1 Introdução
Em 2020 a Pedagogia do Oprimido completou 50 anos desde sua primeira publicação, nos Estados Unidos. Obra escrita em 1968, quando Paulo Freire estava no exílio no Chile, em plenos “anos de chumbo” da ditadura civil-militar brasileira, que logo alcançaria também o Chile, obrigando Freire, e tantos outros exilados, a buscar novos lugares de vida. O “subversivo” autor tem a coragem de demonstrar que a educação é um ato político pela impossibilidade de ser neutra, porque consiste em um ato humano, e o humano é sempre situado e direcionado a um fim, o qual implica em um valor. Coerente com essa premissa, Freire propõe uma pedagogia “com o oprimido”, e não “para ele”. Acreditando na vocação ontológica do homem de “ser mais”, de transcender-se, alimenta a fé nos homens, em sua infinita capacidade de reinventar-se. Mas essa reinvenção é situada nas condições concretas de existência. Em situações de opressão, os oprimidos são impedidos de “serem mais”. É necessário remover este impedimento, é necessário construir condições concretas de existência onde todos possam realizar sua condição ontológica, sua liberdade. E esta remoção passa pela educação. Uma educação não mais à serviço da dominação, mas à serviço da libertação da opressão.
Quanta subversão em demonstrar a estrutura injusta de uma sociedade, em relacionar a educação com a estrutura social, em propor que homens e mulheres não perdem sua vocação ontológica de serem mais mesmo diante da opressão, e que temos algo a fazer no mundo para modificá-lo. Quanta subversão em afirmar que a ciência - este reduto endeusado como de pura objetividade - não é neutra. De que o conhecimento - também científico - é situado em uma sociedade, que fala desde um lugar e um tempo. Quanta subversão ao nos encorajar a não termos medo de nossa liberdade!
No livro “Extensão ou comunicação”, também escrito em 1968 no Chile, Freire se propõe a pensar as práticas educativas do extensionista rural, profissional, geralmente engenheiro agrônomo, que está em contato com o agricultor e tem como uma de suas funções ensinar a ele como melhor proceder no uso das técnicas agrícolas. Da mesma forma como identifica a natureza dominadora da “educação bancária” na Pedagogia do Oprimido, neste livro Freire identificará a “extensão rural” como dominadora, invasora do mundo cultural do agricultor, invasão que se destina a desenvolver os valores “modernos” em agricultores considerados “arcaicos”, os quais precisam ser convencidos a colocar em prática o que lhes é ensinado. Freire oferece a “comunicação” em oposição à extensão, como sendo uma “prática educativa libertadora”. Nela, o extensionista e os agricultores dialogam sobre o mundo a partir de seus lugares nele, o mundo cultural destes é respeitado e, a partir dele, são compreendidas suas ações, que, em geral, não coincidem com as recomendações dos técnicos. Em situação de diálogo as diferenças são respeitadas, não há dominação, não há invasão, não há preconceitos classificatórios como os de “agricultores arcaicos”.
Esta proposta de extensão freireana amplia o debate sobre as atividades extensionistas nas universidades, as quais formam, junto com o ensino e a pesquisa, o chamado tripé universitário. Há questões que são atuais após 50 anos e que dizem respeito às diferenças, ao diálogo entre esses diferentes; a olhar para o outro diferente e reconhecer nele o direito de “ser mais”, a não levar práticas salvacionistas com base em uma ação messiânica.
O Brasil, assim como vários países, vive retrocessos de políticas sociais, educacionais, econômicas voltadas para a construção de uma sociedade mais justa. Como suportar aeroportos invadidos por nordestinos habitantes das grandes cidades da região sudeste e que agora podem visitar suas famílias pagando passagens aéreas? Pequenos empresários que agora podem situar-se no mercado? Universidades que passam a ser frequentadas por pobres e negros? Como uma “sociedade fechada” - como definia Freire em “Educação como prática da liberdade”, livro de 1967 (2005), também escrito no exílio - pode suportar essas “subversões”? Sociedade fechada que então estava se abrindo, e que foi interceptada pelo golpe que instituiu a ditadura civil-militar em 1964. Esta sociedade se abriu, assim como tantas outras, principalmente na América Latina. Mas, em todo este processo, as forças conservadoras não cessaram de atuar. Hoje vivemos o resultado deste processo, não mais situados num contexto de ditadura explícita, embora estejamos vivendo, em conta gotas, ações de censura e ameaças verbais - estas sim explícitas - à democracia. Assim como um grande desmonte nas políticas públicas direcionadas à justiça social, juntamente com uma grande desmoralização da ciência, em especial das ciências humanas, consideradas “ideológicas”. Tal qual apontava Weffort (2005) no Prefácio do livro “Educação como prática da liberdade”, a ditadura brasileira foi uma resposta aos avanços políticos que se vinham fazendo no país em vários lugares, avanços no sentido de construir uma sociedade mais igualitária. O projeto de alfabetização de adultos de Freire, do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, se insere nestes avanços.
