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Reflexão e Ação

versão On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.2 Santa Cruz do Sul maio/ago 2021  Epub 21-Set-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v29i2.16014 

Dossiê Temático: Paulo Freire e Educação Popular: cultura, metodologias, lugares e sujeitos

Intransitividade, transitividade ingênua e transitividade crítica da consciência em Paulo Freire

Intransitivity, ingenual transitivity and consciousness critical transitivity in Paulo Freire

Intransitividad, transitividad naive y transitividad crítica de la conciencia en Paulo Freire

Ana Maria Baldo1 
http://orcid.org/0000-0002-7973-1345

Elisete Enir Bernardi Garcia2 
http://orcid.org/0000-0002-1211-3059

1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS - Osório - Rio Grande do Sul - Brasil

2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil


RESUMO

Este artigo, de natureza bibliográfica, tem por objetivo analisar os conceitos de intransitividade, transitividade ingênua e transitividade crítica da consciência em Paulo Freire, utilizando para isso as obras Educação e atualidade brasileira e Educação como prática da Liberdade. Freire nos mostra os níveis de consciência existentes e os descreve enfatizando a importância da educação crítica e problematizadora no processo de transição de um nível ingênuo para um nível crítico. Podemos afirmar que há uma relação direta entre a educação, a transição para o nível de consciência crítica e a transformação humana e da sociedade.

Palavras-chave: Níveis de consciência; Educação; Paulo Freire

ABSTRACT

This article, as a bibliographic one, aims to analyze the intransitivity concepts, naive transitivity, and consciousness critical transitivity in Paulo Freire, based on Education and Brazilian News and Education as a Freedom Practice. Freire shows us the existing levels of consciousness and describes them emphasizing the importance of critical and problematized education in the transition process from a naive level to a critical level. We can affirm that there is a direct relationship between education, the level transition of critical consciousness and the human and society transformation.

Keywords: Levels of consciousness; Education; Paulo Freire

RESUMEN

Este artículo, de carácter bibliográfico, tiene como objetivo analizar los conceptos de intransitividad, transitividad ingenua y transitividad crítica de la conciencia en Paulo Freire, utilizando las obras Educación y actualidad brasileña y Educación como práctica de la Libertad. Freire nos muestra los niveles de conciencia existentes y los describe enfatizando la importancia de la educación crítica y problematizadora en el proceso de transición de un nivel ingenuo a un nivel crítico. Podemos afirmar que existe una relación directa entre la educación, la transición al nivel de conciencia crítica y la transformación humana y social.

Palabras clave: Niveles de conciencia; Educación; Paulo Freire

INTRODUÇÃO

Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam. (Paulo Freire)

No ano de 2020 iniciaram-se as comemorações do centenário de nascimento de Paulo Freire. Em 19 de setembro de 1921 nascia, em Recife, capital do Estado de Pernambuco, aquele que é considerado um dos maiores educadores e pensadores da educação no Brasil. Federico Mayor (2016, p.17), na abertura da obra coletiva organizada por Moacir Gadotti, em 1996, Paulo Freire: uma biobibliografia, nos diz que “Paulo Freire é, com sua longa e brilhante trajetória na arte de educar, uma figura lendária”. É impossível falar de educação no Brasil sem lembrar e mencionar a figura de Paulo Freire. Sua expressiva atuação e participação na educação e cultura do país tornaram suas obras conhecidas e seu nome defendido, mas, também, perseguido, o que acabou levando-o ao exílio durante o período da ditadura civil-militar vivida no Brasil. Encontrou refúgio no Chile, nos Estados Unidos da América e na Suíça. Retornou ao Brasil em junho de 1980, período de reabertura política marcado pela luta em defesa da democracia. Gerhardt (1996, p. 160-161) nos lembra que foi no exílio que Freire escreveu seus mais famosos livros: Educação como prática da liberdade e Pedagogia do Oprimido, obras onde defende uma pedagogia revolucionária que objetiva uma educação/ação consciente e a reflexão das massas oprimidas sobre a sua libertação, sobre as possibilidades de transformação de suas realidades.

