Introdução
A Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) se constitui numa das principais teorias pedagógicas existentes na atualidade. Tendo surgido no final da década de 1970, em 1979, em meio à ditadura civil-militar, contrapôs-se às teorias pedagógicas não-críticas e crítico-reprodutivistas existentes à época. Compreendendo a educação como determinada e determinante social, assumiu um compromisso explícito com os trabalhadores e se inseriu na luta contra o autoritarismo e a repressão, em defesa da escola pública, laica, gratuita e universal, na defesa da socialização dos conteúdos mais elaborados produzidos histórica e coletivamente pelos homens, em favor da transformação social, da democratização da educação e da sociedade, objetivando a emancipação humana.
Considerando essa caracterização, um conjunto de educadores paranaenses empreendeu uma luta para transformar a PHC na proposta pedagógica oficial para toda a rede pública de educação do Estado, que o fizeram por meio de sua institucionalização em 1990, com o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná (CBEPPR). Em consequência disso, neste artigo, pretendemos fazer uma análise do percurso da PHC no Paraná, especialmente durante o primeiro governo de Roberto Requião (1991-1994), ou então, desde a sua institucionalização, passando pelo seu posterior redirecionamento em direção à Pedagogia Cidadã, até sua destruição durante os governos de Beto Richa e de Ratinho Júnior.
A Pedagogia Histórico-Crítica, da sua institucionalização ao seu ocaso
Em 2022, a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) completa 43 anos de história. No Paraná, as discussões em torno dessa teoria pedagógica se iniciaram ainda no final da ditadura civil-militar, no governo de José Richa (1983-1986) e culminaram, em 1990, durante o Governo de Álvaro Dias (1987-1990), com a adoção do Currículo Básico para a Escola Pública do Estado do Paraná (CBEPPR). Tido como um currículo centrado na PHC, em 2022, chegamos a 32 anos de sua institucionalização.
Nesse período, se, por um lado, a PHC se tornou sinônimo de luta em defesa da educação e da escola pública, laica, gratuita, universal e de qualidade, e se transformou numa importante referência para muitas lutas e conquistas por parte dos docentes da rede estadual de educação, e de resistência a muitas políticas que objetivavam o desmonte e a destruição da educação pública paranaense, por outro, tem sido objeto de muitos ataques por parte dos sucessivos governos, culminando em seu aniquilamento durante os governos privatistas de Beto Richa (2011-2018) e Ratinho Junior (2019-?).
Dentre as muitas dificuldades encontradas para implementá-la, encontra-se o fato de ser um período de recém redemocratização, pós-ditadura militar, o descompromisso e desconhecimento da teoria pedagógica por parte de muitos docentes e o fato de ser uma proposta contra hegemônica e progressista, num Estado bastante conservador e, por vezes, reacionário. Além disso, em razão da PHC se constituir numa teoria pedagógica transformadora. Em função disso, sofre a resistência e o ataque por parte de frações da classe dominante e de setores fundamentalistas que, em geral, amparam e ou financiam os governos de turno e se opõem à transformação social.
Apesar disso, depois de sua institucionalização, durante o governo de Álvaro Dias, em 1990 (que, aliás, em 30 de agosto de 1988, diante de uma das maiores greves docentes da história do estado, ao invés da negociação política, protagonizou uma dura repressão contra os manifestantes que reivindicavam seus direitos, com cassetetes, bombas de efeito moral, spray de gás lacrimogêneo e batalhão de choque acompanhado de cães ferozes e cavalaria), foram instituídos diversos programas de governo com a finalidade de democratizar o acesso à escola, melhorar os índices e a qualidade da educação. Por meio do documento “Reorganização da escola pública: proposta preliminar de trabalho”, por exemplo, afirmava-se que se pretendia superar o analfabetismo, as dificuldades de acesso à escola, diminuir os índices de reprovação e evasão escolar, e aumentar aprovação.
A instituição do Ciclo Básico de Alfabetização, em 1987, também tinha como meta o aumento do tempo do aluno na escola, considerava que ensino pré-escolar era um direito social, necessário ao desenvolvimento e à superação dos limites impostos pelo meio sociocultural. Salientava que a
[...] alfabetização assume na escolarização um papel fundamental, pois, ao instrumentalizar o aluno para sua inserção na cultura letrada, cria as condições de operação mental capaz de apreensão de conceitos mais elaborados e complexos que vem resultando no desenvolvimento de formas sociais de produção (PARANÁ, 1990, p. 13).
