Introdução
Neste artigo apresentaremos uma pesquisa que investigou os efeitos da comunicação digital via Facebook na emergência de estratégias cognitivas e na subjetivação de pessoas com deficiência intelectual em contexto de mediação.
Situando a investigação em foco
A língua escrita é uma prática social relevante em sociedades desiguais, em sociedades grafocêntricas, impressas e digitais, já que é uma importante instância de participação social e de subjetivação. Contraditoriamente, muitos indivíduos, inclusive aqueles com deficiência intelectual, não têm dela se apropriado: [...] temos pelo menos metade da população ainda muito longe da realidade de uma escolaridade de longa duração, que possa ser tomada como uma experiência significativa e rica, ao invés de um percurso de fracasso e exclusão (ROJO, 2009, p. 23).
O desafio para construir uma escola capaz de garantir o acesso ao conhecimento a todos os alunos ocorreria pela eliminação de práticas pedagógicas, especialmente do ensino da língua escrita, ancoradas nas perspectivas empiristas de conhecimento e estruturalista de linguagem, expressões da Pedagogia da Negação (FIGUEIREDO et al., 2010). Tais práticas intensificam os processos de exclusão social, já que a escola moderna é uma poderosa força na transmissão seletiva do conhecimento e na distribuição de oportunidades sociais, ação política para além da dimensão cognitiva do conhecimento. A língua escrita, assim, atua como instância de posicionamento dos sujeitos nas relações de poder (STREET, 2012), sendo o currículo concebido como artefato social de construção de subjetividades e sujeitos (SILVA, 2009): os sujeitos e suas relações sociais são tanto produto do ensino quanto a língua escrita explicitamente proposta a ensinar.
Portanto, esta investigação está fundamentada na relação entre letramento digital, estratégias cognitivas e subjetivação de sujeitos com deficiência intelectual no contexto da comunicação digital. A deficiência intelectual é uma condição social e historicamente produzida. Quando comparados com as pessoas sem esse tipo de deficiência, esses sujeitos atestam dificuldades na apropriação das funções psicológicas superiores - atenção, transferência, memória, linguagem escrita e, sobretudo, na metacognição.
Ademais, geralmente apresentam, sobretudo em situações de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, hesitação, extroversão da atenção e sugestionabilidade, ou seja, fatores extracognitivos do desenvolvimento decorrentes da internalização de representações inferiorizadas de relações sociais, extra e intraescolares (ZIGLER, 2002). Nesta direção, a língua escrita é constitutiva/constituída de sujeitos e interações quando da produção discursiva. Enquanto prática social dialógica e ideológica, nesta produção, ocorre à transformação recíproca de todos os elementos envolvidos, aspecto diretamente relacionado ao conceito de letramento, ou seja, o estado ou condição do indivíduo ou grupo social que interage com diferentes gêneros de leitura e de escrita e com as diferentes funções na nossa vida (SOARES, 2010).
Conforme os Novos Estudos do Letramento (NEL)1, o letramento ideológico é uma “[...] prática social que fornece um modo de construir sentido sobre as variações nos usos e nos significados do letramento” (STREET, 2012, p. 79), sendo analisado pelos processos de hegemonia, relações de poder, escolha, status, posição social e identidade, articulada ao letramento participativo e ao empoderamento, em propostas educativas socialmente sensíveis2, na escola como pertencimento social. As práticas letradas seriam “[...] os modos culturais de se utilizar a linguagem escrita com que as pessoas lidam em suas vidas cotidianas” (RANGEL; ROJO, 2010, p. 26), estando materializadas em eventos de letramento: “[...] Qualquer ocasião em que um fragmento de escrita faz parte integral da natureza das interações dos participantes e seus processos interpretativos” (idem). O letramento, uso efetivo e competente da língua escrita, traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas e linguísticas (SOARES, 2010). O letramento digital se refere:
Aos contextos social e cultural para discurso e comunicação, bem como aos produtos e práticas linguísticos e sociais de comunicação, e os modos pelos quais os ambientes de comunicação têm se tornado partes essenciais de nosso entendimento cultural do que significa ser letrado (FREITAS, 2010, p. 3).
