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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.63 São Paulo out./dez 2022  Epub 12-Fev-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n63.19770 

Resenhas

VESTÍGIOS: Diário Filosófico, de MARCO LUCCHESI. São Paulo: Tesseract Editorial, 2020. 84 p.

Alexandre Marzullo, Mestre em Ciência da Literatura (Letras)1 
http://orcid.org/0000-0003-3504-6458

1Mestre em Ciência da Literatura (Letras), Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Rio de Janeiro/ RJ, Brasil.

VESTÍGIOS: Diário Filosófico, , de MARCO LUCCHESI. São Paulo: Tesseract Editorial, 2020. p. 84


Em dezembro de 2020, o escritor, poeta, tradutor e ensaísta Marco Lucchesi publicou três livros inéditos: Vestígios: diário filosófico, tecido por aforismos; Margens da Noite, uma seleção de poemas do romeno Ion Barbu, organizados e traduzidos por Lucchesi; e Cultura da Paz, um livro de ensaios em prosa poética. Tais lançamentos simultâneos não são obra de um fortuito acaso: ao contrário, de certa forma constelatórios, o tríptico de obras parece pretender configurar um determinado autorretrato de Lucchesi; cada uma de suas terças-partes, assim, seria como um fragmento-matriz de uma obra maior, evocando o verdadeiro rosto do autor, ou, em sentido menos metafísico, sua bibliografia mais atual. É claro que, uma vez que cada um desses livros possui um escopo e uma concepção distintos e muito bem delineados, inclusive na própria forma de sua escrita - aforismos; tradução de poesias; prosa poética, respectivamente -, eles podem perfeitamente serem apreciados em sua exclusividade; e isto somente porque, dentro da inteligência crítica e poética de seu autor, cada uma de suas terças-partes, fractalmente, se abre em menores e ainda mais absolutos e inteiriços retratos do devir Lucchesiano, ainda que dentro de seus próprios limites. O procedimento é, sobretudo, ético: tu n’es rien d’autre que ta vie, como já disse Sartre. Pois bem: com tais considerações em mente, esta resenha se propõe a comentar sobre o livro Vestígios.1

Em seu memorial O Nariz do Morto, Antonio Carlos Villaça - autor caro a Lucchesi - narra a descoberta de sua vocação: “o destino seria escrever - exatamente, precisamente, escrever para não morrer”.2 De maneira semelhante, em Vestígios, Lucchesi estrutura sobre aforismos sua própria vocação poética: a escrita como leitura do mundo, e a leitura de si como sua reescrita: o autor escreve e se reescreve, porque se lê, e porque contempla as coisas, e assim existe, moto perpetuo. Este duplo movimento, claro, sugere uma dupla busca, que de fato está a nervo exposto no labiríntico Vestígios; ao longo de suas páginas, de um lado Lucchesi convive consigo mesmo; revisita seus próprios passos, sua formação, sua juventude; pergunta a si mesmo pelo seu rosto de ontem, e estranha o que encontra. E de outro, prepara-se para o desconhecido porvir, seu perene vir-a-ser, os desafios de hoje, e do amanhã; arregimenta forças: Artaud, Dostoievski, Hölderlin, Nietzsche, Kierkegaard, Platão, Plotino, Descartes, Wittgenstein, e tantos, muitos outros - faço injustiça ao iniciar uma lista -, são costurados, explicados, traduzidos pela caligrafia mercurial de seu autor. Lucchesi contém multitudes: as vozes de Nise da Silveira, Milton Freire e Rubens Correa, os muitos duplos, fragmentários, as ideias, os amores, os livros, a infância recuperada, seus pais, que lhe transmitiram a preciosa língua de Dante Alighieri, e assim lhe permitiram todas as outras, a camoniana grande dor das coisas que passaram… ressoa, ressoa o basso ostinato3 que guia o poeta. O que amas de verdade, permanece.4

