Introdução
A criança é sujeito histórico e de direitos, que produz cultura e nela se constitui (Corsaro, 2003; Sarmento, 2003). Esta concepção demanda o respeito à criança como protagonista em seu processo de aprendizagem, desenvolvimento e vivência de sua infância. Desde a mais tenra idade, as crianças são constituídas na e pela linguagem e na interação com outras crianças e adultos (Coutinho, 2013). Dentre as formas de interlocução, de expressão da cultura, a linguagem escrita “é um dos elementos com os quais as crianças interagem, buscando dele se apropriar para melhor compreender o mundo e com ele se relacionar” (Baptista, 2010, p. 2). Em vista disso, a participação na cultura escrita pode ocorrer antes mesmo de a criança frequentar instituições de Educação Infantil, já que estão imersas em um universo letrado.
Sobre esse modo específico de expressão da cultura, Galvão (2010; 2016) a conceitua como “cultura escrita”. Para a autora, linguagem falada e escrita são alguns entre os diversos aspectos de uma cultura. Galvão (2016, p. 17) define cultura escrita como “o lugar - simbólico e material - que o escrito ocupa em/para determinado grupo social, comunidade ou sociedade”. Essa definição compreende todo e qualquer evento ou prática que tenha a linguagem escrita como mediação.
No contexto dessa discussão, emerge a reflexão sobre as práticas de leitura e escrita na Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica - conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996). Isso demanda compreender que o ensino e a aprendizagem da linguagem escrita são muito mais que a aquisição e a decodificação de códigos, como destaca Soares (2006). Segundo a autora, ler e escrever envolve a apropriação dos usos sociais, da natureza e do funcionamento desse sistema de representação, constituindo, assim, uma prática de letramento.
É fundamental compreender que o universo da criança está permeado por múltiplas linguagens: de “cem linguagens” nas palavras de Malaguzzi (1999). Para a criança, são variadas as formas de expressar-se, comunicar-se, de registrar e de significar o mundo. Por meio da fala, do desenho, dos gestos, da pintura, das brincadeiras, da música, da dramatização, da dança, da escrita, dentre outras, as crianças compreendem o mundo e produzem novos significados. Nesse ponto de vista, uma das especificidades do ensino na Educação Infantil é promover à criança vivências da cultura por meio de diferentes linguagens.
A maneira como interagimos com a linguagem escrita vem sendo modificada e tornando-se ainda mais diversificada. Segundo Fantin (2018), “as formas de socialização, a construção de conhecimento e a apreensão do mundo, bem como os valores específicos das crianças, também se constroem nos diferentes espaços da cultura digital” (p. 67). Dessa forma, os modos de participação na cultura escrita também estão se transformando com sua manifestação na cultura digital, cultura essa que se assenta “sobre o delicado equilíbrio entre as plenas potencialidades (técnicas, sociais, discursivas) prometidas pelo ciberespaço e as mediações impostas pelos espaços de vivência tradicionais” (Amiel; Soares, 2015, p. 113).
Neste sentido, é preciso redimensionar o ensino e a aprendizagem na perspectiva dos multiletramentos. A escolha do termo multiletramentos é motivada, de acordo com Cope e Kalantzis (2000), pela multiplicidade de canais de comunicação e a grande diversidade cultural e linguística que podem ser expressas nesses canais. Segundo os autores, o termo envolve modos de representação que variam de acordo com a cultura e o contexto, sendo mais amplos que apenas a linguagem escrita. Assim, há demanda por um olhar atento “não à tecnologia em si, mas à criança - seu vínculo com as formas de culturas e mediações possíveis” (Fantin, 2008, p. 151).
A Educação Infantil, especialmente, é um espaço para construir bases e ampliar a participação das crianças na cultura letrada. As vivências com a linguagem escrita, na perspectiva dos multiletramentos, possibilita o envolvimento com essa linguagem mesmo antes de aprender a ler e escrever formalmente. Para Galvão (2016), por meio das interações, das brincadeiras e da literatura infantil, as crianças vivenciam a expressão da linguagem escrita. Para a autora cabe à Educação Infantil ampliar as possibilidades de as crianças participarem da cultura escrita.
Mais do que inserção, acesso ou entrada, “existem diferentes dimensões de produção, de aproximação e de participação de comunidades e de indivíduos das/nas culturas do escrito” (Galvão, 2016 p. 20). Essa noção da linguagem escrita como prática cultural nos leva a refletir sobre as práticas com leitura e escrita na Educação Infantil. Ressaltamos, primeiramente, que há tensões no debate sobre como esse trabalho deve ser realizado na primeira etapa da educação básica.
Por vezes, as práticas pedagógicas com leitura e escrita são desempenhadas a partir atividades de codificação e decodificação. No entanto, na Educação Infantil não se busca a sistematização da leitura e da escrita como aquisição do código gráfico, mas uma prática na perspectiva do letramento que priorize o uso social da leitura e escrita (Soares, 2006). Quanto ao ensino sistematizado da escrita, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNs) (Brasil, 2013), é função do Ensino Fundamental. O documento estabelece o foco central na alfabetização ao longo dos três primeiros anos do Ensino Fundamental. Ao mesmo tempo autores argumentam que na Educação Infantil as crianças precisam ter a oportunidade de explorar materiais escritos e participar de experiências de leituras significativas e diversificadas para ampliar sua participação na cultura escrita (veja, por exemplo, Galvão, 2016).