Como reagir a este contexto sem reproduzir a mesma lógica? Como ser resistência ao desrespeito, à censura, ao ódio a partir do respeito, do diálogo, da tolerância? Qual o lugar da universidade neste contexto? Que gestão, que ensino, que pesquisa, que extensão? É a extensão universitária que é tomada neste texto como objeto de reflexão: qual o lugar da prática extensionista universitária: levar o conhecimento produzido na pesquisa para a comunidade? Estender messianicamente o conhecimento desde o polo do saber até o polo da ignorância? Comunicar-se com a comunidade? Dialogar com ela?
Este texto problematiza as armadilhas de uma “extensão dominadora” e traz elementos para que possamos estar vigilantes na busca de uma “extensão libertadora” como um lugar de resistência em tempos conservadores.
2 Armadilhas de uma extensão universitária dominadora
A extensão universitária acompanha a história das universidades. Para Cruz (2011), as universidades surgiram como mantenedoras de uma ordem social desigual, mantendo o acesso de apenas alguns, privilegiados nesta ordem social. Aos poucos ela vai se abrindo à sociedade, mas irá manter, ainda hoje, um solo contraditório de onde advêm diversos interesses. As práticas universitárias, consubstanciadas no tripé ensino-pesquisa-extensão, irão concretizar esta diversidade.
O autor referido critica a extensão universitária de orientação assistencialista, segundo a qual o objetivo é sanar problemas pontuais, específicos, sem que estes problemas sejam situados na problemática social que os originou. “Está embasada no fortalecimento da compreensão de que estamos em uma sociedade preocupada com todos. Não se enfrentam assim as questões mais estruturais que geram os problemas sociais” (CRUZ, 2011, p.44-45). Esta extensão assistencialista precisa ser diferenciada da extensão assistencial, diferença situada nas suas intencionalidades, segundo o autor. Em determinadas situações é necessário levar às comunidades serviços assistenciais os quais elas não conseguem acessar. Mas esta ação não deve simplesmente eliminar a responsabilidade do Estado para com as políticas públicas, ao contrário, devem criar a necessidade de sua promoção e ajudar a criar ações qualificadas neste sentido.
O outro tipo de extensão criticado por Cruz é a mercadológica, na qual a universidade vende seu conhecimento para setores dominantes da sociedade, conhecimento que servirá para aumentar as desigualdades sociais. Nesta extensão, “o interesse exclusivo está na geração de riquezas por meio destes conhecimentos, tanto para os empresários como para os próprios acadêmicos envolvidos”. (CRUZ, 2011, p.45-46).
Cruz defende a extensão popular, aquela advinda da educação popular que, por sua vez, é a educação comprometida com os interesses das classes subalternas em uma sociedade desigual. A educação popular surge em solo latino americano, e o Brasil foi um de seus grandes desenvolvedores. Um dos grandes expoentes da educação popular foi Paulo Freire, a partir de seu trabalho de alfabetização de adultos no final dos anos 50 e início dos anos 60 do século XX. No período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), ela é desenvolvida clandestinamente, a partir de movimentos ligados à Igreja católica, e também da ação de professores e acadêmicos das universidades, especialmente das áreas da saúde, educação e direitos humanos, que se unem a movimentos sociais em trabalhos comunitários. A extensão universitária é uma
[...] possibilidade de se direcionarem Projetos para se ampliar a hegemonia dos setores subalternos da sociedade. É um trabalho fundamentalmente educativo, que assume variadas formas pedagógicas, a saber: cursos, rodas de conversas, aulas, oficinas, reuniões, atividades coletivas, campanhas, ações conjuntas, conversas informais, etc. (CRUZ, 2011, p.47).
