Introdução
O debate sobre inclusão digital representa uma disputa hegemônica pautada por interesses econômicos e políticos, que teve início nos anos 1970 e se intensificou no século XXI, tendo como foco o acesso da população às tecnologias de informação e comunicação (TIC). Tal debate, justifica investimentos dos países desenvolvidos em produção e distribuição de tecnologias os quais culminaram em significativos ganhos econômicos a países da Europa e EUA (ECHALAR; PEIXOTO, 2016).
O processo de globalização - que pode ser caracterizado de forma geral como transformações que ocorrem no mundo, principalmente a partir dos anos 1980, a partir do efeito das TIC na internacionalização do capital - alinha de forma direta os países chamados subdesenvolvidos às orientações econômicas dos ditos países desenvolvidos. A discussão sobre inclusão e exclusão digital no países periféricos toma como ponto de referência os critérios dos países desenvolvidos para o acesso à cidadania e ao desenvolvimento (BARRETO, 2015; ECHALAR; PEIXOTO, 2016). Assim, este debate é caracterizado por disputas de diferentes interesses sociais, apoiados sobre as bases materiais que sustentam nossa sociedade, ou seja, o modo de produção capitalista.
Comumente, o termo inclusão/exclusão digital é adotado a partir de uma lógica simplista que reduz estes conceitos a uma mera relação antagônica (BARRETO, 2015; ECHALAR; PEIXOTO, 2017), ao invés de explicitar que o
debate sobre exclusão digital adota implicitamente o padrão norte-americano de difusão das tecnologias de informação e comunicação (TIC) como modelo de referência, em relação ao qual o estado da difusão deve ser avaliado. A definição de exclusão digital é, então, marcada pela problemática do retardo, que mede o caminho a ser percorrido pela distância entre uma experiência mais avançada e as outras, necessariamente, atrasadas. Ou seja, o horizonte apresentado é de obter uma utilização das TIC tão intensiva quanto nos EUA (ECHALAR; PEIXOTO, 2016, p. 42).
As TIC são consideradas como fatores determinantes para o desenvolvimento social, com base numa lógica reducionista que condiciona a inclusão social à inclusão digital, ocultando as contradições da sociedade capitalista e mistificando-as, por as colocarem como salvadoras dos problemas de nossa sociedade. No entanto, é preciso colocar em questão a ilusão que a sociedade que gerou a exclusão digital irá produzir, sem conflito ou tensão, o mecanismo que irá exterminar o mesmo processo excludente.
Assim, as políticas públicas de inclusão digital no Brasil se apoiaram na ideia de que o acesso às TIC garantem, de forma direta, a inclusão de indivíduos socialmente desfavorecidos. Estas políticas se pautam na simples lógica dos que tem e não tem acesso à tecnologia (ECHALAR; PEIXOTO, 2017; CORRÊA, 2007). Fazendo referência dentre outros, ao conceito de inclusão digital, Corrêa (2007) faz a seguinte consideração:
A força com que a tecnologia se impõe, pela sua promessa, sua objetividade física e sua eficiência técnica, em geral, leva os grupos sociais e o próprio Governo a tratarem os conceitos de forma independente, priorizando um deles em detrimento de outros, ou desprezando e minimizando a importância do processo de interação em si que acontece entre os conceitos (p. 58).
O Programa Um Computador por Aluno (PROUCA) foi proposto no Brasil no ano de 2005, influenciado pelas ideias do programa da One Laptop Per Child (OLPC)1, com o intuito de distribuir laptops para crianças de escolas públicas, tanto para uso individual como para fins pedagógicos, visando uma suposta inclusão digital.
Na busca por compreender melhor a inclusão digital via ambiente escolar por meio dos usos dos laptops do PROUCA, nos indagamos: como se caracterizam as produções acadêmicas relacionadas ao PROUCA, no que tange ao uso do laptop em sala de aula? Compreender as bases teóricas que fundamentam a implantação de uma política pública nos possibilita compreender os pontos de contradição e desencontros existentes, o que se constitui como nosso objetivo nesta pesquisa.