Ana Maria de Araújo Freire (1996, p. 36), ao contribuir para a obra já citada Paulo Freire uma biobibliografia, descrevendo um pouco da vida do educador, afirma que, enquanto muitos representantes da sociedade buscavam soluções apenas para os problemas econômicos da época - décadas de 1950 e 1960 -, “alguns da sociedade civil se indignavam com a pobreza, as injustiças sociais e o generalizado analfabetismo de nosso povo. Freire foi um destes e assim foi se tornando, desde aquele período, o pedagogo da indignação” (Ibid., p. 36). Pedagogo da indignação e dos oprimidos, dedicou sua vida a criar uma pedagogia que enfrentasse o sistema de opressão a que as classes populares estavam submetidas. Segundo Ana Maria, (Ibid., p. 36)

Sua pedagogia continha a percepção clara da cotidianidade discriminatória da nossa sociedade até então preponderantemente patriarcal e elitista. Apontava soluções de superação das condições vigentes, avançadas para a época, dentro de uma concepção mais ampla e mais progressista: a da educação como ato político. Tudo isso era novo no Brasil que ainda reproduzia, impiedosa e secularmente, a interdição dos corpos dos desvalorizados socialmente, que, assim, viviam proIbidos de ser, ter, saber e poder. Esta natureza política da educação, antes mesmo que sua especificidade pedagógica, técnica e didática, tem sido o cerne da preocupação freireana tanto em suas reflexões teóricas quanto na sua práxis educativa. Freire forjava-se, pela práxis vivida, como pedagogo do oprimido - mesmo sem ter ainda escrito a Pedagogia do oprimido - porque partia do saber popular, da linguagem popular, da necessidade popular, respeitando o concreto deles, o cotidiano de limitações deles. Além disso, não ficando no ponto de partida, apresentava uma proposta de superação deste mundo de submissão, de silêncio e de misérias, apontando para um mundo de possibilidades.

Sabendo da relevância da obra de Paulo Freire para a educação, nacional e internacional, e considerando a data de seu centenário, nos propormos aqui a delinear alguns conceitos do autor e para tal utilizaremos duas de suas obras: Educação e atualidade brasileira (1959) e Pedagogia como prática da liberdade (1967), obras nas quais tais conceitos se encontram e são detalhados. Alguns conceitos freireanos perpassam suas obras, como o de esperançar, o de temas geradores, o de cultura popular, o de círculos de cultura, o da consciência, etc. E é exatamente o conceito de consciência em seus três estágios (intransitivo, transitivo ingênuo e transitivo crítico) que nos interessa aqui.

OS NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA EM PAULO FREIRE E A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO NA TRANSPOSIÇÃO DA CONSCIÊNCIA PARA A TRANSITIVIDADE CRÍTICA

Em Pedagogia como prática da liberdade, Paulo Freire afirma que “sem esta consciência cada vez mais crítica não será possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade em transição, intensamente cambiante e contraditória” (FREIRE, 1967, p. 56). Mas como chegar a essa consciência cada vez mais crítica? É necessário passar por fases para que isso ocorra. Essas fases não são necessariamente sequenciais, alguns nunca saem da primeira ou da segunda, mas Paulo Freire (Ibid., p. 57) nos alerta para o fato de que esta passagem

Não poderia ser feita nem pelo engodo, nem pelo medo, nem pela força. Mas, por uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel [...] Uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção.

Esses níveis de consciência trazidos por Paulo Freire, de intransitividade, transitividade ingênua e transitividade crítica da consciência, permitem reconhecer que daqui parte toda sua construção pedagógica baseada na ideia de uma educação problematizadora, conscientizadora e transformadora. Já em 1959, ao apresentar sua tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação, na História de Belas Artes de Pernambuco, o educador inicia seus estudos e escritos sobre a temática da consciência e de seus estágios. Beisiegel (2010, p. 29) afirma que nessa tese de concurso encontram-se as melhores referências sobre as primeiras orientações de Paulo Freire em seus estudos sobre as relações entre o homem, a educação e a sociedade. Em Educação e atualidade brasileira, Paulo Freire afirma a importância de se estudar a consciência do homem brasileiro em seus diversos níveis. Nessa obra, o educador realiza o primeiro esboço dos níveis de consciência que posteriormente foram aprofundados e melhor esclarecidos em Educação como prática da liberdade.

