Introdução
O artesanato compreende diversas técnicas manuais utilizadas para produzir objetos e, entre tais modalidades, encontra-se o crochê, o qual é feito a partir do entrelaçado de um determinado fio, linha ou lã. A palavra “crochê”, derivada de um termo existente no dialeto nórdico, significa “gancho”, referindo-se à extremidade da agulha utilizada que engancha os pontos. Embora existam divergências entre os historiadores em relação à origem do crochê, acredita-se que a maneira como este é feito nos dias de hoje tenha se originado no século 16. Já os amigurumis surgiram bem mais recentemente, oriundos do crochê. Neste trabalho, entende-se por amigurumis os bonecos feitos por meio do crochê, sendo uma técnica de artesanato que teve origem nos anos de 1950, no Japão, e se popularizou a partir de 2002, por meio de livros e revistas em japonês com o passo a passo dos modelos trançados à mão, através de uma agulha dotada de gancho (Ramirez Saldarriaga, 2016).
Mas o que o artesanato tem a ver com as Ciências Morfológicas? Tudo. Existem experimentos que mostram a aplicação dos modelos anatômicos produzidos a partir de variadas técnicas artesanais como uma alternativa de baixo custo que pode ser utilizada para fins educacionais (Silva et al., 2019; Onuk et al., 2019; Rocha et al., 2017; Silva, 2019; Souza, 2019).
A Anatomia é uma das disciplinas mais importantes dos cursos de Ciências Agrárias, Biológicas e da Saúde, pois oferece aos alunos oportunidade de aprender a estrutura e a função do corpo (seja humano ou animal), de adquirir competências profissionais, como trabalho em equipe, habilidades interpessoais, autoconsciência, e de refletir e praticar a ética médica (McDaniel et al., 2021).
Não sendo possível aprender a práxis médica sem compreender a forma e a função das partes do corpo (Ross et al., 2021), os estudantes de Medicina Veterinária devem adquirir, logo no início da vida acadêmica, os conhecimentos anatômicos para construir uma fundação sólida para suas futuras práticas clínicas e cirúrgicas (Clifton et al., 2020). Embora a Anatomia seja uma disciplina estimulante, ela também é considerada desafiadora pelos ingressantes na graduação, muitos deles recém-chegados do ensino médio, pois exige estudo científico aprofundado de um conteúdo novo e cada vez mais amplo, vocabulário próprio, nomenclatura extensa e riqueza de detalhes. Sua essência é o aprendizado através da visualização, seja mediante as aulas práticas com cadáveres ou ainda mediante o uso de imagens (Infantosi; Klemt, 2000).
Tradicionalmente, a Anatomia é estudada de maneiras distintas: uso de tratados (livros-textos), atlas (livros com imagens) e cadáveres. Por meio dos textos, o leitor tenta “imaginar” as complexas relações anatômicas. Os atlas apresentam o conteúdo em forma de desenhos esquemáticos ou fotografias de peças anatômicas reais, ficando o estudante limitado às ilustrações apresentadas pelos autores e, muitas vezes, não tendo acesso à representação de todas as vistas possíveis e desejáveis ao estudo (Infantosi; Klemt, 2000).
Nesse contexto, os estilos de aprendizagem para universitários, conforme os indicadores de Myers-Briggs, são mais eficazes por meio das técnicas que envolvem múltiplos sentidos (Ramachandran et al., 2020). Assim, é notório que os estudantes retêm 20% do que ouvem e 40% do que veem, mas 75% do que eles ouvem, veem e, também, interagem (Grunwald; Corsbie-Massay, 2006). Logo, diversos recursos instrucionais podem ser utilizados para melhorar o desempenho acadêmico, especialmente por gerarem interação entre o estudante e o objeto de estudo.
Um recurso instrucional pode ser definido como qualquer elemento utilizado nos procedimentos de ensino-aprendizagem para estimular a percepção e a atenção do aluno. Atualmente, um professor não deve simplesmente transmitir conhecimentos ou informações, mas também apontar aos seus discentes o modo de aprender e buscar o prazer do descobrir aula após aula. Por isso, o simples ato de estudar deve ser o mais agradável e amigável possível, ainda que a aquisição de conhecimentos sempre exija perseverança e dedicação (Yoshida et al., 2003).
A Anatomia Comparativa, como o nome indica, estabelece comparações entre os aspectos anatômicos de diferentes espécies animais (Di Dio, 1998). Desde 1955, a preocupação em aplicar o conhecimento anatômico, contrapondo-o entre os variados animais domésticos, já era percebida por Robert Getty, em sua primeira edição do livro Atlas de Anatomia Veterinária Aplicada (Getty, 1964), e, depois, com os dois volumes de Anatomia dos Animais Domésticos (Getty, 1986). Além dessas obras, as referências bibliográficas básicas e complementares das disciplinas de Anatomia integrantes das propostas curriculares dos cursos de graduação de Medicina Veterinária no Brasil constituem-se, em sua maioria, de livros ilustrados que abordam o estudo de cães e gatos, equinos, ruminantes (bovinos, ovinos e caprinos) e suínos, sendo as indicações mais rotineiras as obras dos autores Singh (2019), König e Liebich (2016) e Popesko (2011).
Nos últimos anos, mudanças têm ocorrido nos métodos de ensino de Anatomia, visto que a redução no uso de cadáveres, com as restrições de tempo de aulas práticas, a falta de infraestrutura laboratorial e o número limitado de técnicos treinados nas universidades levam os professores anatomistas a pesquisar novas abordagens para favorecer o aprendizado de seus alunos (Finn, 2015).