Esta questão de pesquisa baseou um estudo de cunho bibliográfico, caracterizado como estado do conhecimento, inicialmente de caráter inventariante e descritivo de teses brasileiras no período de 2005 a 2016. O estado da arte ou estado do conhecimento tem como objetivo realizar um mapeamento e estudo do que foi produzido em determinada área do saber, em um limite temporal estabelecido, utilizando categorias de análise que emergem do próprio conteúdo investigado (FERREIRA, 2002).
Para a constituição do corpus deste trabalho, a busca por teses foi realizada no Banco de Teses da Capes, na Biblioteca Brasileira Digital de Teses e Dissertações (BDTD), a partir dos seguintes descritores: PROUCA/ UCA; inclusão/exclusão digital; laptop/notebook/computador portátil e modalidade 1:1. Quando não conseguimos o arquivo completo diretamente pela BDTD, buscamos nas bibliotecas digitais dos Programas de Pós-Graduação (PPG) em Educação.
Para a análise do corpus deste trabalho, foi construída uma ficha com o objetivo de sistematizar os dados obtidos pelas teses, contemplando os seguintes itens: ano; palavras-chave, orientador(a); instituições de Ensino Superior (IES); Programa de Pós-Graduação (PPG); problema de pesquisa; objetivos (que está subdividido em objetivo geral e específico); tipo de pesquisa; procedimentos de coleta de dados; procedimento de análise de dados; objeto/sujeito de pesquisa; principais resultados; principais conclusões; perspectivas teóricas que orientam a produção e o uso dos laptops.
Primeiras impressões sobre as produções acadêmicas que discutem o uso dos laptops do PROUCA
Foram encontradas 27 teses relacionados ao PROUCA. Entretanto, somente 11 teses destas produções discutem o uso do laptop do PROUCA, conforme Tabela 1 a seguir.
Ano | Título | IES | Orientador(a) | PPG | |
2011 | T1 | Modalidade 1:1: tecnologia individual possibilitando redes de fluência digital | Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Léa da Cruz Fagundes | Informática na Educação |
Ano | Título | IES | Orientador(a) | PPG | |
2012 | T2 | Difusão tecnológica no ensino de Línguas: o uso de computadores portáteis nas aulas de Língua Portuguesa sob a ótica da Complexidade. | Universidade Federal de Minas Gerais | Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva | Letras Estudos Linguísticos |
T3 | Indicadores de mudanças nas práticas pedagógicas com uso do computador portátil em escolas do Brasil e de Portugal | Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Maria Elizabeth Bianconcini Trindade Morato Pinto de Almeida | Educação | |
2013 | T4 | A inclusão da instituição escola na cultura digital e a construção de novos paradigmas a partir da iniciação científica na educação básica | Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Léa da Cruz Fagundes | Informática na Educação |
T5 | O laptop educacional em sala de aula: práticas pedagógicas construídas | Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Isabel Franchi Cappelletti | Educação: Currículo | |
2014 | T6 | Das máquinas de ensinar aos netbooks: tradição, inovação e tradução | Universidade do Estado do Rio de Janeiro | Maria de Lourdes Rangel Tura | Educação |
T7 | O Programa Um Computador por Aluno (PROUCA) e a inclusão de alunos com deficiência | Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Lucila Maria Costi Santarosa | Educação | |
T8 | Trabalho colaborativo em rede no Projeto Um Computador por Aluno (UCA): conhecimentos e práticas docentes | Universidade Federal do Ceará | José Aires de Castro Filho | Educação Brasileira | |
T9 | Programa Um Computador por Aluno: as práticas pedagógicas desenvolvidas com o uso do laptop | Pontifícia Universidade Católica de São Paulo | Maria Elizabeth Bianconcini Trindade Morato Pinto de Almeida | Educação: Currículo | |
T10 | O professor e a autoria no contexto da cibercultura: redes da criação no cotidiano da escola | Universidade Federal da Bahia | Maria Helena Silveira Bonilla | Educação | |
2016 | T11 | Inovação de práticas, mudança educativa e o uso de computadores portáteis na escola pública: a visão dos professores | Universidade de São Paulo | Mônica Appezzato Pinazza | Educação |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Considerando o período de 2005 a 2016, ou seja, da implementação nas primeiras escolas, passando pela publicação da Lei nº 12.249 no ano de 2010 aos dias atuais, as teses são oriundas de pesquisas nas escolas piloto (fase I) da região sul e sudeste do Brasil, havendo duas teses de PPG do nordeste. Foram produzidas entre os anos de 2011 a 2016, tendo a maior concentração no ano de 2014 (totalizando cinco produções).