Por isso, neste trabalho, temos como objetivo geral compreender os modos de aproximação e participação das crianças na cultura escrita, no contexto da Educação Infantil, apresentando o panorama da produção acadêmica e científica que aborda cultura escrita na Educação Infantil, por meio de uma Revisão Sistemática de Literatura.
Metodologia
Apoiados no processo delineado por Ramos et al. (2014), conduzimos uma Revisão Sistemática de Literatura (RSL) da produção acadêmica e científica acerca da cultura escrita na Educação Infantil. A revisão foi conduzida inspirada no processo descrito por Ramos et al. (2014) e no modelo adaptado em seguida por Reis e Amiel (2019). As etapas consistem em: (i) Planejamento, com a definição das Questões de Pesquisa e elaboração do Protocolo, contendo a definição de fontes de busca, do método de busca do material, e dos critérios de inclusão/exclusão; (ii) Execução - busca de estudos primários, pré-seleção de estudos aplicando os critérios de inclusão e exclusão; e (iii) Análise - síntese das informações.
As questões de pesquisa que norteiam o estudo foram derivadas a partir dos objetivos da revisão, seguindo os princípios gerais para a realização de uma RSL de acordo com o trabalho de Ramos et al. (2014), detalhadas no Quadro 1. O enfoque da busca se deu especificamente na Educação Infantil, ensino formal, no entanto, houve abertura para trabalhos retornados que discutissem a cultura escrita no Ensino Fundamental, desde que dialogando com questões relativas à Educação Infantil. A elaboração da equação de pesquisa levou em conta a tradução e os possíveis sinônimos, para tanto buscamos compreender como esses termos são abordados também na língua espanhola. Tais termos foram evidenciados também em textos previamente investigados, que compõem o arcabouço teórico dessa pesquisa. Os trabalhos não foram filtrados por critérios de qualidade.
Fonte: Autores.
Abaixo, descrevemos o processo desde os objetivos da revisão sistemática até o tratamento dos dados. Ramos et al. (2014) ressaltam a importância de definir critérios rigorosos de validade científica e metodológica, de modo que o resultado da revisão seja o “reflexo de um trabalho de mapeamento e seleção criteriosa e explícita de fontes bibliográficas” (p. 33).
Resultados
A pesquisa teve como enfoque a seleção de trabalhos depositados em repositórios e sites de periódicos (Tabela 1). O processo de seleção das publicações foi composto por três etapas de triagem. Os resultados nos apontaram um total inicial de 197 trabalhos, conforme tabela, a seguir.
Termo | DOAJ | RCAAP | REDALYC | Edubase | Educ@ | RBIE | SBIE | WIE | WCBIE | Anped | OneFile (GALE) | Soc. Abstracts | CrossRef | Scopus | Total por termo |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
"Cultura escrita" AND "educação infantil" | 4 | 13 | 60 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 3 | 1 | 1 | 0 | 82 |
"Culturas do escrito" AND "educação infantil" | 0 | 1 | 15 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 16 |
"Cultura letrada" AND "educação infantil" | 1 | 14 | 22 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 3 | 0 | 2 | 0 | 42 |
"Cultura escrita" AND "educación infantil" | 1 | 2 | 21 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 4 | 0 | 0 | 2 | 30 |
"Cultura letrada" AND "educación infantil" | 0 | 2 | 8 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 4 | 0 | 0 | 0 | 14 |
"cultura escrita" | - | - | - | - | - | - | - | - | - | 1 | - | - | - | - | 1 |
Cultura escrita educação infantil | - | - | - | - | 12 | - | - | - | - | - | - | - | - | - | 12 |
Total | 6 | 32 | 126 | 0 | 12 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 14 | 1 | 3 | 2 | x |
Total geral | 197 |
Nota: Nos repositórios Educ@ e ANPED foi necessária adaptação dos termos para apenas “cultura escrita” e cultura escrita e educação infantil, sem aspas, por limitações referentes ao sistema de buscas dessas bases.
Fonte: Autores.
Na primeira triagem foi realizada a leitura do título e resumo, e em caso de discordância ou dúvida, o texto completo foi lido para decisão de inclusão/exclusão, o que resultou em 48 trabalhos. Na segunda triagem, foi feita a leitura completa das pesquisas selecionadas na primeira triagem, sendo submetidos aos mesmos critérios de inclusão/exclusão, o que resultou em 42 trabalhos. Na investigação dos artigos na íntegra, dois textos fora de escopo foram desconsiderados na terceira triagem de acordo com os itens de exclusão e) e f) apresentados anteriormente. Um total de 40 trabalhos foram considerados para a RSL.
Após o processo de seleção dos trabalhos relevantes ao contexto do estudo, os artigos foram catalogados em um software livre de gerenciamento de referências. No espírito do compartilhamento aberto de dados científicos (Albagli, 2015), criamos um grupo aberto na plataforma Zoteroa, um software livre para gerenciar dados bibliográficos. Isto permitiu organizar e publicar de forma aberta e visível publicamente, o conjunto de trabalhos contendo além dos metadados, o fichamento do texto, além de marcadores descritivos, promovendo a transparência do processo de revisão sistemática.
Análise
Foram selecionados um total de 40 artigos (Tabela 2), dentre eles 12 pesquisas que foram realizadas na Educação Infantil, 16 no Ensino Fundamental e 10 que abrangem as duas etapas de ensino. Apenas 2 artigos não definem a etapa em que a pesquisa foi realizada, sendo que uma delas foi realizada na Educação Especial e a outra apresenta uma discussão conceitual.