Beisiegel (2010) nos diz que Paulo Freire demonstra em Educação e atualidade brasileira que as possibilidades do homem se definem e encontram limitações no interior de uma realidade histórica e social determinada. E, descrevendo a ideia do educador, afirma que “a formação e o desenvolvimento dessa consciência, por sua vez, dependiam do mergulho do homem na sua própria realidade, impunham o comprometimento com sua circunstância” (Ibid., p. 30). Para que o homem seja plenamente humanizado e possa determinar suas condições de existência é preciso que ele passe pelo refinamento da consciência, o que só pode ocorrer, “no âmbito do crescente comprometimento do homem com a sua realidade” (Ibid., p. 30). E é exatamente aqui que se situa a educação como processo de conscientização para Paulo Freire. Luiz Gilberto Kronbauer, ao definir o conceito de consciência para Paulo Freire na obra Dicionário Paulo freire, afirma que Paulo Freire propõe “uma forma de educação que propicie a reflexão radical, a reflexão sobre o próprio poder de refletir e que leva à liberdade de decisão” (KRONBAUER, 2018, p. 102), analisando os estágios da consciência e os graus de compreensão da realidade do homem.

Paulo Freire afirma que no estágio de intransitividade o homem se foca apenas em preocupações mais vitais, possuindo uma apreensão fechada de sua vida e sociedade e preso a interesses estritos. Essa postura pode ser caracterizada pela quase centralização dos interesses do homem pelo que o circunscreve e esses interesses giram em torno de modos mais vegetativos de vida, sendo a postura mais comum dos homens de zonas pouco ou nada desenvolvidas do país (FREIRE, 1959). Kronbauer (2018, p. 103) demostra que, para Paulo Freire, “a consciência intransitiva é o grau de consciência característico das sociedades fechadas, cujos indivíduos não ultrapassam o horizonte biológico de sua forma de vida”. Em Educação e atualidade brasileira, o educador nos diz que “é uma consciência que não percebe nem pode perceber, claramente pelo menos, o que há nas ações humanas de respostas a desafios e questões que a vida apresenta ao homem” (FREIRE, 1959, p. 30). Kronbauer (2018, p. 103) afirma que “é a consciência dos seres humanos cuja vida é mera biologia, que ainda não se fez biografia.” O autor ainda diz que Paulo Freire “denomina de intransitividade da consciência a condição do ser humano que está imerso em sua realidade e que ainda não tem a capacidade de objetivá-la” (Ibid., p. 103).

Em Educação como prática da liberdade, Paulo Freire (1967, p. 58) reafirma esse pensamento e o complementa dizendo que

Suas preocupações se cingem mais ao que há nele de vital, biologicamente falando. Falta-lhe teor de vida em plano mais histórico [...] essa forma de consciência representa um quase incompromisso entre o homem e sua existência. Por isso, adstringe-o a um plano de vida mais vegetativa. Circunscreve-o a áreas estreitas de interesses e preocupações.

Para esse homem intransitivamente consciente a apreensão de problemas que ocorrem além do espaço vital em que se encontra é quase nula. Entretanto, Paulo Freire esclarece que esse conceito não corresponde a “um fechamento do homem dentro dele mesmo [...] o homem, qualquer que seja seu estado, é um ser aberto” (FREIRE, 1967, p. 59). O que Paulo Freire pretende ao constituir a consciência intransitiva é demonstrar que o que limita esse homem é sua esfera de compreensão para além desse seu espaço e sua dificuldade em reconhecer os desafios postos fora deste. “Neste sentido, e só nesse sentido, é que a intransitividade representa um quase incompromisso do homem com sua existência” (Ibid., p. 59). Essa visão reduzida e cerceada acaba por fazer com que esse homem acredite em causalidades mágicas em detrimento da causalidade autêntica dos fatos e da realidade.