No que tange aos PPG, a maioria das produções estão vinculadas a programas relacionados à Educação (nove produções) e duas em Informática na Educação. Fato que nos chama atenção é que dos nove orientadores descriminados na Tabela 1, seis participaram ativamente no processo de implementação do PROUCA no Brasil, seja por constituírem o Grupo de Trabalho do UCA (GTUCA)2 ou por terem sido contemplados com o edital MCT/CNPq/CAPES/MEC-SEB nº 76/2010 - PROUCA3. Apenas três das produções do nosso corpus não tiveram orientações de professores vinculados diretamente à implementação do PROUCA no Brasil.
Marilena Chauí, nos meados da criação do Progama analisado, já discutia o papel que a universidade e que seus intelectuais assumem frente ao mundo moderno, asseverando que:
[...] a noção de sociedade do conhecimento, longe de indicar uma possibilidade de grande avanço e desenvolvimento autônomo das universidades enquanto instituições sociais comprometidas com a vida de suas sociedades e articuladas a poderes e direitos democráticos, indica o contrário; isto é, tanto a heteronomia universitária (quando a universidade produz conhecimentos destinados ao aumento de informações para o capital financeiro, submetendo-se às suas necessidades e à sua lógica) como a irrelevância da atividade universitária (quando suas pesquisas são autonomamente definidas ou quando procuram responder às demandas sociais e políticas de suas sociedades) (CHAUÍ, 2003, p. 9).
Em sua crítica à relação da universidade com a sociedade, a autora denuncia que seus intelectuais podem atender a finalidades econômicas e pouco acadêmicas, desviando a instituição do seu papel de formação humana. Ela nos convoca ao engajamento em uma universidade enquanto espaço de luta por uma educação como direito e não privilégio ou serviço, garantindo os direitos sociais e não a reprodução do capital. A tese de Sarian (2012) sobre o mesmo programa ainda nos alerta ao papel da universidade
como “prestadora de serviços”, aquela que promove uma “filantropia intelectual”, um “salvacionismo”, “uma espécie de pronto-socorro universitário”, “uma hierarquização de interesses, cuja direção é dada pela universidade”. Esse funcionamento traria, como um de seus efeitos, uma consequência nefasta, pois a universidade, ao “tomar o lugar de”, assumindo o papel de salvadora e dirigindo, segundo seus interesses, o processo de divisão social do trabalho da leitura, elimina a possibilidade de que aqueles que têm sua prática no primário e no secundário possam formular e elaborar adequada e autonomamente suas questões e reivindicar condições para viabilizar soluções para suas dificuldades de ensino [...] (SARIAN, 2012, p. 49).
Cabe ressaltar que a discussão sobre uma política pública e as práticas sociais que dela decorrem, seja a implementação, seus cursos e custos, implica em desvelar sua totalidade social, ou seja, compreendê-la dentro seu processo histórico a partir das relações de produção que a compõe (MARX, 1996), assim é válido refletir sobre o papel que a academia desenvolveu quando foi financiada para avaliar ou implementar uma política pública.
Se atentarmos às questões metodológicas das teses analisadas, percebemos que as pesquisas do corpus deste trabalho, de uma forma geral, declaram-se como qualitativas e utilizam instrumentos de coleta de dados individuais e coletivos, tomando especialmente o professor como sujeito (Tabela 2).
