Introdução
A relação do ser humano com o meio ambiente é tão antiga quanto a própria história evolutiva da espécie. Estudos antropológicos demonstram a indissociabilidade entre natureza e cultura no surgimento da espécie humana (GEERTZ, 2011), todavia, quando a relação entre ser humano e meio ambiente é colocada em pauta na contemporaneidade não se está pensando no ambiente biofísico de um modo genérico, mas a partir da questão social que envolve a noção nomeada de “meio ambiente”.
As Revoluções Industriais, com início em fins do século XVIII, transformaram as relações da sociedade ocidental com a produção de mercadorias, aumentando exponencialmente a capacidade de transformação da natureza. O modo de produção industrial grassou pelo globo nos séculos seguintes, atingindo a produção de alimentos de forma marcada em meados do século XX, por meio da chamada Revolução Verde.
Esses são os principais marcos históricos, com incontáveis decorrências, que convergiram para o surgimento do movimento ambientalista na segunda metade do século XX. Esse movimento nasce no bojo das lutas sociais por maior equidade, justiça de gênero e paz (PORTO-GONÇALVES, 2008). Assim, pode-se perceber que a questão ambiental contemporânea emerge em um contexto de reinvindicação de uma transformação da relação dos seres humanos com a natureza, e dos seres humanos com os seres humanos.
A Educação Ambiental surge na interface da esfera ambiental e educacional nesse contexto, fora da escola, e vem se configurando como campo de pesquisas no Brasil há décadas. Nesses movimentos, é reconhecida a polissemia da expressão “meio ambiente” e, consequentemente, uma multiplicidade de perspectivas educacionais que podem estar associadas a essa temática. Diversos autores propõem categorias para se compreender os movimentos do campo, sugerindo um surgimento - ou estágio inicial - da Educação Ambiental atrelado a concepções mais naturalistas e restritas de meio ambiente, e correntes mais recentes marcadas por concepções mais amplas e complexas da realidade ambiental - incluindo elementos políticos e econômicos (SILVA; CAMPINA, 2011; SAUVÉ, 2005).
Como destaca Pádua (2010, p. 83), apesar de a relação ser humano e meio ambiente ser ubíqua ao longo da história, “o tema da capacidade de ação humana para degradar, ou mesmo destruir, o mundo natural é essencialmente moderno”. É nessa questão nodal que estão localizados os objetivos das diversas correntes de educação ambiental. Sauvé (2005, p. 40) afirma que o objetivo principal de uma Educação Ambiental naturalista é “reconstruir uma ligação com a natureza”, já o de uma abordagem conservacionista seria “adotar comportamento de conservação” e “desenvolver habilidades relativas à gestão ambiental”.
Assim, muitas são as possibilidades da intencionalidade educativa da Educação Ambiental, dependendo de seu pano de fundo epistemológico e sócio-histórico. Todavia, para não homogeneizar a percepção e a discussão dessa questão ambiental contemporânea, é necessária a relativização das idiossincrasias para se pensar a relação humana com seu ambiente. Ao se abordar a questão de modo genérico, é subentendido que se fala da sociedade ocidental contemporânea e seu sistema econômico como moderador de sua relação ambiental. Contudo, a humanidade não é um bloco monolítico de modos de vida, e as ciências sociais e ambientais reconhecem o valor de se atentar às idiossincrasias de cada grupo social (WHITAKER; BEZZON, 2006).
O Brasil abriga diversos povos e comunidades considerados tradicionais. Esses grupos humanos e seus modos de vida figuram nas esferas da política, gestão e educação ambiental com destaques a suas relações com o meio que os cerca e os saberes que acumulam historicamente na íntima relação com o meio natural. Segundo o artigo 3º da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (BRASIL, 2007), povos e comunidades tradicionais são:
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Um dos povos tradicionais reconhecidos no Brasil são os ribeirinhos da Amazônia, também chamados de caboclos amazônicos (DIEGUES; ARRUDA, 2001). Esse povo está presente em grande parte do bioma amazônico, e tem seus modos de vida marcados pelas relações com os rios e corpos d’água. Esta pesquisa desenvolveu-se em uma Reserva Extrativista da Amazônia localizada no estado de Rondônia, na qual os moradores possuem modos de vida característico dos povos ribeirinhos da Amazônia, e os participantes foram moradores que frequentam a escola local. A pergunta que motivou a investigação foi: como moradores da Reserva Extrativista do Lago do Cuniã compreendem e avaliam sua relação com o meio ambiente?