Trata-se “[...] da capacidade que tem o indivíduo de responder adequadamente às demandas sociais que envolvem a utilização de recursos tecnológicos, a leitura e a escrita no meio digital” (ARCOVERDE, 2009, p. 140). Implicam modos de interação envolvendo textos, imagens, sons, códigos variados em hipertexto. Na perspectiva da pedagogia dos multiletramentos, as múltiplas linguagens/semioses e ideologias no processo hibridização de variadas culturas, é preciso o desenvolvimento de “[...] competências básicas para o trato com as línguas, as linguagens, as mídias e as múltiplas práticas letradas, de maneira crítica, ética, democrática e protagonista” (ROJO, 2009, p. 119). A inclusão digital, por sua vez, é:
Um processo contínuo e conflituoso, marcado pela tensão entre homogeneização e proliferação da diferença, tradição e modernidade, necessidade e liberdade, através do qual as TIC3 penetram nos contextos socioculturais (sempre heterogêneos), transformando-os, ao mesmo tempo em que são transformadas pelas maneiras como os sujeitos às praticam nesses contextos (BUZATO, 2007, p. 74).
As pesquisas sobre inclusão e letramento digital para os sujeitos com deficiência intelectual que analisaram o uso do computador na vida e na educação destes (CHADWICK et al., 2013) têm apontado efeitos positivos da comunicação digital para a aprendizagem da língua escrita (BARROS, 2017), as interações sociais (SCHOTT; LARCHER, 2002) e a autodeterminação (PALMER et al., 2012). Salustiano et al. (2011) constataram que a mediação pedagógica sobre o ambiente digital, aspectos (meta)linguísticos e posições de sujeitos na relação pedagógica promovem o êxito na produção escrita de e-mail e MSN. Matias (2016) identificou ganhos no letramento digital e na atenção, interesse e autonomia na comunicação em blogs. Figueiredo e Poulin (2016) evidenciam o letramento digital como promotor de interações sociais e da apropriação de estratégias cognitivas, acentuando a autoafirmação desses sujeitos.
A pesquisa ora apresentada focalizou a inclusão digital de sujeitos com deficiência intelectual na comunicação digital via Facebook. O objeto de investigação foi a análise dos efeitos da comunicação digital via Facebook na emergência de estratégias cognitivas no contexto de mediação e na subjetivação de sujeitos com deficiência intelectual. As estratégias cognitivas referem-se aos processos mentais aplicados em situações de resolução de problemas, enquanto ferramentas de conhecimento e ação no mundo (FIGUEIREDO et al., 2010). A subjetivação é um processo ininterrupto, sócio historicamente constituído pelas relações sociais intersubjetivas, na busca pela construção e afirmação da singularidade do sujeito, em tempos e espaços sociais compartilhados com a cultura, a linguagem e o outro. A subjetividade é um modo de ser e de estar no mundo, filtro da realidade social, conferindo-lhe significado e sentido (MOTA ROCHA et al., 2018; KASSAR, 2000)4.
Ao apostarmos na relação de interdependência entre subjetivação e letramento pela atuação recíproca na educação linguística, nos perguntamos: Podem os sujeitos com deficiência intelectual beneficiarem-se da prática letrada digital via Facebook? Que estratégias cognitivas emergem nesse ambiente em contexto de mediação? Quais tipos de interações esses sujeitos estabelecem via letramento digital? Que efeitos a comunicação digital no ambiente Facebook podem ter na subjetivação dos sujeitos, na ressignificação das subjetividades relativas à ideologia da deficiência/normalidade de alteridades críticas5? Na tentativa de responder a essas questões, a pesquisa teve como objetivos: 1) identificar a emergência e a natureza de estratégias cognitivas utilizadas pelos sujeitos no ambiente digital Facebook; 2) analisar a mediação utilizada neste ambiente; e 3) compreender os processos de subjetivação e de ressignificação de subjetividades dos sujeitos pelo letramento digital em alteridades críticas.
Metodologia
Esta investigação foi de natureza qualitativa, com orientação sócio-histórica, que enfatiza a historicidade e natureza processual da constituição humana (MOLON, 2008). Trabalhamos com três sujeitos de Fortaleza - CE, com Síndrome de Down, quais sejam: Sandra-39, Cláudio-16, e Luís6-26. O estudo foi realizado no laboratório de pesquisa do grupo Leitura e Escrita Revisitada - LER, da Universidade Federal do Ceará, tendo como ambiente a rede social Facebook7. A proposta era a de que os sujeitos, a partir da criação de uma fanpage individual, elaborassem postagens sobre as suas produções e interagissem no Facebook, com textos produzidos de cunho pessoal e temática variada.
