Introdução
Técnica[1] e tecnologia[2] são palavras que exprimem o modo próprio do sujeito caracterizar a vida prática e a civilização planetária contemporânea. Na verdade, são expressões culturais onde se fundam as coisas e as refutações sobre o conjunto de impressões (experiências e atitudes científicas) próprias do aprender a pensar e a relacionar-se com o outro. Por esse caminho, Walter Benjamin (2002, p. 115) nos chama a atenção para a observação sensível do outro em seu devir formativo quando se pensa a pedagogia, pois a ação sem inter-relação com a realidade torna-se antipedagógica, “não serve para nada um amor pedagógico que jamais é levado pela observação da própria vida”. Além disso, Benjamin defende que a linguagem é ação e não deve ser rebaixada a um mero meio, assim como o ato performativo não traz apenas as percepções da instrução objetiva (técnicas de leitura, escrita etc.), mas as outras dimensões humanas (subjetivas e sociais) fundamentais à emancipação ampliadora dos enquadramentos modernos. Tal jogo simbólico constitui a gênese da metáfora e a mantém viva, possibilitando a própria construção do pensamento e a aquisição dos (re)conhecimentos.
Todas as formas de linguagem buscam no mundo social uma expressão de sentido, portanto, elas são justificadas em regramentos morais, éticos, estéticos, políticos e socioculturais. A palavra, assim como a tecnologia, não é arbitrária, mas expressiva do que existe na condição sensível e inteligível, do que está na percepção e se reconstitui no obrar-se humano da atualização e evocação direta. Por isso, tais linguagens miméticas que brotam desses conceitos permitem engendrar os espelhos da contemporaneidade e a cultura digital (Santaella, 2005)[3]. Cada nova interpretação de uma imagem revisitada ou de uma história do passado corresponde a um esforço performativo constantemente renovado, visto que nos processos de formação somos espectadores e críticos simultaneamente.
Cabe notar que o conceito de tecnologia envolve múltiplas variáveis, a saber: fatores cognitivos, que dizem respeito aos conhecimentos inerentes a certo domínio técnico associado a competências e estilos de pensamento; aspectos motivacionais, aspirações e impulsos associados à orientação para realizar a tarefa educativa proposta; fatores de personalidade, capacidade de arriscar e desafiar a si e aos outros como sentido de realização tecnológica; fatores ambientais, que dão condições e apoiam os esforços criativos e técnicos. Por conta disso, não basta nos colocarmos ante a essa realidade programada como espectadores fascinados (homo digitalis), mas a partir de uma pluralidade de discursos e classes sociais, desvelando as contradições com os imperativos sistêmicos e as diferenças, especialmente no que tange à dependência tecnológica, à hiperaceleração do trabalho e às expectativas de emancipação. (Habowski et al., 2019, p. 11)
Diante disso, o professor seria o articulador da (auto)compreensão orientadora da ação, por isso, entender a linguagem remete a saber atuar com a tradição em transformação, só assim seria possível viabilizar novos aprofundamentos para o atual estado das coisas, para o reexame de teorias e das deliberações científicas, tecnológicas e políticas. A pedagogia performativa assim como a dimensão hermenêutica se converte em crítica social e legitima o compartilhar de experiências comunicativas e tecnológicas. Habermas (2009) fala em arte de entender porque todo o falante dispõe de uma capacidade interpretativa movente, no âmbito da experiência vital que pode se converter em arte. Além do mais, engloba a discrepância entre a linguagem natural – entender o sentido linguisticamente comunicável e de torná-la compreensível em casos de perturbação das comunicações versus a linguagem artificial – ato de desenvolver disciplinadamente e funcionalmente a competência comunicativa, que também é estudada por Habermas.
A cultura moderna, historicamente estabelecida, primou pela valorização do conhecimento técnico e científico, em detrimento do saber sensível, linguístico-expressivo, singular e contingente (Flick, 2009). Sem dúvida, a razão técnico-científica trouxe-nos surpreendentes progressos, entretanto, sua adoção exclusiva causou a hipertrofia do ver e do tocar, a instrumentalização e a planificação técnica, preocupada apenas com os fins e adequações operacionais. Por esse viés, somos formados para a obtenção do conhecimento inteligível e deseducados no que se refere ao saber performativo[4] - aprendente da corporeidade, da sensibilidade e da alteridade “na história dos Estudos da Performance com Horácio, filósofo romano que escreveu que a função do teatro é entreter e educar”, pois o teatro, assim como a educação, é ação e é uma prática de liberdade (Schechner et al., 2010, p. 24). Cabe então perguntar, onde está o ponto de transição entre uma relação aprendente que se forma e se aperfeiçoa em nós pelos sentidos com a tecnologia e aquela supervalorização que leva ao isolamento e à coisificação do trabalho? Se vivemos num mundo tecnificado (marcado pelo consumo, acomodação e aprisionamento), como transitar do tecnológico à dimensão das pedagogias performativas como força de resistência para aprender a cultivar os sentidos, a partilha de linguagens e as práticas intersubjetivas? À luz dessas indagações, não se trata simplesmente de dualizar ou polarizar o debate, mas de problematizar as questões que nos aproximam para pensar juntos e performatizar, criando e jogando com a pedagogia da performance na cultura digital que é o modo mais sensível de relação social.