Etapa de Ensino | Artigos |
---|---|
Somente Educação Infantil | 12 |
Somente Ensino Fundamental | 16 |
Educação Infantil e Ensino Fundamental | 10 |
Não definem etapa | 2 |
Total | 40 |
Fonte: Autores.
Como primeiro passo para responder à questão de pesquisa QP2 Identificamos que dos artigos selecionados, 16 foram a campo, porém não relatam intervenção; 16 realizaram algum tipo de intervenção; e 9 são descritivos, apresentando uma discussão conceitual (Tabela 3). Tendo o enfoque na escola, definimos um trabalho como sendo ‘de campo’ como sendo os estudos que envolvem a participação dos atores escolares, incluindo crianças, professores, gestores e/ou coordenadores, sem incluir uma intervenção direta com as crianças. Definimos 'intervenção' como um trabalho que envolve a implementação de alguma estratégia, projeto, ação ou metodologia realizado em instituições (sala de aula, sala de leitura, etc.) e que envolva a participação das crianças. Definimos como ‘descritivos’ aquelas pesquisas que trazem tão somente uma discussão sobre o tema.
Tipo de trabalho | Artigos |
---|---|
Intervenção | 16 |
De campo - Sem intervenção | 15 |
Descritivo | 9 |
Total | 40 |
Fonte: Autores.
Para além, avaliamos os principais conceitos abordados, de acordo com as palavras chaves dos artigos e com a temática dos trabalhos analisados, inserindo os conceitos como marcadores (tags, sendo que os artigos podem ter mais de uma) descritivos na base de dados (Tabela 4).
Conceitos | Artigos |
---|---|
Alfabetização | 15 |
Cultura escrita | 12 |
Letramento | 10 |
Escrita | 6 |
Leitura e escrita | 6 |
Formação de crianças leitoras/escritoras | 5 |
Literatura infantil | 4 |
Multiletramentos | 4 |
Leitura | 3 |
Oralidade | 2 |
Alfabetização midiática | 1 |
Cultura de pares | 1 |
Cultura letrada | 1 |
Total | 70 |
Fonte: Autores.
Quanto à abordagem metodológica, apoiados na perspectiva de Crotty (1998) e Creswell (2007), foram delineadas as metodologias utilizadas nos trabalhos analisados, sendo que trabalhos podem ter feito uso de mais de uma abordagem (Tabela 5). Percebe-se que a grande maioria dos estudos se enquadra em metodologias usualmente definidas como ‘qualitativas’ com grande preponderância de estudos etnográficos.
Abordagem | Artigos |
---|---|
Etnográfica | 17 |
Descritiva | 6 |
Documental | 5 |
Bibliográfica | 3 |
Colaborativa | 3 |
Pesquisa-ação | 3 |
Estudo de caso | 2 |
Experimental | 1 |
Total | 47 |
Fonte: Autores.
Em relação aos principais métodos utilizados (Tabela 6), percebemos vasto uso de entrevistas semiestruturadas e observação participante. O quantitativo final é inferior ao número de trabalhos pois alguns textos não especificam os métodos utilizados.
Método | Artigos |
---|---|
Entrevista semiestruturada | 18 |
Observação participante | 10 |
Análise documental | 7 |
Questionário | 4 |
Total | 39 |
Fonte: Autores.
Por fim, identificamos também a fundamentação teórica dos trabalhos. Dos 40, 11 artigos afirmam apoiar-se nos pressupostos na Teoria Histórico-Cultural e 2 pesquisas estão ancoradas na Perspectiva Bakhtiniana. Os demais trabalhos não definem uma abordagem teórica específica - uma lacuna relevante.
É possível observar que a maior atuação dos pesquisadores ocorreu no Ensino Fundamental, a partir de uma abordagem etnográfica (Figura 1). Grande parte das pesquisas realizadas na Educação Infantil também se fundamenta na perspectiva etnográfica. De acordo com Creswell (2007), etnografia é uma “estratégia de investigação em que o pesquisador estuda um grupo cultural em um cenário natural durante um período de tempo prolongado, coletando principalmente dados observacionais e de entrevistas” (Creswell, 2007, p. 37). Pesquisas dessa natureza são importantes para obter uma visão abrangente do tema estudado, com ênfase na percepção dos atores envolvidos na pesquisa e envolvem diferentes métodos, como pode ser evidenciado na Figura 1. Destaca-se que, dentre as 18 pesquisas que realizaram entrevistas semiestruturadas, 8 delas entrevistaram as crianças, inserindo-as no processo investigativo, tendo em vista as especificidades das pesquisas com/sobre crianças (Fantin; Girardello, 2014).
Participação das crianças na cultura escrita
Dos 40 artigos analisados, 22 pesquisas foram implementadas na Educação Infantil, com ênfase na participação das crianças na cultura escrita. Dentre elas, 12 estudos abordam especificamente a Educação Infantil e os outros 10 são trabalhos que procuram um diálogo desta etapa com o Ensino Fundamental. Observamos que grande parte das pesquisam apresentam uma perspectiva de participação da criança na cultura escrita e na formação de uma atitude leitora e escritora na infância. A análise compreende uma discussão conceitual, sem abordar especificamente a metodologia de cada estudo, informação que pode ser explorada no fichamento de cada artigo na plataforma Zotero e por meio dos descritores lá indicados.