Entretanto, à medida que vai se abrindo a novas possibilidades de diálogos, seja com outros homens, seja com a sociedade e com o mundo, se transitiva; sua consciência avança uma etapa e o homem começa a perceber sua realidade para além de seu antigo espaço. “Seus interesses e preocupações, agora, se alongam a esferas mais amplas do que à simples esfera vital” (FREIRE, 1967, p. 58). Kronbauer (2018, p. 103) lembra que

potencialmente, enquanto dotado de sua força intencional, de sua tendência para transcender, a consciência humana continua aberta, podendo superar gradativamente a intransitividade e ampliar seu campo de percepção. Pode ampliar o seu poder de captação e de resposta às questões do seu mundo e a sua capacidade de diálogo com os outros no mundo, até alcançar outro nível: o da consciência transitiva.

Essa transitividade, porém, se funde em dois níveis: ela se faz inicialmente de forma preponderantemente ingênua e só após um processo de conscientização - detalhado no decorrer do texto - chegará à transitividade crítica de sua consciência. Quanto à transitividade ingênua, Paulo Freire (1967, p. 59) assim a define:

A transitividade ingênua, fase em que nos achávamos e nos achamos hoje nos centros urbanos, mais enfática ali, menos aqui, se caracteriza, entre outros aspectos, pela simplicidade na interpretação dos problemas. Pela tendência a julgar que o tempo melhor foi o tempo passado. Pela subestimação do homem comum. Pela impermeabilidade à investigação, a que corresponde um gosto acentuado pelas explicações fabulosas. Pela fragilidade na argumentação. Por forte teor de emocionalidade. Pela prática não propriamente do diálogo, mas da polêmica.

Percebe-se aqui que há uma evolução do nível de consciência intransitiva para a transitiva ingênua que ainda tende à massificação, que não prioriza o diálogo e a investigação; ainda não é uma inquietação que se faz crítica. Beisiegel (2010) afirma que a consciência transitiva ingênua é a consciência da existência bruta, articulada com coisas, transcorrendo no nível das coisas e por isso destituída de destituída de subjetividade e perspectiva histórica. O homem ainda segue buscando explicações não racionais para os fatos ocorridos. Paulo Freire (1967, p. 62) afirma que a transitividade ingênua se caracteriza

Pelas explicações mágicas. Esta nota mágica, típica da intransitividade, perdura, em parte na transitividade. Ampliam-se os horizontes. Responde-se mais abertamente aos estímulos. Mas se envolvem as respostas de teor ainda mágico. É a consciência do quase homem-massa, em quem a dialogação mais amplamente iniciada do que na fase anterior se deturpa e se distorce.

Kronbauer (2018, p. 104) diz que a consciência transitiva ingênua já percebe a contradição social, entretanto ainda se move nos limites do conformismo, adotando explicações fabulosas para os fenômenos que vivencia. “Ela não é capaz do pensamento autônomo porque não se arrisca na investigação pelas verdadeiras causas e, por isso mesmo, não é capaz de se aventurar na direção da mudança. É o tipo de consciência dependente, que transfere para os outros a para as instituições a responsabilidade pela solução dos problemas” (Ibid., p. 104)

Para Paulo Freire, esse é o grande perigo. A busca por explicações de teor mágico, essa distorção que, se não promovida à fase de transitividade crítica, leva o homem ao fanatismo e ao irracionalismo, diminuindo ou mesmo fazendo desaparecer o diálogo e fazendo com que este homem, ainda que assim se acredite, deixe de ser verdadeiramente livre. “Seu gosto agora é das fórmulas gerais, das prescrições, que ele segue como se fossem suas. É um conduzido, não conduz a si mesmo” (FREIRE, 1967, p. 63). Eis que aqui o homem é nada mais que objeto, manipulado e condicionado, mesmo que se creia sujeito de sua vida; o homem fanático não possui a criticidade necessária para ver além das explicações mágicas, para encontrar a verdadeira causalidade dos fatos. Para ver além ele precisa da transitividade crítica, que tem como principal característica a criticidade na interpretação e na busca de resolução dos problemas. “A transitividade crítica [...] a que chegamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas” (Ibid., p. 60).

Nesta fase, segundo o educador, se substituem as explicações mágicas por explicações causais, realistas e racionais. Essa fase é caracterizada também, segundo Paulo Freire (1967, p. 60)

Por procurar testar os “achados” e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidades. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo, e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo, e pela não recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições.