Essa reestruturação educacional contava com consultores que discutiam sobre a necessidade de reorganizar os conteúdos escolares, a concepção teórica-metodológica, as concepções de mundo, de homem e de avaliação de cada área do conhecimento.
De acordo com Orso e Tonidandel,
Com a implantação do Ciclo Básico de Alfabetização embasado em uma nova concepção, também se sentiu a necessidade de discussão e reorganização dos conteúdos escolares das demais séries. Então, por um lado, sob a orientação de assessores, intensificaram-se as discussões em torno das questões teórico-metodológicas, tendo em vista a elaboração de materiais didáticos e, por outro, o Departamento de Ensino de 1º Grau, juntamente com as equipes pedagógicas dos Núcleos Regionais de Educação, organizaram vários encontros e cursos com o objetivo de pensar e reestruturar os conteúdos das demais áreas do conhecimento (ORSO, TONIDANTEL, 2013, p. 130).
Como resultado desse processo, seguiu-se a sistematização da versão preliminar do Currículo Básico, publicada em 1989, que foi distribuída às escolas para conhecimento e discussões pelos professores. A partir daí, foram encaminhadas novas sugestões e recomendações, que foram reorganizadas pelos consultores, dando origem à versão final do Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná (1990), com a nova Proposta Pedagógica (Pré-Escola até 8ª série). Posteriormente, por meio do parecer do CEE nº. 242, de 04/10/1991, durante o primeiro governo de Roberto Requião (1991-1994), tornou-se obrigatório para toda a rede estadual e municipal de educação do Paraná, permanecendo em caráter optativo para as escolas particulares.
De acordo com o documento Uma Educação para Modernidade, lançado pelo governo Requião, afirmava-se que o ensino seria uma prioridade da gestão. Com um discurso progressista, enfatizava a relevância da educação e da interação entre o Estado, o magistério e a comunidade, asseverava que o governo estava se remodelando para ingressar no século XXI, numa sociedade moderna e desenvolvida.
Na sequência, o governo Requião lançou o documento denominado de Plano Global: Educação básica (1991), em que defendia o atendimento educacional da população escolar como prioritário e afirmava que, por meio de programas que atendessem às necessidades primárias da população, com envolvimento da sociedade civil nas discussões, na execução e avaliação das ações, reforçava o caráter democrático e central dessa proposta e afirmava que pretendia resgatar o caráter público da ação governamental.
De acordo com o documento
[...] a possibilidade efetiva de reconstrução da escola pública de qualidade, no Paraná, começa com a decisão governamental de concentrar nela recursos e esforços, mas requer também a parceria direta da sociedade e do magistério, num esforço global e unitário, marcando a democracia possível que o Paraná deseja construir (PARANÁ, 1991a, p. 3).
Para fundamentar a necessidade de tal projeto, pronunciava que a escola pública era marcada por um caráter elitista e excludente, apresentava elevados índices de evasão e repetência, os conteúdos eram superficiais e a remuneração do magistério passava por dura decadência (PARANÁ, 1991a).
E, para mudar essa realidade, destacava que era preciso eficiência administrativa, competência pedagógica e uma escola básica de qualidade e para todos.
Assim justificava o Programa:
O presente plano, estabelecido para o período de 1992/95, tem como eixo central o Programa de Revitalização da Escola Pública, a partir do qual os demais programas devem se desenvolver, seja para garantir o suporte administrativo e técnico necessários, à demanda esperada, de forma condizente com a proposta pedagógica, seja para desenvolver atividades específicas e complementares, que contribuam, efetivamente, para o cumprimento da função social e do papel que compete à escola pública, na sociedade (PARANÁ, 1991a, p. 6).
O governo afirmava que, na década de 1980, defendeu-se a universalização do Ensino Fundamental, não obstante, não se efetivou. Assim, a universalização da educação básica se transformou numa pauta de urgência para o desenvolvimento do ensino que se pretendia enfrentar.
Os principais pilares desse projeto eram:
- Universalização do Ensino Fundamental, gratuito e obrigatório, inclusive para os que não tiveram acesso na idade própria;
- Progressiva extensão da obrigatoriedade e da gratuidade do Ensino Médio, Pré-Escolar e da Educação Especial;
- Garantia do ensino de qualidade;
- Valorização dos profissionais da Educação;
- Democratização e descentralização das ações (PARANÁ, 1991a, p. 10).