É preciso asseverar, aqui, que a escrita aforística é um gênero literário dificílimo e tradicionalmente à margem da noite ocidental das ideias, esse grande céu escuro e estrelado a que chamamos, tradicionalmente, de conhecimento. Nesse sentido, a capacidade constelatória que os aforismos reúnem, em seu conjunto labiríntico, singularmente dodecafônico, não oblitera a potência de sua individualidade; ao contrário, a emancipa. De modo que sua fragmentariedade não deixa de ser um elogio da incompletude, como nos escravos de Michelangelo ou como na melhor parte da literatura Frühromantik; vestígios, ruínas: memória e esquecimento, ou alegorias para uma outra ordem de liberdades. Por tudo isso, por reunir reflexão e ato poético na mesma (e justa) medida, trata-se de um verdadeiro diário filosófico, um percurso de pensamento e de poesia, e que se nos exige fôlego, nos recompensa imenso. Literatura.

O adjetivo “labiríntico”, que reitero com ênfase, não é utilizado ao acaso ou por afetação do resenhista; segundo Ana Maria Haddad Baptista, a única forma de compreender, em sua abrangência, o conjunto de obras de Marco Lucchesi é através da concepção de uma “Estética do Labirinto, cujo fio de Ariadne é tecido pelo sublime. Fio de ouro que cintila. Eterno fascínio”.5 E como o basso ostinato de Lucchesi sugere, o segredo de seu sublime é musical, quasi adamante che lo sol ferisse:6

A Estética do Labirinto da literatura de Marco Lucchesi balança (...) a arquitetura do próprio labirinto, visto que a torna sonora e musical. Uma música que faz desmoronar os territórios e tremer a arquitetura (...) do labirinto. Sob tal ótica, nossas convicções abrem-se e dividem-se em intervalos. O Fio de Ariadne, neste caso, lança, relança, dança e define uma flutuação. (...) Tempo e memória pendulares, caudalosos, sinuosos, indissociáveis. Memórias musicais. Silêncios! Intervalos! Instantes! Duração! Proliferam-se as variáveis. Inclusive, variáveis independentes. Sutis! Enganosas! Armadilhas ardilosas (...) que somente um leitor atento poderá identificar (...).7

A imagem de um “Fio de Ariadne” é preciosa em “Vestígios”, que, se não disfarça sua recusa a uma linearidade, também não prescinde de uma sugestão de movimento; de fato, seus aforismos parecem compor uma escrita ascensional, por paisagens cada vez mais rarefeitas. E sobretudo, críticas; autocríticas; investigativas e, consequentemente, dolorosas (“poesia: fogo, gesto, sangue, grito”, escreve o autor, a partir de Artaud). Mas se a imagem é ascensional (o último capítulo, não por acaso, se intitula “Céu Noturno”), e se a referência primeira e última, íntima, de Lucchesi é sempre il summo poeta - “fonte secreta no deserto por onde vago. Não me peçam água salobra!”8 escreve, sobre Dante Alighieri -, então o ponto de partida deverá ser, necessariamente, ínfero. E assim o é; após o belo e profundamente metapoético primeiro capítulo, denominado “Círculo de Leitura”, onde desvela sua defesa da literatura, chamando atenção para a mística criativa que o ato da leitura encerra - “o coral dos leitores, atravessando os séculos, amplia o rumor das batalhas de Homero”9 -, Lucchesi perscruta tanto os seus próprios abismos quanto a abissal contemporaneidade de nossas tantas pestes10 e impossibilidades. É evidente que a urgência do escritor é também a nossa urgência, e que algo de sua batalha nos importa intimamente; vivemos uma tragédia moderna (ou contemporânea), isto é, sem catarse (“um buraco no céu” 11 na lição de Pirandello, recuperada pelo autor), e Lucchesi, inquieto, se volta com força e ímpeto para ela; perscruta suas raízes e, como poeta-demiurgo que é, faz da ubiquidade do desespero o seu material de criação: disegna, com os “Grafites do Trágico”.12