A extensão popular é a concretização de uma ação universitária comprometida com a libertação da opressão própria de uma sociedade desigual. Mas o que está na base da opressão? O que dá legitimidade a ela? O que a torna invisível ante os olhos dos que a fazem, mas não se reconhecem fazendo?
Borges (2013) aproxima o que ele chama de Pedagogia da Libertação de Paulo Freire à Teologia da Libertação de Leonardo Boff e à Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, e entende que estas três vertentes colaboram na construção da libertação latino-americana da situação de colonialidade em que este continente ainda se encontra. Colonialidade que podemos entender, a partir de Quijano (2000), como uma condição de subalternidade de países outrora colônias em relação às antigas metrópoles, ou em relação a países que hoje ocupam um lugar de hegemonia. Quijano fala da colonialidade do ser, do saber e do poder, referindo-se à construção de uma subjetividade inferiorizada, de uma ciência dependente da ciência dos “países desenvolvidos”, e de relações de poder envolvidas nestes processos.
Desde a filosofia da libertação, Dussel (1977, 2016) compreende o mundo dividido em várias totalidades. Uma totalidade é o conjunto que dá sentido a uma forma de vida, o “sistema-mundo”. O mundo é uma totalidade em que as coisas e os seres ganham seu sentido. Não se pode compreender um ser sem se compreender o sentido de seu próprio mundo. Tudo o que não estiver incluído nesta totalidade estará localizado em sua exterioridade.
O “Outro” é uma categoria situada na exterioridade da totalidade do sistema-mundo. O “Um” está localizado na centralidade do sistema. O “Outro” está localizado na exterioridade do sistema. O “Um” é o “Ser”. O “Outro” é o “Não-Ser”. Tudo o que é compreensível desde a lógica do sistema é o “Um”, e o “Outro” é aquele que não se encaixa, que não pode ser compreendido desde a totalidade. Estas designações se fazem presentes no cotidiano da vida e também na ciência. Há várias totalidades, de acordo com as várias lógicas de organização humana. É por um ato de dominação que uma totalidade pretende ser a totalidade universal.
Borges (2013) lembra que a invasão cultural, categoria trabalhada por Freire, desfigurou a identidade latino-americana. O autor situa a categoria de exterioridade, central no pensamento de Dussel, e também presente em Freire, como um termo proposto por Emmanuel Levinas, como ponto de partida da compreensão da realidade latino-americana:
Esta categoria [exterioridade] deverá ser compreendida como transcendentalidade interior à totalidade, do contrário, chegaríamos ao equívoco de pensar que aquela que está além do horizonte do ser do sistema, o é de maneira total, sem nenhuma participação no interior do sistema. É neste olhar, voltado para a realidade, para a práxis histórico-social dos povos latino-americanos, a partir de uma nova ótica, dos oprimidos, como exterioridade, que se constitui uma nova realidade histórica, como também se estabelece um projeto libertador articulado pela Filosofia, pela Teologia e pela Pedagogia. (BORGES, 2013, p.134).
Situados na exterioridade da totalidade, os países “periféricos” são colocados como dependentes dos países centrais. Da mesma forma ocorre com as pessoas ou comunidades alvos da ação extensionista universitária. Segundo Freire (2009), a sociedade dependente é uma sociedade silenciosa. A dependência gera exclusão e marginalidade nos diferentes âmbitos da vida, mas também gera uma outra forma de pensar, própria de quem sofre a dependência. Por vezes, as pessoas ou comunidades a quem estendemos o conhecimento científico silenciam diante desta ciência. E nós não somos capazes de entender seu silêncio e as subjetividades que desde este lugar se engendram.
Dentro de uma totalidade, tudo o que não é identificado com os padrões do centro é colocado na periferia, na exterioridade do sistema, porém, ele nunca será “exterior em si mesmo”, mas sempre em relação a algo que é colocado no centro. O “Outro” aí se situa. Então o “Outro” é o sem cultura, sem deus, sem identidade, sem conhecimento, sem história (ARAÚJO-OLIVERA, 2014). É o bárbaro, aquele que necessita ser salvo pela civilização. Até mesmo o termo “pobreza” necessita ser delimitado em relação à pobreza material, não pode ser generalizada. Pois é generalizando este termo que se chega à noção de “pobreza cultural”. Cultura erudita que julga todas as demais formas de cultura como inferiores, como “não cultura”. Como “não-ser”.