Para dar conta dos objetivos propostos, estabeleceu-se uma série de medidas prioritárias. E, articulado a esse programa, em março de 1992, também foi instituído o Programa Estratégico: expansão e qualidade de 1º Grau no Estado do Paraná, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento BID.
Em meio a esse otimismo, o secretário da educação do Paraná lançou o programa a “Hora é agora”, destacando que trataria a categoria dos professores como prioridade. E conclamava:
Se a semeadura é livre, a colheita tem que ser obrigatória. Começamos aqui e agora nossos Cursos de Capacitação. Nenhum professor pode ficar de fora. É preciso que você acredite que muito do sucesso depende da sua vontade de investir em você mesmo, estudando, e se avaliando diante da nova realidade da nossa Escola. Invista em você mesmo. Você verá, brevemente, que valerá a pena. Lembre-se, nós todos esperamos, precisamos e acreditamos muito em você (PARANÁ, 1992a, n.p.).
O lançamento do documento foi justificado em razão dos elevados níveis de evasão e repetência escolar no 1º Grau. Afirmava que os elevados recursos aplicados (mais de 20% do orçamento global), foram mal aplicados por governos anteriores e desperdiçados. Afirmava que, apesar de enfatizar a ideologia democrática e o ensino, o nível de escolaridade e a aprendizagem das crianças ficou muito inferior ao esperado.
A urgência de tal medida tinha como objetivo
[...] reestruturar e adequar o sistema escolar que permanece inerte, estático e atávico à sua imagem tradicional, enquanto a sociedade passa por transformação acelerada. Neste universo em mudança, a educação básica precisa ser abordada como ser vivo, mutante, capaz de preencher sua função, não somente satisfaz as normas de excelência, mas sobretudo quando passa corresponder e se adequar às necessidades das pessoas e da sociedade que ela deve servir (PARANÁ, 1992a, p. 2).
Para essa nova educação, portanto, seria necessário criar novos métodos, pois, segundo o documento, os adotados pelas antigas gestões eram arcaicos e superados, não ajudavam a resolver os problemas da educação. Assim, adotaram métodos contemporâneos com uma nova visão para melhorar o processo de aprendizagem das crianças (PARANÁ, 1992a).
Desse modo, a nova Educação caminharia para transformação radical da Educação paranaense, adequado às transformações que o Estado estava passando nos setores da agricultura, da indústria e da urbanização. “[...] a única solução para o ensino é mudar a Estratégia, reestruturar o sistema, modificar os métodos e adequar os programas’’ (PARANÁ, 1992a, p. 3, grifo do autor), enfatizava o documento.
Como se pode observar, pelos documentos emanados do governo, logo após sua institucionalização, o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná começa a sofrer sua descaracterização por parte do próprio governo que era/é reconhecido como defensor de uma proposta crítica de educação.
Mas, onde estaria a razão para tal mudança? É bem provável que ao menos uma das razões do redirecionamento do Currículo Básico, encontramos no seu financiamento. Como sabemos, o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) está longe de ser defensor de uma educação crítica e transformadora. Todavia, tem sido um dos principais financiadores de projetos educacionais na América Latina, não, porém, sem impor condicionantes e estabelecer exigências. Por conseguinte, para conseguir captar recursos, o Estado se obrigou a metamorfosear sua proposta educacional.
Assim, justificativa:
Nada disso será possível, sem a contribuição de recursos externos que venham garantir o esforço inicial a ser dado na transformação de um sistema de ensino anacrônico e viciado, para um sistema adequado às exigências sócio-econômicas (sic), culturais e políticas de uma sociedade em transformação acelerada (PARANÁ, 1992a, p. 3).
Tratava-se, portanto, de uma trajetória necessária ao atendimento das exigências dos investidores, a defesa de um ensino democrático, com uma visão produtivista e humanista de educação.
O documento reiterava que foi fundamentado por um diagnóstico com dados cedidos pela Fundação Educacional do Paraná (FUNDEPAR), que apurou o declínio da educação básica do Estado, que servia de estratégia para explicar a necessidade do financiamento pelo BID. Em tese, segundo o documento, as ações propostas nesse programa serviriam para, de fato, democratizar a escolarização básica.
Como se observa, ao invés de implementar o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná, reconhecido como um currículo centrado na pedagogia histórico-crítica, o governo Requião foi promovendo uma série de mudanças na proposta educacional. Uma delas, talvez a principal, a nortear a educação paranaense em sua gestão, foi explicitada no documento chamado “Paraná: construindo a Escola Cidadã”, em que já não esconde, nem camufla ou maquia seu ímpeto reformista, redirecionando a educação paranaense da pedagogia histórico-crítica para a Pedagogia Cidadã.
