1 Introdução
O presente artigo traz um levantamento do estado da arte do Ensino de Física para surdos. Sua relevância pode ser compreendida em face do atual cenário da educação brasileira, no qual a Educação Especial e a inclusão de pessoas com deficiência são uma realidade cada vez mais presente nas escolas, sendo considerada uma temática prioritária tanto para a área de Educação em si quanto para a pesquisa na área.
Levando-se em conta dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP] (2019), tem-se que o número de matrículas na Educação Especial chegou a 1,2 milhão em 2018, representando um aumento de 33,2% em relação a 2014, no Ensino Médio esse aumento foi de 101,3%. Logo, considerando o contexto do Ensino Médio, o ensino de Ciências, mais especificamente o ensino de Física, observa-se inúmeros problemas, tais como a qualidade da educação científica, que envolve a formação docente nessa área, reavaliação dos currículos, práticas pedagógicas, tempos e espaços da escola (Scheid, 2016). Além desses problemas, os contextos educacionais especiais possuem outros, que são de certa forma mais evidentes; é o caso, por exemplo, da educação de surdos, em que existe uma carência de traduções de conceitos científicos para as línguas de sinais, em especial a Libras (Oliveira, 2017). Existe, também, a falta de adaptações dos conteúdos e dos materiais didáticos, algo que ocasiona dificuldades na aprendizagem de conceitos teóricos e abstratos das Ciências e Matemática por parte dos surdos (Marschark & Hauser, 2008).
É nesse contexto da Educação Especial com enfoque no aluno surdo que buscamos responder, nesta pesquisa, aos seguintes questionamentos: (1) Como a pesquisa em ensino de Física para alunos surdos vem sendo desenvolvida tanto no Brasil como em outros países? (2) O Ensino de Física está contemplando os preceitos da Educação Especial para surdos? (Rinaldi,1997). (3) Que metodologias de ensino foram mais citadas ou utilizadas implícita ou explicitamente nesses trabalhos? E, também, mas não menos importante, (4) Com base na análise dos trabalhos encontrados, quais as principais conclusões de pesquisas e implicações para o ensino de Física para surdos?
Para responder a esses questionamentos, realizamos uma revisão bibliográfica, delineada na análise de conteúdo de Bardin (2016), com o objetivo de buscar, na literatura, disponível inferências, indícios, tendências, apontamentos ou constatações, se o ensino de Física está ou não contemplando os preceitos da Educação Especial para surdos (Rinaldi,1997).
2 Desenvolvimento: percurso metodológico e resultados da pesquisa bibliográfica
Como suporte teórico, esta pesquisa bibliográfica usou a análise de conteúdo de Bardin (2016) para traçar a frequência das características que se repetem no conteúdo dos textos pesquisados, pois, de acordo com o autor, a análise de conteúdo é um "conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens" (p. 44), que possibilita também a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção ou recepção dessas mensagens. Esse conjunto de técnicas é composta de três grandes fases: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; 3) o tratamento dos resultados e interpretação (Bardin, 2016).
Na fase da pré-análise, foi utilizado, como base de dados, o catálogo de teses e de dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Google Acadêmico5, mas foi dado maior relevância a outros três repositórios, a saber: Education Resources Information Center (ERIC), Scientific Electronic Library Online (SciELO), SciVerse Scopus (Scopus).
Nesses repositórios, utilizamos os seguintes termos de pesquisa, acrescidos dos seguintes Operadores Booleanos: "Science Education" OR "Ensino de ciências" OR "enseñanza de ciências"; ("Science Education" OR "Ensino de ciências" OR "enseñanza de ciências") AND ("educação especial" OR "special education" OR "educacion especial" OR "educação inclusiva" OR "inclusive education" OR "educación inclusiva"); ("Science Education" OR "Ensino de ciências" OR "enseñanza de ciências") AND (surdo OR surdez OR sordo OR sordera OR deafness OR "hearing disability" OR "hard of hearing" OR "deficiente auditivo" OR "deficiência auditiva" OR "discapacidad auditiva"); (Physics OR Física) AND (surdo OR surdez OR sordo OR sordera OR deafness OR "hearing disability" OR "hard of hearing" OR "deficiente auditivo" OR "deficiência auditiva" OR "discapacidad auditiva")); (("ensino de Física") AND (surdo OR surdez OR sordo OR sordera OR deafness OR "hearing disability" OR "hard of hearing" OR "deficiente auditivo" OR "deficiência auditiva" OR "discapacidad auditiva"))6 .
Nas plataformas ERIC e Scopus, utilizamos outros operadores de busca, devido a peculiaridades dessas plataformas. Na plataforma ERIC, utilizamos a busca por descritores, efetuando a pesquisa pelos seguintes operadores: "descriptor:Science Education", "descriptor:Science Education AND descriptor:Special Education", "descriptor:Science Education AND descriptor:deafness", "descriptor:Science Education AND descriptor:deafness AND descriptor:Physics", "descriptor:deafness AND descriptor:Physics", deaf AND physics. Enquanto, na plataforma Scopus, utilizamos a pesquisa avançada pelos seguintes operadores: ALL ("Science Education"), ALL ("Science Education" AND "Special Education"), ALL ("Science Education" AND deafness), ALL ((deaf OR deafness OR "hearing disability" OR "hard of hearing") AND physics) AND (LIMIT-TO (SUBJAREA, "PHYS").