É oportuno pensar com Marilena Chauí (1996) a inseparável relação de correspondência entre a arte (do latim ars) e a technè, técnica (de onde deriva tecnologia), significando regramentos para orientar a atividade humana. No século XIX, o estatuto da técnica modificou-se e se tornou conhecimento tecnológico e não simples fabricação ou produção de regras. As artes também passaram a ser concebidas menos como criação genial misteriosa e mais como expressão criadora, ação performativa, isto é, transfiguração mimética do visível, do sonoro, do movimento, da linguagem, dos gestos. Tendo em vista que todo o conhecimento humano é mediado pela linguagem, nossa experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento técnico-científico no mundo. Assim, fica evidente que a tecnologia dilata fronteiras do passado, abre perspectivas para o futuro[5] e coloca a atualidade em crise, com novos percursos e potenciais interpretativos para a invenção da prática pedagógica e social. Feenberg (2017, p. 363) insiste que “a racionalidade tecnológica prevalecente é, pois, deficiente, não só pela sua indiferença para com a vida, mas também na sua própria estrutura, subjacente a essa indiferença”. Essas recepções, apropriações e experiências da amplitude temática das tecnologias[6] na leitura da educação reafirmam que não basta a tecnologia e o interesse pelo digital para lançar pontes e horizontes à construção do conhecimento educacional, cabe agora reconstruir os canais da pedagogia performativa que atua nos valores sociais atrelados às (in)corporalidades virtuais e à ampliação de outros repertórios culturais.
A pergunta pela técnica
Na tentativa de proporcionar uma autêntica força vinculativa ao pensar, religando o pensar conceitual à linguagem presente no cotidiano tecnificado, torna-se necessário recorrer ao diálogo platônico e à conversação que constituem a arte de romper conceitos petrificados. A grande aula sobre a técnica, que hoje chamamos de tecnologia, provém de Platão, quando afirmava que a política deveria ser a técnica régia, em virtude da sua coerência de poder satisfazer a todos, ao bem comum. O termo técnica compartilha a reelaboração de um instrumento criado entre a arquitetônica ética (vida) e da estética (do fazer arte), com a responsabilidade e funcionalidade interdisciplinar, em que não há apenas um objetivo, mas a congruência e a especialização de ações, transformando e colocando em sintonia as experiências humanas ao seu mundo. Algo atinente que Pineau (2010) chama de uma pedagogia performativa, ou seja, uma prática que interconecta saberes e recria visões da poética, representação, processo . poder. Nesse debate, a “performance educacional salienta as dimensões estéticas do ensinar e do aprender, o contínuo fazer e refazer de ideias e identidades no espaço compartilhado da sala de aula” (Pineau, 2010, p. 98), nas tensões do presencial ou da educação remota em ambiências digitais.
Vivemos em um mundo implicado no digital inerente à ação humana, um universo de movimento performativo, que se apodera e transita das conexões existentes, a ponto de questionarmos os limites da robotização do ensino. “É assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação” (Marcuse, 1999, p. 73). A ambivalência da técnica, entre o poder de ação libertadora e seu aprisionamento no interior do praticismo é algo que acompanha os sujeitos historicamente, pois temos a imaginação para usar as tecnologias às necessidades, mas nos limitamos a narrações arbitrárias e apressadas como inscrição de um saber instrumentalizador.
A uniformização e formalização do ensino por meios tecnológicos associado ao mercado revela a supervalorização deles na própria realidade, por força da qual se perfaz a dominação cultural, o que significa um empobrecimento do pensar sobre os mecanismos disseminadores de estruturas institucionalizadas de injustiça social. Assim, “ao manipular a máquina, o homem aprende que a obediência às instruções é o único meio de se obter resultados desejados. Ser bem-sucedido é o mesmo que adaptar-se ao aparato. Não há lugar para a autonomia” (Marcuse, 1999, p. 80). Marcuse (1999) defende que se algo permanece vivo do legado de Marx é a crítica da ideologia e lança a metáfora[7] do aparato como uma dimensão política que revela a sociedade unidimensional, da simplificação do conhecimento atrelado aos modos de produção capitalista, da submissão total e acrítica à tecnologia. Essa racionalidade tecnocientífica que é política, em função da dominação da natureza e do próprio sujeito em sua eficiência, aspirações de participação democrática, autonomia cultural e autogestão, acaba por comandar o sistema educativo sem contestação e nem possibilidades de escolha, porque somos dependentes do trabalho capitalista, das redes de comunicações e a eles devemos nos submeter para sobreviver.