Mas também é necessário contextualizar a pobreza em seu sentido material. Uma perspectiva é denunciar a falta de acesso de parcelas da população às condições materiais necessárias para uma vida digna. Então estaremos falando de injustiça social. Outra perspectiva é reconhecer somente um modo de vida legitimado pela totalidade. Assim, só ser reconhecido o modo de vida próprio da acumulação de bens, de consumo. E todas as demais formas de vida seriam consideradas “pobres”. E todas as pessoas que desta forma vivem seriam “alvos” da ação de profissionais cuja missão seria salvá-las. Mas de qual pobreza estamos falando?
A libertação implica no rompimento de imitação de modelos, na busca por refletir soluções próprias para necessidades próprias, relativas à situação histórico-social (BORGES, 2013). Como sustenta Dussel (1977), implica na construção de epistemologias próprias de quem se encontra na exterioridade do sistema, epistemologias que incluam o “Outro”. O autor chama a atenção para o fato de que a vida cotidiana é vivida como se fosse natural, em uma “ingenuidade acrítica”; não conseguimos estabelecer distanciamento crítico do que está próximo de nós cotidianamente. É mais fácil ser crítico em relação ao que está distante:
[...] o homem cotidiano da cultura ocidental se considera crítico com relação à ingenuidade do homem primitivo ou selvagem. Já não vê o sol como um deus, como o viam os aztecas, os egípcios e ainda hoje os esquimós, povos animistas da África ou da Ásia. Todavia, aceitam ingenuamente que sua cultura, seu poder político, o domínio de seus exércitos é justo; expande por toda a terra a democracia e a liberdade. Todo este sistema de ideologias é parte de uma cotidianidade ingênua que manipula instrumentos. (DUSSEL, 1977, p.38-39).
Assim, Dussel aponta que o cientista acredita em sua criticidade e não enxerga que seu sistema de verdade também se situa em uma cultura. Acreditar que sua ciência está isenta de sua cultura é ingenuidade, e tanto mais perigosa quanto não se enxergar que esta ciência cumpre um papel de dominação. É a mesma crítica de Freire no conjunto de sua obra. Não há neutralidade na ciência.
Fazendo a crítica à extensão, Freire diz que
[...] a ação extensionista envolve, qualquer que seja o setor em que se realize, a necessidade que sentem aqueles que a fazem, de ir até a “outra parte do mundo”, considerada inferior, para, à sua maneira, “normalizá-la”. Para fazê-la mais ou menos semelhante a seu mundo. (FREIRE, 2006, p. 22).
Parece ser esta a “missão” que muitos profissionais bem intencionados colocam para si: tornar o outro o mais parecido possível a nós! Profissionais imbuídos do “messianismo da ciência”. Querem “ajudar”. Mas nem lhes ocorre perguntar às pessoas se querem ajuda, e do que elas precisam, porque têm convicção de que estas necessidades é a ciência que deve conhecer.
Sandra Caponi (2000) diferencia ações com base na compaixão e na solidariedade. Fazendo a crítica ao modelo médico de assistência, o situa na prática religiosa da compaixão. Baseada em Friedrich Nietzsche e Michel Foucault, ela mostra que o valor religioso da compaixão necessariamente apequena o homem assistido, pois o vê como desigual, incapaz de fazer por si mesmo, tendo como efeito o controle sobre as pessoas assistidas. O valor da compaixão também implica em um perene sentimento de “estar devendo um favor”, de uma dívida eterna. Para fazer frente à compaixão, Caponi defende o valor da solidariedade, permeada pelo olhar de respeito para com o outro, compreendido como um igual e capaz de agir para transformar a realidade.
O problema da caridade, movida pela compaixão, pauta-se na dualidade entre o alvo da compaixão, que fica diminuído, e a pessoa que a pratica, que acaba se elevando, uma vez que se sente necessária, mesmo indispensável, ao outro. Esta ilusão, este “engrandecimento ‘moral’ de nós mesmos” (CAPONI, 2000, p.21), nos impede de verificar que a compaixão possa não ser desejada pela pessoa, e que ela gera estados de dependência e submissão. E também de coerção em nome do “bem” para com os necessitados.