Saliente-se que, ao invés da pedagogia histórico-crítica, é a Escola Cidadã que aparece nos discursos do governo como meta primordial para tornar a educação paranaense inovadora.
É importante lembrar que a pedagogia cidadã surge muito tempo antes de a Escola Cidadã ser implementada no Estado do Paraná. Ela já aparece de forma incipiente com Paulo Freire e com os movimentos de educação popular que surgiram antes mesmo da ditadura civil-militar. Contudo, durante os “anos de chumbo”, numa referência à ditadura, em meio às lutas contra a repressão e o autoritarismo, “oficializados” com o golpe de 1964, paulatinamente e paralelamente, intensificam-se as lutas pelo restabelecimento dos direitos políticos e civis, pela libertação da opressão, pela conquista da cidadania.
Pode-se dizer que, diante da repressão instalada, as lutas pela transformação social foram colocadas como que em suspenso, deslocaram-se e cederam lugar e espaço à necessidade mais imediata, às lutas pelo fim da ditadura e do autoritarismo, pela ampliação dos espaços de participação social. Desse modo, a partir da derrota do despotismo e do retorno à democracia (formal) em 1985, fortalecem-se as lutas por reformas, tanto no âmbito político e social, como no educacional.
É nesse contexto de renovação que ocorre a Constituinte em 1987 e, um ano depois, em 1988, é promulgada a nova Constituição brasileira, denominada de “Constituição Cidadã”, numa referência ao avanço que ocorreu em termos da conquista dos direitos fundamentais, resultado das mobilizações e das lutas dos diferentes segmentos sociais populares.
No campo educacional, após a anistia ocorrida em 1979, com “abertura democrática”, Paulo Freire retorna do exílio. E, em 1988, Luiza Erundina (PT) é eleita prefeita da maior e mais populosa cidade do país, a cidade de São Paulo, e o convida para ser seu secretário de educação. Com isso, de certo modo, institucionaliza-se a concepção freiriana de educação.
Moacir Gadotti, por sua vez, que havia sido aluno de Paulo Freire, também acabou por se transformar em seu grande parceiro. Defendia a ideia de que o educador precisa se reinventar constantemente. Assim, conjugando as ideias de seu mestre, a pedagogia da libertação, e a pedagogia libertária de Maurício Tragtenberg, junto com a preocupação com a renovação da educação, transformou-se no principal expoente da que denomina de Escola Cidadã (FERRACIOLI, 2008; ORSO & TONIDANDEL, 2013).
Em 1991, ao prestar o concurso para Professor Titular na Universidade de São Paulo, contrapondo-se às denominadas políticas neoliberais1, caracterizadas “pelo gradual esvaziamento do papel do Estado no controle econômico, pelo desmantelamento de sindicatos e partidos de esquerda, pela privatização de instituições e serviços públicos e pela precarização de direitos, seguridade e previdência social” (FERRACIOLI, 2008, p. 24), Gadotti escolheu como tema de uma das provas a defesa da “Escola Cidadã: uma aula sobre a autonomia da escola”, que, um ano depois, foi publicado na forma de livro com o título “Escola Cidadã”.
A publicação teve ampla repercussão, tornando-se uma espécie de referência para gestores públicos que pensavam na “renovação” e “inovação” das práticas educacionais em diferentes municípios e estados, como é o caso de São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul, Pará e, inclusive, como se pode perceber, o Paraná (FERRACIOLI, 2008).
A Escola Cidadã, inicialmente, era direcionada à defesa da democratização da gestão e do planejamento participativo, posteriormente, voltou suas preocupações também para a construção de um novo currículo, inter-transcultural, e para a defesa da qualidade da educação. Além da descentralização, defendia cinco eixos principais: a “inovação educacional, a pluralidade teórico-metodológica, a participação comunitária, o diálogo governo magistério, a valorização do magistério e a capacitação dos profissionais da educação” (MARTINS, 1997, p. 41).
Ou seja, tendo sua origem na preocupação com a educação popular, mais especificamente, de orientação freiriana, a Escola Cidadã entende ser a questão da cidadania uma questão central a ser incorporada e defendida pela escola.
De acordo com Gadotti (GADOTTI, 2006), a expressão “Escola Cidadã” apareceu pela primeira vez na literatura pedagógica brasileira em 1989, no artigo intitulado A Escola Cidadã: uma utopia multiculturalista, publicado na Revista Educação Municipal, por Genuíno Bordignon.