Como métodos de seleção, utilizamos: leitura flutuante, elaboração de hipóteses, objetivos e indicadores, que fundamentassem a interpretação. A escolha dos documentos levou em consideração as regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência e outros procedimentos analíticos apontados por Bardin (2016).
Na fase de exploração do material coletado, procedemos com a codificação dos dados a partir das unidades de registro. E, na fase de tratamento dos resultados e interpretação, os documentos selecionados foram classificados segundo suas semelhanças e por diferenciação, com posterior reagrupamento, em função de características comuns, seguindo Método de análise por categorias temáticas. Nessa fase, identificamos que os artigos coletados se enquadraram em três categorias temáticas: (i) Metodologia de Ensino, (ii) estudo de caso, (iii) desenvolvimento de material didático.
Enquadram-se na categoria (i) Metodologia de Ensino artigos que apresentam propostas metodológicas para o ensino de Física, que pode ser, por exemplo, uma sequência didática, uma aula específica, teórica ou prática, no laboratório real ou virtual, utilização de recursos e objetos virtuais de aprendizagem. A categoria (ii) estudo de caso abrange artigos que relatam a investigação de casos particulares, como a interação social dos indivíduos pesquisados, ou situações específicas relacionadas aos processos de ensino e de aprendizagem, sem, no entanto, descrever uma metodologia de ensino explicitamente. Enquanto, na categoria temática (iii) desenvolvimento de material didático, enquadraram-se artigos que apresentam a produção de um material didático totalmente inovador, que pode ser físico, como um hardware ou aparato experimental inédito, ou virtual, como um software.
Inicialmente, buscamos compor o cenário do ensino de Ciências de uma forma geral, levantando em cada plataforma de pesquisa o número de trabalhos que abordam o tema; em seguida, restringimos as buscas para o ensino de Ciências para surdos; e, finalmente, o ensino de Física para surdos na perspectiva da Educação Especial e/ou inclusiva, procedendo às fases descritas anteriormente. A seção a seguir descreve os resultados obtidos.
3 Resultados e discussão
Conforme o exposto anteriormente, daremos ênfase nos resultados obtidos em três plataformas de pesquisa: ERIC, SciELO e Scopus, e, posteriormente descreveremos, de forma conjunta, como se apresenta o cenário nacional e internacional para o ensino de Física para surdos.
3.1 Pesquisa no repositório ERIC
No repositório ERIC, pesquisamos inicialmente o descritor Ensino de Ciências, quando foram encontrados 84.576 trabalhos. Então, verificamos quantos desses trabalhos referiam-se à Educação Especial. Adicionamos à pesquisa esse descritor, reduzindo, então, para 541 trabalhos o campo de estudo.
Como nossa pesquisa concentra-se exclusivamente na surdez, procedemos com a pesquisa por trabalhos sobre ensino de Ciências para surdos, operando a busca por esses descritores. Foram encontrados 94 artigos, que, ao incluir o descritor "física", esse número foi reduzido para 6. Ao pesquisarmos somente os descritores Surdez e Física, mais dois artigos foram incluídos, totalizando, então, um número de oito artigos, porém um desses, doravante, iremos denominar de "falso positivo", pois descreve aspectos linguísticos e cinemáticos como a velocidade de execução de sinais da Língua Americana de Sinais (Malaia & Wilbur, 2012), e não trata do ensino de Física propriamente dito.
Pretendendo verificar todos os trabalhos que mencionavam surdo ou surdez e Física, sem utilizar os descritores, efetuamos a busca nesse repositório e obtivemos então 13 artigos. Contudo, cabe ressaltarmos que cinco desses artigos eram falsos positivos, pois eles mencionam a palavra "física", mas não se enquadram efetivamente como pesquisa em ensino de Física, seja porque mencionam brevemente essa ciência (Al-Hilawani, 2014; Schalock et al., 1994), ou por mencionar a palestra de um professor de Física (Marschark et al., 2004) ou aspectos acústicos relacionados à fala de pessoas surdas e ouvintes (Whitehead & Barefoot, 1980) ou aspectos linguísticos (Malaia & Wilbur, 2012). No entanto, a pesquisa desses termos trouxe mais um artigo, que foi enquadrado em dois descritores, que são ramos da Física, a acústica e a óptica, mas que não foi enquadrado no descritor da Física (poderíamos chamar de um "falso negativo"). De qualquer forma, esse artigo é importante pois descreve um experimento de acústica para surdos (Truncale & Graham, 2014). Assim sendo, selecionamos, nessa plataforma de pesquisa, oito artigos sobre o ensino de Física para surdos.
3.2 Pesquisa no repositório SciELO
No repositório SciELO, inicialmente, pesquisamos pelo termo Ensino de Ciências em três línguas (português, inglês e espanhol, cujos descritores foram mencionados anteriormente), quando foram encontrados 943 trabalhos. Então, verificamos quantos desses trabalhos referiam-se à Educação Especial e/ou inclusiva. Encontramos, assim, nove artigos. Ao concentrarmos a pesquisa exclusivamente no ensino de Ciências para surdos, encontramos então quatro artigos. Decidimos proceder a uma pesquisa mais geral, sobre todos os trabalhos que citam, em qualquer lugar do texto, os termos "surdo", "surdez" e "física". Encontramos, desse modo, 41 trabalhos.