A assistência pautada na ética da solidariedade reconhece no outro um ser capaz e responsável por si. A solidariedade implica em reconhecer que aquele que necessita de nossa ajuda, e que a requer, não é, em si mesmo, um ser inferior, ele está em uma situação de vulnerabilidade, situação que precisa ser devidamente contextualizada em uma sociedade com uma estrutura desigual. E que esta pessoa poderá sair desta situação algum dia, e outras pessoas, até mesmo nós, poderemos nela entrar. Mas se nós o reconhecemos como um ser como nós, apenas passando por uma situação de vulnerabilidade, então teremos que ouvi-lo.
Ao contrário disto, a extensão como “ação antidialógica” pode ser compreendida a partir de quatro termos: conquista, manipulação, divisão, invasão cultural. (FREIRE, 2006).
A lógica da conquista do outro requer transformar este outro em coisa. Somente coisas podem ser conquistadas, jamais pessoas. Não no sentido de “cativadas”, mas no sentido de “ganhadas”. Para Freire, a condição ontológica do ser humano, aquilo que define o ser humano e somente a ele em seu sentido genérico, é o “ser mais”, no sentido de transcendência. O ser humano está sempre se transcendendo, seu movimento no mundo é “para fora”, junto às coisas concretas, às pessoas concretas, ao trabalho, ao cotidiano. O outro, se assim o vemos em sua alteridade, se o reconhecemos como tão legítimo como nós em sua diferença de não ser nós, é tão transcendência como nós e, neste sentido, jamais poderá ser conquistado como se fosse uma coisa. O projeto colonizador foi um projeto de conquista porque nunca reconheceu a alteridade dos povos originários, tendo-os coisificado. A conquista desumaniza o homem, tira do conquistado as condições concretas de transcender-se, de ser mais. Mas não retira dele a possibilidade de transcender-se, uma vez ser esta sua condição ontológica. Mas para realizar sua condição ontológica em uma situação concreta de desumanização é necessário que se modifiquem estas condições concretas.
O extensionista tem uma atitude de conquista quando quer “ganhar” as pessoas. Quando não reconhece nelas algo que “valha a pena” conhecer. Ele pode até ouvir estas pessoas, mas não para dialogar com elas, e sim, apenas para ganhar sua confiança. Neste “ganhar as pessoas” a propaganda é altamente utilizada, permeada por “slogans”, como aponta Freire. Os slogans propagandísticos que manipulam as pessoas, fazendo-as acreditar na realidade vista a partir dos olhos do conquistador. “Brasil, ame-o ou deixe-o” foi um slogan muito utilizado na época da ditadura civil-militar brasileira, em uma alusão de que a ordem estava de volta ao país e todos aqueles que questionavam o sistema autoritário eram desordeiros e, por isto, não amavam o país, o queriam novamente na desordem, a qual impedia o progresso. Aos desordeiros, não amantes da Pátria, o melhor era sair do país, não havia espaço nele para quem questionava a ordem estabelecida. Amar o país era silenciar, pensar com o pensamento dos militares, olhar o país com os olhos da modernização. Para tanto, haveria de silenciar as pessoas até que não houvessem mais palavras dissidentes, até que nem mesmo pensamentos dissidentes fossem gerados, até que nada mais houvesse para ser silenciado. Até que nenhuma resistência pudesse ser feita. Até que a população estivesse conquistada. Agora, claro, a realidade não é linear, ela é contraditória, e nunca irá se conseguir o total silenciamento. Como nos lembra Foucault (2006), onde há poder, e ele sempre existe, há resistência.
Em sistemas cujo projeto é a conquista do outro, a aglomeração de pessoas é vista como perigosa. As massas são perigosas porque delas pode surgir atitudes de resistência. Era por isto que nos anos da ditadura civil-militar não se podia estar três pessoas na calçada ou em um bar conversando sem que levantassem suspeita nos policiais encarregados de promover a ordem nas ruas. Por isto a necessidade de dividir as massas, os grupos, os coletivos. Individualizar está na lógica do individualismo liberal moderno, a lógica capitalista de produção, que precisa da competição individual para girar a máquina produtiva, que assenta no indivíduo todo o valor, todo o êxito ou o fracasso de qualquer projeto. É sempre o indivíduo, como se ele pudesse existir sem os condicionantes do contexto. Assim também o extensionista irá creditar ou debitar da conta das pessoas da comunidade o êxito ou o fracasso de seu projeto extensionista: ou as pessoas colaboraram, ou resistiram, em suas individualidades, ou, quem sabe, se reuniram em grupinhos para resistir ao projeto.