Em todas as partes estamos presos à técnica sem que possamos nos livrar dela, tanto se a afirmamos apaixonadamente como se a negamos. No entanto, quando do pior modo estamos abandonados à essência da técnica é quando a consideramos como algo neutro, porque esta representação, a que hoje reverenciamos de uma forma especial, faz-nos totalmente cegos para a essência da técnica. (Heidegger, 1994, p. 9, livre tradução)
Indo além de uma neutralidade, as tecnologias carregam histórias e significados construídos historicamente, modelam nossos modos de ver, narram o mundo sob determinados pontos de vista, territorializam tribos, constroem tecnologia cultural e formas de expressão humana. Várias são as representações correntes da técnica, algumas dizem que ela se constitui num emprego de meios para atingir certos fins, enquanto outras afirmam uma relação sedutora com as existências humanas. Na abordagem de Heidegger,
A técnica é um modo de sair do oculto (desejo de verdade), uma possibilidade criadora da imaginação humana para o fazer e o saber fazer, incluindo também o sentido mais amplo da arte. A arte em questão aqui é desvelamento da verdade, a arte do anúncio, da práxis relacionada a uma arte, da interpretação que serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. (Conte, 2012, pp. 226-227)
Contudo, a técnica moderna é incomparavelmente distinta de toda técnica artesanal anterior, porque reside na estrutura de seriação que aliena o sujeito de pensar e desfigura o sentido da técnica. Então se questiona: afinal, qual o destino e o sentido da técnica? Tudo passa pelo sentido das existências(situação real, natural e efetiva) em atos de criação, tornando presente a experiência e um traço da personalidade que ao realizar algo e implicar-se nele acabamos interferindo na vida em sociedade. A discussão apresenta a condição performativa como ser-no-mundo, ou seja, como ser-em-relação para compreender seu próprio ser em desvelamento. Com isso, a compreensão da linguagem como a morada do ser perfaz a mobilidade de fundo da existência humana movida pela liberdade de expressão humana (dimensão da arte e do pensar). Com efeito, a obra de arte assim como a pedagogia da performance expressa a linguagem poética e criadora de uma leitura da vida compartilhada no agir que pode transcender a trivialidade da existência.
No horizonte aberto por Heidegger, Gadamer (2002b) exemplifica que a experiência da arte é uma maneira de conhecer que não está sujeita a método ou submissa a processos de comprovação empíricos, mas levanta a pretensão à verdade e questiona o próprio conceito de verdade da tradição. Para Gadamer (2002b), a estética e a linguagem estão intimamente relacionadas ao ser histórico, sua formação, seu vivenciar como Dasein, no sentido de deixar-se sofrer transformações, levando consigo a representação de si mesmo em qualquer contexto ou espaço de tempo. Assim, cria-se o profundo contato entre sujeito e compreensão daquilo com o qual interagimos. (Conte, 2012, p. 227)
O caráter estético é capaz de desvelar os véus tecnológicos da presença instrumental pelo encontro da conversação, tornando a condição humana no mundo digital um estado de permanente desafio à leitura, à interpretação e à aprendizagem enquanto sujeitos históricos e em (trans)formação. Entre outras questões, parece que mesmo dominando os instrumentos tecnológicos o sujeito permanece incapaz de incitar o diálogo, a imaginação, a autocrítica e a escuta[8] no trabalho com as diferenças. Gadamer (2002a, p. 248) mostra que “a incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor [e] essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica”. Desse movimento, desenvolvem-se as novas perspectivas do ato pedagógico como reinvenção atrelada a uma tecnologia da instruçãoque marca a imposição do avanço tecnológico em instituições escolares e sociais.
Embora exista uma nova paisagem cultural que prima pelo virtual como imagem soberana das trocas sociais, a tecnologia da instrução está centrada na concepção sistêmica da educação pautada pela execução e pelos resultados, justamente por constituir-se como meio de aprisionamento do homem. Nesses paradoxos, decididamente, seria possível interagir com os meios e produtos da comunicação não apenas porque são necessários para conviver e trabalhar no contexto atual, mas também porque permitem continuar a aprender com maior autonomia. Como veremos adiante, a força e a velocidade da virtualização contemporânea são tão grandes que acabam exilando as pessoas dos seus próprios saberes e identidade. (Conte, 2012, p. 222)
A humanidade orientada justamente por competências específicas do trabalho pedagógico nutre a servidão voluntária, solitária, passiva, vazia de capacidades para problematizar as obviedades manipuladoras, promovendo a eliminação das múltiplas linguagens e a nulidade das experiências culturais compartilhadas. Isso porque, a rigor, “quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho, em vez de questionar a sociedade ou o sistema, considera a si mesmo como responsável e se envergonha por isso” (Han, 2018, p. 16).
A hipermídia e a dimensão performativa na cultura digital
As questões do hipertexto ou da multimídia interativa já são bastante discutidas sob a perspectiva dos seus usos educativos para o envolvimento dos participantes nos processos formativos. Agora buscamos aprofundar o nosso olhar sobre as dimensões do hipertexto no trabalho labiríntico do professor, com milhares de fragmentos que se assemelham em redes de trilhas, conexões, passagens e linksde comandos em limiares fragmentados. Na visão de Santaella (2005), a hipermídia não se distingue do hipertexto, mas o amplia por incluir informações visuais, sonoras, animação e outras formas de expressão da linguagem digital que são vinculantes entre os processos pedagógicos e as práticas sociais da cultura digital. Nas palavras de Santaella (2001, p. 406):
As hipermídias podem ser instrucionais, os que estão voltados para a solução de problemas, os ficcionais, que incorporam a interatividade na escritura ficcional, os artísticos, feitos para a produção e transmissão de atividades criativas para a sensibilidade, e os conceituais, feitos para a produção e transmissão de conhecimentos teórico-cognitivos.