Após realizarmos uma leitura flutuante nos títulos e nos resumos desses trabalhos, eliminamos os falsos positivos, relacionados à disciplina Educação Física ou ao termo deficiência física, e outros. Encontramos, assim, quatro artigos diretamente relacionados ao ensino de Física para surdos. Esses quatro artigos são de revistas brasileiras e podem ser encontrados de forma mais objetiva, pesquisando o termo "ensino de Física" associado aos termos relativos à surdez.
3.3 Pesquisa no repositório Scopus
No repositório Scopus, pesquisamos, inicialmente, todos os trabalhos que citam o Ensino de Ciências, e, assim, foram encontrados 193.027 trabalhos. Então, verificamos quantos desses trabalhos se referiam à Educação Especial. Adicionamos esse termo, reduzindo o número inicial para 4.188 trabalhos. Concentrando-se exclusivamente na surdez, procedemos então com a pesquisa por trabalhos sobre ensino de Ciências para surdos, encontrando, dessa maneira, 202 trabalhos.
Decidimos proceder com a pesquisa de todos os trabalhos que citam, em qualquer lugar do texto, os termos "surdo", "surdez" e "física", encontramos, assim, 4.601 trabalhos. Restringimos a busca à subárea da Física e Astronomia, resultando em 744 trabalhos.
Verificamos muitos falsos positivos, como, por exemplo, o uso do termo "bandas surdas em cristais sônicos bidimensionais" (em inglês: "deaf bands in two-dimensional sonic crystals"), que se trata de um fenômeno físico específico da área de cristais, sem absolutamente nenhuma relação com a temática de surdez (em humanos), dentre outros. Entretanto, após realizarmos uma leitura flutuante nos títulos e nos resumos desses trabalhos, selecionamos 29 artigos que poderiam contribuir direta ou indiretamente com esta pesquisa. No entanto, apenas sete desses artigos referiam-se diretamente ao ensino de Física para surdos, os demais referem-se a outras áreas, como o Ensino de Ciências em geral (não incluindo a Física), Linguagens, Ensino de Matemática e Tecnologia Assistiva.
Como alguns desses sete artigos encontrados na Scopus também estão indexados em outro repositório, já havíamos encontrados dois desses na SciELO e três no diretório ERIC. Assim sendo, conseguimos coletar nessas três plataformas, ERIC, SciELO e Scopus, um total de 14 artigos, que separamos de acordo com o critério da nacionalidade, que será destacado nas subseções a seguir.
3.4 Panorama do ensino de Ciências e Física para surdos no Brasil
Ao analisar o ensino de surdos, em uma perspectiva ampla, envolvendo diversas áreas de conhecimento, constata-se um razoável volume de pesquisas, nas últimas décadas. Por exemplo, no banco de teses e dissertações da CAPES, encontramos 523 trabalhos que tratam do ensino de surdos, no período que reúne registros desde 1987 até 2019. Desses trabalhos, chama atenção a dissertação de Ramos (2013), que pesquisou, no período de 2005 a 2009, 206 produções acadêmicas, sendo 34 teses e 172 dissertações. A autora identificou a prevalência de estudos vinculados a programas em Educação, Letras e Linguística, bem como a presença de diferentes áreas, como Ciência da computação, Engenharia e Tecnologia.
Posteriormente, Ramos e Hayashi (2019) realizaram uma análise de 62 dissertações e oito teses defendidas entre 2010 e 2014, sobre o referido tema e concluíram que, nesse período, houve maior concentração de produções nas regiões Sudeste e Sul, em instituições de Ensino Superior públicas e nas áreas de conhecimento Ciências Humanas e Linguística, Letras e Artes, e muito pouco sobre ensino de Ciências. Santana e Sofiato (2018) também chegaram a conclusões semelhantes quanto ao ensino de Ciências, mas foram além ao incluir, em sua pesquisa, revistas nacionais e internacionais no período de 2012 a 2017, encontrando um total de 101 trabalhos. Desses 101 trabalhos, os autores destacam que 20 se referiam ao ensino de Física para surdos, sendo nove artigos publicados em revista científica, três trabalhos de conclusão de curso, seis dissertações e duas teses.
Como ressaltam esses autores, quando a temática é o ensino de Ciências para surdos, mais especificamente o ensino de Física para surdos, o volume de produções acadêmicas cai abruptamente. A Figura 1 mostra essa situação.
Nesta pesquisa, nos repositórios ERIC, SciELO e Scopus, encontramos apenas cinco artigos que foram produzidos no Brasil. O Quadro 1 identifica e classifica cada artigo encontrado, organizando-os em ordem cronológica. Em seguida, descrevemos mais detalhadamente cada artigo, destacando a categoria temática e os seus pontos mais relevantes.