A análise do corpus completo (incluindo todos os artigos selecionados) aponta consenso: a cultura escrita precisa ser vivenciada na Educação Infantil, porém não de forma mecânica, apenas decodificando códigos e elementos gráficos. Ao contrário, deve ser feita de forma que a criança perceba essa forma de linguagem como elemento cultural. Os trabalhos apontam que a participação na cultura escrita pode ser ampliada a partir de vivências carregadas de significados e funções sociais. O foco do trabalho pedagógico, neste contexto, seria a aproximação das crianças às práticas sociais em que a leitura e a escrita estejam presentes.
Como exemplo, mostrar desenhos, fotografias, ilustrações, objetos e ao imitar seus sons, ao contar histórias, cantar músicas ou recitar poesias, contribui para que as crianças entendam que os objetos podem ser representados, introduzindo-as no universo simbólico. Para Baptista (2010) é igualmente importante nesse processo expor às crianças que podemos ler algo e extrair sentido sem auxílio de desenhos, ilustrações ou imagens.
Os trabalhos indicam, ainda, que é fundamental que os espaços da Educação Infantil possibilitem que as crianças se manifestem por meio de diferentes linguagens e com o corpo. Primeiro, há necessidade de organizar e promover experiências (espaços e tempos) que atribuam sentido à escrita e à leitura pela criança (Furtado; Debus, 2017). Segundo, os trabalhos enfatizam o uso da brincadeira, atividade primordial nesta etapa do desenvolvimentismo humano. Brincando de faz-de-conta, por exemplo, a criança lança mão de variadas formas de expressão: gesticula, fala, desenha, imita, brinca com sons, canta, entre outras possibilidades. Dessa forma, os espaços lúdicos das brincadeiras, os jogos de linguagem, a representação e a fantasia são possibilidades de a criança explorar, também, a linguagem escrita.
Bortolanza e Costa (2016) enfatizam que para compreender o processo de apropriação da cultura escrita na Educação Infantil é fundamental identificar as suas origens nas relações que a criança vai gradativamente estabelecendo com a escrita. Os autores argumentam que é importante o professor conhecer a pré-história do desenvolvimento da linguagem escrita, do gesto às brincadeiras, que possibilitarão à criança desenvolver, mais tarde, a escrita convencional. Neste ponto de vista, é necessário que a vivência com a escrita na Educação Infantil envolva situações em que a criança possa se expressar, sem o uso da escrita de fato, ou seja, por meio de gestos, desenhos, e brincadeiras, por exemplo. Isso possibilitará a assimilação futura da função social específica da escrita em práticas sociais.
Nelly Mejía (2010) analisa a Bebeteca, um programa nacional colombiano que oferece espaço de leitura para crianças bem pequenas, um local - como uma biblioteca - para as famílias vivenciarem momentos de leitura com seus bebês. Os leitores podem ser pais, mães, responsáveis, irmãos(ãs) mais velhos e/ou bibliotecários, aproximando os bebês à literatura infantil. A autora enfatiza que o contato da criança com leitores antes de entrar na escola contribui para aprendizagem da escrita e leitura. A proposta da Bebeteca é proporcionar oportunidade de conviver com cultura letrada desde a mais tenra idade. Mejía (2010) aponta a importância da vivência com a leitura e os livros antes de chegar à escola. A Bebeteca, é exemplo, portanto, de intencionalidade na configuração de um espaço educativo que contribui para a aprendizagem da leitura e da escrita.
A pesquisa de Debus e Galdino (2016) ressalta que, ao pensar sobre o uso da escrita em suas vivências, as crianças aproximam-se da sua função social. A partir de um trabalho de intervenção, as autoras sugerem que primeiro a criança necessita conviver bastante com a escrita e a leitura, compreender para que servem, e só então deve ser apresentado seu aspecto técnico. Desse modo, quando a criança vivencia a escrita e a leitura em seu dia a dia, como observar a escrita e leitura de um bilhete por outra pessoa, uma lista de compras ou outra situação do cotidiano, ela tem a possibilidade de atribuir uma função social para a escrita. Ademais, compreender que a leitura e a escrita possuem uma importância, por parte da criança, proporciona motivos pessoais para sua apropriação. As autoras defendem que, na Educação Infantil, as crianças vivenciem atividades que envolvam o brincar com as palavras e suas sonoridades, na perspectiva de ultrapassar um ensino transmissivo de letras e sons.
Nesta perspectiva, destaca-se o “faz de conta” como atividade principal da criança, como ressalta o estudo interventivo de Lopes e Oliveira (2014). É por meio dela que a criança pequena se apropria da cultura: “com a brincadeira de faz de conta a criança desenvolve a representação simbólica - atividade psíquica superior também necessária para a aquisição da escrita” (p. 626). É importante perceber que antes de se apropriar da linguagem escrita, que é uma representação que envolve maior abstração, é imprescindível que a criança exercite e desenvolva as representações por meio do faz de conta. É possível e necessário organizar atividades de desenhos e brincadeiras de faz de conta com a cultura escrita, tendo em vista seus usos sociais como, por exemplo: escrever para se comunicar, se orientar, registrar uma ideia, como meio de identificação, enfim, como instrumento para significar e interagir no mundo em que as crianças convivem.
Anjos e Silva (2014) foram à campo em busca das percepções dos professores sobre a importância da literatura infantil para a formação de leitores e escritores na Educação Infantil. As autoras consideram a literatura infantil um mecanismo favorecedor do letramento, antecedendo a alfabetização. Por meio de entrevista semiestruturada com quatro docentes que atuam na Educação Infantil, Anjos e Silva (2014) relatam que as professoras participantes da pesquisa incentivavam a leitura e a escrita desde a entrada da criança naquela instituição, aos 2 anos de idade, por meio de jogos de linguagem e de imitação. Na concepção das professoras participantes, a Educação Infantil é tempo e espaço pedagógico para participação na cultura letrada. A literatura infantil por sua vez, contribui no efetivo processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita.