As expressões hipermidiáticas abrem novas leituras de mundos, alargam nossos horizontes e transformam-se em roteiros de experiências múltiplas, provocando uma complementaridade de imagens e textos, não como mera ilustração e sim como metáforas vivas que relacionam imagens com conceitos, rompendo a linearidade midiática. O professor (ator social) é verdadeiramente vivo quando percebe que é criativo e comunicativo, um ser com envolvimento em todo o contexto da vida, cuja imersão na arte de educar pode ser a revelação de um processo de metaforização da educação emergente (Johnson, 1997). A metáfora enquanto primeira experiência da linguagem nos auxilia a pensar as ambiências virtuais como espaços de real colaboração e partilha do sensível, com interatividade e densidade expressiva do movimento da leitura e das comunicações. A faculdade mimética é potência de criação, de produzir semelhanças e nos remete ao mundo metafórico que se interpenetra com a técnica do jogo para as performances.
[...] o primeiro grande poder definidor da hipermídia que está na hibridização das matrizes de linguagem e pensamento, nos processos sígnicos, códigos e mídias que ela aciona e, consequentemente, na mistura de sentidos receptores, na sensorialidade global, sinestesia reverberante que ela é capaz de produzir, na medida mesma em que o receptor ou leitor imerso interage com ela, cooperando na sua realização. (Santaella, 2001, pp. 391-392)
Se o que propomos é uma compreensão dessa nova linguagem poética e não linear, precisamos entendê-la como um grande jogo de imagens na cultura digital, uma construção de sentido definido em sua expressividade de linguagens. Isso porque o virtual também é real e depende de nossa ação de cultivar o olho curioso para apoiar os estudantes a desenvolverem o hábito de fazer relações, superando as caixas de leitura de satisfação visual da panaceia desvairada de (des)informações, pois é fundamental lançar perguntas quando se pretende despertar atos de compreensão. Mas, de que forma podemos tratar e situar a informação visual no mundo presente para a passagem em direção à linguagem e ao desconhecido, entre o não saber da técnica e a capacidade de experimentação, provocando um jogo de (re)conhecimento?
Hoje vivemos mais conectados com as representações e informações sobre o mundo do que com os acontecimentos concretos com os quais nos deparamos em nosso cotidiano. Na relação atual com a técnica existe algo exagerado, irracional, viciante, uma espécie de véu tecnológico patogênico que, apesar de todos os discursos tenderem para a inclusão, a exceção faz parte da regra. (Conte & Martini, 2015, p. 1196)
Há uma relação de automanipulação no conjunto dessas facetas movidas por interesses do dinheiro e poder da informação, das novas mídias de recobrimento da percepção (atravessado pela lavagem cerebral), como bem revelado no documentário O dilema das redes (2020)[9]. Diante disso, o poder metafórico dos mitos gregos nos ajuda a compreender os dilemas da existência humana que são impostos pela sociedade hiperconectada em forma de ciladas da internet – um balaio de gato e monotonias do presente. A mitologia da tragédia de Sísifo, por exemplo, que desafiou os deuses e foi castigado a um ciclo de eterno retorno de subir com uma pedra de mármore até o topo de uma montanha para depois de tanto esforço vê-la desabar novamente, talvez represente as novas roupagens de um capitalismo manipulador da informação, que nos prende a mecanismos digitais repetitivos que distorcem o sentido da vida em pressões por desempenho de um trabalho protocolado, desumanizante e tecnocrático (Camus, 2007).
Assim, não podemos nem imaginar o quanto o virtual já transformou, como por antecipação, todas as representações que temos do mundo. Em uma sociedade obcecada com as noções de autonomia e mobilidade, o computador interconectado é, talvez, a melhor expressão tecnológica disso, representando um dos meios mais convenientes de manter-se atualizado. Não deveria surpreender, portanto, que a trajetória evolutiva da técnica e da ciência seja marcada por desvios equivocados e reviravoltas em decorrência de seu próprio êxito (Conte & Martini, 2015, pp. 1197-1198).