Artigo | Autores | Revista | Ano | Indexador | País | Tema |
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Vídeos didáticos bilíngues no ensino de leis de Newton | Cozendey et al. | RBEF | 2013 | SciELO e Scopus | Brasil | Metodologia de ensino |
Interações entre o aluno com surdez, o Professor e o Intérprete em aulas de Física: uma perspectiva vygotskiana | Vargas & Gobara | RBEE | 2014 | SciELO | Brasil | Estudo de caso |
O compartilhamento de significado na aula de Física e a atuação do interlocutor de Língua Brasileira de Sinais | Pessanha et al. | Ciência & Educação | 2015 | SciELO | Brasil | Estudo de caso |
Ensino de Física para surdos: Carência de material pedagógico específico | Pereira & Mattos | Revista Espacios | 2017 | Scopus | Brasil | Metodologia de ensino |
Proposta didático experimental para o ensino inclusivo de ondas no Ensino Médio | Silveira et al. | RBEF | 2019 | SciELO e Scopus | Brasil | Material didático |
Nota. RBEF - Revista Brasileira de Ensino de Física; RBEE - Revista Brasileira de Educação Especial.
Procedendo à análise por categorias temáticas, temos que na categoria temática (i) Metodologia de Ensino se enquadram dois artigos (Cozendey et al., 2013; Pereira & Mattos, 2017), que relatam a elaboração e a implementação de estratégias didáticas para o ensino de Física para surdos. O artigo de Cozendey et al. (2013) apresenta a implementação de um recurso bilíngue que, segundo esses autores, pode ser utilizado em "turmas inclusivas de física que tenham alunos com deficiência auditiva" (p. 1). Eles desenvolveram seis vídeos bilíngues, que utilizam Libras e valorizam aspectos visuais, como recurso inclusivo para o ensino das leis de Newton. Essa estratégia didática foi implementada em uma sala de aula de uma escola estadual de nível médio de São Paulo, composta por 18 alunos, dos quais uma aluna era surda e possuía conhecimentos básicos de Libras. Destaca-se que, apesar da falta da tradução de conceitos científicos para Libras, o recurso bilíngue desenvolvido por eles "pode tornar a aula mais inclusiva" (p. 1). Todavia, esses autores não fornecem evidências empíricas dessa conclusão, e sua abordagem dá-se em um contexto específico; nesse caso, generalizações precisam observar tais particularidades.
O artigo de Pereira e Mattos (2017) relata o desenvolvimento e a aplicação de uma aula "tradicional" (nas palavras dos autores) voltada ao aluno surdo, sobre as diferenças conceituais das grandezas físicas Peso e Massa. Essa aula utilizou recursos visuais e os sinais específicos em Libras, desenvolvidos por um grupo de professores e intérpretes. Segundo os autores, os resultados indicam que os alunos surdos participantes desse trabalho apresentaram as mesmas dificuldades conceituais dos alunos ouvintes. Com a utilização dos sinais em Libras adequados, as dúvidas foram sanadas. No entanto, os autores não mostram nenhuma evidência de que houve de fato um desenvolvimento cognitivo que corrobore a sua conclusão; tal como o resultado comparativo entre um pré e um pós-teste, também não foi possível identificar explicitamente nenhuma teoria de aprendizagem nesta pesquisa.
Na categoria temática (ii) estudo de caso, temos dois artigos, de Vargas e Gobara (2014) e Pessanha et al. (2015), que investigaram a interação social entre professores, tradutores/intérpretes e alunos surdos e ouvintes, no ambiente da escola inclusiva. O artigo de Vargas e Gobara (2014) relata a pesquisa realizada em uma escola inclusiva de Campo Grande/Mato Grosso do Sul e descreve as interações entre o aluno com surdez, o professor e o intérprete em aulas de Física em uma perspectiva Vygotskiana. Como observações, as autoras destacam que, de maneira geral, as escolas "não estão preparadas para receber os alunos com surdez", pois "o ambiente não é adequado aos alunos, e os profissionais das escolas não são capacitados para esse fim" (p. 457). Com relação à disciplina de Física, elas constataram que o intérprete, por não saber Física, acabava não traduzindo o que o professor ensinava e que o professor não planejava a aula pensando no aluno surdo. As autoras concluíram que "a forma como a inclusão de alunos surdos está sendo implementada nas escolas de Campo Grande/MS é ineficaz, e acaba excluindo esses alunos das interações sociais" (p. 458). De fato, as autoras fazem duras críticas às escolas inclusivas de Campo Grande/MS e deixam claro, em seu discurso, a sua posição antagônica a elas.
Já o artigo de Pessanha et al. (2015) apresenta um estudo que verificou o compartilhamento de significados entre a Língua Portuguesa e a Libras para enunciados explicativos sobre dois conceitos da Física, velocidade e aceleração. Os autores utilizaram como metodologia a análise interpretativa de Bakhtin, para verificar o compartilhamento de significado e a mediação do interlocutor. Os pesquisadores chamam atenção para possíveis equívocos que podem ocorrer entre o significado físico-científico e o entendimento correto do conteúdo de Física, que será interpretado e traduzido pelo intérprete de Libras, ocasionado pela falta de sinais, destacados pelos autores como uma carência de "termos que possuam correlatos" (p. 452) em língua portuguesa. Pessanha et al. (2015) indicam que o "Professor e intérprete/interlocutor necessitam planejar conjuntamente a situação de aula, ou, no mínimo, o professor deve esclarecer antecipadamente, ao intérprete ou ao interlocutor, o significado assumido pelos principais conceitos que serão ensinados" (p. 452).