Dados coletados | Eixos de análise | Tese |
---|---|---|
Tipo de pesquisa | Estudo de caso | T1 |
Etnográfica | T6 | |
Pesquisa-formação | T3;T8 e T10 | |
Pesquisa qualitativa | T2; T4; T5; T7; T9 e T11 | |
Coleta de dados | Diário de campo | T1; T2; T3; T5; T9 e T10 |
Observação das atividades docentes | T4; T5; T6; T7; T8; T9 e T11 | |
Entrevistas | T2; T4; T6; T7; T8; T9 e T11 | |
Questionários | T2; T5 e T9 | |
Análise documental | T1; T5; T6; T9; T10 e T11 | |
Análise de dados | Epistemologia genética | T1 |
Análise do discurso | T4; T6 | |
Netnografia | T10 | |
Método de Interpretação de Sentidos | T3 | |
Teoria da complexidade | T2 | |
Criação de categorias de análise | T2; T5; T7; T8; T9 e T11 | |
Objeto/sujeito de pesquisa | Prática pedagógica do professor | T3; T5; T8; T9 e T11 |
Discursos/percepção sobre a tecnologia dos professores | T2; T4 e T6 | |
Uso de tecnologias na inclusão pelos professores | T7 | |
Autoria docente | T10 | |
Rede de fluência digital aos docentes | T1 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
O desenvolvimento das pesquisas almeja a busca por respostas a problemas de aspectos da realidade (GAMBOA, 2007). Vale salientar que a pesquisa do tipo estado do conhecimento é inicialmente de caráter descritivo, mas pode nos fornecer elementos teóricos para ir para além do empírico imediato, problematizar a realidade e fazer uma análise crítica dos fenômenos analisados.
O estudo sistematizado das teses no oportunizam compreender três vertentes para o uso dos laptops do PROUCA em ambiente escolar, como nos aponta a Tabela 3.
Eixos de análise | Tese |
---|---|
Uso do laptop para a mudança da prática docente | T3; T5; T6; T9; T10 e T11 |
Naturalização da necessidade social da inclusão digital | T2; T7 e T8 |
Ênfase na atividade do aluno | T1 e T4 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Assim, nas sessões posteriores analisaremos os três eixos de analise que emergiram dos dados coletados relativos ao problema de pesquisa, objetivos, os usos dos laptops, principais resultados e conclusões, vislumbrando um salto qualitativo na análise, de modo a garantir um olhar dos elementos que configuram a essência do fenômeno estudado.
Uso do laptop para a mudança da prática docente: para quê?
De uma forma geral, as pesquisas versam sobre a integração dos laptops à dinâmica escolar para mudança e inovação da prática de ensino dos professores e, consequentemente, melhoria na aprendizagem dos estudantes. Neste contexto, a tecnologia é apresentada com a capacidade de facilitadora do trabalho docente, por garantir efeitos que seriam inerentes ao recurso utilizado. O laptop materializaria as metodologias, como destacado no seguinte trecho:
muitos dos ideais perseguidos por educadores ao longo de pelo menos um século, como o desenvolvimento da autonomia dos educandos, de pesquisas e projetos, de uma aprendizagem interativa, colaborativa, entre outros aspectos, podem ser concretizados com a utilização de diferentes recursos tecnológicos hoje disponíveis (T11, p. 33)4.
De acordo com Peixoto (2012), uma abordagem tecnocentrada considera que a tecnologia se movimenta de forma autônoma em relação aos sujeitos sociais. Isto é, uma percepção tecnocentrada pensada dentro do contexto educacional, coloca a tecnologia como engendradora do trabalho pedagógico.
Além disso,
É preciso também atentar para o fato que não é suficiente observar os usos feitos pelos atores (professores, alunos, etc). As lógicas de uso manifestam-se apenas parcialmente por meio dos fenômenos observáveis. Os usos estão ligados não apenas aos objetos, mas aos contextos precisos dos quais eles fazem parte (PEIXOTO, 2012, p. 7).