Assim, o objetivo foi o de melhor compreender a relação dos moradores da Reserva Extrativista do Lago do Cuniã com seu meio ambiente. Para este artigo, todavia, soma-se a esse objetivo o de utilizar os dados da pesquisa para tecer reflexões sobre/para/com o campo da Educação Ambiental brasileira, tensionando questões muitas vezes negligenciadas ou, ideologicamente, naturalizadas.
As Reservas Extrativistas são uma categoria de Unidade de Conservação da Natureza do Brasil. Ou seja, fazem parte dos instrumentos da política ambiental nacional, e surgiram da iniciativa do movimento dos seringueiros de luta pelo seu direito de permanência e usufruto do território e reprodução de seus modos de vida.
A Reserva Extrativista do Lago do Cuniã é um emblema nesse movimento de lutas ambientalistas pela preservação da floresta em pé e a valorização do modo de vidas dos povos da floresta. Foi por meio de muita articulação social que seus moradores puderam ter garantida sua possibilidade de permanecer no território e contar com uma presença diferenciada do Estado na gestão dessas terras (VALDANHA NETO; WHITAKER; VASCONCELOS, 2018).
Atualmente a Reserva tem apenas uma escola em seu interior. A instituição é vinculada à prefeitura municipal de Porto Velho e atende às séries iniciais e finais do Ensino Fundamental. São cerca de 120 alunos, sendo 60 no período matutino, que contempla alunos do 1º a 5º ano, e, no período vespertino há 60 alunos do 6º a 9º ano do Ensino Fundamental1. Questionar a relação ambiental de pessoas que vivem, há gerações, no interior de uma Unidade de Conservação da Natureza, na maior floresta tropical do mundo, é caracterizar o universo investigativo com nuances que podem fomentar o campo de estudo interdisciplinar das ciências ambientais.
Metodologia
O embasamento que sustentou a investigação foi a pesquisa qualitativa em educação, e mais especificamente o Estudo de Caso. A delimitação do caso com base em singularidades é necessária para uma melhor caracterização da realidade estudada e considerações sobre suas possibilidades de generalizações dos resultados da pesquisa (STAKE, 1994). Nesse sentido, as fronteiras do caso estão delimitadas mediante a caracterização cultural, política e geográfica dos sujeitos participantes com relação à temática investigada.
A pesquisa de campo foi desenvolvida no mês de julho de 2013. Foram realizados diversos movimentos de aproximação com moradores locais com vistas ao aprendizado sobre a realidade local e também com vistas ao desenvolvimento de uma pesquisa que estivesse relacionada com os diálogos tecidos ao longo do mês. A coleta de dados foi realizada com 24 estudantes da comunidade enquanto frequentavam aulas das séries finais do Ensino fundamental na escola da Reserva2. A idade dos participantes teve ampla variação em decorrência de diversos estudantes serem já adultos.
Os dados foram coletados por meio da aplicação de questionário estruturado, as respostas foram escritas pelos próprios sujeitos e transcritas pelos pesquisadores. Marconi e Lakatos (2010) destacam que a utilização de questionário apresenta várias vantagens, como: obtém respostas mais rápidas e mais precisas, há maior liberdade nas respostas em razão do anonimato e há menos risco de distorção pela não influencia do pesquisador.
Conforme é de praxe para a pesquisa qualitativa, foi realizada uma triangulação de técnicas de coleta de dados para possibilitar uma maior aproximação com a totalidade da realidade estudada e, neste caso, permitiu também compreender que foi preciso “analisar as diferenças [entre as evidências] para enxergar significados múltiplos e importantes” (STAKE, 2011, p. 139). Os questionários foram o principal instrumento explorado, triangulado com observações diretas da realidade e conversas informais.
A aplicação do questionário aconteceu no período de aula, separadamente em cada turma de alunos e na própria sala de aula. Antes de entregar o questionário, foi realizada leitura de cada questão para os participantes e disponibilizado o tempo necessário para que os pudessem responder aos questionamentos. Na ocasião de manifestação de dúvida por algum participante, este era assistido individualmente, evitando constrangimento. Não foi necessário o exercício da função de escriba, uma vez que todos os alunos puderam responder de forma autônoma o questionário. Vale ressaltar que os alunos não fizeram a leitura de suas respostas em voz alta, uma vez que utilizaram o registro escrito, sendo assim preservadas suas ideias acerca da temática abordada.