Costa e Silva (2012) discutem o papel do corpo no processo de apropriação da língua escrita na Educação Infantil. As autoras sugerem maior visibilidade à exploração dos diversos processos de simbolização infantil (o desenho, o faz de conta, etc.) e sua relação com a escrita, especialmente a participação do corpo. Segundo as autoras, o corpo, principalmente na Educação Infantil, revela-se como meio essencial de expressões e impressões de mundo. É suporte da brincadeira, do desenho, da narrativa e da escrita (Costa; Silva, 2012). Nessa perspectiva é o corpo que brinca, que narra, que desenha e que escreve, portanto devem ser incentivadas as relações entre a expressão corporal e os processos de ensino e aprendizagem da escrita na Educação Infantil.
Perspectiva dos multiletramentos
A partir da RSL é possível observar que, dos 40 artigos retomados, 4 discutem a relação da linguagem escrita com digital. Dentre os estudos, 2 foram realizados na Educação infantil. Com base nos conceitos de letramento e multimodalidade, Ribeiro (2010) apresenta um estudo interventivo sobre a leitura de jornais populares, do ponto de vista do layout. Buscando mostrar a importância da percepção do design para a leitura, a autora relata uma experiência com crianças da Educação Infantil. A autora afirma que, mesmo não sabendo ler, as crianças começam cedo suas percepções de leitura e hipóteses sobre a navegação em objetos de ler. A pesquisa revelou que as crianças reconhecem as propostas do layout das páginas do jornal, mesmo sem saberem exatamente o que sejam notícias ou reportagens. “As crianças inseridas na cultura escrita, mas ainda não alfabetizadas, conhecem muito sobre multimodalidade e se relacionam bem e ajustadamente com interfaces não lineares” (Ribeiro, 2010, p. 505). A autora ressalta a importância de não apenas ler e escrever, mas diferentes formas de ler e escrever no processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita.
Pérez-Rodriguez et al. (2015) abordam a alfabetização midiática na Educação Infantil. As autoras consideram que a competência midiática deve ser abordada como habilidade necessária para o desenvolvimento de competências relacionadas à comunicação, expressão, gestão do conhecimento, desenvolvimento do pensamento e participação na sociedade. Pérez-Rodriguez et al. (2015) sinalizam que o currículo espanhol para a educação pré-escolar recomenda trabalhar com linguagem audiovisual e tecnologias da informação e comunicação a fim de apresentar às crianças um uso apropriado e criativo das mesmas. No entanto, a pesquisa de campo revelou que a escola ainda está à margem da necessária alfabetização midiática. Para as autoras, a competência midiática é um requisito para a formação adequada para a cidadania desde a Educação Infantil. Consideram, ainda, possível e necessário um envolvimento com as múltiplas linguagens, incluindo a escrita, na perspectiva da alfabetização midiática.
A análise dos trabalhos aponta que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita precisam levar em conta, especialmente na Educação Infantil, a variedade dos modos de comunicação e expressão existentes. Nessa perspectiva, deve-se considerar a multiplicidade de linguagens - a escrita, oralidade, visual, gestual, digital - como fundamentais na maneira como a criança interage com o mundo. Dessa forma, os professores precisam preocupar-se em ensinar as diversas formas de utilizar e significar a escrita. Os artigos apontam que vivenciar a escrita e a leitura de maneira diversificada é um caminho possível para aproximar as crianças à cultura escrita na perspectiva dos multiletramentos.
Intervenções em contextos de Educação Infantil
Trabalhos que propõem intervenções na dinâmica das instituições de ensino, são essenciais para modificar e repensar as práticas pedagógicas, buscando superar os dilemas e percalços vivenciados no contexto escolar (Reis; Amiel, 2019). Desse modo, projetos de intervenção contribuem para além do desenvolvimento de novos conhecimentos teóricos, já que impactam diretamente nas práticas de ensino e podem trazer propostas fundamentadas para novas intervenções.
Ao focar somente nas pesquisas que realizaram alguma intervenção (QP2) há enfoque (Figura 2) nos temas “leitura e escrita” e “cultura escrita” no âmbito da Educação Infantil. Os estudos tendem a usar abordagens etnográficas, se utilizando de múltiplos métodos, como entrevista semiestruturada. A análise desses trabalhos evidencia que a prática pedagógica com a leitura e a escrita precisa ser coerente com as especificidades da Educação Infantil, favorecendo a construção de significados pela criança de forma lúdica. Pesquisas interventivas no campo da educação são essenciais, pois possibilitam uma articulação mais próxima entre pesquisadores, educadores e crianças na identificação e resolução de problemas locais.
Silva (2018) relata uma vivência de leitura e escrita de gêneros discursivos em uma turma de crianças de cinco anos da Educação Infantil. A situação em pauta enfoca a re-criação de um relato escrito no livro da vida da turma: “um compilado de registros escritos dos acontecimentos mais significativos da turma. São as crianças que dizem o que deve ser escrito no livro da vida, e esses registros foram feitos por mim, porque as crianças não eram, no início do trabalho, convencionalmente alfabetizadas.” (Silva, 2018, p. 185). A autora ressalta que, na escrita do relato da vida, a criança se reconhece como autora, como a re-criadora do texto, como alguém que sabe escrever, mesmo que naquela ocasião ainda não escrevesse convencionalmente. A autora destaca, ainda, a mediação do professor nesse processo que atua como “escriba” (Silva, 2018, p. 188).
