Introdução
Recente na literatura acadêmica, a expressão “inclusão tecnológica”, que abrange o “digital” como uma de suas tecnologias, vem sendo utilizada em referência a discursos e ações quanto ao acesso a tecnologias de informação e comunicação (TIC) e sua apropriação pelos indivíduos e coletivos. Não possui o status de conceito, e começou a ser empregada como extensão, e em oposição ao termo “exclusão” criado nos anos 1970. Tanto “exclusão tecnológica” como “exclusão social” apontam para um “caráter coletivo, complexo, político e multifacetado” dos fenômenos (CARVALHO; FERREIRA, 2018).
Inclusão/exclusão, seja social seja digital, seriam expressões problemáticas por fazerem referência à existência de sujeitos excluídos/colocados para fora de, quando, de fato, não existiriam pessoas fora da sociedade ou da tecnologia, mas sujeitos sob a condição de marginalizados, mantidos à margem, dentro da (e pela) sociedade. Sob esta perspectiva, “sua solução, pois, não está em ‘integrar-se, em ‘incorporar-se’ a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se ‘seres para si’” (FREIRE, 1987, p. 35).
Na ausência de outro termo, mas a partir desta perspectiva de necessária transformação de estruturas opressoras, a expressão “inclusão social” parece ser a mais adequada para se relacionar TIC e educação em discussões envolvendo marginalizados. Como exprime Warschauer (2006), o objetivo do uso de tecnologias com estes grupos não teria como objetivo apenas ultrapassar a “exclusão digital”, mas promover um processo de “inclusão social”, de modo que eles possam participar ativamente da sociedade (e transformá-la), compreendendo questões como emprego, saúde e educação. Educação não se restringe a ações envolvendo instituições educativas; pode ser relacionada a um processo permanente de desenvolvimento crítico pelos sujeitos acerca das realidades, e de si, e dos outros, a partir de diferentes experiências e insumos, como o acesso à informação qualificada.
Nesses termos, “inclusão social” e, portanto, educação com tecnologias digitais envolve mais do que o simples acesso a artefatos e conectividade: compreende um complexo conjunto de questões como língua, letramento, recursos comunitários, entre outros (WARSCHAUER, 2006) envolvendo grupos diversos e suas particularidades. No caso deste artigo, o foco recai sobre os sujeitos surdos e sua acessibilidade à informação de qualidade (nos termos deste trabalho) pelas tecnologias digitais, como matéria-prima para seu processo permanente de educação.
E eles não são poucos. Cerca de 10 milhões de brasileiros (IBGE, 2010) com algum tipo de perda de audição enfrentam, cotidianamente, barreiras para obter informações por fazerem parte de uma minoria linguística. Uma das dificuldades com as quais as pessoas surdas se deparam é o acesso à informação em meios audiovisuais. A Língua de Sinais não é empregada na maioria dos conteúdos disponibilizados por tecnologias digitais e a Língua Portuguesa Escrita (LPE) não foi apropriada pela maioria dos surdos; e mesmo pelos ouvintes, já que “apenas um em cada quatro brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática”, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2012). Assim, recursos como legendas e, como será tratado mais adiante, o trabalho de intérpretes não seria suficiente para a ampla compreensão das informações pela maioria dos surdos.
O reconhecimento legal da Libras como Língua (BRASIL, 2002) é uma conquista recente e, em geral, as discussões sobre inclusão desse público tratam de temas referentes a trabalho, formação profissional e educação em nível de ensino regular. No que diz respeito à acessibilidade à informação, as pesquisas costumam focar o uso de legendas, de intérpretes e outros recursos digitais em desenvolvimento em práticas de sujeitos surdos (BRITO, 2018).
Este artigo apresenta um recorte de pesquisa (BRITO, 2018) sobre o primeiro canal de WEB TV no País protagonizado por surdos, com programação 100% bilíngue, ou seja, locução em Português, emprego da Libras em primeiro plano e de legendas descritivas, para destacar a relevância de conteúdos audiovisuais produzidos por surdos e para surdos como um caminho que favoreceria sua educação permanente enquanto sujeitos via tecnologias. Uma dimensão das discussões acerca de inclusão com tecnologias diz respeito à apropriação crítica, criativa e autônoma de artefatos (CARVALHO; FERREIRA, 2018). Este trabalho expõe que a dimensão pode esbarrar em conteúdos que não atendem Língua e culturas, como as dos milhões de surdos brasileiros, ainda que possam vir a ter artefatos, conectividade e fluência quanto ao uso.