A última categoria temática, (iii) desenvolvimento de material didático, é composta por um artigo de Silveira et al. (2018), que descreve uma proposta experimental para o ensino inclusivo de ondas, que pode ser usada para o ensino de cegos ou surdos. Esses autores desenvolveram dois experimentos que apresentam relações entre frequências invisíveis e inaudíveis, mas que, por meio do processamento com a plataforma Arduino, podem ser convertidas em frequências que sensibilizem os sentidos da visão (no surdo) e da audição (no cego). O Experimento 1 é intitulado como "O som que o surdo pode ver e o cego pode ouvir" (p. 4) e o Experimento 2 é intitulado como "A luz que o cego pode ouvir e o surdo pode ver" (p. 7). Como os títulos desses experimentos indicam, essa proposta didática ajuda "ilustrar os limites de nossas percepções e algumas propriedades do som e da luz", permitindo, assim, "uma experiência sensorial a alunos cegos e surdos em classes mistas" (p. 10). Certamente, explorar recursos sensoriais para alunos com deficiência é importante, mas chama atenção a ênfase demasiada nesse aspecto, pois, tendo em vista que a Física (assim como a Química) opera com níveis de representação de um fenômeno, que, de acordo com Gabel (1993), são os níveis sensório, simbólico e microscópico, ao enfatizar um destes, devemos incluir simultaneamente na instrução pelo menos um dos outros dois níveis, para garantir que conexões suficientes sejam feitas entre os níveis e, assim, tornar a instrução mais eficaz.
Os artigos destacados nesta subseção fornecem uma boa ideia do que está sendo desenvolvido no ensino de Ciências e de Física para surdos no Brasil, demonstrando inclusive uma gama diversificada de estratégias de ensino, que vão desde a utilização de experimentos simples à criação e à implementação de aparatos experimentais mais sofisticados, até a criação de sinais específicos para a tradução de conceitos físicos para Libras. A subseção, a seguir, apresenta os resultados da pesquisa para essa temática, obtidos em pesquisas internacionais.
3.5 Panorama do ensino de Física para surdos no cenário internacional
No cenário internacional, a situação do ensino de Física para surdos não é muito diferente do nacional, pois existe a mesma carência de pesquisas nessa área de ensino. Em nossa pesquisa nos repositórios ERIC e Scopus, incluindo apenas artigos revisados por pares, encontramos nove artigos que tratavam de Física (ou astronomia) para surdos.
O Quadro 2 identifica e classifica cada artigo encontrado nesses repositórios, organizados em ordem cronológica. Em seguida, descrevemos mais detalhadamente cada artigo, destacando a categoria temática e os seus pontos mais relevantes.
Artigo | Autor(es) | Revista | Ano | Indexador | País | Tema |
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Teaching Physics to the deaf | Lang | The Physics Teacher | 1973 | ERIC | USA | Metodologia de Ensino |
Acoustics for deaf Physics students | Lang | The Physics Teacher | 1981 | ERIC | USA | Metodologia de Ensino |
What are the Earth and the Heavenly bodies like? A study of objectual conceptions among Norwegian deaf and hearing pupils | Roald & Mikalsen | INT. J. SCI. EDUC. | 2000 | ERIC e Scopus | Noruega | Estudo de caso |
Norwegian deaf teachers’ reflections on their Science Education: implications for instruction | Roald | JDSDE | 2002 | ERIC e Scopus | Noruega | Estudo de caso |
Innovation in teaching deaf students Physics and Astronomy in Bulgaria | Zamfirov et al. | Physics education | 2007 | ERIC e Scopus | Bulgária | Material didático |
Teaching Physics to deaf college students in a 3-D virtual lab | Robinson | JSESD | 2013 | ERIC | USA | Metodologia de Ensino |
Visualizing sound with an Electro-Optical Eardrum | Truncale & Graham | The Physics Teacher | 2014 | ERIC | USA | Material didático |
Acoustics for the deaf: Can you see me now? | Vongsawad et al. | The Physics Teacher | 2016 | ERIC | USA | Metodologia de Ensino |
Multimedia support for Physics laboratory works in groups with auditory constraints | Davydkov et al. | APEIE | 2018 | Scopus | Rússia | Metodologia de Ensino |
Procedendo à análise por categorias temáticas, temos que, na categoria temática (i) Metodologia de Ensino, se enquadram cinco artigos (Davydkov et al., 2018; Lang, 1973, 1981; Robinson, 2013; Vongsawad et al., 2016), que relatam a elaboração e/ou a implementação de estratégias didáticas para o ensino de Física para surdos, que vão desde a utilização de experimentos físicos a virtuais, ou ainda a utilização de ambos concomitantemente.
Com os artigos de Lang (1973, 1981), nota-se que o ensino de Física para surdos não é algo recente. Esse autor descreve um programa de estudo individualizado para ensinar Física a alunos surdos por meio de movimentos labiais (leitura labial), língua de sinais e escrita com os dedos (datilologia)7 e ressalta vários problemas instrucionais encontrados nos processos de ensino e de aprendizagem e faz algumas recomendações para professores que trabalham com surdos, que vão desde o posicionamento adequado em sala de aula em relação à fonte de luz, como também falar para a classe, não para o quadro, pois isso "facilita a leitura labial"8 (p. 531), tutoria especial, instruções para uso correto do laboratório e a adaptação deste com sinais luminosos para os casos de emergências. Lang (1981) também apresenta técnicas específicas para palestras e demonstrações em acústica para surdos, algo que até mesmo hoje soa inovador, e apresenta como utilizar o osciloscópio para demonstrar de forma visual a natureza mecânica do Som. Em suma, as (importantes) contribuições de Lang focam em informações de ordem prática que auxiliam docentes no ensino para o aluno surdo.