Em dois semestres consecutivos foram realizadas oito sessões com cada sujeito, de aproximadamente 50 minutos, mediadas por estudantes de Pedagogia (bolsistas PIBIC), o que totaliza 24 sessões. No início da pesquisa os mediadores participaram de uma formação com os pesquisadores visando discutir e aprofundar conhecimentos sobre os princípios de mediação. A mediação visava auxiliar aos sujeitos na interação com o ambiente digital e na produção escrita na rede social, sem, portanto, exercer direcionamento sobre a decisão e a produção dos mesmos, oferecendo-lhes o máximo de autonomia possível. Os dados das sessões foram registrados em vídeos e em diários de campo8.
A pesquisa esteve pautada na concepção de deficiência como construção social: como produção histórica e socialmente situada pela ideologia da deficiência/normalidade, e não como desempenho individual insatisfatório. Fundamentou-se ainda na abordagem sócio-histórica de aprendizagem que concebe a mediação semiótica como elemento constitutivo das funções psíquicas superiores, de natureza essencialmente social, porque da ordem do simbólico. Tais funções permitem o duplo nascimento do indivíduo, pela lei genética geral da constituição cultural do ser humano (VYGOTSKY, 2005; PINO, 2005).
Análise dos resultados
O conjunto dos resultados obtidos na pesquisa será apresentado e discutido sob três aspectos principais: a análise das estratégias cognitivas que emergiram no ambiente digital Facebook; a mediação utilizada neste ambiente; e os ganhos em termos de subjetivação pelo letramento digital na rede social Facebook. Sobre o primeiro aspecto identificamos as seguintes estratégias cognitivas9 manifestadas pelos sujeitos no ambiente Facebook: planejamento, memória, controle, atenção, estabelecimento de relações, seleção de informação10, extrapolação e comparação. No primeiro período da pesquisa (P1), 136 estratégias foram utilizadas pelos sujeitos. Por exemplo, Luís foi o sujeito que mais manifestou a utilização de estratégias, com 55 frequências; seguido por Sandra (41) e Carlos (40). De todas estas estratégias, as mais utilizadas foram planejamento (27), memória (25) e controle (25), justamente estratégias as quais os sujeitos com deficiência intelectual apresentam geralmente maiores dificuldades em sua utilização.
O planejamento, por sua relação com a antecipação/tempo futuro; a memória, pela dificuldade na codificação e na estocagem/reutilização da informação, especialmente quando se trata da memória de trabalho; e o controle, pela dificuldade em centrar atenção e se autorregular nas ações cognitivas durante a realização de uma tarefa. Assim, desde o início da pesquisa, o ambiente Facebook constitui-se favorável à emergência de estratégias cognitivas capazes de contribuir para o desenvolvimento cognitivo dos sujeitos, em termos de funções psicológicas superiores.
No segundo período da pesquisa (P2), 499 estratégias cognitivas foram observadas, das quais tiveram maior frequência: a atenção (142), controle (97) e seleção da informação (78). O aumento da estratégia de atenção é particularmente importante porque indica centração na prática letrada em foco, condição central à participação efetiva em eventos de letramento. O maior uso do controle indica avanços na configuração dos sujeitos como pessoas ativas na produção de conhecimento, evidenciando o início da autoregulação.
A estratégia de seleção da informação, que inclui a análise dos componentes da situação-problema com a qual o sujeito precisa lidar quando no ambiente digital, bem como a escolha de procedimentos à sua resolução, também é muito importante, porque a identificação da natureza do problema, em seus aspectos centrais e secundários, é uma dificuldade importante experimentada por esses indivíduos. As estratégias menos utilizadas foram extrapolação (8), usada apenas por um dos três sujeitos, e comparação (29).