Recorte de pesquisa
A TV INES (2018) é uma televisão pública, financiada com recursos do governo federal, por intermédio do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), ligado ao Ministério da Educação. Foi criada em 2013 e sua produção seria elaborada e veiculada respeitando as especificidades dos surdos, com intuito de democratizar a informação e contribuir para a ampliação do conhecimento e da cidadania enquanto televisão de caráter educativo (INES, 2014).
A técnica de cenas, planos, sequências, cenário, vestuário, iluminação, enquadramento, definição de pauta, característica dos atores, divisão do espaço no vídeo, combinações dos elementos estéticos com os textuais, intertextualidade, aspectos técnico-estéticos, a participação de profissionais surdos e intérpretes, além de legendagem em toda a programação, foram elementos observados em campo. Em pesquisa sobre o programa “Café com Pimenta”, por exemplo, Siqueira (2015, p. 83) identificou que as produções “incorporam elementos que são característicos da cultura surda e sua linguagem”. A participação de pessoas surdas nesse processo contribui não só para que elas tenham acesso à informação qualificada, mas também que saiam da posição de mero receptor para atuar como coparticipantes na produção dos conteúdos apresentados. Como profissionais, os surdos atuam como “sujeitos ativos, emissores de ideias e valores e produtores de conteúdo” (SELAIMEN, 2004, p. 23).
A TV INES distribui sua programação gratuita via satélite para parabólicas, TVs a cabo, DTH e Internet. Neste caso, além do próprio portal, recorre a conhecidas plataformas como YouTube, Facebook, Instagram e Twitter. A WEB TV também é veiculada em 12 polos, em parceria com as universidades e institutos federais pelo país, além de Centros de Atendimento aos Surdos (CAS) que teriam sido equipados para receber o sinal da TV INES em 26 cidades brasileiras (ACERP, 2014). Os conteúdos digitais educativos, culturais e jornalísticos exclusivos da TV INES são veiculados 24 horas por dia, com atualização semanal e diversificada para várias faixas etárias. Além dos 25 programas próprios que constavam no portal da TV INES em 2017, são exibidas produções de parceiros com informações sobre cidadania, direitos, meio ambiente e saúde, entre outros adaptados para o formato da WEB TV. Neste caso, a versão em Libras obedece ao seguinte padrão: a altura da “janela” de Libras deve ser da altura da tela, a largura da “janela” deve ocupar, no mínimo, a metade da largura da tela, e o recorte com a imagem do outro participante do programa deve estar localizado preferencialmente no canto esquerdo inferior (INES, 2014).
O caráter educativo-cultural da TV INES a caracterizaria como uma TV Educativa que, de modo geral, pode ser compreendida como uma TV que transmite programas voltados à “educação básica e superior, a educação permanente e a educação para o trabalho”, com aulas, conferências, palestras e debates, além de conteúdos de caráter recreativo, informativo ou de divulgação esportiva (FORT, 2010, p. 1164). Neste sentido, pode-se considerar as TVs educativas e outras mídias em geral como importantes para o processo não formal de educação. Elas abrem “janelas de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais” e, de certa forma, contribuem para que os indivíduos se tornem “cidadãos do mundo, no mundo” (GOHN, 2006, p. 29).
Informações transmitidas por variados meios e tecnologias seriam portas de acesso a diferentes realidades, ingredientes fundamentais para o conhecimento do que se passa no mundo com outras pessoas. Podem contribuir com o desenvolvimento, pelos sujeitos, de sua consciência crítica que, a partir de Freire (1979), está atrelada à ação transformadora de si mesmo, das realidades, em comunhão com os outros.