Partindo também do uso de experimentos como metodologia de ensino para surdos, devido ao seu forte apelo visual, Vongsawad et al. (2016) trazem uma proposta didática para o ensino de Acústica para surdos - uma temática que, do ponto de vista sensório, constitui uma barreira natural ao aluno surdo. Eles realizaram alguns experimentos, dos mais simples, como a demonstração de flutuações de pressão acústica usando uma vela e um alto falante, até aparatos mais sofisticados, como o tubo de Rubens9, para demonstrar o fenômeno da onda estacionária e buscam empregar o que definem, a partir de seu referencial teórico, como sendo a pedagogia do "ver e sentir"10 (Vongsawad et al., 2016), que explora os sentidos do tato e da visão dos alunos surdos. De acordo com autores, no desenvolvimento da abordagem "ver e sentir", é preciso selecionar não só bons princípios que podem ser vistos e sentidos, mas também comunicados usando palavras que existem e são comumente usadas na Língua de Sinais Americana. Contudo, mais uma vez, observa-se que, embora a metodologia desses autores comtemple os três níveis de representação dos fenômenos físicos da Acústica, as conexões entre eles são insuficientes e as informações permanecem compartimentadas (Gabel, 1993). Esses autores dão pouca ênfase ao nível simbólico e ao nível microscópico, que, nesse caso, se restringe à explicação das características mecânicas da propagação das ondas no ar (nível microscópico) em uma representação pictórica no quadro (nível simbólico) dessas ondas.
De forma análoga ao que fizeram Davydkov et al. (2018), Lang (1973, 1981) e Vongsawad et al. (2016), também utilizaram experimentos como objetos de aprendizagem, porém esses autores descrevem a possibilidade de usar de forma conjunta recursos de ensino multimídia, como softwares de modelagem computacional, vídeos e website, para auxiliar alunos com restrições auditivas e surdos, no estudo independente (autodidata) e nos preparativos para os trabalhos laboratoriais, em um curso de Física de uma universidade da Rússia. Esse artigo descreve recomendações para o design e a implementação de vídeos sobre tópicos de Mecânica, Termodinâmica e Eletricidade. Segundo eles, esses alunos podem ser envolvidos em um processo autodidata, por meio de tecnologias multimídia que fazem uso de um método eficiente, explicativo, ilustrativo e adaptado a esses alunos.
Juntando o uso do laboratório em uma imersão totalmente digital, Robinson (2013) apresenta uma proposta de Ensino de Física para estudantes universitários surdos, do National Technical Institute for the Deaf at Rochester Institute of Technology (NTID/RIT), em um laboratório virtual do Second Life. No artigo, é relatado como os alunos usaram esse ambiente virtual para praticar conceitos de hidrostática, como empuxo, princípio de Arquimedes, densidade, etc. O autor destaca a acessibilidade dessa atividade, pois, de acordo com ele, o Second Life oferece a capacidade de interagir com um ambiente em três dimensões sem a necessidade de equipamentos altamente especializados, sendo necessário apenas acessar um computador com o software visualizador adequado. Contudo, apesar do caráter de inovação tecnológica desse artigo, ao fazer o uso de um laboratório em um ambiente virtual e tridimensional, identifica-se que a utilização desse recurso se restringe ao nível sensório de representação dos fenômenos físicos, negligenciando os demais níveis, o simbólico e o microscópico.
Na categoria (ii) estudo de caso, temos dois artigos - Roald e Mikalsen (2000) e Roald (2002) - que relatam a investigação de dois grupos: alunos (surdos e ouvintes) e professores surdos, a respeito de fenômenos astronômicos e o processo de ensino e aprendizagem de alunos surdos, respectivamente.
O artigo de Roald e Mikalsen (2000) traz um estudo que aborda as concepções dos alunos surdos de fenômenos astronômicos, que podem ser observados da Terra e do céu. Nesse estudo, foram entrevistados alunos surdos com idade de 7, 9, 11, e 17 anos, e, também, um grupo de controle de alunos ouvintes com nove anos de idade. Os resultados obtidos mostram que as crianças surdas têm "concepções extraordinariamente semelhantes às cientificamente aceitas, quando a idade é levada em consideração, embora esse não seja o caso dos grupos mais velhos" (p. 337). Quatro em cada cinco crianças surdas de 7 anos pensavam que a Terra era esférica, não plana; enquanto apenas cincos entre oito surdos, de 17 anos, pensavam o mesmo para as formas dos corpos celestes. Esses autores destacam que os resultados indicam que a forma como os sinais representam objetos pode afetar as concepções dos surdos sobre esses objetos e trazem o seguinte questionamento: A linguagem visual/espacial dos surdos realmente tem implicações em como eles estão construindo sua visão do mundo? 11 (p. 353).