Como diversas respostas foram semelhantes, foram elencadas algumas mais representativas para cada eixo de análise. Os eixos foram criados com relação direta às questões colocadas, o primeiro eixo é “relação comunitária com o meio ambiente”, o segundo é “relação individual com o meio ambiente” e o terceiro é “a importância ambiental”. Eles foram criados referentes às seguintes questões, respectivamente: “Como é a relação das pessoas da sua comunidade (pais, irmãos, vizinhos, amigos entre outras) com o meio ambiente? Apresente alguns exemplos para ilustrar essa relação.”, “Como é a sua relação com o meio ambiente?”, e “Qual é a importância do meio ambiente na sua vida, ou seja, no seu dia a dia?”. Conforme representado no Quadro 01.
Eixo de análise | Questão correspondente |
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Relação comunitária com o meio ambiente | Como é a relação das pessoas da sua comunidade (pais, irmãos, vizinhos, amigos entre outras) com o meio ambiente? Apresente alguns exemplos para ilustrar essa relação. |
Relação individual com o meio ambiente | Como é a sua relação com o meio ambiente? |
A importância ambiental | Qual é a importância do meio ambiente na sua vida, ou seja, no seu dia a dia? |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Resultados e primeiras análises
Os resultados representativos de cada eixo serão apresentados por meio de quadros. Com relação ao eixo “Relação comunitária com o meio ambiente”, foram selecionadas sete respostas representativas para análise e discussão, apresentadas no Quadro 02.
Participante | Idade | Resposta |
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Camila | 14 anos |
Eles cuidam do Meio Ambiente, por exemplo não deixam lixo no quintal. Quando tem festa todos limpam o quintal e não deixam plásticos, garrafas, pratos, papéis no quintal. Todos limpam. Não jogar lixo no lago. Mas quando vem barco de Porto Velho muitas pessoas jogam no lago. Quando dá, nós do lago recolhemos o lixo e jogamos no lixo. |
José | 49 anos | Pois falta bom senso em algumas pessoas pois não fazem pelo menos um buraco para queimar os produtos descartáveis como sacos plásticos, garrafas plásticas etc. |
Jane | 14 anos | A relação da comunidade do meu pai e irmão, vizinho e amigo, nós cuidamos da natureza, dos peixes. Não pegamos peixes pequenos, não jogamos lixo no rio e nem no quintal de casa e não queimamos a floresta e não matamos os passarinhos. Para mim isso é muito importante. |
Diogo | 37 anos | É muito boa, porque nós cuidamos da natureza preservamos tudo que nela existe, por que é dela que nós precisamos para sobreviver. |
Rosa. | 16 anos | As pessoas preservam a natureza e o meio ambiente, muito lixo a pessoas queimam, algumas pessoas não queimam. As pessoas que queimam o lixo preservam o meio ambiente, e outras só querem destruir o meio ambiente. |
Vinícius. | 12 anos | Legal. Minha vó varre todo o lixo do quintal direto. Minha mãe não gosta de sujeira. |
Jhonatan | 16 anos | Em relação à comunidade onde eu moro na minha opinião nós que moramos no lago do Cuniã todos nós estamos de parabéns temos uma floresta linda sem desmatamento um lago limpo sem poluição e nós respiramos um ar puro sem poluição. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
As repostas ao questionamento demonstram que os moradores estão atentos às questões ambientais locais e consideram que os comunitários têm uma boa relação com seu meio circundante. É mencionada a questão dos resíduos sólidos, recorrente quando o tema ambiental é abordado na Reserva (GOMES; VALDANHA NETO; PLATZER, 2015). O cuidado aos resíduos sólidos não é apresentado apenas como uma preocupação da gestão ambiental, mas também da estética do ambiente, pois a “sujeira” incomoda a percepção do meio - e é notória a valorização estética da paisagem pelos moradores: “temos uma linda floresta”.
Sobretudo a relação local com o ambiente é apontada como de cuidado coletivo e prudência com a destinação dos resíduos. Apesar de estar presente o contraditório, apontando a ausência de consenso sobre o ponto, permanece o tom positivo. No entanto, é ventilada a denúncia aos turistas que vão à Reserva e demonstram menos cuidado com o descarte de seus resíduos.
É destacada a prática de queima do lixo. A Reserva não é atendida pelo Estado na coleta de resíduos, portanto, sua alternativa menos danosa ao meio é a queima de resíduos sólidos realizada de maneira controlada em valas cavadas no chão em lugares específicos.