O acesso pelas tecnologias digitais à informação em LS seria um elemento-chave para os surdos desenvolverem seu processo de educação no atual contexto e de se verem como sujeitos históricos, incentivados à participação ativa na sociedade para modificar suas estruturas. Pelas redes sociais, os surdos trocam mensagens, assistem vídeos de conteúdos em Libras de maneira rápida e atual. Contudo, as redes sociais são “um território ainda difuso, onde os pontos de encontro, de conexão e de comunicação são frutos do improviso, do acaso, da interação espontânea e do número de curtidas” (SOUSA; SIQUEIRA, 2017, p. 127).
A ampliação do repertório informacional contribuiria para que o surdo capte e aprofunde aspectos das realidades vividas, não apenas por ele, mas por pessoas próximas. Sendo provocado a “refletir sobre si mesmo e saber-se vivendo no mundo, o sujeito existente reflete sobre sua vida no domínio mesmo da existência e se pergunta em torno de suas relações com o mundo” (FREIRE, 1987, p. 53).
A partir dessa premissa, a pesquisa envolveu 12 surdos trabalhadores e estudantes do INES. Com acompanhamento de um intérprete de Libras, foram aplicados questionários e realizadas entrevistas semiestruturadas individuais com sujeitos de variadas classes socioeconômicas e idade entre 18 e mais de 55 anos (seis do sexo masculino e seis do sexo feminino). As entrevistas foram filmadas com áudio, de modo a captar entrevistado, entrevistadora e intérprete e, assim, garantir a visualização dos sinais feitos pelos dois últimos, resguardando as informações transmitidas em Língua de Sinais. O recurso da filmagem em vídeo com áudio buscou, também, permitir que na fase das transcrições para a Língua Portuguesa Escrita (LPE) pudessem ser consideradas expressões faciais, corporais, posturas, bem como suspiros, lacunas de silêncio, risos dos entrevistados, entre outras manifestações tão representativas quando se trata deste público e que também foram considerados no momento da análise de conteúdo (BARDIN, 1977).
O grupo de entrevistados foi composto pelos seguintes convidados, de modo a considerar níveis diferentes de escolaridade:
Pós-graduação Stricto sensu: duas professoras pesquisadoras do Departamento de Ensino Superior do INES;
Pós-graduação Lato sensu: dois docentes e um técnico administrativo;
Nível Superior: prestador de serviço terceirizado;
Nível Médio: três discentes e um técnico administrativo; e
Nível Fundamental: um técnico administrativo e um discente.
Ainda que reconheçam a importância da TV INES para a ampliação e fontes de informação aos surdos, os participantes com nível de pós-graduação Stricto e Lato sensu não dependem da oferta de informações em Libras, pois adquiriram domínio da LPE para alcançar essa titulação, lembrando que só mais recentemente alguns cursos passaram a ser ofertados em LS. Os demais surdos afirmaram ter dificuldade de compreender informações que não sejam apresentadas em Libras, necessitando recorrer a algum tipo de auxílio junto a amigos e familiares ouvintes ou a outros surdos.
Eu acho que ela [TV INES] esclarece e traz algumas informações porque é em LS, é bom também porque acaba um pouco a dependência da família, quanto mais informação menos você depende lá da família (S7 - Ens. Médio).
Eu acho que o dia que tiver essa mesma qualidade que a TV INES tem de dividir [a tela ampliando a imagem do surdo] para a compreensão, na TV aberta, eu assisto mais TV (S11 - Ens. Fundamental).
Eu acho que antes, com a coisa da janelinha, se perdia muito. Com a coisa de ser um espaço maior, ter o surdo, melhora o entendimento. Acho que agora é melhor que antes com relação à ampliação do espaço, amplia a mente também (S3 - Pós-graduação).
Esses sujeitos, que afirmaram compreender melhor informações quando essas são ofertadas em Libras, não mencionaram a TV INES quando questionados sobre suas fontes de informação. Seja por conta da variedade e volume de informações, seja pela disponibilidade de conteúdos também em LS, o Facebook aparece entre as fontes mais lembradas - a TV INES também possui uma página nesta rede social. Além de interagirem, os sujeitos buscam no Facebook conteúdos que atendam suas especificidades e culturas, por exemplo, pelo compartilhamento de vídeos em Libras produzidos por outros surdos.