A racionalidade produtivista da cultura experienciada em cenários passivos e reprodutivistas, com princípio instrumental, eliminaria tanto a substância do sentido humano, por montagens artificiais, quanto o contexto de uso social da mídia eletrônica que a torna uma poderosa expressão. Ao darmos visibilidade às formas de relação do mundo digital apontamos para uma homogeneização gerada pela hiperestimulação do olhar e superficialidade dos sentidos da vida, que “vaga à mercê das marés econômicas” (Adorno, 1995, p. 16). Giovani Sartori (2000) diz que a grande transformação da comunicação é o salto do homo sapiens para o homo videns. Ou seja, a mudança do saber produzido pela cultura escrita agora projetado na imagem, provocando o império do ver sobre o falar e da imagem sobre a leitura. Apesar da infinidade de produtos disponíveis no mercado, cada vez nos tornamos mais semelhantes a uma determinada estética hegemônica de ideologia tecnocrática que impõe seus padrões de experiências de leitura voltados ao individualismo consumista ornamentado pelas mídias (Habermas, 1990).
Pelo que foi exposto até aqui, apontamos que não é contra as tecnologias que os filósofos levantam suas vozes, mas contra os irracionalismos de sua funcionalização que opacificam a dialética do reconhecimento mútuo das liberdades do aprender compartilhado. Para Michel Serres, “a revolução digital é a terceira revolução que nós conhecemos. A primeira revolução é a invenção da escrita. A segunda revolução é a invenção da imprensa e a terceira é o digital” (Santos, 2015, p. 256). Hoje, estão em jogo as performances da vida social que têm provocado pseudocomunicações e deslocamentos plásticos do trabalho.
A tecnologia raramente avança numa curva regular, mas ocorre de maneira não linear, sendo pontuada por súbitos saltos à frente ou simplificadores, especialmente na educação[10]. Isso porque a apropriação desses significados entra em conflito com as disposições vigentes e surge como algo autoritário, impositivo e distanciado das experiências construídas em interações concretas. Tal contradição nos revela a capacidade de fazer a experiência de sentido nas tensões recentes, que encontra refúgio ao caos, na tentativa de deitar as palavras numa cama e fazer uma leitura silenciosa em outras conexões, revisando os domínios econômicos, estatísticos e técnicos da fragmentação antiquada como um lampejo às constelações e recriações dos processos educativos.
Cada novo ser humano que chega ao mundo é inserido em um ambiente no qual outras gerações de seres humanos criaram formas de pensar e de atuar socialmente. Por ter o seu comportamento mediado pelos artefatos culturais (sendo a linguagem o artefato mestre), os seres humanos, além de se beneficiarem de sua própria experiência sensorial na relação com o mundo, beneficiam-se também das experiências dos que o precederam. O mundo social, cuja base é dada pela comunicação, tem importância crucial nesse processo. (Bannell et al., 2016, p. 63)
Nesse ponto, o esforço é de recuperar a lógica pragmática da argumentação que investe em um conceito de racionalidade mais aberto, incluindo a dimensão cognitivo-instrumental, prático-moral, assim como a estético-expressiva, criando jogos contraditórios e novas formas de vida social. Raquel Recuero (2012) argumenta que no ciberespaço as presenças se dão através de atos performáticos e identitários, que envolvem a construção de representações do eu em produções digitais com uma complexidade de conhecimentos que se manifestam em textos, imagens e sons. Em contraposição, para Habermas (1994, p. 106), “a força libertadora da reflexão não pode ser substituída pela difusão de um saber tecnicamente utilizável”. Além disso, só entre liberdades há propriamente comunicação e educação, que é abertura ao sentido do próprio mundo e práxis de justificação de uma comunidade linguística. Hoje, a metáfora do canivete suíço representa a imagem do professor performativo diante das acelerações digitais contemporâneas, das inúmeras necessidades de ressignificação com a educação remota que precisa reconectar a inclusão educativa, digital, social, econômica, etc. No entanto, há uma incoerência entre o excesso de discursos e cursos de capacitação técnico-profissional em relação aos professores e a desvalorização profissional que conserva uma performance esquizofrênica, quiçá pela falta de apoio profissional no diálogo interpares e de um estatuto profissional.
A ação performativa do professor necessita de condições mínimas para a construção de ambiências para despertar o conhecimento dos novos tempos, visto que convivemos em situações de permanente violência, angústia, excesso de trabalho, isto é, sem qualidade de vida nos espaços profissionais. Agir com criatividade na pandemia, nutrindo os direitos humanos e a própria vida como um tempo utópico, exige o aprender a pensar para o reconhecimento autocrítico do papel pedagógico, além da capacidade de criar as conexões e reinvenções na práxis coletiva. Se acionamos zonas diferentes do cérebro para nos relacionar digitalmente, podemos construir ambiências de transformação profissional na urgência e submissão à plataformas digitais? A Caverna de Platão que é uma história contada lá pelos anos de 348 antes de cristo pode nos ajudar a pensar como se dá a produção do trabalho em conjunto. Ao viverem dentro de uma caverna alguns homens, por medo ou incerteza, nunca saíam de lá ou sequer chegavam perto da saída. E por essa condição conformista, apenas conseguiam ver as sombras daquilo que existia lá fora. Aquilo era o que eles conheciam como realidade. Mas de dentro da caverna era impossível saber o que tinha do outro lado. Tal situação pode ser reconhecida nas novas ambiências de aprendizagem digital que requerem, diferentemente de robôs e de máquinas, a iniciativa expressiva e sensível de professores para realizarem diálogos pungentes, tendo na pedagogia da performance uma ambivalência intersubjetiva sobre o próprio exercício profissional, que é a condição sui generis que nos torna humanos.