Entretanto, as teses analisadas não superam uma observação aparente, se prendem à forma e não ao conteúdo. E incessantemente, afirmam que o laptop do PROUCA muda as práticas docentes, como destacado no seguinte trecho:
O computador portátil pode possibilitar ao professor uma ampliação das interações sociais, aliados com os recursos da web 2.0, favorecendo o intercâmbio de informações entre membros que se encontram dentro de uma escola [...] Todas essas possibilidades e potencialidades inerentes ao uso do computador portátil devem provocar mudanças na maneira com que os professores refletem e exercem suas práticas, contudo, é necessário considerar também os reflexos destas características no modo com que os alunos aprendem (T11, p. 130).
Sabemos que as práticas de uso são marcadas por contradições. Os procedimentos de ensino e as estratégias didáticas adotadas pelos professores não correspondem à aplicação de uma metodologia de ensino única. Os professores adaptam suas formas de ensinar às condições objetivas com as quais se deparam nas escolas, adequando suas crenças e convicções pedagógicas.
Desta maneira, ao observarmos as práticas docentes, nem sempre poderemos alcançar os princípios que as orientam, atingindo apenas a forma explicitada e não o seu conteúdo.
A lógica formal, igualmente, pode ser considerada como um dos sistemas de redução do conteúdo, através do qual o entendimento chega a “formas” sem conteúdo, as formas puras e rigorosas, nas quais o pensamento lida apenas consigo mesmo, isto é, com “nada” de substancial. [...] o pensamento exige que sejam postas com precisão as condições de seu acordo consigo mesmo, de sua coerência e, a partir do momento em que se pretende apreender um tal pensamento e um tal acordo sem conteúdo, não há mais pensamento; a própria forma parece desaparecer no momento em que é apreendida como forma (LEFEBVRE, 1991, p. 132).
As teses descrevem o fenômeno em sua aparência. A descrição do fenômeno imediato oculta as razões essenciais que o explicam, permitindo tomar como inovadoras práticas que reproduzem metodologias já conhecidas, apenas atualizando aparentemente por meio das tecnologias utilizadas. Ou seja, ao apenas descrever o uso de tecnologia na prática docente, as pesquisas a colocam como inovadora e transformadora do trabalho docente.
Além disso, mesmo que a inserção de tecnologias mude a dinâmica da sala de aula, as relações pedagógicas podem ser as mesmas, ou seja, a mudança da prática docente não reflete em uma mudança no trabalho pedagógico do professor.
Os usos dos laptops nas teses analisadas giram em torno de pesquisas na internet, uso das ferramentas do Google, web 2.0, utilização dos aplicativos presentes no aparato e produção de atividades extracurriculares. O entusiasmo expresso pelas teses no que diz respeito ao acesso à web 2.0 e aos laptops do PROUCA se sobrepõem à discussão sobre o trabalho pedagógico dos professores, o qual envolve as tecnologias, mas também a metodologia adotada e os fundamentos pedagógicos sobre os quais esta se assenta. Como o uso dos laptops do PROUCA não pressupõe uma finalidade pedagógica em si, estas produções contribuem para esvaziar a discussão de suas bases teóricas e mistificam as relações entre educação e tecnologia.
Naturalização da necessidade social da inclusão digital ou imposição velada para o consumo de TIC?
As teses analisadas têm como principal argumento o uso de TIC no âmbito educacional como uma realidade que não pode ser ignorada, naturalizando a necessidade social da inclusão digital. O seguinte trecho salienta que:
A Escola tenta, timidamente, inserir-se nessa “nova era”, abrindo espaços para discussões e experiências. A presença de mídias digitais no cotidiano escolar assusta alguns educadores que as consideram geradoras de desorganização, agitação e dispersão devido a suas infindáveis fontes de informação, cores, movimentos e sons. É assim, também, que veem os alunos e estes são, realmente, em essência, digitais: suas aprendizagens se constituem de ações, construções e organizações não-lineares, em consonância com a estruturação da Era em que vivem. Se o ensino é linear e a aprendizagem não, o descompasso é inevitável (T1, 2011, p. 136).