A intervenção apresentada por Bortolanza e Costa (2016) teve início com observações das atividades desenvolvidas pela professora com a escrita, em uma turma com crianças de cinco anos de idade na Educação Infantil, seguindo-se de uma atividade para conhecer o que pensam as crianças sobre a escrita. A pesquisa contou ainda com um experimento pedagógico com o intuito de instigar nas crianças a necessidade de utilizar a escrita como forma de se comunicarem e, simultaneamente, de significarem a escrita como um instrumento auxiliar de sua memória. A atividade foi realizada em dois momentos: no primeiro a pesquisadora simulou uma situação imaginária na qual as crianças foram incentivadas a escrever um bilhete para suas mães. De acordo com as autoras, “os sujeitos do estudo, ainda não alfabetizados, tiveram como desafio registrar por meio de sinais gráficos a ideia desejada, tendo em conta que tais sinais gráficos deveriam ter a função de relembrar o conteúdo da ideia proposta” (Bortolanza; Costa, 2016, p. 941). As autoras relatam que uma das crianças se utilizou de letras para registrar suas ideias (Figura 3), pois sabe que para escrever utilizamos marcas convencionais. No entanto, não se apropriou de tais marcas para auxiliá-la a recordar o conteúdo expresso, apenas registrou letras aleatoriamente (Bortolanza; Costa, 2016).
No segundo momento, as crianças foram motivadas a participar de uma brincadeira em que os papéis sociais assumidos se inverteriam: elas representariam o papel da professora e a pesquisadora seria a estudante. Durante a realização da atividade, assumindo o papel de professor, que neste momento estavam representando, as crianças deveriam escrever um convite aos pais na lousa. As autoras destacam que, com os papéis sociais invertidos, as ações das crianças também se modificaram (Figura 4). As autoras constataram que
[...] a relação da criança com o objeto escrita modificou-se; o próprio significado da escrita para a criança se alterou, pois o papel assumido por ela na brincadeira mudou, o que lhe exigiu uma mudança de atitude na realização da atividade [...]. Para isso, ela utilizou uma forma peculiar de representação, correspondente às garatujas, explicitando com seu gesto a imitação da ação do professor (Bortolanza; Costa, 2016, p. 943).
Bortolanza e Costa (2016) concluem que a escrita precisa estar presente nas brincadeiras das crianças, não para as crianças brincarem de escrever, ou utilizar a escrita de maneira lúdica, mas pelo fato de que na brincadeira de papéis sociais a relação das crianças com o objeto escrita se modifica, e elas a significam em consonância com o papel que assumem, o que lhes possibilita separar o aspecto semântico do material” (Bortolanza; Costa, 2016, p. 946).
A pesquisa de Lopes e Oliveira (2014) versa sobre os sentidos atribuídos à escrita por uma criança pequena com síndrome de Down na Educação Infantil. A intervenção ocorreu em sessões de atendimento pedagógico, nas quais foram propostas vivências da linguagem escrita para a criança. Em uma das atividades, a pesquisadora colocou uma folha sobre a mesa e solicitou que a criança ajudasse a escrever que o cachorro foi o primeiro ser vivo a viajar pelo espaço - temática de seu interesse. A criança não se envolveu na atividade logo de início, dizia “amassar, um barco”, demonstrando que gostaria de brincar. A pesquisadora não desconsiderou o pedido, afirmou que após a atividade brincariam. Então, voltou a persistir na escrita e escreveu em sua folha pronunciando a palavra ca-chor-ro, em sílabas, enquanto a criança observou. Seguindo a proposta, a criança começou a envolver-se na atividade e traçou linhas quebradas fechadas e abertas. A criança não participou e não foi inserida no processo de elaboração da ideia no momento da escrita, que partiu da pesquisadora. Apesar de o assunto escrito ser de interesse da criança, as autoras constatam que “não houve atribuição do principal sentido à escrita: a escrita como uma necessidade de expressão da criança” (Lopes; Oliveira, 2014, p. 636). Isso significa que, no processo de mediação entre o adulto e a criança, é importante considerar os sentidos atribuídos à escrita pela criança.
Debus e Galdino (2016) investigaram o trabalho com a linguagem escrita e a apropriação da cultura letrada na Educação Infantil a partir dos Contos de Fadas. A intervenção iniciou com a proposta da sacola viajante, uma bolsa de tecido na qual as crianças levaram para casa os livros que escolhiam do acervo disponível na biblioteca. A sacola era enviada com intuito de promover interação familiar, para que fosse possível uma leitura compartilhada com a família no fim de semana. No retorno, cada criança fazia o reconto da história aos colegas, objetivando o respeito à voz da criança e sua compreensão do lido. As autoras ressaltam “a importância de práticas pedagógicas que enfatizem a leitura e a escrita como produção cultural desde a Educação Infantil” (Debus; Galdino, 2016, p. 213). Isso demanda um trabalho com ênfase na função social da escrita e em situações nas quais a criança sinta a necessidade de ler e escrever, que pode ser concretizado a partir dos contos de fadas.