O caráter político da linguagem: pedagogia da performance um agir possível?
Os usos da linguagem são investigações propostas em Wittgenstein[11] (1968), ao afirmar que os limites de nossa linguagem denotam as distâncias críticas para a leitura de mundos. O trabalho de problematização e crítica da linguagem surge como potência criadora de sentido da experiência vivida, que é uma exigência dos próprios jogos de linguagem performativos. Do ponto de vista de Paul Zumthor (2000, p. 59), a performance é um modo vivo de comunicação poética,
[Um] termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata.
A pedagogia performativa nos faz pensar que não aprendemos apenas com a cabeça, mas aprendemos com todo o corpo em metamorfoses com o outro. Nessas condições, a nossa preocupação com a technè (arte e técnica) e o logos (palavra, discurso, conhecimento) será articulada na dialética da performance que é o tempo do agora, “uma technè, um saber fazer, que implica um saber ser”, pois modifica o próprio conhecimento na ação (Zumthor, 2000, pp. 31-32). A performance em sua existência comunicativa é um elemento indispensável da valorização da sociabilidade humana, visto que incorpora os diferentes papéis políticos, da ação criadora e movente de autoavaliar-se na presença do outro. Em face disso, “trata-se de saber se podemos romper a sina de nossa educação domesticadora[12] de linguagem e usos, e se sabemos nos expor ao encontro de uma realidade que não corresponde às nossas opiniões, esquemas e expectativas prévias” (Conte & Martini, 2015, pp. 1196-1197).
No fundo, em nosso mundo a mesma questão está sempre presente: a conformação da linguagem em convenções, em normas sociais, atrás das quais escondem-se sempre também interesses econômicos e de poder. Mas esse é justamente o mundo de nossa experiência humana, onde dependemos de nosso julgamento, isto é, da possibilidade de nos colocarmos criticamente frente a todas as convenções. Na verdade, devemos essa capacidade de julgamento ao fato de nossa razão ser virtualmente linguagem. (Gadamer, 2002a, pp. 239-240)
Podemos assumir que todo dizer sempre acena para o espaço político e aberto de sua continuidade. Surge então a necessidade de reconhecimento do caráter político da experiência pedagógica, que se manifesta no porvir da palavra, implicando num momento de ação performativa com a realidade em termos de contingência. Nessa perspectiva, Gadamer (2002a, p. 242) diz:
A linguagem é, na verdade, a única palavra cuja virtualidade nos abre a possibilidade de seguir falando e conversando infinitamente, que nos oferece a liberdade do dizer a si mesmo e deixar-se dizer. A linguagem não é um convencionalismo reelaborado, não é o peso de esquemas prévios que nos recobrem e sim a força geradora e criativa de sempre de novo conferir fluidez a esse todo.
A distância histórica do virtual acaba se aproximando dos elementos de recepção da realidade pelas conexões e percursos de colaboração, visto que as leituras e formas de apresentação se manifestam nos ensaios da percepção e nos diferentes modos de participar da experiência e expressão humana, movimentando a reconstituição das fontes ligadas às questões sociais. A interatividade virtual precisa ser explorada criticamente na educação uma vez que protagoniza uma comunicação ampliada entre as pessoas, ou seja, uma força que diz respeito à potência e às armadilhas da mobilidade da linguagem e suas formas de recepção e trânsito no encontro de experiências.
O grande desafio da educação é o de mobilizar as suas forças para reconstruir uma convergência entre o potencial tecnológico e os interesses humanos. [...] O novo peso do conhecimento no planeta, e da educação nos processos de reprodução social, pode constituir uma poderosa alavanca de humanização social. Mas o mundo da educação tem de expandir radicalmente as suas reivindicações, ampliar seus horizontes, para estar à altura dos desafios. (Dowbor, 2013, p. 51)
Os (des)encontros performativos estão atrelados à efemeridade da vida estético-expressiva, também expressa na dimensão comunicativa da experiência política, “dos participantes da interação que coordenam seus planos de ação ao se entenderem entre si sobre algo no mundo” (Habermas, 1990, p. 414), entendida como potencial inaugurador e legitimador de normas de ação ética, estética e política de humanização.