Estas produções colocam como alicerce da sua discussão a premissa que as TIC estão presentes na realidade brasileira e que estas exigem uma nova proposta pedagógica, pois, como afirmam estas produções, o “professor do século XXI tem a possibilidade de permanecer atento às mudanças atuais e às transformações culturais e econômicas, portanto, deve entender as exigências para a construção da escola contemporânea” (T9, 2014, p. 63).
Um outro eixo identificado, refere-se à associação do uso do laptop à mudança da prática docente, atualizando às demandas contemporâneas. Podemos, então, dizer que a indagação formulada por uma das teses analisadas sintetiza o eixo central de suas preocupações: “Por que ignorar ou resistir ao uso de computadores conectados à Internet, se eles podem facilitar o trabalho docente e concorrer para que os alunos aprendam de maneira lúdica e proveitosa?” (T8, 2014, p. 18).
Todavia, as teses analisadas não informam ao leitor que
No Brasil, 54% dos domicílios estão conectados à Internet, o que representa 36,7 milhões de residências - um crescimento de três pontos percentuais em relação a 2015. Os padrões de desigualdade revelados pela série histórica da pesquisa persistem: apenas 23% dos domicílios das classes DE estão conectados à Internet e, nas áreas rurais, essa proporção é de 26%. O acesso à Internet está mais presente em domicílios de áreas urbanas (59%), e nas classes A (98%) e B (91%). O principal motivo para a falta de Internet nos domicílios no Brasil é o preço da conexão (26% dos domicílios desconectados) e a falta de interesse (18%) (CGI BRASIL, 2017, p. 26)5.
No que diz respeito ao contexto educacional, o Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil (2017) afirma que cerca de 95% das “escolas públicas em áreas urbanas” possuem algum tipo de TIC, como tablet, computador e etc., mas a qualidade da internet ainda é um fator problemático, pois 45% das escolas públicas urbanas ainda não ultrapassam velocidades acima de 4 mbps, enquanto 33% não superam a velocidade de 2 mbps6. Ou seja, o acesso às TIC e à internet no Brasil não é realidade como afirmam estas produções; a distribuição de internet no Brasil é ainda um processo desigual, principalmente se considerarmos a classe “D” e “E”. E no que tange às escolas públicas, a internet ainda apresenta uma baixa qualidade, como atestam as teses analisadas (T1; T3; T4; T5; T6; T7 e T11).
O discurso de que não há possibilidade pedagógica na atualidade, ou modo de atrair a atenção dos discentes, ou ainda de ensiná-los fora do mundo digital, simplifica os processos e contextos escolares, além de não obrigatoriamente atender ao ensino de um conhecimento científico.
Ênfase na atividade do aluno: o praticismo em serviço do capital
As duas teses que discutem o uso do laptop em sala de aula sob a centralidade da ação do estudante da educação básica são as teses T1 e T4. Ambas possuem como fundamento a epistemologia genética de Jean Piaget e fazem usos de metodologias de intervenção na realidade escolar.
É, portanto, comum a ambas a necessidade de valorizar a participação ativa dos alunos e de garantir o desenvolvimento intelectual de forma autônoma, como pode ser observado nos excertos abaixo.
Aos alunos, é conferida liberdade para escolher situações de aprendizagem condinzentes com seus sistemas de significação (T4, 2013, p. 42). [...] a grande mossão das instituições escolares constitui-se no desafio de criar espaços que garatam aos alunos a possibilidade de avançarem intelectualmente de forma autônoma, com responsabilidade e espírto crítico na busca por seus saberes (T4, 2013, p. 56).
Uma Escola que prioriza o fazer do aluno, suas estratégias próprias e suas construções oportunizaria as trocas argumentativas a fim de trabalhar a sistematização dos conceitos e a formulação coletiva. Quando o sujeito encontra experiências, testagens, bibliografias, opiniões, etc. que divergem do seu posicionamento, ele volta-se para a própria produção a fim de analisá-la e confirmá-la ou refutá-la (T1, 2011, p. 135).