No ambiente digital, os sujeitos mostraram-se relativamente eficientes na definição do problema e na antecipação das implicações do problema, ações aplicadas no início da resolução de situações-problema. Tais ações cognitivas constituem desdobramentos das estratégias de planejamento, seleção da informação e controle, implicando na regulação do processo. Por exemplo, um dos sujeitos decidiu em uma das sessões no ambiente Facebook que gostaria de fazer uma postagem sobre a preservação do meio ambiente. Para isso discutiu com o mediador sobre o tipo de texto que gostaria de escrever, as imagens que pretendia postar e o efeito que queria causar com tal postagem. Pesquisou imagens na internet, selecionou e copiou imagens e escreveu um texto correspondente à temática em questão. Reiteramos que tais ações implicam em planejamento, seleção de informação, emprego da memória e controle da atividade, funções cognitivas que são difíceis de ser empregadas por pessoas com deficiência intelectual. No entanto, no quadro da pesquisa, tais estratégias manifestaram-se graças à mediação e possivelmente foram otimizadas pelo ambiente digital, o qual oferecia grande motivação aos sujeitos.
É possível inferirmos que a caixa de edição de texto das fanpages do ambiente Facebook também favoreceu o uso de estratégias de planejamento, memória e controle de atividades, entretanto o ambiente por si só, provavelmente, não responda pela emergência e emprego de tais estratégias. Nesse caso, a mediação foi fator fundamental, sendo conceituada como “[...] atitudes, gestos, expressões, silêncios, hesitações e procedimentos constitutivos de relações pedagógicas e suas significações produzidas em situações de ensino-aprendizagem” (MOTA ROCHA et al., 2018, p. 7), e objetiva a atuação em zonas de desenvolvimento proximal para a internalização da língua escrita como sistema simbólico e discursivo.
Nesta pesquisa, a mediação foi configurada por ações nas quais os mediadores faziam questão, comentário, explicações, sugestão e resposta. Para efeito de análise, cada uma dessas características de mediação foi identificada como uma categoria. Os resultados mostraram a ocorrência, nos dois períodos da pesquisa, de todas as categorias utilizadas pelos mediadores, porém a questão foi a que teve maior frequência (515), seguida das categorias sugestão (360), explicação (292), comentário (264) e resposta (36). A predominância da categoria questão, a redução da frequência das categorias explicação e comentário e a mínima frequência da categoria resposta consagram o fornecimento de pistas indiretas pelos mediadores aos sujeitos da pesquisa, otimizando a apropriação da condição de sujeito ativo no ambiente digital.
Os mediadores formularam questões aos sujeitos sobre as suas intenções para com os internautas e/ou o ambiente digital e acerca do conteúdo da escrita, apresentando aumento desses questionamentos em P2, objetivando a autoavaliação da produção escrita pelos sujeitos em relação às suas intenções iniciais. Tais questões convergem com a Pedagogia dos Multiletramentos, pela abordagem das linguagens e produtos de diversas mídias e culturas “[...] de maneira crítica e capaz de desenvolver suas finalidades, intenções e ideologias” (ROJO, 2009, p. 120).
As sugestões dos mediadores para os sujeitos foram referentes aos procedimentos a serem realizados por eles e sobre o uso do Facebook. Houve maior frequência dessa categoria com Luís em P1 e com Sandra em P2. Para Sandra, tais sugestões foram sobre o procedimento implicando a seleção da informação (mais em P1) e acerca do uso do computador (maior frequência em P2), enquanto para Luís foram pertinentes ao conteúdo da escrita, com grande aumento de frequência (em P1 (7) e em P2 (55)). Identificamos, sobretudo em P2, sugestões para a melhoria da atenção acerca dos aspectos semânticos e ortográficos da escrita, objetivando qualificar melhor a produção e a veiculação do sentido do texto.
As explicações sobre os ambientes digitais foram dadas pelos mediadores a todos os sujeitos, com aumento significativo entre P1 e P2. Também houve explicações em relação à atenção, ao planejamento, à seleção da informação, ao uso do computador e ao estabelecimento de relações. As explicações são importantes porque negociam com os sujeitos informações centrais à participação exitosa no ambiente e, quando apoiadas em definições, se configuram como conceitos científicos a serem apropriados pelos sujeitos. Por fim, revelam as expectativas positivas dos mediadores sobre o potencial de aprendizagem dos sujeitos.