Ademais, Jane destaca a questão da pesca controlada segundo os saberes dos ciclos naturais. Ao não retirar peixes imaturos das águas, garante-se que poderão atingir a idade adulta e procriar, mantendo a população desses animais e a oferta de alimento para os comunitários - que têm no pescado sua principal fonte de proteínas.
O Quadro 03 destaca as afirmações concernentes ao segundo eixo de análise, que diz respeito à relação individual dos sujeitos com o meio ambiente.
Participante | Idade | Resposta |
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Diogo | 37 anos | É muito boa porque eu cuido do meio ambiente, porque eu preciso dele pra sobreviver. É nele que eu busco alternativa de vida |
Francis | 32 anos | Não gosto de lixo no chão, gosto de tudo limpo. Preservo a natureza, gosto das árvores, dos animais, não gosto de lixo na água. Eu acho que minha relação com o meio ambiente é protegê-lo |
Sandro | 15 anos | A minha relação é muito boa, não gosto de ver lixo jogado em canto que não deve |
Carlos | 15 anos | A minha relação com meio ambiente é ótima. Eu cuido do meio ambiente e recebo benefícios maravilhosos com a paisagem |
Rosa | 16 anos | A minha relação com o meio ambiente é muito boa e eu preservo a natureza e o meio ambiente. A preservação da natureza e do meio ambiente, preservar os lagos e rios, não jogar lixo nos lagos e rios. Em nenhum canto que não seja para jogar, tem que jogar lixo no lixo. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
A temática dos resíduos sólidos perpassa fortemente, também, as autoavaliações da relação que têm com o ambiente. Esse dado pode ser compreendido pela incisiva presença dessa temática nas ações e discursos da Educação Ambiental escolar e não escolar, sendo um dos temas mais comumente abordados (TRAJBER; MENDONÇA, 2007).
Dessa forma, os dados são indícios de que a insistência da abordagem da temática ambiental por meio da questão dos resíduos sólidos e suas destinações mais adequadas - como aterros sanitários - torna-se elemento de reflexão em uma comunidade que não possui assistência estatal para lidar com essa esfera do saneamento e, ao mesmo tempo, preocupa-se com a conservação ambiental. Investigações mais aprofundadas sobre o efeito mental dessa cobrança por práticas consideradas “ecologicamente corretas” nessas populações tradicionais poderiam clarear decorrências de comunicações acerca da temática ambiental que partem do modo de vida urbano hegemônico para pautar possíveis consequências ambientais. As diferenças dentre os grupos sociais precisariam ser resguardadas, de modo a não gerar um sentimento de culpa em povos desassistidos pelo Estado, mas que frequentemente contribuem muito mais para a conservação ambiental do que para sua degradação.
Novamente a dimensão estética do meio ambiente vem à tona por meio da percepção da beleza da paisagem. Whitaker e Bezzon (2006) argumentam sobre a forte inter-relação entre a cultura e o ecossistema, elemento que pode ser captado na fala de Carlos quando avalia como positiva sua relação com o ambiente e destaca que uma das consequências desse modo de relação é uma paisagem recompensadora.
Diogo e Francis destacaram a ação de “cuidar/proteger” o meio ambiente. Essa noção é muito disseminada e pode parecer positiva, mas também pode se perder na vagueza da perspectiva da proteção ambiental. Proteção de quê? É preciso que a Educação Ambiental questione. A resposta precisa, necessariamente, passar pelas esferas econômicas e políticas para adquirir criticidade. O meio ambiente precisa ser protegido de um sistema econômico que depende de sua crescente drenagem para sobreviver. A conservação ambiental, se levada a sério, irá impor limites ao capitalismo e clamará, nas vozes dos movimentos socioambientais, por transformações no horizonte econômico e político global, como já vem ocorrendo (VEIGA, 2014).
Por fim, mas não menos importante, são destacados os dados referentes ao eixo “Importância do Meio Ambiente”, por meio de seis respostas mais representativas do conjunto, comunicadas no Quadro 04.