A centralidade do processo de aprender nos alunos está coerente ao referencial adotado e, de fato, se configura como uma mudança na lógica da sala de aula dita tradicional. Todavia, temos que apontar que a inversão de papeis ainda é pouco para dar conta do complexo fenômeno educativo, que é constituído por múltiplas determinações entre os sujeitos sociais e os produtos do conhecimento, socialmente produzido e ensinado na escola.
A superação da pedagogia tradicional, por meio da Escola Nova, se deu historicamente na defesa de métodos ativos na proposta de uma atividade pedagógica centrada no aluno. A ênfase na atividade do aluno e na proposta do “aprender a aprender” é justificada na negação de uma perspectiva transmissionista do conhecimento, denunciando um autoritarismo no processo de aprendizagem, visto que os conhecimentos ensinados na escola não são do interesse do aprendiz.
Todavia, nos asseguram Saviani (1999, 2011) e Duarte (2000, 2001) que a ambas as pedagogias (tradicional e escolanovista) são matrizes educacionais que materializam os interesses da sociedade capitalista. A suposta valorização das condições culturais do aluno, em detrimento do conhecimento científico, nega a função da escola como desmocratizadora das produções historicamente construídas e atende às necessidades do capital (SAVIANI, 1999), pois enfatizam um ensino por competências e habilidades em prol de uma educação voltada para o mercado de trabalho.
A tese 1 ainda acrescenta que
O fato da proposta pedagógica depender mais de professores do que de alunos pode ter ligação direta com esta inferência, afinal, constatar aprendizagem de Fluência Digital da geração Homo Zappiens, mesmo partindo de sujeitos com muito pouca ou nenhuma experiência prévia com tecnologia parece mais natural que modificar estruturas educacionais arraigadas (T1, 2011, p. 143).
Consideramos, ainda, que esvaziar o papel social do professor, além de se configurar como uma perversidade contra a profissão, ainda imputa ao aluno responsabilidades as quais ele não está pronto para dar respostas, já que não possui formação profissional para compreender a compleixidade de conteúdos a serem apropriados.
Considerações finais: o que ainda temos a considerar...
Os três eixos de análise, em síntese, fomentam a lógica da inclusão excludente por desconsiderar os contextos sociais de nosso país e se pautar na intencionalidade de fomentar a cadeia produtiva e de consumo de TIC.
Além disso, estas produções acadêmicas se afastam das bases materiais, presentes na produção das TIC e das relações sociais de produção que configuram o trabalho docente. Daí a misitificação da tecnologia e de seus poderes pedagógicos. O trabalho docente com uso de tecnologias aparece como algo inevitável, e não como aspecto didático-metodológico imbuído de significado e orientação político-pedagógica. Uma análise que não leve em consideração o modo de produção vigente e não considera o papel desumanizador do capital, ignora o fato de que “a introdução de inovações científicas e tecnológicas tende a simplificar o processo de trabalho com o propósito de aumentar sua produtividade segundo os interesses do capital (LIMA JUNIOR, et al., 2014, p. 187)”.
As teses analisadas negam a realidade exploradora do capital e, consequentemente, negam a dupla dimensão do trabalho docente na sociedade capitalista, de produção de valor de uso e de valor de troca.
sob a dominância das relações capitalistas de produção, o trabalho assume um duplo aspecto: produtor de condições necessárias à vida, portanto, à satisfação das necessidades humanas, valor de uso; produtor de mercadorias, portanto, valor de troca, necessário ao processo de reprodução e valorização do capital. Esta dimensão contraditória do trabalho representa a sua forma histórica degradada e alienada sob o domínio das relações capitalistas de produção (LIMA FILHO, 2012, p. 89).
Desta forma, as teses analisadas ignoram o caráter ontológico do trabalho docente com uso de tecnologia, deixando de considerar os laptops e seu uso no contexto do PROUCA como produtos das condições materiais de vida e do processo de humanização do homem pelo trabalho. Em suma, estas produções fazem alusão ao real, mas não o abordam como produto e produtor das bases materiais da vida social.