Ressalte-se que, no caso do Paraná, em tese, não havia nenhum problema de o governo mudar de rumo e adotar a pedagogia cidadã. Afinal, cada governo adota sua estratégia ou proposta educacional. O problema está em promover esta alteração defendendo-a como se se equivalesse à pedagogia histórico-crítica. Com isso, acabou provocando confusão no entendimento da proposta pedagógica por parte de muitos educadores que não tinham clareza acerca da pedagogia histórico-crítica.
De acordo com o documento,
para operacionalização da proposta, procedeu-se à redefinição das funções da Secretaria de Estado da Educação e à criação de mecanismos de gestão autônoma. A Secretaria da Educação deixa de exercer o papel centralizador, ampliando a autonomia administrativa e financeira das escolas. Conforme o documento Orientações para Projetos Políticos-Pedagógicos das Escolas, a escola deve elaborar seu projeto, através da reflexão crítica da comunidade escolar, identificando o retrato que faz de si mesma no presente e que deseja ser no futuro (MARTINS, 1997, p. 130).
De qualquer modo, os pilares teóricos que sustentavam esse novo documento divergiam dos da PHC e propunham significativas alterações que descaracterizavam o CBEPPR. Isso contribuiu para o desvio de seu percurso, que se soma ao fato do novo Secretário de Educação, Elias Abrahão, pastor da igreja Presbiteriana, também resgatar o ensino religioso nas escolas, em detrimento da defesa do conhecimento científico como mediador dos saberes escolares (TONIDANDEL, 2014) e defender que fossem usadas propostas “plurais”, de acordo com a necessidade de cada escola, em sintonia com o multiculturalismo.
Consequentemente, a PHC acabou por se reduzir praticamente à luta por conquistas de direitos, esvaziando, assim, sua concepção teórica e se distanciando de uma educação histórica, crítica e transformadora, entendida como um instrumento de luta pela emancipação humana.
De acordo com Moacir Gadotti, principal idealizador da Pedagogia Cidadã, o essencial dessa proposta é “contribuir na criação das condições para o surgimento de uma nova cidadania, como espaço de organização para a defesa de direitos e a conquista de novos” (GADOTTI, 2006, p. 74, grifo do autor).
Assim sendo, o documento Paraná: construindo a Escola Cidadã, tornou-se central na discussão sobre o percurso seguido pelo Currículo Básico e a Pedagogia Histórico-Crítica no Paraná, entre os anos de 1991 e 1994.
Enfim, a Pedagogia Cidadã redirecionou a educação, da discussão em torno das lutas de classes, das diferenças sociais, da necessidade de transformação social e da emancipação humana, para a luta em favor da conquista dos direitos e da cidadania.
Nesse sentido, a escola passa a ser entendida como aquela
[...] que se assume como um centro de direitos e de deveres. O que a caracteriza é a formação para a cidadania. A Escola Cidadã, então, é a escola que viabiliza a cidadania de quem está nela e de quem vem a ela. Ela não pode ser uma escola cidadã em si e para si. Ela é cidadã na medida mesma em que se exercita na construção da cidadania de quem usa o seu espaço. A Escola Cidadã é uma escola coerente com a liberdade. É coerente com o seu discurso formador, libertador. É toda escola que, brigando para ser ela mesma, luta para que os educandos-educadores também sejam eles mesmos. E como ninguém pode ser só, a Escola Cidadã é uma escola de comunidade, de companheirismo. É uma escola de produção comum do saber e da liberdade. É uma escola que vive a experiência tensa da democracia (FREIRE apud GADOTTI, 2006, p. 68-69).
A Escola Cidadã defende que, a partir da consciência dos direitos e deveres, tarefa que o espaço escolar deveria desempenhar, levaria os sujeitos a lutarem em defesa de novas conquistas, em prol da justiça social. Essa postura, que revela a liberdade e a nova identidade dos indivíduos, deveria ter como finalidade desencadear uma educação que possibilitasse a mudança da sociedade e, por conseguinte, superasse a consciência transitivo ingênua em direção à transitivo-crítica (FERRACIOLI, 2008).
Foi nessa direção que, em 1992, o documento Paraná: Construindo a Escola Cidadã foi implementado nas escolas públicas do estado e guiou as diretrizes das políticas educacionais e as práticas pedagógicas durante o primeiro governo Requião na busca pela “inovação para a educação”.