A consciência transitiva crítica é caracterizada ainda “pelo desprender-se ativo das coisas, pela aquisição de liberdade diante delas, pela historicidade” (BEISIEGEL, 2010, p. 31). Kronbauer (2018, p. 104) afirma que a transitividade crítica “caracteriza-se pela profundidade com que interpreta os problemas e pelo engajamento sociopolítico”. Chegando a um ponto importante que Paulo Freire destaca acerca da transitividade crítica, que é o de que esta seria a etapa que retomaria a matriz da verdadeira democracia. Para ele, a transitividade crítica é característica dos autênticos regimes democráticos e das formas de vida altamente interrogadoras, inquietas e dialogais, em oposição às formas de vida e regimes autoritários (FREIRE, 1967). “A responsabilidade por seus atos, a atitude argumentativa dialógica e a receptividade diante do novo são características suas” (KRONBAUER, 2018, p. 104).

Apresentadas as principais características dos três estágios a que nos dispomos refletir aqui, perguntamos: como se dá o processo de transição entre essas fases? E buscamos novamente em Paulo Freire as respostas. Em Educação como prática da liberdade, o autor afirma que a passagem da consciência intransitiva para a transitiva ingênua se dá paralela à transformação dos padrões econômicos da sociedade, conforme se intensifica o processo de urbanização e o homem se vê lançado em formas de vida mais complexas. Um circuito maior de relações, um recebimento de maior número de sugestões e desafios, acaba por levar o homem a transpor a intransitividade de sua consciência e se começa a verificar nele a transitividade, ainda aqui ingênua.

Essa transição, da intransitividade para a transitividade ingênua, se dá de forma quase que natural e automática quando esse homem é colocado diante de uma conjuntura que lhe exija um maior número de relações, entretanto como se dá a transição da fase de transitividade ingênua da consciência para a fase de transitividade crítica? É em Paulo Freire também que encontramos essa resposta. O autor afirma que essa passagem, essa transição, é o passo decisivo: ela não se dá automaticamente, “mas somente por efeito de um trabalho educativo crítico com esta destinação” (FREIRE, 1967 p. 61). Somente através da educação se consegue transpor a transitividade ingênua da consciência e chegar à transitividade crítica dela. É necessário, porém, observar que esta educação deve ter por interesse essa transposição, não pode se tratar de uma educação que tenha por objetivo manter a ingenuidade. Essa consciência transitiva crítica surge quando o homem, ao refletir, pode agir diante da realidade como sujeito, ativo e participante. Beisiegel (2010) observa que, para Paulo Freire, essa consciência, intransitiva e crítica, não resulta diretamente da transformação de infraestrutura, como na transição da intransitividade para a transitividade ingênua. Segundo Paulo Freire (1959) é preciso que esta educação seja uma educação que possibilite ao homem uma discussão corajosa de sua problemática, de sua inserção nessa problemática e que o coloque em constante diálogo com o outro; “que o predisponha a constantes revisões [...] a uma certa rebeldia no sentido mais humano da expressão. Que o identifique com métodos e processos científicos” (Ibid., p. 33). E afirma com veemência que não há como conceber uma educação que leve o homem ao quietismo, que não o torne consciente de sua transitividade, que não acentue nele cada vez mais a racionalidade. Tendo consciência de que a educação, não qualquer educação, mas uma educação crítica e problematizadora, seria o necessário para a transição da fase de transitividade ingênua para a fase de transitividade crítica da consciência, por que esta não acontece com a facilidade esperada? Novamente Paulo Freire traz as respostas.

Ao escrever sobre a ascensão da transitividade ingênua para a transitividade crítica da consciência, Paulo Freire (1967, p. 63) nos diz que

Exatamente porque, significando esta ascensão uma inserção do homem na sua problemática e a sua capacidade de optar, as ameaças aos privilégios se fariam maiores, como maior a sua capacidade de rejeitar prescrições. [...] e o crime dos que se engajavam neste esforço era o de crerem no homem, cuja destinação não é coisificar-se, mas humanizar-se.