Assim, devidamente conquistado, manipulado, dividido, o povo poderá ser invadido, ou melhor, ele já está sendo invadido em sua cultura, em seu modo de vida, o que implica em sua língua (às vezes não parece que estamos nos Estados Unidos?), religião (por que a religião oficial do Brasil é católica romana?), modo de vestir-se (os centros da moda são Milão, Paris, Nova York), cinema/música/livros (nossas referências são brasileiras/latino-americanas ou estadunidenses?), ciência (quais os autores que estudamos na academia?), modelo econômico (a economia de mercado é inevitável?), modelo político (a democracia representativa é inevitável?). O extensionista invade quando chega em um lugar sem conseguir enxergar o Outro, sem considerar que o Outro tem algo de valor a dizer, quando sua intenção é fazer do Outro parecido com ele, quando sua intenção é levar as luzes da razão, como uma dádiva, para a modernização daquela comunidade, para o progresso daquele local, imbuído de um messianismo científico, como diz Freire; ao estar convencido de que a ciência, tida como neutra, irá salvar aquele lugar e aquelas pessoas. O que elas precisam é só ouvir, acatar e não resistir, precisam aderir à boa nova.
Toda invasão sugere, obviamente, um sujeito que invade. Seu espaço histórico-cultural, que lhe dá sua visão de mundo, é o espaço de onde ele parte para penetrar outro espaço histórico-cultural, superpondo aos indivíduos deste seu sistema de valores.
O invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos de sua ação. (FREIRE, 2006, p.41).
E o extensionista que faz isto, em geral, está convencido de que é este seu papel desde a universidade, afinal, não é lá o lugar do saber? Não é seu compromisso social estender este saber aos que não o têm?
3 Possibilidades para uma extensão universitária libertadora
É neste sentido que podemos entender a crítica que Dussel faz ao sistema de pensamento que apenas reconhece a totalidade, com a consequente negação do “Outro”. A dominação somente é possível quando um ser, que se considera “o Ser”, olha para outro ser e não o enxerga enquanto ser, somente o enxerga enquanto “não ser”, enquanto “Outro”. E como tal, ele necessita ser transformado em “Ser”, ou então necessita desaparecer. Não é desde o “Ser” que virá a libertação, mas desde o “Não ser”, desde o “Outro”. Para tal, ele necessita ser ouvido. O “Outro” tem cara, tem nome. Mas para vê-lo, é necessária uma proximidade. Como afirma o autor, a experiência da proximidade é a fonte criativa para toda ética possível, de abertura ao Outro. A libertação parte, necessariamente, de ouvir o “Outro”, não para transformá-lo no mesmo “Um”, e sim para que a totalidade seja modificada a ponto de não mais produzir a exterioridade e, desta forma, deixar de produzir “Outros”. Por isto o projeto libertador é revolucionário, porque atua, necessariamente, na estrutura do sistema.
[…] nesse mundo que todos se exibem […] como o próprio, de repente, de maneira inesperada, surge alguém, outro ser humano, outra biografia, outro mundo, outro tempo, outra história. Não se pode com-preender o mundo do Outro como se interpretam as coisas, os entes. Se o Outro/a não se revela, nada se pode saber dele/a. (DUSSEL, 2016, p.119. Grifos do autor).1
O “Outro” não pode se revelar desde o meu mundo, por isto a necessidade de se guardar silêncio para ouvi-lo. Somente assim o “mistério” que é o “Outro” poderá se manifestar. A “passividade” da escuta (poderíamos dizer, a “passividade da escuta ativa”) antecede toda práxis libertadora. (DUSSEL, 2016).
Este “Outro” não pode ser encontrado conquistando, manipulando, dividindo, invadindo - como na prática da extensão criticada por Freire -, mas sim promovendo a colaboração, a organização, a união, a síntese cultural - a prática da comunicação proposta pelo autor (FREIRE, 2006).