Apesar de nenhum dos entrevistados apontar a TV INES como seu principal meio para se manter informado, dos sete entrevistados dos grupos dos Ensinos Fundamental, Médio e Superior, cinco apresentaram em suas falas dificuldades de acesso à informação antes da TV INES.
Não tinha informação, era difícil. Era difícil na televisão a questão da legenda, era complicado, tudo muito difícil. Quando a TV INES, a informação ficou mais clara, as informações chegam, você vê em Libras (S6 - Superior).
Antes, [da TV INES] teve uma fase que eu tinha muito pouco contato com a informação, a própria TV não tinha legenda, aí eu tinha muito contato com a minha mãe e eu pedia a ela pra me explicar (S7 - Ens. Médio).
Nada, ficava sem saber nada mesmo (S11 - Ens. Fundamental).
Televisão. Com a janelinha com intérprete às vezes não dava pra ver e entender muito bem não, aí eu acabava desistindo de assistir (S12 - Ens. Fundamental).
Para mais da metade dos entrevistados, a transmissão de informações em Libras seria determinante para a compreensão da informação, auxiliada, no caso da TV INES, pela exibição em primeiro plano na tela. A maior parte das respostas explicitadas quanto ao motivo pelo qual assistem à TV INES está relacionada ao formato desta TV, a visibilidade, com o surdo em primeiro plano (no janelão), o que potencializa a compreensão dos conteúdos exibidos:
Com a janelinha com intérprete às vezes não dava pra ver e entender muito bem não, aí eu acabava desistindo de assistir. Porque na hora ele parece que divulga mais, a gente tem um impacto maior com o que ele tá sinalizando, bom de saber, bom de ver, eu acho interessante, muito bom (S12 - Ens. Fundamental).
Muito boa a imagem da TV INES, é tudo em Libras, a gente consegue ver de uma forma bem clara. Lá as informações são preparadas, são apresentadas de forma clara em Língua de Sinais, a pessoa aparece de forma interessante (S6 - Superior).
Eu acho legal ter a tela grande. Às vezes faz pequenininho e nem sempre tem né?, Por isso nem todo mundo usa, né? Parece que não desperta a atenção para os surdos. Quando a tela é grande parece que desperta mais. Eu acho importante um surdo na TV INES porque de alguma forma atrai mais surdo né? E também ele consegue dar mais visibilidade. Não tem tantos lugares assim com surdos em destaque. Porque a maioria dos ouvintes tem outra informação né, pela via auditiva. O surdo falta receber informação também visual. Então você ver uma pessoa que é igual a você, você sente que tem um canal de comunicação ali, é isso (S10 - Ens. Médio).
Eu gostaria que tivesse mais surdos sinalizando [na mídia] (S8 - Ens. Médio).
Identificou-se também a importância para os surdos de se verem representados pela exibição desses sujeitos na TV. Também a valorização da Libras, para além de ser a língua de fácil aquisição pelos surdos, que possibilita a comunicação, o acesso à informação e a transmissão de cultura, também representa a afirmação dessas identidades surdas (DIZEU; CAPORALI, 2005; SILVA, 2010). A LS é “um dos principais elementos aglutinadores das comunidades surdas, [...] importantíssimos nos processos de desenvolvimento da identidade surda/de surdo e nos de identificação dos surdos entre si” (SÁ, 2010, p. 129).
A discussão acerca do acesso a informações qualificadas, no caso da pesquisa, envolve diferenças entre conteúdos transmitidos em LPE e por intérpretes de Libras nas “janelinhas”. Segundo Siqueira e Silva (2013, p. 5), “os surdos de nascença, por aprenderem a se comunicar primeiramente pela Libras (sua língua materna), têm grande dificuldade para aprender a língua portuguesa escrita”. A relevância da Libras para surdos, segundo Ramos (2013, p. 22), “deve-se também ao fato de esses sujeitos perderem durante sua vida as informações passadas pela oralidade ou pela escrita, tão difícil para eles”. O uso de legendas pode resultar na perda pelos surdos de parte do conteúdo, mesmo entre os que dominam a LPE, pois, entre outras razões, há a necessidade de se fazer uma leitura rápida por conta da velocidade de exibição.