A performance do professor na contemporaneidade é um tema controverso e ambíguo, mas que desperta nos processos socioeducativos e nas experiências formativas inúmeras tensões, complexidades e movimentos dialéticos de reinvenção da práxis no tempo e no espaço. Desde os tempos mais antigos, sempre houve uma performance, cujo caráter não era teórico-científico, mas correspondia e servia muito mais às artes de fazer, de procedimento prático e estético-expressivo (Conte, 2013). Viver a conversação na esteira das transformações tecnológicas digitais é o que nos une para compreender as performances em rede, que transpõem e subvertem o espaço público e o privado na contemporaneidade. (Conte, 2020, p. 2)
A convivência na corda bamba diante do estado adverso da pandemia, por exemplo, tem atravessado de modo avassalador o campo das narrativas da educação, cujo estado de exceção se transforma em regra aporética, de mudança radical e repleta de contradições performativas na cultura digital associadas agora à manutenção da própria vida. As derrotas da pandemia, sob os imperativos do capitalismo e da eficiência, também anunciam, pelo signo dos suportes digitais, a beleza e o esforço humano da redescoberta das potências criativas, educativas e dialógicas como algo que nos oprime e que torna possível a insistência das experiências em correlações entre as vozes culturais em reencontros públicos virtuais. É neste ponto que retomamos a questão colocada por Freire (1984, p. 4): “a serviço de quem as máquinas e a tecnologia avançada estão? Quero saber a favor de quem, ou contra quem as máquinas estão sendo postas em uso”. Freire nos lembra que a educação acontece nas manifestações pedagógicas através da entonação da palavra, do gesto e do corpo do professor, isto é, do ato ético, estético e político que potencializa o esforço humano para ser mais e implica uma reciprocidade, justamente no encontro entre interlocutores que não é corrompido pela simples transferência de um saber digital.
A questão supracitada de natureza política e ideológica joga o sujeito na responsabilidade do reconhecimento social, que não acontece no isolamento das redes porque elas nos colocam no limiar da exclusão, da desumanização, da despersonalização ou da intervenção desestabilizadora quando tomadas em si. Os artefatos culturais contemporâneos podem limitar e constranger os comportamentos humanos a formas padronizadas de sociabilidade e adaptação ao sistema de educação remota.
Essas considerações são especialmente valiosas, porque se constata que os sujeitos estão cada vez mais integrados à cultura digital, apropriando-se dela e integrando às suas práticas cotidianas - inclusas as de ensino e aprendizagem – toda sorte de dinâmicas que elas possibilitam. Sendo assim, a confluência das TDIC à formação dos sujeitos está tanto ligada ao por que fazê-lo, quanto à forma de fazê-lo, isto é, as questões complementares que se impõem dizem respeito tanto à necessidade de que as instituições formativas integrem as TDIC às dinâmicas de ensino e aprendizagem, quanto à importância de prestarem atenção às formas de sua inserção, apropriação e orientação aos licenciandos; aos valores que subjazem essas dimensões, considerando as práticas educacionais e os potenciais socioculturais imbricados às TDIC. (Marfim & Pesce, 2020, p. 7)
A arte do trabalho pedagógico reconfigurado ao teletrabalho digital está atrelada à dimensão da pedagogia da performance, em sua experiência sui generis, cuja aprendizagem de multiletramentos ativa metáforas disruptivas, tecendo caminhos transcomunicacionais, de multirealidades na execução de relações, sentidos, conteúdos e argumentos na virtualidade da linguagem. Então, o professor, ao realizar atos performativos em ambiências virtuais, enxerga os próprios limites e abre-se no diálogo em circularidade no próprio aprender a interagir, em intercâmbios ilimitados, cria novas formas de contar histórias em jogo com as formações culturais.
Esse sujeito se transformou na era digital em um sujeito multiplicado, disseminado e descentrado, continuamente interpelado como uma identidade instável. [...] temos de começar a desconfiar com certa urgência que estamos habitando um novo planeta. Não podem ser minimizadas as consequências cognitivas, comunicacionais e culturais da revolução digital, para os modos de se produzir e difundir conhecimento, informação e arte, pois elas trazem para o cerne de nossas vidas privadas, profissionais e públicas questões candentes que precisam ser enfrentadas, longe dos preconceitos, dos saudosismos e das nostalgias. (Santaella, 2005, p. 7)
Ora, a cultura digital para a construção da força dessa argumentação converge em relação ao universo das imagens técnicas e digitais como um jogo performativo para pensar a ampliação de repertórios culturais na alegria e na arte de educar, de implicar-se naquilo que fazemos, para não sucumbir diante da programação ou da racionalidade tecnológica que impõe a emergência de tomar decisões automáticas.
[...] a história da cultura não é série de progressos, mas dança em torno do concreto. No decorrer de tal dança tornou-se sempre mais difícil, paradoxalmente, o retorno para o concreto. Tal conscientização do absurdo da abstração caracteriza o clima do último estágio (endgame) no qual estamos. (Flusser, 2008, p. 8)
Ao longo da história parece que a técnica trai a humanidade por conta de um fetiche dominante que manipula e coisifica a arquitetônica humana em campos de extermínio e massacre generalizado (inscrição de Auschwitz - o trabalho liberta). Muitos são os desvios que a submissão à técnica naturalizou, recentemente o teletrabalho, de forma unidirecional, que se contrapõe ao que hoje parece ser a chave da felicidade. Após o término da Segunda Guerra Mundial, essa carta foi encontrada num campo de concentração nazista, contendo a seguinte mensagem dirigida aos professores:
Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética, só serão importantes se fizerem nossas crianças mais humanas. (Antunes, 2012, p. 1)
A partir desse trecho, fica claro que uma das funções da educação é enxergar os próprios limites em humanizar e abrir-se para as alteridades, inclusive para enfrentar a conversação autocrítica e as próprias experiências do digital, da vontade de dominação tecnocrática e da banalidade do mal, inscritas na autoridade das mídias como ameaças a própria condição humana. Há uma transformação da pedagogia relacionada à autoridade do professor que exige uma reação, uma mobilização de narrativas, leituras, gostos e escolhas imagéticas das heranças poéticas e culturais, de afetos para que possamos nos tornar, talvez, poetas das mídias.