Participante | Idade | Resposta |
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Vinicius | 12 anos | O meio ambiente é tudo pra mim. Sem ele nós não estaríamos aqui. Por isso não podemos sujar o meio ambiente |
Camila | 14 anos | É importante porque nós podemos ter a vida mais saudável. Por exemplo, com lixo a gente pode ter uma vida bem limpa, com lixo pode juntar lixo e ficar com mau cheiro. Jogar lixo no lago, água que nós bebemos, tomamos banho, lavamos a louça é do lago então se jogarmos lixo no lago nós podemos ficar doente porque a gente vive daquela água |
Jhonatan | 16 anos | O meio ambiente na minha vida é importante porque hoje eu posso cuidar amanhã eu posso colher o que eu cuido |
Natalia | 14 anos | A importância pra mim é muito boa por aqui onde eu moro é um meio ambiente bom de se viver. Aqui não tem terremotos, não tem furacões, diferente das cidades. Principalmente em PVH3, é muito ruim lá eu falta morrer de calor é muito quente lá por causa da poluição |
Helena | 14 anos | A importância do meio ambiente para mim é que o ambiente esteja sempre limpo e bem cuidado. Porque com o ambiente bem cuidado limpo a gente pode respirar bem e ter uma saúde bem cuidada |
Sandro | 15 anos | Pra mim o meio ambiente é tudo, sem o meio ambiente não viveria |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Foi destacado o aspecto vital do meio ambiente, em relação direta com a saúde das pessoas. Ou seja, antes de ser um recurso a ser explorado, ou algo a ser preservado sob interesses econômicos, é elemento constitutivo da existência humana e de outras formas de vida.
Natalia enfatiza a diferença entre o ambiente da Reserva e o da capital do estado, muito mais antropizado e que oferece consequências negativas para a população humana de seu crescimento urbano desordenado. É fato que a região Norte do Brasil apresenta índices de temperatura altos, mas é possível questionar: por que o calor da Reserva não incomoda (ou incomoda menos) em comparação com o da cidade? Esses aspectos da conservação ambiental são importantes de estarem na pauta pública, sobretudo em decorrência das mudanças climáticas.
A investigação da relação ambiental de pessoas do campo faz refletir sobre os modelos de desenvolvimento urbano, praticados como possibilidade hegemônica no país. Uma vez que a região tem características climáticas de altas temperaturas, suas cidades poderiam ser planejadas sobre esses parâmetros, exigindo, dentre outros elementos, maior preservação da cobertura vegetal.
(Auto)reflexões para a pesquisa em educação ambiental
Os dados levantados nesta pesquisa comunicam alguns elementos que, em si mesmos, poderiam ser altamente questionáveis. Romaneli (1998) dá ênfase ao fato de que a fala sobre a realidade não pode ser confundida com a realidade em si. Destarte, os instrumentos de pesquisa qualitativa que operam apenas sobre as narrativas - como entrevistas e questionários - não podem ser tomados como a representação objetiva da realidade.
No caso deste estudo, o contato já de longo prazo com a realidade local - decorrente de projetos de pesquisas anteriores -, somado à preparação teórica para a compreensão de questões humanas e socioambientais que envolvem a complexa realidade do universo pesquisado, foi essencial para possibilitar uma análise dos dados mais compreensiva.
Valla (1996) argumenta sobre a dificultada que as análises acadêmicas têm em compreender a fala dos sujeitos das classes subalternizadas. Em uma análise restrita a algumas categorizações da Educação Ambiental para a compreensão da relação ser humano-meio ambiente, seria possível ter enquadrado algumas respostas obtidas neste estudo como uma relação pragmática com o meio, uma vez que o ambiente foi retratado reiteradamente na esfera dos resíduos sólidos e de práticas de pesca controladas, por exemplo - ações com fins mais pragmáticos. Essas seriam ações e características típicas de uma corrente pragmática e/ou resolutiva de Educação Ambiental segundo proposições de autoras como Silva e Campina (2011) e Sauvé (2005).
Todavia, a proposição das categorias das autoras foi pensada para compreender as práticas de Educação Ambiental, e não podem ser tomadas de modo rígido para captar a complexidade implicada na relação com o meio ambiente de determinado grupo humano. Esse movimento requer maior contextualização do fenômeno estudado e interdisciplinaridade analítica.
Primeiramente, é preciso reconhecer que a própria expressão “meio ambiente” é carregada de historicidade. Brandão, Tsikioka e Carvalho (1999) demonstram que os povos tradicionais pouco tinham uso de uma expressão equivalente, uma vez que não concebem algo externo a eles que seria o meio ambiente. Percebem-se como constituintes disso que é o meio ambiente, e, por conseguinte, ao recorrer à expressão “meio ambiente” as associações mentais são fortemente externas à trama cultural local.
Nesse sentido, pode-se adicionar aqui que, ao realizar uma pesquisa dessa natureza no espaço escolar, a simbologia do local de onde se fala e para onde se fala impõe-se, mesmo que inconscientemente. Pode-se afirmar com base em resultados de pesquisas (TRAJBER; MENDONÇA, 2007), que a abordagem ambiental predominante nas escolas brasileiras é pragmática, remetendo muito fortemente a orientações comportamentais como “fechar a torneira ao escovar os dentes”, e “não jogar o lixo no chão”.