No que diz respeito a informações em Libras transmitidas por intérpretes, cuja profissão vem ampliando as oportunidades de inclusão dos surdos, seria necessário considerar que, por aparecerem em um plano menor (a “janelinha”), os surdos teriam dificuldades de captar expressões faciais e movimentos do corpo, elementos importantes para compreensão da mensagem. Haveria diferenças entre o uso da LS por um nativo (pessoa surda) e por um ouvinte (intérprete), afinal, o profissional interpreta significados, “os quais as pessoas surdas podem entender como possuidoras de diferenças culturais que ultrapassem o mero processo de traduzir palavras faladas por gestos” (GEDIEL, 2010, p. 106). E quando a interpretação é simultânea, o profissional não tem acesso prévio ao conteúdo para poder se preparar, com o risco de que a tradução pode fuja ao discurso original (MARCON, 2012).
Ao se considerar um discurso como um efeito de sentido entre os interlocutores, fica evidenciado o quanto do intérprete está presente na interpretação. Ou seja, “entre uma língua e outra há um sujeito que atribui sentidos em uma língua e tenta constituir sentidos em outra. Entende-se [...] que a linearidade da linguagem é uma ilusão” (GUARINELLO et al, 2008, n. p.). Nesse processo com a tríade locutor-intérprete-surdo, muito pode se perder. A transmissão de uma mensagem mais próxima de seu conteúdo original depende não só da técnica de interpretação, mas também da perspicácia e sensibilidade do intérprete, incluindo sua cultura, seus valores e compreensão de conceitos que podem influenciar a interpretação em Libras. Há, ainda, a questão da ética, da confiança, do controle emocional no momento da interpretação que, quando ausentes, podem ocasionar problemas tais como omissão, usos errados da expressão facial, equívocos de compreensão dos termos a serem traduzidos/interpretados, falta de domínio sobre o assunto, fatores esses que influenciam e distorcem a interpretação (SANTOS, 2006).
Questionados sobre eventuais diferenças entre conteúdos transmitidos por intérpretes e por surdos, apenas dois entrevistados não veem diferenças, sendo determinante, na opinião deles, a qualidade do uso da LS. Para um entrevistado com Pós-graduação, a qualidade é a mesma quando o intérprete tem acesso prévio ao material a ser interpretado/traduzido, e para o outro com Ensino Médio “não tem diferença, depende da qualidade da Língua de Sinais do surdo ou da LS do intérprete” (S9). Os demais entrevistados, independentemente do nível de escolaridade, se manifestaram quanto à existência de diferença entre o uso da Libras por um intérprete ou por um surdo, por fatores que sugerem relação com:
a) identidade e Língua natural:
Tem sim uma diferença. O surdo tem uma identidade, é sua língua natural, então flui mais. Com o intérprete às vezes fica um pouco diferente sim. Mas não é igual, não tem como ser 100% porque a Libras com o surdo realmente é diferente. (S6 - Superior).
Na minha opinião é diferente. Diferente porque quando um ouvinte fala a Língua de Sinais normalmente ele tá traduzindo do Português e quando o surdo tá falando em LS ele tá se comunicando. De alguma forma é a primeira Língua dele, aí inverte, né, a primeira Língua do ouvinte e a primeira Língua do surdo (S10 - Ens. Médio).
[…] o surdo tem uma certa autovisão sobre o que seria uma propriedade do “ser surdo” que ele consegue transmitir a informação diferente do intérprete ouvinte […] existe um jeito de criar contexto de que é próprio de quem está imerso na cultura surda e tem alguns intérpretes que não conseguem fazer isso […] É diferente (S2 - Pós-graduação).
