Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus (1ª edição, tradução de Ivone Castilho Benedetti, colaboração de Sabah Abouessalam). Bertrand Brasil.
Prestes a completar um século de vida no ano de 2021, Edgar Morin, reconhecido internacionalmente, com formação multidisciplinar em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia, nos brinda com uma obra essencial em tempos de incertezas e catástrofes geradas pela crise sanitária da pandemia da Covid-19.
Na primeira parte do livro, tematizada Preâmbulo: cem anos de vicissitudes, Morin narra os diferentes acontecimentos que enfrentou em suas experiências de vida e formação, em múltiplas crises, — desde o seu nascimento conflituoso, que o fizera acordar pelas palmadas do médico após meia hora do seu nascimento, estrangulado pelo cordão umbilical e nascido pelos pés, decorrente da problemática gravidez que não poderia ter sua mãe por complicações de saúde —, que o fizeram ir renascendo em um cenário que o autor situa historicamente pelos descaminhos emblemáticos por ele traçados, e que situa o contexto do coronavírus no mundo atual como mais uma das crises, articulando suas reflexões.
Ainda nessa primeira parte da obra, o autor tece suas narrativas das experiências que teve: na gripe espanhola; na crise mundial de 1929; formação do ciclone (1930-1940), quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha; na Segunda Guerra Mundial; grande crise intelectual dos anos de 1956-1958; no ocorrido em maio de 1968 que, entre outras coisas, impulsionou disparar um intenso “processo de emancipação feminina, certa liberalização dos costumes, uma compreensão das homossexualidades (Morin, 2020, p. 17); na crise ecológica; e na resistência em duas frentes, que o autor se dedica tanto no âmbito à resistência intelectual como política, situadas entre:
[...] a velha barbárie, vinda do fundo das eras, de dominação, sujeição, ódio, desprezo, que irrompe cada vez mais em xenofobias, racismos generalizados e guerras do Oriente Médio e a da África, e a barbárie fria e gélida do cálculo e do lucro, que assume o comando em grande parte do mundo. (Morin, 2020, p. 18)
Nesses movimentos plurais e inconstantes de crises em diferentes espaços/tempos da existencialidade, o autor foi tecendo reflexões e pensamentos que inclusive culminaram na produção, por um período de trinta anos, da obra O método, em busca de construir os fundamentos do modo de refletir e tecer uma perspectiva de conhecimento e da busca de responder aos desafios da complexidade do mundo.
O livro É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus é composto por 97 páginas, nas quais divide-se, além do Preâmbulo e da Introdução, em três capítulos, com as seguintes tematizações: no primeiro, As 15 lições do coronavírus, trazendo as experiências formativas pautadas em reflexões dos fatos e acontecimentos gerados por esta crise sanitária com diferentes enfoques e problematizações; o segundo, Desafios do pós-corona, elucidando as diferentes crises que a humanidade poderá enfrentar, tanto no que diz respeito ao sujeito em sua interioridade, quanto às de ordem externa em sua experiência socioeconômica, política e cultural; e o terceiro, Mudar de via, no qual expõe alternativas substanciais, consolidadas pelas reformas em diferentes âmbitos, e os processos de regeneração de si e do cosmo; e a última parte, Conclusão, traz reflexões numa linha tênue entre acontecimentos passados, onde estamos e para onde vamos.
Sobre as 15 lições do coronavírus, Morin expõe no primeiro capítulo as seguintes temáticas: 1) Lição sobre a nossa existência; 2) Lição sobre a condição humana; 3) Lição sobre a incerteza de nossa vida; 4) Lição sobre nossa relação com a morte; 5) Lição sobre nossa civilização; 6) Lição sobre o despertar da solidariedade; 7) Lição sobre a desigualdade social no isolamento; 8) Lição sobre a diversidade das situações e da gestão da epidemia no mundo; 9) Lição sobre a natureza de uma crise; 10) Lição sobre a ciência e a medicina; 11) Uma crise da inteligência; 12) Lição sobre as insuficiências de reflexão e ação política; 13) Lição sobre deslocalizações e dependência nacional; 14) Lição sobre a crise da Europa; e 15) Lição sobre o planeta em crise.