Mas, seja por graça do sublime ou pelo que for, sopram alívios na jornada. Variadas Afrodites pairam sobre o escritor: “(...) a terra é fecunda. Crescem flores novas e pujantes”, anota, no capítulo “A Poesia de Wittgenstein”.13 Lucchesi consulta Platão, e revisita sua afinidade com Plotino, “solitário, a sorver as primícias da contemplação”. E se reafirma como leitor-amante, como escritor de paixões, receptáculo do Ardor. Cartografa dimensões mais puras, mais líricas; oníricas: “Um mundo em ascensão. Desperta o sobrevoo de domínios transparentes. Esplende um sentimento vertical. Promessa de asas e altitude: Έπτɛρωμένος.”14 O vocábulo grego indica um sentido de uma mensageria alada (asas nos pés), a qual possui, como em Novalis, uma finalidade sempre amorosa; no entanto, ela acontece na solitude, na paciência solitária de seu voo de si para si. E talvez seja esta a imagem do verdadeiro amante, se aproximando pouco a pouco da forma amada15: “O lema de Plotino: fugir de solidão em solidão (...) a nostalgia do Uno e as cercanias abissais”.16

Confesso que, conforme o livro avança, neste modo dialógico consigo próprio que o autor desenvolve, em altitudes cada vez mais vorazes ao longo de seus aforismos, um sentimento persistente de beleza me invade, com a lembrança do pungente e longínquo Consolações da Filosofia, escrito por Boécio no século V; percebo uma semelhança na postura ética de ambos os pensadores, em face do terrível desagravo. E como em Boécio, as musas indicam o caminho e oferecem apoio para Marco Lucchesi, que nos acena enigmático, certamente sorrindo entre livros e pianos, de algum lugar de seu gabinete ocidental:

A poesia de Wittgenstein não reside na elegância dos aforismos. Tampouco na distribuição dos volumes semânticos. Mas na ligação conceitual, quase inefável, que acerca as ilhas do Tractatus como um infinito arquipélago.17

Há mais do que um mero jogo de espelhos aqui; se o Fio de Ariadne em Lucchesi é sempre o sublime, a melodia secreta de Vestígios é a convergência: “Convergem treva e luz no coração. Demasiada luz. Demasiada sombra”.18 E mais além: “Não há distância em altitudes místicas. O que vai perto e o que vai longe se convertem”.19 Esta conversão das distâncias se traduz em convergência de civilizações na cosmogonia do autor - e eis aí sua derradeira Babel: cultura da paz. Arguto, Lucchesi percebe o lampejo de tais traços na obra de René Descartes; resgata o pensador e recupera suas virtudes, emaciadas pelo uso vulgar do termo “cartesiano”, elogiando seu “vasto projeto cultural”.20 Faz todo sentido: a síntese de Descartes (a geometria grega e a álgebra da tradição árabe) fala profundamente à própria história de Marco Lucchesi; nas palavras precisas de Marcia Fusaro, “poesia-tradução de mundos complementares.”21 E coerentemente, o aceno a Descartes acontece como um sussurro de futuro: em Vestígios é nítida a aproximação que Lucchesi faz, e com muita consistência, da matemática como expressão rigorosa, porque abstrata, da Beleza e, portanto, do intangível: “Infinito gera infinito”22. Tudo converge, e portanto tudo se contamina com tudo.

O ápice de Vestígios, seu movimento final, é “Céu Noturno”, o derradeiro capítulo. Depois de encarar as pestes, de desafiar diversos panteões, de conjurar o amor (sem a tentação simplificadora do famoso brocardo)23, depois de rever “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”,24 e ainda assim, ter sido tanto, e com tanta estrada aberta para mais ainda; o que restaria ao escritor, ao retratista, ao matemático-em-formação, ao poeta-filósofo, senão as estrelas? “Pode-se perder tudo, desde que se continue a ser o que se é”, como ditara Goethe.25 O Fio de Ariadne não nos abandonou: “Céu Noturno” é um capítulo completamente sublime, e é na realidade o capítulo do lugar do sublime. “Espanto e maravilha: irrompe a fresca madrugada nos ardentes domínios da insônia”,26 escreve, sagitário, Marco Lucchesi. Abaixo, alguns dos sublimes aforismos finais do livro. E a pergunta lançada pelo autor, que repercuto para o sensível leitor: quem não suspira pela grande síntese?27

A intensa albedo de Júpiter capturou-me. O prodigioso alvor feminino. Tarefa de quem sonha é desenhar o céu.28

A erótica do espaço em Itacoatiara. O insaciável abraço dos montes. A luz de Vênus frente a cercania dos corpos.29

Amo as nebulosas de Órion e Cabeça de Cavalo. E o Saco de Carvão, em α da Cruz. Se me pedissem o endereço do sublime, diria sem hesitar M-8 e M-55. Fronteira de Escorpião com Sagitário.30

1Vestígios foi lançado somente em e-book, pela Tesseract Editorial.