Apareceram comentários de apoio e de incentivo dos mediadores, relacionados à tarefa que estava sendo realizada. Tais comentários, mais frequentes em P2 para Sandra, provavelmente quando do uso de ações mais complexas neste ambiente; e em P1 para Luís, nesse caso, pelo êxito, com autonomia e autoconfiança do sujeito no ambiente digital e na rede social. Os comentários relativos ao conteúdo da escrita com Luís (mais em P1), inferimos, resultaram das dificuldades do sujeito de produzir texto de sua autoria, embora tivesse relativo domínio no uso do Facebook e de busca na internet. Os mediadores ofereceram também algumas respostas aos sujeitos sobre o conteúdo da escrita e sobre os ambientes digitais, acerca do planejamento da atividade, e sobre o procedimento a ser realizado. A manifestação de poucas mediações envolvendo respostas dos mediadores decorre, talvez, da pouca frequência de perguntas dos sujeitos, além da orientação metodológica da pesquisa para mediar, oferecendo mais pistas e menos respostas.
Do ponto de vista dos ganhos de subjetivação pelo letramento digital, identificamos a ampliação e melhor qualificação das interações sociais, o usufruto da função social de comunicação interpessoal, a iniciativa e disposição para o uso frequente da língua escrita e avanços na autonomia e na autoafirmação. A ampliação e melhor qualificação das interações sociais presenciais entre cada sujeito e o seu mediador no ambiente digital e com os internautas na rede social, podem ser vistas pelas curtidas da produção dos sujeitos e pelos contatos positivos estabelecidos naquele ambiente.
As interações sociais conferem o significado às ações na produção escrita. A satisfação manifestada pelos sujeitos nas interações com os mediadores e ao receberem mensagens via Facebook testemunham o interesse/entusiasmo deles pela interlocução de natureza social. Os comentários recebidos sempre foram fonte de motivação para continuarem com a interlocução, minimizando atitudes de recusa de saber, de extroversão da atenção e de hesitação na produção escrita, aspecto relevante para esses sujeitos. Se isolamento e ociosidade são vivências destes sujeitos, a melhoria das interações sociais é importante indicador do pertencimento social e da inclusão digital via Facebook.
Estreitamente vinculado a isso, temos o usufruto da função social de comunicação interpessoal, pela autorrepresentação e autoafirmação, implícita na produção discursiva no Facebook. A empolgação dos sujeitos da pesquisa cada vez que interagiam com pessoas que se manifestavam nas postagens de suas fanpages é indício deste usufruto, tendo contribuído para a excelente assiduidade e a crescente implicação dos sujeitos nas sessões, com interações frequentes, cordiais e centradas sobre a prática letrada, caracterizando-se como eventos de letramento digital. Segundo Matias (2016, p. 29), o letramento digital é:
Um sistema de representações cuja aprendizagem se dá à proporção que se adquire novos saberes e se elabora o pensamento de forma cada vez mais autônoma. Por meio dessa prática é possível haver uma participação social mais ampla. Esta é, dentre todas as formas de comunicação desenvolvidas até hoje, uma das mais eficientes. Entendemos que a habilidade e o crescente domínio desse sistema permitem que os sujeitos estabeleçam relações ascendentemente complexas entre o pensamento e sua representação concreta.
Ademais, na produção discursiva, não apenas nos comunicamos com interlocutores, “[...] fornecemos ao outro um vasto conjunto de informações sobre as facetas de nossas identidades sociais e sobre a maior ou menor amplitude de nossa competência comunicativa” (BENTES, 2010, p. 131). Assim, a participação na prática letrada parece atuar como campo fértil à construção da autorrepresentação e da autoimagem pelos sujeitos com deficiência intelectual.
Em nosso estudo foi possível constatar a iniciativa e disposição para o uso da língua escrita em práticas sociais, terceiro aspecto relativo à melhoria da subjetivação dos sujeitos. Carlos e Luís tiveram uma redução importante da mediação nas duas últimas sessões, em função da capacidade de interação com o ambiente digital e com a rede social, sem mediação, o que representa conquista de autonomia. Sandra, embora com menor desenvoltura no ambiente digital que os demais sujeitos, também demonstraram frequência importante na comunicação digital, a partir da mediação.