Albuquerque e Ferreira (2020) analisaram práticas de ensino da leitura e da escrita em duas turmas do último ano da Educação Infantil: uma pertencente à rede pública de ensino no Brasil e outra localizada na França. As pesquisadoras realizaram observações de aulas, entrevistas com as professoras e análise documental, referente às atividades vivenciadas pelas crianças no período das observações, dentre elas uma atividade elaborada pelas autoras para avaliar os conhecimentos das crianças sobre o Sistema de Escrita Alfabética (SEA), que compreende a apropriação do alfabeto. Com base na análise das práticas das professoras participantes da pesquisa, Albuquerque e Ferreira (2020) concluem que, apesar de as crianças pertencerem a países distintos (mas ambos com sistema de escrita de natureza alfabética), a maioria das duas turmas encerrou o ano letivo compreendendo alguns princípios do sistema de escrita alfabética, principalmente, o que a escrita nota, a pauta sonora das palavras. As autoras defendem o aprendizado da leitura e escrita por meio de diferentes atividades vivenciadas no contexto escolar e fora dela. Para as autoras, tais atividades precisam ser lúdicas, interessantes e desafiadoras de modo a garantir que avancem em seus conhecimentos sobre a escrita desde a Educação Infantil.
Mais especificamente, nas três pesquisas que realizaram intervenções e analisaram os processos de transição entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental é novamente reforçado o papel da ludicidade e do brincar, mas também uma atenção na relação entre a cultura oral e cultura escrita. Neves et al. (2011) buscaram analisar a natureza da relação entre esses dois níveis de ensino, conforme manifestada nas práticas educativas desenvolvidas em cada etapa. Na Educação Infantil, inicialmente realizaram um mapeamento das atividades e dos espaços utilizados. Em seguida, examinaram como as crianças respondiam e participavam do ambiente letrado, a partir da análise de alguns eventos de letramento. Neves et al. (2011) buscaram entender a inserção das crianças em um novo espaço escolar, realizaram também, nesta etapa, um mapeamento das atividades desenvolvidas e dos espaços utilizados, a fim de tecer comparações entre esse novo espaço e as experiências anteriores na Educação Infantil. Segundo as autoras, “tais aspectos, considerados em conjunto, representam uma ruptura em relação às práticas escolares vivenciadas pelas crianças na educação infantil” (Neves et al., 2011, p. 132). As autoras verificaram que as práticas educativas que assumiram centralidade na Educação Infantil e no Ensino Fundamental se estruturavam em torno da brincadeira e do letramento, mas situadas diferencialmente nos dois segmentos. A investigação evidenciou a “necessidade de uma maior integração entre o brincar e o letramento nas práticas pedagógicas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, ambas dimensões fundamentais da cultura infantil contemporânea” (Neves et al., 2011, p. 138).
Belintane (2010) discute a transição entre cultura oral e cultura escrita nos primeiros anos do Ensino Fundamental, sobretudo na articulação entre esta etapa e a Educação Infantil. A transição da oralidade para a escrita implica práticas pedagógicas contextualizadas e precisas, com o monitoramento constante das defasagens de níveis desde o início do primeiro ano do Ensino Fundamental. A pesquisa ocorreu em duas fases: na primeira, houve uma avaliação diagnóstica com as crianças que ainda não reuniam as condições básicas para o domínio da leitura e da escrita, de acordo com professores e pela coordenadora da escola. Belintane (2010) buscou conhecer melhor essas crianças e suas condições de oralidade e letramento, por meio dos registros que elas trazem da Educação Infantil. A autora constatou que as crianças possuíam um repertório pouco diversificado de gêneros orais da infância e pontua que não tiveram oportunidades de lidar suficientemente com textos de gênero oral. Na segunda fase, a pesquisa acompanhou duas turmas de primeiras séries do Ensino Fundamental, ministrando com seus professores um programa de oralidade, leitura e escrita embasado nos resultados obtidos na primeira fase. O projeto visou acompanhar as crianças em suas singularidades, procurando detectar seus movimentos de aproximação e de afastamento em relação ao universo da leitura e da escrita, concluindo que o enlaçamento entre a cultura oral e letramento é fundamental no contexto da Educação Infantil.
Tendo em vista a preocupação com a inserção da criança de 6 anos no Ensino Fundamental, Semeghini-Siqueira (2011) expõe em sua pesquisa algumas estratégias encontradas para esse acolhimento, recorrendo às propostas que focalizam a oralidade, a leitura e a escrita. Por meio de imersão da pesquisadora em uma escola pública, esta buscou refletir sobre processos de letramento e de alfabetização, além de colher informações consistentes sobre práticas de oralidade, leitura e escrita, em ambientes de ensino e aprendizagem de língua materna para crianças. As pesquisadoras verificaram que as algumas das crianças leitoras haviam frequentado Educação Infantil, por pelo menos dois anos. A autora considera esse fato um “indício de que vivenciaram um contexto propício para o desenvolvimento de experiências letradas, isto é, um letramento emergente mais intenso na família, na Educação Infantil ou nos dois espaços” (Semeghini-Siqueira, 2011, p. 336).
Contribuições para o trabalho pedagógico
A RSL recomenda que os docentes que atuam na Educação Infantil e nos anos Iniciais do Ensino Fundamental explorem a linguagem escrita por meio de estratégias de aprendizagem que respeitem as particularidades das crianças. Os artigos apontam que o trabalho pedagógico proporcione à criança a vivência com os usos e funções reais da escrita. Isso implica possibilitar situações nas quais ela possa realizar atividades significativas no interior da cultura letrada. Práticas como escrever bilhetes, cartas, mensagens para pessoas ausentes, registrar um fato importante ocorrido em sala de aula e reler alguns dias ou semanas depois (tendo o professor como escriba no caso das crianças pequenas) contribuem para a compreensão das funções da escrita. Tais situações também possibilitam que a criança pense sobre o funcionamento da escrita e sua relevância para a vida social.