Em contrapartida, o artigo de Roald (2002) foca na outra ponta do processo, o professor, e traz um estudo que examina as opiniões de cinco professores surdos noruegueses sobre aprendizagem de ciências por estudantes surdos, bem como os meios mais adequados para aprimorar a compreensão e a aprendizagem deles. Os professores que participaram dessa pesquisa foram estudantes pioneiros bem-sucedidos, e o autor destaca que as opiniões desses indivíduos sobre a educação científica de surdos são consideradas de interesse. Roald (2002) destaca como fatores fundamentais para o ensino de Ciências para surdos: (a) capacidade dos professores de comunicarem-se fluentemente em língua de sinais, (b) explicações claras dos conceitos científicos, bem como sua conexão com outros conceitos, (c) ensino diferenciado, (d) expectativas realistas, (e) construir as experiências dos alunos por meio do uso de experimentos, (f) melhorar o acesso à informação e mais tempo para tarefa.
Na categoria temática (iii) desenvolvimento de material didático, temos dois artigos - Truncale e Graham (2014) e Zamfirov et al. (2007) - que mostram, respectivamente, a criação de um CD multimídia para o ensino de conceitos de Física e Astronomia e o desenvolvimento de um aparato experimental que gerou uma patente aos autores que o desenvolveram.
No artigo de Zamfirov et al. (2007), apresenta-se uma estratégia educacional desenvolvida para ser implementada nas escolas búlgaras no ensino de Física e astronomia para alunos surdos na 7ª e 8ª série do Ensino Fundamental. De acordo com esses autores, essa estratégia fornece uma educação eficaz para os alunos com "deficiência auditiva"12 (p. 98) nas escolas regulares, bem como para os que frequentam escolas especializadas. O CD desenvolvido oferece um grande número de termos básicos da física e da astronomia, acompanhados de explicações textuais em búlgaro, em língua de sinais búlgara e em inglês e acompanhado de várias ilustrações. Os autores destacam ainda que esse produto multimídia pode ser usado por crianças com deficiência auditiva, bem como por crianças ouvintes (p. 99) e que a metodologia de sinalização desenvolvida pode ser usada em outras disciplinas curriculares, como Biologia, Química e Geografia.
Já o artigo de Truncale e Graham (2014) descreve um experimento que permite a um aluno surdo determinar e plotar a sensibilidade de um tímpano eletro-óptico na faixa de som de 10 a 150 Hz. Esse sistema foi demonstrado em uma escola especial de Pittsburgh, Pensilvânia, Estados Unidos da América, em uma aula de Física do Ensino Médio. De acordo com esses autores, os alunos ficaram impressionados com o sistema, mas o objetivo do artigo não é simplesmente mostrar um novo dispositivo, mas também inspirar nos outros o mesmo entusiasmo pelo desenvolvimento de ferramentas e acomodações adequadas para a sala de aula. Destacamos que, como educadores de Ciências, é nosso trabalho inovar com métodos que permitam aos alunos com deficiência participar de todos os aspectos das investigações. Nesse sentido, os autores eles questionam: Você está preparado para educar quem entra na sua sala de aula? 13 (p. 79).
Assim, vemos que, no cenário internacional, encontramos para o ensino de Física nove artigos, distribuído em quatro países, Estados Unidos (cinco artigos), Noruega (dois artigos), Bulgária (um artigo) e Rússia (um artigo). Cada um deles apresenta importantes implicações para o ensino de surdos. A seção a seguir destaca nossas considerações a respeito delas.
4 Considerações finais
Conforme descrito no início deste artigo, buscamos responder, por meio de um levantamento bibliográfico: (1) como a pesquisa em ensino de Física para alunos surdos vem sendo desenvolvida tanto no Brasil como em outros países?; (2) O Ensino de Física está contemplando os preceitos da Educação Especial para surdos? (Rinaldi, 1997); (3) que metodologias de ensino foram mais citadas ou utilizadas implícita ou explicitamente nesses trabalhos? E, também, mas não menos importante, (4) Com base na análise dos trabalhos encontrados, quais as principais conclusões de pesquisa e implicações para o ensino de Física para surdos? Assim sendo, levando em consideração essas questões norteadoras, o presente levantamento do estado da arte sobre o ensino de Física para surdos nos proporcionou algumas respostas relevantes.
Com relação à primeira questão, fica evidente que o ensino de Física para surdos vem sendo desenvolvido de forma pontual ao longo de décadas, mas ainda carece de muito investimento e pesquisa, pois a quantidade de pesquisa é incipiente. Por exemplo, a quantidade de trabalhos associados ao descritor "ensino de Ciências" na plataforma ERIC é da ordem de 100 mil, enquanto encontramos em nossa pesquisa somente 14 artigos que abordam o ensino de Física para surdos, o que em valores percentuais é inferior a 0,02%, demonstrando a carência de pesquisas nessa área.
Contudo, ainda que o volume de pesquisa sobre o tema seja pequeno, podemos verificar importantes observações e apontamentos nos artigos encontrados nesta revisão de literatura. Isso nos leva a uma resposta parcialmente positiva à segunda questão, pois identificamos que muitos autores elencados aqui apresentam metodologias de ensino e materiais que respeitam os preceitos da Educação Especial e/ou inclusiva de surdos. Principalmente no que tange a atender especificidades desses indivíduos, como a estrutura visual/espacial de sua língua, a oferta de informações curriculares, conhecimento e saber sistematizado, utilizando a língua nativa do país e a língua de sinais. Além disso, fornecem contribuições ao desenvolvimento de processos de ensino e de aprendizagem com alunos surdos em diferentes níveis de escolaridade, corroborando com os apontamentos de Rinaldi (1997).