O ser humano não se conquista, não se ganha, a ele se solicita a colaboração. Mas para isto, necessitamos acreditar que este ser tem algo a colaborar conosco e que temos algo a colaborar com ele. Necessitamos acreditar que ele tem algo a dizer no projeto que nós temos para desenvolver “com” ele, e não “para” ele. Que nós podemos pensar juntos e que jamais poderemos prescindir dele nesta empreitada. Necessitamos ter “fé no homem” (FREIRE, 1988).
Então este ser jamais poderá ser manipulado, e sim organizado para potencializarmos o diálogo com ele, para potencializarmos sua ação. Organização que é da comunidade, apenas facilitada pelo educador/extensionista. Aqui não entram slogans, mas momentos de diálogo para pronunciar o mundo.
Pelo diálogo - que é “o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (FREIRE, 2006, p. 43) - não é o homem que é conquistado, e sim o mundo. Mas não se trata desta conquista presente na lógica capitalista que transforma o mundo em mercadoria. Trata-se da conquista da inteligibilidade das coisas, no avanço da consciência ingênua e mágica para a consciência crítica. A consciência ingênua vê as coisas apenas em sua imediatez, descontextualizadas de seu contexto, não enxergando a ligação de um fato com seu entorno. Assim, é acreditar que questionar o autoritarismo de uma ditadura é não amar o Brasil, não enxergando que o questionamento é perigoso para o autoritarismo porque este não suporta divergências. O pensamento mágico é uma especificidade do ingênuo, é quando atribuímos a causas sobrenaturais a explicação para o que acontece. Acreditar que “estava escrito na história” que o Brasil deveria passar por uma ditadura, e não enxergar que as ditaduras da América Latina cumpriram um papel de “ganhar a América” para os Estados Unidos na Guerra Fria2, portanto, que as ditaduras foram obras humanas. Assim, é tarefa do extensionista libertador possibilitar a organização da comunidade para que o processo de conscientização aconteça, este “tomar posse da realidade”, desvelando-a a partir de um olhar que a insere em seu contexto social, cultural, político, econômico.
Tudo isto só é possível com a união das pessoas, não com sua divisão. A libertação das diversas formas de opressão só pode se dar no coletivo, nunca no individual. Isto não nega a busca de cada um em seu processo libertador. Mas ele só irá acontecer em situação de diálogo, na pronúncia do mundo com os demais. Não há como dialogar sozinho.
E tudo isto só terá sentido se ocorrer não em um processo de invasão do mundo do outro, no qual queremos deixar o mundo dele parecido com o nosso, mas em um processo de reconhecimento da sua cultura, em sua valorização. Então, não nos daremos a tarefa de substituir as coisas de seu mundo - inferior - pelas coisas do nosso mundo - superior. Mas nos colocaremos a tarefa de valorizar seu mundo, de elaborar uma síntese cultural, compreendendo que uma cultura é sempre um sistema, uma totalidade, um conjunto de valores, de práticas, todos interligados. É valorizando seus valores e práticas, assim como valorizamos os nossos valores e nossas práticas, que estabeleceremos as condições para o diálogo, que é sempre troca. E se é troca, também os nossos valores e práticas podem ser questionados, não só os deles. Se é troca, também nós saímos modificados do processo, não apenas eles.
Muitas vezes a comunidade anseia pelo trabalho de extensão universitária, solicita por ele, e espera que ele resolva seus problemas. É necessária clareza por parte da equipe extensionista para resistir à dupla pressão do tempo: de produtividade a partir da lógica do resultado que está presente nas universidades, e de resolubilidade a partir da comunidade. Se não houver clareza do vetor ético da extensão, qual seja o de libertação e não de dominação, será fácil sucumbir à lógica produtivista hegemônica. É o mesmo cuidado que Cruz (2011) aponta em relação à prática da extensão popular, a qual se baseia na educação popular, da qual Freire é um dos basiladores. Extensão popular que reconhecemos como libertadora.