Como mencionamos anteriormente, Elias Abrahão se encontrava à frente da pasta da Educação, e foi auxiliado por Caleb Pereira de Carvalho Filho, que era diretor Geral da SEED (Secretaria Estadual de Educação), por Antônio João Mânfio, que era o superintendente, e por Erondina Silva Barcelos e Moacir Gadotti, que foram os principais assessores da formulação do documento.
Esse documento, que ia ao encontro das propostas educacionais do Governo Requião, inspirava-se no livro Escola Cidadã, de autoria de Moacir Gadotti, publicado em 1992, o qual trata dos pressupostos básicos para que as escolas fossem mais eficazes na conquista da qualidade do ensino e na busca da inovação para as mesmas. O próprio documento destaca que seu intuito era o de reconhecer o que as escolas estavam fazendo de “inovador” e valorizá-las por isso. Sinalizava que essa proposta seria a grande inovação e a saída para educação pública do Paraná.
Considerações finais
Em suma, a partir do exposto se pode concluir que, pela forma como foram conduzidas, as políticas educacionais do período acarretaram o distanciamento da proposta do CBEPPR e o reduziram a uma proposta eclética, traduzida e reorientada por uma educação para a formação da cidadania. Assim, a proposta que foi instituída por meio do CBEPPR, em 1990, não só acabou não sendo implementada, como os sucessivos governos, cada uma à sua maneira, deram uma contribuição para aniquilá-la, mantendo-a apenas e, quando muito, no plano do discurso. Daí o título do artigo: “A pedagogia histórico-crítica no Paraná durante o governo de Roberto Requião (1991-1994): o começo do fim”.
Há que se destacar, porém, que o redirecionamento imposto à pedagogia histórico-crítica parte dos governos, não é apenas responsabilidade de cada um deles. Em parte, além do compromisso com a classe dominante, a maioria tem sofrido a influência das chamadas “políticas neoliberais” e dos condicionantes estabelecidos pelos organismos internacionais, especialmente o BID, que impõe uma série de exigências para viabilizar seus empréstimos e financiamentos para a implementação de propostas pedagógicas. Desse modo, esses organismos sabotam as que são contrárias aos seus interesses e aos interesses da classe dominante que representa.
Ademais, pressionada por segmentos da classe dominante, avessa à universalização da educação, a uma escola voltada à socialização dos conhecimentos historicamente acumulados e a uma educação emancipadora, principiaram ações governamentais tendo em vista a manutenção do caráter excludente e mercadológico da educação.
Ou seja, sob o discurso de que era necessário inovar e transformar a educação e optar por métodos que se ajustassem à construção de uma gestão moderna, adequada às novas exigências socioeconômicas do país, ao invés de implementar uma concepção de educação histórico, crítica e transformadora, como defende a pedagogia histórico-crítica, ao redirecioná-la para a defesa da cidadania, o governo de Roberto Requião procurava amortecer os conflitos, camuflar as contradições e amainar os antagonismos sociais, gerando, assim, falsa impressão de que estava defendendo uma pedagogia crítico-transformadora e atendendo às demandas dos docentes da escola pública do Estado do Paraná. No entanto, acabou sendo responsável não só pelo começo do redirecionamento do Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná em direção à Pedagogia Cidadã, adequada à ordem existente, ainda que, sob uma aparência um tanto crítica, mas também pelo principiar de uma mudança substantiva no caráter teórico-metodológico da educação paranaense que, em maior ou menor proporção, foi seguido pelos sucessivos governos, até a PHC ser praticamente extinta durante os governos de Beto Richa e de Ratinho Júnior.
Isso, porém, não significou apenas uma mudança qualquer no rumo da proposta pedagógica do estado do Paraná. Implicou também uma importante mudança na qualidade da educação, com o consequente rebaixamento da valorização dos profissionais da educação e da escola pública, o rebaixamento da teoria e dos conteúdos escolares e a submissão da educação aos interesses mercadológicos.
Por fim, há que se mencionar que as mudanças iniciadas durante o governo de Roberto Requião em relação à pedagogia histórico-crítica, isto é, a teoria que sustenta o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná, de certo modo, representam o começo do fim dessa proposta político-pedagógica e, em consequência disso, o Paraná perdeu a oportunidade não só de melhorar a qualidade da educação, como de potencializar o progresso e o desenvolvimento humano e social em benefício da coletividade de seus habitantes. Daí a necessidade de recolocá-la em discussão, torná-la conhecida e de retomar as lutas pela sua efetiva implementação.