Ao mostrar as “fraturas expostas” causadas pela pandemia do Coronavírus, neste primeiro capítulo, Morin salienta uma desfragmentação total do pensamento e conhecimento humanos, construídos pelo sujeito no contexto da ciência, tornando-se míope para enxergar descobertas e visibilizar invenções que pudessem ser empreendidas diante do caos, de incertezas e bifurcações provocados nas tramas que surgem e das eventualidades do imprevisível que emergem. Ou como melhor pontua o autor:
As insuficiências e carências de conhecimento e pensamento durante a crise confirmam que precisamos de um modo de conhecimento e pensamento capaz de responder aos desafios das complexidades e aos desafios das incertezas. Não podemos conhecer o imprevisível, mas podemos prever sua eventualidade. Não devemos nos fiar nas probabilidades nem esquecer que todo acontecimento histórico transformador é imprevisto. (Morin, 2020, p. 35)
O autor nos incita a pensar profundamente acerca dos impactos e das problemáticas gerados pela pandemia da Covid-19, que se reverberaram, entre outras coisas: no aumento das desigualdades sociais; na crise violenta da globalização; na desvalorização e no desprezo de profissionais que se tornaram essenciais nesse tempo de crise sanitária, como enfermeiros, médicos, professores, coletores de lixo, entregadores, verdureiros, pequenos agricultores, agentes de segurança, guardas-civis e outros; na supremacia do econômico ao invés de uma política de humanidade entre as pessoas e os países com mais dificuldades em relação aos que melhor se saíram diante da situação; da irresponsabilidade de conduzir a pandemia na gestão de governantes, como os do Brasil, Peru, dos Estados Unidos e do México, entre outros agravantes.
No segundo capítulo da obra, sobre os Desafios do pós-corona, apresenta, de modo bem provocativo, questionamentos e problematizações, sobretudo os fortes impactos propiciados pelas assimetrias e os rearranjos que poderíamos enfrentar em um período posterior à pandemia. A tônica recai sobre se o que estamos enfrentando agora poderá servir para ressignificar nossas práticas, convívio e experiências, encontrando uma nova via diante de tudo isso, ou se voltarão com uma turbulência que poderá, sem precedentes, ser tramada entre o ser humano consigo próprio e com o outro, como também do que acontece no âmbito das diferentes culturas e sociedades, e as outras tantas dimensões suscitadas pela economia, política, pelo mundo digital, a ecologia, o desafio da existencialidade e outros tantos aspectos. Segundo Morin:
O momento histórico extremamente grave que atravessamos está cheio de desafios. A crise sanitária que continua em curso é acompanhada por uma crise política e uma crise econômica cuja profundidade e duração ainda não foram dimensionadas, parece prenunciar-se uma crise alimentar mundial; iniciou-se uma crise social dramática em consequência da explosão do número de desempregados e de trabalhadores precários. (Morin, 2020, p. 43)
Uma contundente reflexão põe em voga o que parece ser uma das mais esperadas reivindicações tecidas pela humanidade nesses tempos de incertezas causados pela pandemia, a de que “[...] a esperança está na luta pelo despertar das mentes e pela busca de outra Via, que a experiência da megacrise mundial terá estimulado” (Morin, 2020, p. 53).
No terceiro capítulo, Mudar de via, Edgar Morin discute acerca de uma ressignificação de instâncias da sociedade e do humano de modo a produzir outras possibilidades de mudanças que primem pela qualidade de vida dos sujeitos em harmonia consigo e com o meio em que vivem. Por isso, reflete as implicações das grandes linhas da nova Via, que seriam, no contexto “político-ecológico-social imposta pela crise inédita que vivemos [que] são criadas pela necessidade de regenerar a política, de humanizar a sociedade e de ter um humanismo regenerado” (Morin, 2020, p. 56).
A necessária defesa de uma reforma é, pois, uma das bases da crítica e reflexão tensionadas pelo autor no livro, entre as quais as que possam consolidar-se pela reforma: econômica, empresarial, da democracia, ecopolítica, do pensamento reformador e da sociedade, entre outras.
Todas essas reformas com que advoga Morin se refletem e se refratam na qualidade de vida do sujeito que as enfrenta e constitui o ser, saber, fazer, poder e pensar com que mobiliza em diferentes perspectivas, intensidades e propósitos na sua existencialidade. Por isso, a importância de primar pela qualidade de vida, tendo em vista que esta “[...] se traduz por bem-estar no sentido existencial, e não apenas material. Implica a qualidade das relações com o próximo e a poesia dos envolvimentos afetivos e afetuosos” (Morin, 2020, p. 75).
A atualidade do pensamento de Edgar Morin não é só necessária como imprescindível nesses tempos que estamos vivendo de instabilidades e incertezas da própria vida, da política, economia, educação e sociedade, entre outras instâncias, que nos convoca a empreender uma aventura de desbravar e explorar outras tantas reflexões, narrativas e epistemologias com as quais possamos entender os fenômenos globais que afetam a humanidade sem precedentes, e em que o pensamento complexo se torna uma via indispensável para o sujeito compreender, interpretar e buscar soluções diante dos acontecimentos que surgem e enfrentam no meio circundante.