4 Considerações finais
Atualmente, se vive no Brasil um verdadeiro ataque à teoria freireana. Ou melhor, o ataque não se direciona à sua teoria, a qual permanece mal compreendida, e sim à pessoa de seu criador. Na era do recrudescimento do pensamento antidemocrático em escala global, a teoria da pedagogia libertadora só pode ser vista como uma subversão. E realmente é. Seu autor sempre deixou clara a impossibilidade de uma escrita neutra. Toda escrita traz em si uma ideologia. O problema é quando apenas uma ideologia é assim reconhecida, sendo alinhada à ideia de “doutrinamento”. Quando estas más interpretações ocorrem, tem-se claramente colocada a intenção de desvirtuamento de uma teoria. Paulo Freire é um autor que, como tal, deve ser lido com olhos críticos. Ele mesmo solicitava que lhe apontassem questionamentos, os quais lhe permitiam rever sua obra. É absolutamente salutar questionar criticamente a um autor. Mas é imprescindível que este questionamento se faça a partir de bases sólidas do entendimento de sua obra.
Compreender de fato a pedagogia freireana, concordar e discordar dela, nos possibilita pensar sua atualidade, o que implica em transcendê-la, continuá-la enquanto teoria viva. Assim também com relação à atividade extensionista universitária.
Quando Freire, em 1968, escreve uma crítica ao trabalho educativo do extensionista rural, na mesma direção da crítica à educação bancária, ela precisa ser compreendida em seu contexto. Assim como quando Cruz, em 2011, faz a crítica à extensão assistencialista e à extensão mercadológica, ele fala de outros tempos. Mas, fundamentalmente, ambos falam desde um compromisso do profissional e de seus centros formadores, dentre eles a universidade, para com o seu tempo. Compromisso que se revela na práxis, na necessária escolha do sentido de seu agir. Escolha que continua sendo entre manter uma sociedade ainda injusta ou a de transformá-la, a partir da certeza da impossibilidade de neutralidade no mundo humano.
Freire reconhece na extensão rural uma prática educativa; ele critica o próprio termo “extensão” como o ato de “estender” um saber desde o polo do saber ao polo da ignorância, numa prática “bancária” de educação. Opõe à “extensão” o que chama de “comunicação” (“comunicação rural”), aos moldes da educação libertadora. Essa crítica vem sendo de alguma forma apropriada pelo meio universitário para se criticar a própria extensão universitária, principalmente no que se refere à sua direção assistencialista, mas também em relação à extensão voltada ao mercado. Ambos tipos podem ser considerados aqui como “extensões dominadoras”. Em contraposição, está a extensão popular proposta por Cruz, a qual se baseia na educação popular, comprometida com a libertação da opressão. Uma “extensão libertadora”, portanto.
Uma extensão libertadora implica na consolidação da universidade rumo ao seu comprometimento com as necessidades da maioria da população, a qual, em nossas sociedades latino-americanas, encontra-se alijada de condições dignas de vida, os oprimidos. Implica em um convite para a universidade ir revendo-se em vários aspectos: em seu ensino, em suas pesquisas, em sua extensão, em sua gestão. O “ir revendo-se” indica processo: não são ações pontuais, são várias ações, em vários lugares, em vários tempos, ações que não são vividas de forma ascendente, mas sempre avançando e retrocedendo, numa práxis perene. O caminho é a própria mudança.
A extensão libertadora é uma importante ação na construção de uma universidade que encontra seu lugar como resistência a contextos antidemocráticos. A relação que a universidade estabelece com a comunidade externa também define a forma como produz conhecimento e a forma como ensina, assim como a forma como gestiona seus processos internos. Optar pela extensão popular é também optar por pesquisar temas significativos para a melhoria da vida das pessoas, assim como pesquisar levando-se em conta que as pessoas são “participantes” e não “objetos”; esta extensão e esta pesquisa implicam em formar profissionais respeitosos para com as pessoas de fora da universidade, reconhecedoras de seus saberes e de que a universidade necessita destas pessoas para a formação dos futuros profissionais; por fim, esta extensão, pesquisa e ensino exigem uma gestão igualmente dialógica. E o diálogo conscientizador é, ainda hoje, como era há 50 anos, um grande instrumento educativo de resistência frente à opressão.
Por fim, “é preciso desafiar-se a viver com amorosidade” (CRUZ, 2011, p.54). E amorosidade tem a ver com humanização, com a busca pela transformação da sociedade para que todos tenham a possibilidade de “serem mais”, o que só é possível em ambientes democráticos.