tidos como "corretos", a depender das moralidades presentes em cada contexto, podem tender a interferir nos resultados de pesquisas, culminando em um dilema ético nem sempre sensível aos instrumentos de coleta de dados: a coerência dos participantes entre o que se fala e o que realmente se faz e/ou pensa.
Diante disso, importa compreendermos que as redes de prevenção e de proteção à violência, dos que envolvem diferentes contextos, precisam atravessar o processo de identificação e de (des)construção das concepções presentes, ainda que veladamente, com atenção para o fato de que elementos sócio-histórico-culturais podem potencializar ou minimizar atitudes discriminatórias frente a pessoas com deficiências.
Urge, portanto, a necessidade de planejar, elaborar, desenvolver, gerenciar e avaliar, cooperativamente, sob a perspectiva biopsicossocial e da acessibilidade, ações orquestradas que influenciem os diversos microcontextos na revisão de suas concepções de deficiência. De modo sustentável, indicamos que esse processo envolva não somente as OSC, as universidades, as esferas públicas e os profissionais que atuam especificamente com a população com deficiência, mas todos os atores sociais, em uma vigilância coletiva para a prevenção e proteção à violência.