Entretanto, dizemos que essa resposta é parcial, principalmente em virtude dos artigos enquadrados nas categorias temáticas (i) Metodologia de Ensino e (iii) desenvolvimento de material didático, que explicitamente exploraram as características visuais de experimentos, simuladores, Vídeos ou Softwares como recursos didáticos para o ensino de Física para surdos, despontando, assim, como uma das principais metodologias utilizadas. Observa-se uma forte tendência de privilegiar métodos pedagógicos e materiais didáticos que dependem de apoio visual, a chamada Pedagogia Visual (Campello, 2008). No entanto, o uso desses recursos, apresentados nesses trabalhos, exploram uma abordagem que ora privilegia demasiadamente o nível sensório, ora o simbólico, em detrimento de um ou de outro, ou em detrimento ao nível microscópico, o que pode eventualmente ocasionar obstáculos de natureza epistemológica e visões inapropriadas para os modelos dos fenômenos físicos (Mortimer, 2000).
Defendemos, portanto, uma formação holística para o ensino de Física para surdos, que compreenda os três níveis de representação de um fenômeno físico, o nível sensório, simbólico e o microscópico (Gabel, 1993), tal como foi feito no ensino de Química (para alunos ouvintes) (Carobin & Andrade Neto, 2003; Perry & Andrade Neto, 2005). Essa abordagem é natural para fenômenos que apresentam representações microscópicas pertinentes à compreensão do conteúdo, mas que, para outros conteúdos que não possuam representações microscópicas, se pode trocar naturalmente esse nível de representação por um nível modelador ou modelo científico, ficando os três níveis como sensório, simbólico (equações, tabelas) e modelo físico (microscópico ou não).
A Figura 2 mostra um possível exemplo do que defendemos como proposta - baseado em Gabel - para o ensino de Física para surdos, na qual ilustramos os três níveis de Representação de um fenômeno físico, da Mecânica Newtoniana aplicado ao futebol. No caso descrito, temos o Nível Sensório representado pelo chute na bola (A). O nível do Modelo Físico é dado pela representação vetorial das grandezas envolvidas nesse fenômeno, como velocidade e aceleração instantâneas advindas da força de contato estabelecida no momento do chute. Considerando, também, o campo gravitacional, representamos a força peso no desenho, retirado de nossa animação no Software Modellus (B). Já o Nível Simbólico é representado pelo princípio fundamental da dinâmica e pelos sinais em Libras necessários para a explicação do fenômeno, representado na figura de forma genérica pelo símbolo das mãos em movimento14 (C). Todos esses níveis devem ser apresentados aos alunos de forma articulada.
Um dos principais entraves aos processos de ensino e de aprendizagem de Física (e de Ciências) para alunos surdos compreende processos semióticos (Vygotsky, 2004) e o Nível Simbólico, no tangente à falta de tradução de conceitos científicos para as línguas de Sinais, e mais ainda para Libras. Certamente, essa situação não é tão simples de resolver, pois envolve criação, consenso e adoção de sinais da/pela comunidade surda onde se pretende implementá-los. Contudo, a solução desse problema também é uma das principais implicações para o sucesso dos processos de ensino e de aprendizagem de Física para surdos, porque é possível observar que as estratégias de ensino, encontradas nesta pesquisa, estavam direta ou indiretamente apoiadas no ensino Bilíngue, em que o surdo deve ter na Língua de Sinais a sua primeira língua (L1) e usar a Língua dos Ouvintes na forma escrita como segunda língua (L2), sendo, para alguns surdos, a língua portuguesa considerada até mesmo como uma língua estrangeira, pois "pertence ao ouvinte" (Sousa, 2009).
No caso do ensino inclusivo, é imprescindível a presença do intérprete de Língua de Sinais, porém o professor não pode transferir a sua responsabilidade para esse profissional. Cabe ao professor o papel de ensinar, não ao intérprete, que deve ser visto como mediador nesse processo. Assim, pautados nos resultados desta pesquisa, recomendamos que o ensino de Física para alunos surdos seja desenvolvido de forma que atenda às diferenças culturais e linguísticas desses alunos, dando ênfase a recursos visuais como vídeos, experimentos simples e programas interativos, mas que também atendam aos três níveis de representação de um fenômeno físico.
Por fim, salientamos que os artigos encontrados nesta revisão fornecem insumos importantes, sendo imposto a nós o desafio de compartilhar esses resultados com professores de Física, com o objetivo de desenvolver um ensino potencialmente inclusivo, tarefa que não é simples, mas que se faz necessária. Nesse sentido, a formação continuada de professores é, certamente, umas das variáveis intervenientes, tendo relevância no que tange a perspectivas de melhorias no sistema educacional (Darling-Hammond & Bransford, 2007), repousando, assim, além de responsabilidades, possibilidades de reflexões, discussões e práticas docentes que visem a inclusão de estudantes com deficiência e, também, a ruptura de um padrão de educação, por vezes, excludente.