O professor está, hoje, mais do que nunca, no olho do furacão. Os espaços de formação docente ganham, também, uma reconfiguração subjetiva em tempos em que é preciso viver (re)inventando mares de vida em abismos de morte. Encontrar forças para formar e para permitir-se ser formado é, portanto, um ato de resistência. [...] Já que não paramos, é preciso que nos reinventemos... Novos tempos pedem outros formatos, outros materiais, outros modos de vivenciar os contextos educacionais. Aliás, não existe formação de professores sem luta. Não faz sentido formar ou formarmo-nos professores para um ofício vazio, que não nos desestabilize, que não nos faça rever nossos próprios horizontes. (Gonçalves & Silva, 2019, pp. 8-10)
Nessas tensões acerca das mudanças do agir performativo, há uma diferença entre educação (elementos da mestiçagem cultural calcados no humanismo para agir) e instrução (transmissão de um fazer técnico), especialmente com a cultura digital. Para Michel Serres, em entrevista concedida a Santos (2015, pp. 241-242):
É, portanto, a pessoa que muda. E, em particular, eu creio que é possível notar hoje uma diferença de relação com o conhecimento, da relação corporal, da relação vital e da relação pessoal com o conhecimento. Uma verdadeira diferença. Isso quer dizer que as ciências cognitivas pensam hoje que não são as mesmas zonas do cérebro, os mesmos neurônios que são tocados, excitados por uma página de papel ou por uma tela interativa. Portanto, é a pessoa inteira que se reorganiza. Uma disposição afeta o conhecimento, mas afeta também a pessoa e o mundo inteiro onde ela vive.
No cerne do processo formativo há uma complementaridade entre a adaptação tecnológica e o ato de resistência de forças emancipatórias. A pedagogia da performance exige de nós abandonar a torre de marfim e reorganizar a ação frente aos desafios múltiplos de comunicar-se virtualmente, a ponto de favorecer a alegria como conteúdo da compreensão, na perspectiva de abrir caminhos para entrarmos em uma nova passagem de proximidade rumo ao desenvolvimento humano. Sem dúvidas, há uma nova condição ao agir pedagógico que demanda novas compreensões do indecifrável que acontece em nosso tempo digital e, nesse sentido, é preciso olhos atentos e receptivos às (re)invenções que envolvem a questão da relação com as diferentes alteridades para aprender com elas.
Apreciações finais
Os resultados apontam que a cultura digital e as redes que criamos, a partir delas, não são apenas fins pelos quais buscamos o acesso ao mundo, mas horizontes às mudanças da educação quando assumidas no jogo performativo, para reavaliar a realidade hipercomplexa através da reelaboração das tensões e contradições sociais. O desafio é de associar a educação remota ao trabalho mais livre, criativo e formativo, promovendo a fusão entre arte e técnica para resistir ao culto moderno da mera transposição de informações por plataformas digitais, modelos de ensino impostos por instrumentais didáticos ou programados, que destroem a criatividade humana. A pedagogia da performance é ação e reelaboração do trabalho do professor para encontrar as frestas dialógicas da experimentação, dos jogos em experiências miméticas diferentes e do ousar brincar com as aulas remotas, reinventando o potencial pedagógico do gesto, da imaginação, das metáforas que atribuem mais valor à exposição virtual do professor.
O campo da educação performativa como um médium que aproxima as novas ambiências digitais (comunicar-se no olho do furacão) da multiplicidade de linguagens e da ludicidade é uma forma de evitar a barbárie do presenteísmo isolacionista e ampliar as práticas de liberdade e humanidade, ampliando o espaço democrático-participativo de produção de conhecimentos. Assim, se a possibilidade criadora da linguagem é algo latente na cultura digital e nas formas de agir social, a pedagogia da performance precisa estar aberta à imersão na aprendizagem viva, eminentemente política, superando a lógica da mera transmissão do ensino em pseudocomunicações de autômatos digitais. Quando somos capazes de enfrentar a hipertrofia do intuitivo, do sentir e do interagir pela reelaboração das experiências em torno das mídias e linguagens, aprendemos a compartilhar ideias e trabalhar os diferentes saberes. Portanto, as performances educativas viabilizam os processos de (re)criação de repertórios culturais desses fenômenos contemporâneos para a invenção do agir e do ser criativo em tempos automatizados. Afinal, a pedagogia da performance voltada para o entendimento mútuo pressupõe lançar argumentos desmistificadores do culto a mera repetição do passado através da ação com o outro, para garantir a humanização e a curiosidade epistemológica em situações contingentes.