Perante essa influência do contexto da realização da pesquisa nas narrativas apresentadas, não seria possível uma pesquisa com o enquadramento metodológico aqui utilizado captar as nuances dos dados partindo de uma leitura superficial da compreensão dos modos de vida ribeirinhos e também do histórico e epistemologia da questão e educação ambiental. Assim, destaca-se a importância da investigação no campo da Educação Ambiental manter-se aberta a estudos de diferentes origens que poderão contribuir para resoluções mais próximas da realidade sobre o que se está estudando.
É possível realizar autorreflexões acerca da relação ser humano-meio ambiente. Como é a relação de sua comunidade com o meio ambiente? Como é a sua? Ao leitor, questiona-se: como responder a essas questões, de modo não superficial? Ao pesquisador, intriga-se: como analisar respostas desse tipo de maneira compreensiva, sem juízo de valores?
Defende-se uma Educação Ambiental que possa aprender com os povos tradicionais, a partir, e sobretudo, de seu “estranhamento” com a tão naturalizada “questão ambiental”, que exige um quê de urbanocentrismo e abstração escolar para ser compreendida academicamente - mas exige da arte e da cultura popular para ser compreendida de modo verdadeiramente visceral com a existência humana.
Os resultados desta pesquisa revelam que, para moradores da Reserva Extrativista do Lago do Cuniã, o meio ambiente é tudo. Não o tudo abstrato, mas o tudo concreto, que possibilita a existência. Logo, não pode ser degradado. Oferece os subsídios da vida, e a proteção (“não há terremotos e furacões”). A escola tem o desafio de conseguir dialogar com essas percepções e construções objetivas e subjetivas, para além de uma Educação Ambiental asséptica e desconectada da realidade vivida e sentida.
No mais, é valioso destacar que em 2014 essa população sofreu com um desastre ambiental relacionado à inundação histórica do rio Madeira. Milhares de pessoas ficaram desabrigadas na região de Porto Velho, inclusive na Reserva Extrativista do Lago do Cuniã (PNCSA, 2014). Os efeitos desse desastre na Reserva ainda são pouco compreendidos. Cabe reconhecer que esse cenário crescente de desastres socioambientais decorrentes das mudanças climáticas e associados a projetos de expansão capitalista tem colocado novos desafios às comunidades tradicionais brasileiras, e requer atenção e parceria contínua com a Universidade para que as resistências e produção de conhecimentos sustentadas nas culturas dos povos tradicionais sejam reconhecidas e valorizadas em sua contribuição para a superação dos desafios ambientais.
Considerações finais
Os dados aqui comunicados reforçam a relação íntima que os participantes têm com seu ambiente. A problemática do descarte dos resíduos sólidos se faz muito presente, e este estudo se soma como mais um instrumento para que a luta pelo direito ao saneamento básico dessa população seja garantida pelo Estado, em moldes diferentes dos elaborados para o meio urbano.
A ênfase na dimensão estética revela a potência da ação da paisagem na existência humana, e deve ser considerada para se compreender e lutar pela possibilidade de conservação dos modos de vida das populações tradicionais amazônicas. Ademais, a íntima relação do meio ambiente com a saúde e qualidade de vida locais, percebida e destacada pelos participantes da pesquisa, mostra como é possível abordar a temática ambiental sem a necessidade de recorrer a modelos muito abstratos e distantes do mundo rural brasileiro, como a reciclagem4.
Apresenta-se à escola o desafio de pensar-se e construir-se a partir desse universo cultural singular, evitando o esvaziamento de sentidos da Educação Ambiental. O desafio é lançado não apenas aos docentes, mas a toda a estrutura e sistema burocrático educacional brasileiro que tem dificuldades (orçamentárias e políticas) de lidar com a realidade brasileira com respeito e valorização da diversidade que é imposta pela concretude de sua história.
À Educação Ambiental enfatiza-se o movimento sempre necessário de compreensão da realidade para além das aparências e dos esquemas pré-moldados da teoria generalista. A esquematização que tem possibilitado compreender melhor o campo e suas manifestações não pode obstaculizar a compreensão mais complexa da relação ser humano-meio ambiente, mas deve sim ser parceira nesse processo que demandará interdisciplinaridade analítica e atenção às manifestações empíricas.