Nega-se ao homem a possibilidade de, através do diálogo e da educação, transcender de fase, passar a conceber sua própria vida e a sociedade em que está inserido com um olhar mais crítico e problematizador. Impede-se o processo de transição que seria capaz de fazer a transformação mesma da sociedade. Paulo Freire utiliza o modelo da produção em série como exemplificação de uma forma de manutenção do homem na transitividade ingênua. Freire (1959, p. 37) afirma que

A produção em série, como organização do trabalho humano é, possivelmente, um dos mais instrumentais fatores de massificação do homem no mundo altamente técnico atual. Ao exigir dele comportamento mecanizado pela repetição de um mesmo ato, com que realiza uma parte apenas da totalidade da obra, de que se desvincula, “domestica-o”. Não exige atitude crítica total diante de sua produção. Desumaniza-o. Corta-lhe os horizontes com a estreiteza da especialização exagerada. Faz dele um ser passivo. Medroso. “Ingênuo”. [...] Toda prática, então, de que possa resultar a amenização da ruptura entre o homem e a sua obra, característica da produção em série, ajudará incontestavelmente a preservar a transitivação da consciência.

Diminuindo a responsabilidade do homem pelo todo, e o colocando estritamente ambientado com uma atividade específica no seu trabalho, acabam por desumanizá-lo e massificálo. Dificultando assim, ou até mesmo impedindo, a transição para a fase crítica de sua consciência. Aliada a uma educação que Paulo Freire descreve como palavrosa, se tornam, a produção em massa e a educação palavrosa, a combinação perfeita para que se emperre ou mesmo anule o processo de passagem para a transitividade crítica. Paulo Freire (1959, p. 42) afirma que há a insistência em uma educação falsamente humanista, academicamente oca, verbalista e palavrosa, autoritariamente indiferente ao que nos cerca. Além disso, Freire (1967, p. 86) demonstra que

Na medida, porém, em que as classes populares emergem, descobrem e sentem esta visualização que delas fazem as elites [...] estas elites, assustadas, na proporção em que se encontram na vigência de seu poder, tendem a silenciar as massas populares, domesticandoas com a força ou com soluções paternalistas. Tendem a travar o processo, de que decorre a emersão popular, com todas as suas consequências.

Como ultrapassar essa barreira? Paulo Freire afirma que “não será e não vem sendo, com uma educação quase exclusivamente centrada no verbo, no livro, no programa” (FREIRE, 1959, p. 42), que é necessária uma educação que tenha outro sentido. Para o educador (Id., 1967, p. 93).

Daí a necessidade de uma educação corajosa, que enfrentasse a discussão com o homem comum, de seu direito à participação. De uma educação que levasse o homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço. A da intimidade com eles. A da pesquisa em vez da mera, perigosa e enfadonha repetição de trechos e de afirmações desconectadas das suas condições mesmas de vida.

Uma educação que parta e se sustente na realidade do homem comum, na sua própria vida e espaço. Uma educação que problematize. Uma educação que se faça crítica. Uma educação que se faça ação. E quanto a isso Paulo Freire (1967, p. 94) afirma que

Não há nada que mais contradiga e comprometa a emersão popular do que uma educação que não jogue o educando às experiências do debate e da análise dos problemas e que não lhe propicie condições de verdadeira participação. [...] educação que se perca no puro bacharelismo, oco e vazio [...] ela é verbosa. Palavresca. É “sonora”. É “assistencializadora”. Não comunica. Faz comunicados, coisas diferentes.

E afirma enfaticamente que não seria com essa educação desvinculada da vida, centrada na palavra esvaziada de realidade, pobre de atividades em que o educando se sinta sujeito e problematize, que se chegaria à transição da transitividade ingênua para a transitividade crítica de sua consciência (FREIRE, 2020, p. 125). E nesse mesmo sentido, Paulo Freire (1967, p. 97) ainda nos diz que “nada ou quase nada existe em nossa educação que desenvolva em nosso estudante o gosto da pesquisa, da constatação, da revisão dos achados - o que implicaria o desenvolvimento da consciência transitivo-crítica”, pelo contrário “a sua perigosa superposição à realidade intensifica no nosso estudante a sua consciência ingênua” (Ibid., p. 97). Para o educador “a própria posição da nossa escola, de modo geral acalentada ela mesma pela sonoridade da palavra, pela memorização dos trechos, pela desvinculação da realidade, pela tendência a reduzir os meios de aprendizagem às formas meramente nocionais, já é uma posição caracteristicamente ingênua (Ibid., p. 97).