2 VILLAÇA, Antonio Carlos. O Nariz do Morto, p. 39.

3“Baixo obstinado” ou basso ostinato é uma figura musical da música pautada, clássica, para a presença contínua e ritmada de notas graves durante a execução de um compasso musical ou de uma peça inteira. Marco Lucchesi utiliza o termo em seu prólogo aludindo a uma imagem orgânica da coesão de seus escritos (cf. Vestígios, p. 13). A mesma expressão fora utilizada pelo autor no prólogo de sua obra Carteiro Imaterial, livro de ensaios publicado em 2016 pela Ed. José Olympio (p. 9).

4POUND apud VILLAÇA, op. cit., p. 12 (tradução de Antonio Carlos Villaça).

5 BAPTISTA, Ana Maria Haddad. “Estética do Labirinto-Tempo-Memória na literatura de Marco Lucchesi”. In: Estética da Labirinto: a poética de Marco Lucchesi, p. 12.

6ALIGHIERI apud LUCCHESI, Vestígios, p. 56 (a referência é o Canto II, 33 do Paradiso).

7BAPTISTA, op. cit., pp. 12, 13

8 LUCCHESI, op. cit., p. 53. Obs.: deste momento em diante, todas as citações entre aspas serão notações diretas de Vestígios, a não ser que diferentemente apontado.

9 p. 17.

10 Faço uma alusão direta ao terceiro capítulo de Vestígios, intitulado “A Peste”.

11 pp. 35, 36.

12 Alusão ao quarto capítulo de Vestígios, intitulado “Os Grafites do Trágico”.

13 p. 65.

14 p. 50.

15 Cito, ladinamente, o próprio Marco Lucchesi aqui. Vestígios, p. 50.

16 p. 50.

17 p. 66.

18 p. 55.

19 p. 57.

20 p. 60.

21 FUSARO, Marcia. “A Flauta, A Lua e As Cartas”. In: Estética da Labirinto: a poética de Marco Lucchesi, p. 30.

22 p. 60.

23Omnia vincit amor.

24 Bandeira, Manuel. Estrela da Vida Inteira, p. 107.

25 GOETHE apud VILLAÇA, op. cit., p. 12.

26 p. 76.

27 p. 78.

28 Idem.

29 Idem.

30 P. 79.

Referências

BANDEIRA, Manoel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. [ Links ]

BAPTISTA, Ana Maria Haddad, FUSARO, Marcia & LAURITI, Nádia Conceição (orgs.). Estética do Labirinto: a poética de Marco Lucchesi. São Paulo: BT Acadêmica, 2019. e-book. [ Links ]

BARBU, Ion. Margens da Noite (seleção e tradução por Marco Lucchesi). São Paulo: Patuá Editorial, 2020. [ Links ]

CICERO, Antonio. A Poesia e a Crítica: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. [ Links ]

LUCCHESI, Marco. Saudades do Paraíso. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1997. [ Links ]

LUCCHESI, Marco. Os Olhos do Deserto. São Paulo: Big Time Editora, 2019, e-book. [ Links ]

LUCCHESI, Marco. Vestígios. São Paulo: Tesseractum Editorial, 2020, e-book. [ Links ]

VILLAÇA, Antonio Carlos. O Nariz do Morto. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 1975. [ Links ]

Recebido: 31 de Março de 2021; Aceito: 07 de Agosto de 2021

Editor Chefe: Prof. Dr. José Eustáquio Romão

Editor Científico: Profa. Dra. Adriana Aparecida de Lima Terçariol

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