Houve, assim, ganhos no letramento digital pela melhoria da construção do vínculo dos sujeitos com a língua escrita na esfera digital. Letramento é, pois, tornar a escrita parte significativa das ações cotidianas e de seus processos interpretativos (SOARES, 2010). Nesse caso, o uso das ferramentas de tecnologia de informação colaborou para isso. Ao término da pesquisa foi possível verificar que os três sujeitos manifestaram conhecimentos sobre o Facebook e utilizavam diversas ferramentas disponíveis na internet para enriquecer suas postagens: acessavam as imagens disponibilizadas no Google, copiavam e postavam em suas contas do Facebook, selecionavam vídeos no Youtube, compartilhavam com seus seguidores, entravam e saiam do computador/internet. Luís e Carlos, de forma autônoma, e Sandra, com mediação.
Avanços na autonomia, constituindo uma busca de autoafirmação, também foram observados nos sujeitos, os quais passaram a escolher os temas abordados e a opinar sobre determinados temas levantados pelo mediador e amigos virtuais na própria web. Tais aspectos sugerem avanços na consciência de si, otimizados, inferimos, pelo próprio ambiente digital que parece oferecer liberdade aos sujeitos para a expressão do livre pensamento. Ademais, eles sentiram a necessidade de levantar questionamentos, de posicionar-se e de socializar a produção discursiva em detrimento da passividade. Assim, a autonomia e a autoafirmação através do questionamento/posicionamento sobre a realidade social e pela autorrepresentação na produção discursiva veiculada no Facebook são atitudes de empoderamento do sujeito que atestam a ressignificação de subjetividades de dominação. Revelam uma condição extremamente importante à apropriação da posição de saber enquanto sujeito ativo em situações de ensino-aprendizagem e configura a construção identitária dos sujeitos, como jovens, pela inclusão digital.
Muito do ser jovem implica estabelecer interlocução em ambientes digitais. Assim, a inclusão digital extrapola o estabelecimento e manutenção de redes de conexões, não sendo apenas a “[...] adaptação à linguagem dos novos meios como imperativo abstrato, mas seu uso tático, criativo, transformador” (BUZATO, 2007, p. 74). A pesquisa constatou a emergência de um rico repertório de estratégias cognitivas, com aumento em sua utilização11ao término da mesma, possivelmente favorecido pelo Facebook e pelas estratégias de mediação.
Considerações Finais
A pesquisa nos permite concluir que a participação no ambiente digital, a progressiva diminuição da mediação, a melhoria da atenção dos sujeitos para a qualidade da produção discursiva e o uso de ferramentas de tecnologia de informação no ambiente digital, parecem ter tido um efeito dinamizador na participação efetiva dos mesmos na prática letrada, tendo colaborado com o alfabetismo deles: saberes referentes ao uso da língua escrita nas ações sociais da esfera digital de linguagem (ROJO, 2009), importante condição para o letramento. Tais aspectos, em sua interdependência com a subjetivação, parecem ter impulsionado a construção de subjetividades afirmativas, colaborando com o processo de inclusão digital via Facebook. Se letramento e inclusão digital dizem respeito aos modos pelos quais os sujeitos localizam-se nos espaços culturais, vivenciam pertencimento na cultura escrita, participam dos avanços tecnológicos e econômicos, produzem significados e sentidos, constituem-se sujeitos enquanto agem sobre o mundo com e pela linguagem escrita, podemos dizer que a comunicação digital via Facebook contribuiu para a inclusão digital dos sujeitos participantes da pesquisa.
Tal inclusão traduz, por excelência, as consequências culturais sociais, afetivas e metacognitivas do letramento digital na educação dos sujeitos, quando da construção de subjetividades afirmativas. A contribuição da pesquisa consiste na reflexão dos processos de inclusão digital pela rede social Facebook, para a afirmação dos sujeitos com deficiência intelectual, minimizando os efeitos da ideologia da deficiência/normalidade nos processos sociais de subjetivação destes indivíduos. O estudo reitera resultados de outras investigações sobre a importância de práticas e processos educativos em ambientes digitais e redes sociais com pessoas com deficiência intelectual, favorecendo a subjetivação (ARAÚJO, 2009), o desenvolvimento de estruturas cognitivas e a apropriação de funções psicológicas superiores, a exemplo da apropriação da língua escrita em termos de alfabetização e de letramento (BARROS, 2017; FIGUEIREDO; POULIN, 2016; CRUZ, 2013; MATIAS, 2016). Em última instância, o estudo contribuiu para desnaturalizar a ideologia da deficiência/normalidade, importante aspecto fomentador de relações sociais construtivas em sociedades e escolas acolhedoras.