Eu percebo que tem uma diferença, quando tem um surdo e a gente entra em contato direto com ele apresentando a informação […] No caso dos intérpretes, quando o intérprete é muito profissional e de muita qualidade é a mesma coisa, eu sinto que é igual. Mas quando não é assim é difícil porque falta contexto pra sinalização (S7 - Ens. Médio).
b) estruturação e expressão da mensagem:
[…] a forma de construir de um surdo é mais clara, porque parece que ele sabe a forma diferente que os outros surdos entendem, mas eu acho que questões de pronúncia, sinalização, acesso à informação é semelhante. A construção da explicação é que eu acho que difere […] Algumas coisas que eu acho que os intérpretes perdem é quando existe a apresentação de um conceito. Um surdo que tenha ambientação, que já tinha experiência enquanto pessoa surda de ter compreensão daquilo, de ter compreensão daquele conceito, de conceito semelhante, ele vai fazer uma construção para construir o discurso dele pensando nessa experiência. O intérprete não teve essa experiência, então eu acho que se o intérprete for uma pessoa na verdade cuja estratégia de ambientação foi muito clara, que se alimenta de coisas da comunidade surda pra fazer esse tipo de construção e tem costume ele vai conseguir também (S4 - Pós-graduação).
[…] a Língua se estrutura de maneira diferente, estrutura de frase, a prosódia é diferente, a forma de expressão facial, expressão corporal dos surdos é completamente diferente da dos ouvintes (S1- Pós-graduação).
É diferente, por que os ouvintes quando interpretam, eles não têm tanta expressão facial, eles ficam mais sérios, os surdos se articulam muito […] o intérprete geralmente […] não tem muita expressão facial para transmitir a ideia se isso é bom ou ruim, na LS isso é um pouco diferente (S8 - Ens. Médio).
Como exposto, dez dos 12 participantes da pesquisa veem diferenças entre conteúdos transmitidos por intérprete e por surdo, considerando que a compreensão da informação seria maior quando transmitida por profissionais surdos por conta de características relacionadas à identidade e Língua natural, além da forma de estruturação e expressão da mensagem. Para além de melhor compreensão, programas apresentados por surdos ampliariam a visibilidade desses sujeitos na sociedade, contribuindo, em última instância, para seu empoderamento.
Um outro ponto das entrevistas focou a programação da TV INES. Verificou-se que independentemente do nível de escolaridade, a escolha dos tipos de programas recai sobre aqueles com informações jornalísticas e/ou de cunho pedagógico, que explicitamente teriam o objetivo de contribuir para a melhor compreensão das realidades. É expressiva a ocorrência de motivos para a escolha vinculados à necessidade de informação.
O aprofundamento do conhecimento do que se passa no mundo, das relações de poder, “da razão de ser das coisas” (FREIRE, 1979) potencializaria o desejo de agir visando graus maiores de inclusão. Com exceção de dois sujeitos (S2 e S4) com pós-graduação, que buscam informação primeiramente em outros meios, 10 entrevistados apontaram a contribuição da TV INES para o desenvolvimento da criticidade, explicitando motivos que sugerem relação com reflexão, autonomia, mudança de atitude e maior compreensão da realidade.
Muitas coisas que eu não sabia e acabo vendo, aí eu falo assim: “Nossa!”. Coisas até que me surpreendo, acho diferente do que eu sabia, coisas que até a gente já viu, meio que viu alguém falar assim, mas não tão profundo e aí quando alguém coloca uma questão histórica aí você aprende e isso ajuda né? [...] eu, por exemplo, tenho filhos, então pensar em certas coisas como contratação, emprego, vida funcional já me preocupa em relação aos meus filhos, como eles vão viver, então essas informações me ajudam muito. Sem essas informações como a gente vai se planejar, se preocupar com o futuro? (S3 - Pós-graduação).
Sem dúvida traz independência pra vida porque permite que a gente aja mais, sei lá se você sabe que aumentou o salário você vai lá e vê quais os seus direitos de receber mais também e aí você fica com uma vida igual das outras pessoas que tem mais informação por que você sabe da variedade de coisas que tá acontecendo (S7 - Ens. Médio).
Sim, essas questões políticas é o que mais se fala na TV INES. Essa situação que estamos vivendo no Brasil de corrupção, mensalão, essas discussões todas que acontecem por aí, como o caso da Petrobrás, coisas que eu não conhecia, que apresentava e eu: “que isso?” Aí na TV INES essa informação deixou mais claro que tava sendo negativo […] Então essas informações são boas então divulgam bastante […] (S6 - Superior).