É preciso uma educação que seja capaz de auxiliar o homem em uma ação reflexiva de sua existência, de seus problemas e de seu espaço. É necessária uma “educação que lhe pusesse à disposição meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica” (FREIRE, 1967, p. 107). Porque só a consciência transitivamente crítica é capaz de produzir no homem a ciência necessária para que este se transforme e transforme a sua realidade. Gerhard (1996, p. 161) destaca a intenção de Paulo Freire com a educação, afirmando que tinha como foco a libertação em relação aos mecanismos opressores das classes dominantes e que “os objetivos da educação constituem, [...] a facilitação de uma transformação radical da estrutura social” (Ibid., p. 161) E para que essa educação se concretize é imprescindível que os educadores e educadoras se comprometam com a problematização e criticização da construção do saber com seus educandos e educandas.

Corrobora com a nossa análise a obra Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática docente, Paulo Freire (2020) que centraliza seu texto em torno dos saberes que ele crê necessários para a prática docente de educadores e educadoras críticas, progressistas - também necessários aos educadores e educadoras conservadores. “Saberes demandados pela prática educativa em si mesma, qualquer que seja a opção política do educador ou educadora” (FREIRE, 2020, p. 23). E esses saberes partem do princípio de “reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a história é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro [...] é problemático e não inexorável” (Ibid., p. 20).

Nos permitimos, aqui, delinear um passo a passo que acreditamos seja um possível caminho para auxiliar os homens e mulheres a transporem a consciência transitivamente ingênua, e para isso nos centramos no papel dos educadores e educadoras nesse processo. O primeiro passo para que se possa transpor a transitividade ingênua é o reconhecimento, por parte dos educadores e educadoras, de que é possível fazer acontecer essa transposição. Reconhecer, como foi citado acima, que a mudança é viável e que existem possibilidades; que mesmo estando condicionados a permanecer na ingenuidade, temos a capacidade de transformação e superação. O segundo passo para a transposição da transitividade ingênua é assumir-se como sujeito também da produção do saber; o convencimento de que ensinar não é transferir conhecimento, mas sim criar as possibilidades para que este seja produzido ou construído (FREIRE, 2020, p. 24). O terceiro passo seria compreender que é imperativo que educadores e educadoras se façam críticos e recusem o ensino bancário, pois o educando e a educanda submetidos a ele estão fadados ao fracasso ao terem deformada sua criatividade (Ibid., p. 27). O quarto passo para transpor a ingenuidade se dá no respeito ao saber que os educandos e educandas trazem consigo quando chegam à escola, saberes esses muitas vezes sem rigor científico e pertencentes ao senso comum; é preciso que haja respeito por esses saberes no processo de sua necessária superação e, o estímulo para essa superação (Ibid., p. 31). E, por fim, é necessário que a docência verdadeira não esteja/seja alheia ao exercício da criticidade, que reconheça “o valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade” (Ibid., p. 46).

A chegada à transitividade crítica exige uma docência democrática, que estimule e motive a capacidade dos educandos e educandas de refletirem e se perceberem sujeitos capazes; que demonstre que é necessário superar o senso comum e iniciar um processo de construção do conhecimento que seja baseado na rigorosidade metódica, sem explicações fabulosas ou mágicas; que creia e faça crer na possibilidade e realidade da transformação, que desfaça a visão de que isso seria utopia e construa com os educandos e educandas os caminhos possíveis e necessários para a mudança. É preciso entender que “formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas” (FREIRE, 2020, p. 16).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que a passagem da transitividade ingênua para a crítica exige um esforço grande por parte dos educadores. Somente a transposição da ingenuidade para a criticidade é capaz de evitar que o homem se massifique. Somente a educação, a verdadeira educação problematizadora, crítica e libertadora, pode dar as ferramentas necessárias para essa transposição. “Somente um método ativo, dialogal, participante, poderia fazê-lo” (FREIRE, 1967, p. 111). Uma educação baseada no diálogo, que respeite, se crie e faça prevalecer a realidade do homem comum, que seja empática, humana, esperançosa e amorosa, poderá vencer estas barreiras.