Embasados nos trabalhos apresentados na RSL e nas discussões conceituais, elaboramos um guia de apoio ao trabalho docente “Cultura escrita e os multiletramentos na Educação Infantil” (Reis, 2021), destinado aos profissionais da Educação Infantil, com propostas que visam ampliar a participação das crianças na cultura escrita. Apoiados na BNCC e Currículo em Movimento, consideramos que as aprendizagens podem ser propiciadas por uma multiplicidade de linguagens (Brasil, 2017; Distrito Federal, 2018). Por meio dos campos de experiências, as crianças têm oportunidade de vivenciar novas descobertas, compreendo o mundo à sua volta e produzindo novos significados. Nesse modo de organização curricular, em uma única atividade, podem ser exploradas várias linguagens. Igualmente, todos os campos de experiências têm potencial para ampliar a participação das crianças na cultura escrita.
O(a) docente pode e deve adaptar as sugestões ao contexto no qual atua. O guia apresentado colabora para que a criança explore diferente linguagens de maneira articulada. As situações de aprendizagem propostas, a partir dos campos de experiências, têm como enfoque proporcionar à criança a participação ativa com a cultura escrita, tendo como elementos fundamentais as interações e as brincadeiras.
Considerações finais
Neste trabalho buscamos compreender os modos de aproximação e participação das crianças na cultura escrita, no contexto da Educação Infantil, destacando suas especificidades e as implicações para a prática pedagógica nesta etapa de ensino. Partimos da percepção de criança como sujeito histórico e de direito, produtora de cultura. Essa produção se realiza na interação que as crianças estabelecem com o mundo, mediada pelas diferentes linguagens. A escrita é um dos elementos dessa cultura - a criança interage com ela, procura compreendê-la e apropriar-se dela. Diante desse delineamento, consideramos que o trabalho com a linguagem escrita na Educação Infantil precisa respeitar as características da infância e promover estratégias de aprendizagem capazes de ampliar a participação das crianças na cultura escrita.
A presença constante da linguagem escrita e sua marcante influência nas sociedades contemporâneas proporcionam condições para as crianças observarem e produzirem práticas cotidianas de uso da escrita. A Educação Infantil tem importante contribuição nesse processo por oportunizar experiências que levam ao interesse pela leitura e escrita, e ao desejo em aprender a ler e escrever. Isso ocorre a partir de situações desafiadoras que possibilitam análises e reflexões das crianças.
Diante disso, sugerimos alguns pressupostos para pensar a expressão das crianças em todas as formas, na perspectiva dos multiletramentos. As múltiplas linguagens tornaram-se o caminho para a reflexão a respeito das práticas de leitura e escrita no contexto da Educação Infantil. As interações com as mídias digitais estão apontando para novas formas de participação na cultura escrita, que também está se transformando. Desse modo, na proposta pedagógica da Educação Infantil, as aprendizagens e o desenvolvimento precisam ser propiciados por uma multiplicidade de linguagens.
Observamos que grande parte das pesquisas, que abordam especificamente a Educação Infantil, apresentam uma perspectiva de participação da criança na cultura escrita e na formação de uma atitude leitora e escritora na infância. Isso corrobora com a compreensão de que o ensino e aprendizagem da leitura e escrita precisa pautar-se na função social dessa linguagem e não somente nos seus aspectos técnicos.
Nas intervenções identificadas no estudo, que apresentaram implementações na Educação Infantil, houve uma preocupação em aproximar as crianças da cultura escrita por meio de brincadeiras, atividade principal da criança. A análise desses trabalhos confirma que o trabalho com a leitura e a escrita precisa ser coerente com o universo infantil, favorecendo a construção de significados pela criança de forma lúdica. Tendo em vista que o brincar é um elemento cultural importante no processo de apropriação da linguagem escrita, pois trata-se de uma situação imaginária que permite à criança separar a ideia do objeto. Ressaltamos, ainda, a importância de pesquisas interventivas no campo da educação, pois possibilitam uma articulação mais próxima entre pesquisadores e educadores na identificação e resolução de problemas locais.
Apontamos que a RSL retornou uma limitada quantidade de trabalhos que abordam a cultura escrita na perspectiva dos multiletramentos. Somente 2 dos 40 artigos discutem a relação da linguagem escrita com digital na Educação Infantil, por exemplo. Apenas um desses trabalhos é interventivo, o que demonstra possíveis lacunas no desenvolvimento de intervenções em contextos reais, que propõem uma aproximação da cultura escrita e a digital.
Como contribuição para o trabalho pedagógico, apresentamos um guia docente destinados aos profissionais da Educação Infantil. As propostas apresentadas foram fruto das pesquisas realizadas, na literatura revisada e no material suplementar da BNCC, disponibilizado pelo Ministério da Educação. O guia pode ser lido como uma breve introdução ao tema, apontando caminhos, leituras e pesquisas complementares, instigando a aproximação de docentes à literatura recente sobre o tema.
Por fim, consideramos que, além de exercer influência na forma como a infância se constitui na sociedade contemporânea, de ser um elemento da cultura fundamental para a inserção social da criança e objeto de seu interesse, a linguagem escrita precisa ser trabalhada na Educação Infantil por meio de estratégias de aprendizagem que respeitem suas particularidades. Defendemos a perspectiva das múltiplas linguagens com as crianças, enquanto possibilidade de expressão, comunicação e participação destas na cultura escrita. Nesse entendimento, diversas possibilidades precisam ser ofertadas para a criança ler e escrever o mundo.