Sei lá, eu acho que os surdos desenvolvem muito ao saber dessas coisas, e também se assustam […] porque antes, quando não tinha a TV INES, não tinha nenhum tipo de programação desse tipo, parece que a vida estava no mesmo lugar, a gente tinha os mesmos acessos, as mesmas coisas. Acho que a partir da criação da TV INES criou-se um foco de discussão (S5 - Pós- graduação).
Essas discussões, quando elas são colocadas, é bom porque a gente fica pensando (S11 - Ens. Fundamental).
Desta forma, pode-se inferir que a maioria dos surdos da amostra associa o acesso à informação qualificada, nos termos deste trabalho, a uma compreensão maior de política, de “como os filhos vão viver”, dos problemas do País, tal como outros brasileiros ouvintes. Sugerem que tem suas leituras ampliadas e, portanto, a TV INES teria relevância para o processo de criticidade deles.
Informações qualificadas, como as transmitidas pelo canal, contribuiriam para melhor compreensão do conteúdo, potencializando reflexão e ação a partir deles. Isso não significa afirmar que a problematização da realidade na qual os surdos estão inseridos dependa de informações da mídia. Mas seria preciso reconhecer que a maioria delas não pode ser obtida de outra maneira.
Considerações finais
A pesquisa sugere que a acessibilidade à informação por meio de uma Língua que os sujeitos dominam e que é mais próxima de seu universo cultural seria elemento fundamental para a educação, o trabalho, o exercício da cidadania ao longo da vida. Conteúdos produzidos para e pelos surdos podem contribuir com o processo permanente de desenvolvimento de sua criticidade (FREIRE, 1979) potencializando sua ação para a “inclusão social” na perspectiva discutida inicialmente neste artigo.
De fato, o acesso a um número maior de informações não garante nem a criticidade nem o “empoderamento” (FREIRE; SHOR, 1986) pelos sujeitos pois, se assim o fosse, viveríamos outras realidades. Não se ignora que conteúdos emitidos tanto em uma conversa cotidiana quanto pelas mídias não são neutros, carregam ideologias e podem corroborar para a manutenção dos sistemas que regulam e oprimem a vida em sociedade. Entretanto, entende-se que a restrição a uma variedade de informações seria ainda mais opressora porque tende a circunscrever a realidade à vivida pelo sujeito e/ou retratada apenas por pessoas conhecidas.
Assim, o recorte de pesquisa apresentado aponta que discutir inclusão digital de/pelos surdos, e seu processo permanente de educação, não se restringe nem ao desenvolvimento cada vez mais sofisticado de “tradução” de áudio em textos ou em sinais de Libras nem à ampliação do acesso à artefatos digitais e conectividade, tampouco restringe-se à fluência quanto ao uso de recursos e suas potencialidades, ainda que sejam importantes. O trabalho sugere a necessidade de se observar as particularidades dos sujeitos e sua(s) cultura(s) para a promoção de “inclusões”.
Os surdos historicamente vêm se organizando e se estruturando como grupo social numa sociedade de ouvintes onde são minoria, buscando garantir seus direitos de cidadãos, o fortalecimento de suas culturas, a organização de comunidades e o respeito às suas identidades. A produção e transmissão de conteúdos pelos e para surdos contribuiria para que eles sejam cada vez mais sujeitos de sua própria história, enxergando-se em “primeiro plano” e sem a necessidade de recorrer a “janelinhas”. As entrevistas apontam que o protagonismo dos surdos no “janelão” confere visibilidade a esses sujeitos “invisíveis” na sociedade - a metáfora da janela expõe tanto a necessidade de aparecer para o mundo quanto de ampliar a do que se passa no mundo.
Ao transmitir informações de qualidade, com o uso da Língua de Sinais em primeiro plano, iniciativas como a da TV INES poderiam, em certa medida, contribuir com a criticidade dos sujeitos, auxiliando no rompimento do não saber, da não informação, e incentivando a cultura da participação para que sejam cada vez mais sujeitos de sua própria história. Certamente, não basta o acesso à informação, mas, excluídos informacionalmente, e sem dominar a Língua Portuguesa Escrita, que mudanças sociais no atual contexto da “sociedade da informação” podem os surdos realizar?