Precisamos de uma educação que derrote o desamor, o antidiálogo, a submissão. Uma educação que leve à mudança de atitude, que nos tire da passividade e nos torne participativos e ativos, atuantes, que nos desvincule das antigas constatações mágicas e nos coloque em contato direto com a causalidade verdadeira dos fatos. Que nos faça perceber a opressão, a submissão e a exclusão. E através dessa nova consciência, a transitiva crítica, problematizar a situação em que nos encontramos e buscar a transformação dessa realidade.

Ou, nas palavras mesmas de Paulo Freire (1967, p. 98) “estávamos convencidos, e estamos, de que a contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade [...] haveria de ser a de uma educação crítica e criticizadora”. Ou seja, “uma educação que tentasse a passagem da transitividade ingênua para a transitividade crítica” (Ibid., p. 98). Só assim transporemos o estágio da ingenuidade e transformaremos nossa realidade, modificaremos nossa sociedade, e teremos a verdadeira coletividade, com justiça e igualdade social.

Este texto se inicia com as palavras do pensador, educador e intelectual brasileiro que no ano de 2021 completa seu centenário: Paulo Freire. Também, este texto, se encerra com algumas palavras dele que parecem se encaixar no pensamento aqui exposto. Paulo Freire (2019, p. 66-67) nos deixa mais esse ensinamento sobre a educação, que:

Não podendo ser neutra, tanto pode estar a serviço da decisão, da transformação do mundo, da inserção crítica nele, quanto a serviço da imobilização, da permanência possível das estruturas injustas, da acomodação dos seres humanos à realidade tida como intocável. Por isso, falo da educação ou da formação. Nunca do puro treinamento. Por isso, não só falo e defendo mas vivo uma prática educativa radical, ou das razões de ser dos fatos. E compreendendo facilmente como uma tal prática não pode ser aceita, pelo contrário, tem de ser recusada, por quem tem, na maior ou menor permanência do status quo, a defesa de seus interesses. Ou por quem, atrelado aos interesses dos poderosos, a eles ou a elas serve. Mas, porque, reconhecendo os limites da educação, formal e informal, reconheço também a sua força, assim como porque constato a possibilidade que têm os seres humanos de assumir tarefas históricas, que volto a escrever sobre certos compromissos e deveres que não podemos deixar de contrair se nossa opção é progressista [...] o nosso testemunho, pelo contrário, se somos progressistas, se sonhamos com uma sociedade menos agressiva, menos injusta, menos violenta, mais humana, deve ser o de quem, dizendo não a qualquer possibilidade em face dos fatos, defende a capacidade do ser humano de avaliar, de comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir no mundo.

Se o mundo que queremos é o da transitividade crítica das consciências é necessário que essas palavras de Paulo Freire, que finalizam este texto, sejam lidas e se façam reflexão e ação, principalmente ação, para que seja possível para educadores, educadoras, educandos e educandas, intervirem no mundo.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 27 de Novembro de 2020; Aceito: 27 de Abril de 2021

Ana Maria Baldo Mestranda em Mestrado Profissional em Educação - PPGEDU UERGS. Membro do Grupo de Pesquisa Observatório da Educação do Campo, vinculado à UFRGS; Membro do Grupo de Pesquisa GIPEJA - Grupo interdisciplinar de pesquisas em Educação de Jovens e Adultos e Educação Popular: direito, políticas públicas e processos educacionais. Cadastrado no CNPQ

Elisete Enir Bernardi Garcia Doutora em Educação pela UNISINOS. Atua também como colaboradora no Programa de PósGraduação em Educação na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS, Campus OsórioRS. Coordenadora/líder do Grupo de Pesquisa: GIPEJA - Grupo interdisciplinar de pesquisas em Educação de Jovens e Adultos e Educação Popular: direito, políticas públicas e processos educacionais. Cadastrado no CNPQ

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