Assim, uma variedade de recursos e estratégias de ensino pode ser aplicada às Ciências Morfológicas. Apesar do método tradicional baseado nas dissecações de cadáveres ser a principal ferramenta instrucional nessa área do conhecimento, os métodos alternativos têm sido adotados como complementares ao ensino-aprendizagem, especialmente no que tange ao campo da Anatomia e da Arte (Estai; Bunt, 2016).
Historicamente, a dissecação de corpos de animais e humanos sempre atraiu muito interesse do público em geral, principalmente nos teatros anatômicos construídos durante o século 17 nas principais universidades da Europa. Mesmo antes desses tempos, durante o Renascimento, um artista era um homem dotado não somente de grande adestramento da mão e de conhecimentos dos materiais artísticos, mas, também, de conhecimentos em matérias diversas, inclusive em Ciências Morfológicas, sendo um dos maiores nomes dessa época Leonardo da Vinci, que unificou o conhecimento anatômico obtido através da dissecação à representação artística (Bouchernon; Giorgione, 2014). O ensino da Anatomia Animal também recebeu contribuições de diversos outros artistas-anatomistas, especialmente na elaboração de ilustrações, publicando nos atlas imagens fidedignas para Anatomia Comparativa entre as diversas espécies (Bainbridge, 2018; Graciano, 2019). Assim, tem-se que a autenticidade na Arte costuma enfatizar a importância da criatividade do autor e da originalidade da obra (Adkins, 2019).
A modelagem de órgãos para o estudo da Anatomia está sendo redescoberta, dado que sua utilização teve início nos séculos 16 e 17. Somente em meados do século 18, quando os cadáveres foram mais prontamente disponíveis, é que a modelagem anatômica passou a ser substituída pela dissecação, sendo este o método até hoje mais habitual para estudos anatômicos (Ballestriero, 2010). Tal modelagem pode ser uma alternativa capaz de agregar elementos úteis ao ensino de Anatomia na graduação, destacando sua característica de metodologia ativa tão em evidência atualmente devido ao poderio que agrega ao processo de aprendizagem. Acredita-se que os alunos que têm experiência com modelagem certamente gastam menos tempo para a assimilação do conteúdo didático.
Como atualmente é fundamental oferecer aos jovens outras possibilidades de pensar o mundo e as artes, a modelagem pode favorecer essas situações, em particular quando aplicada ao ensino de Morfologia. Aqui, dois aspectos devem ser considerados quando se utiliza a modelagem de órgãos como subsídio nas disciplinas de Anatomia: i) a necessidade de um estudo teórico prévio sobre a anatomia do órgão nos critérios de forma, situação e relações anatômicas; e ii) a aplicação de uma técnica que colabore na construção de modelos finais com as características anatômicas do órgão num tempo de execução aproximado à duração de uma aula prática de Anatomia (Menezes; Sereno, 2020). Portanto, abrir diferentes formas de interpretação do corpo animal, incentivar os estudantes a trabalhar o fortalecimento da criatividade, da capacidade de expressão e de compreensão científica através do artesanato, sob o contexto de um mundo hiperconectado durante a pandemia de covid-19, pode trazer um respiro da atenção e produzir experiências de problematização em Ciências Agrárias.
Este artigo objetiva apresentar o artesanato, por meio da técnica de crochê, como ferramenta para ensino-aprendizagem de Ciências Morfológicas, como método complementar ao processo instrucional da Anatomia Comparativa. Entretanto, por ser uma primeira experimentação do uso da confecção de amigurumis para fins de ensino de Anatomia, trata-se de uma prática/estudo exploratório que demanda mais análises para se avaliar sua potência para tais fins no ensino superior.
Materiais e método
O presente relato de experiência é um breve recorte do projeto de pós-doutorado intitulado Métodos complementares de ensino-aprendizagem de Anatomia Comparativa, em desenvolvimento no Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP).
Os estudantes do primeiro ano do curso de graduação em Medicina Veterinária da Universidade Nove de Julho (Uninove, campus Memorial) que já possuíam experiência prévia com crochê foram convidados pela docente a moldar peças anatômicas para ensino-aprendizagem a respeito da forma e da função de estruturas anatômicas presentes em animais domésticos. A confecção dos modelos artesanais foi realizada manualmente com lãs e linhas coloridas, agulha de três a quatro milímetros (dependendo do tipo e da espessura do fio usado em cada trabalho) e fibra sintética para enchimento. Essa atividade foi levada em consideração para avaliação continuada de tais alunos na disciplina de Morfofisiologia Animal.
A elaboração das peças ocorreu em domicílio; no entanto, os estudantes tiveram constante orientação da professora quanto aos detalhes anatômicos que deveriam ser por eles crochetados. Cada receita de amigurumi é representada por fórmulas que podem ser divididas em três fases básicas, conforme se observa no Quadro 1. Tais fórmulas são constituídas por números, bem como por abreviaturas específicas da técnica de crochê (Quadro 2). Os estudantes tiveram autonomia para pesquisar e adaptar as receitas necessárias para elaboração dos modelos específicos.
Como exemplo, tem-se a seguinte fórmula: 1carr: 6pb no AM (6pts.), em que 1 indica o número da carreira ou da volta (tal número não corresponde a nenhum ponto, sendo apenas a indicação do início de uma nova carreira). No exemplo, a primeira carreira deve ser feita com seis pontos baixos no anel mágico, sendo que a primeira carreira da receita tem seis pontos no total.
Em muitas receitas, há repetições de pontos, sendo indicadas geralmente por parênteses, colchetes ou asteriscos: 1carr:(1pb+1aum) x 6 (18pts.). Assim, tem-se a indicação de qual carreira de pontos deve ser repetida, seguida pela indicação de quantas repetições devem ser feitas; ou seja, uma carreira com repetição de um ponto baixo (um elemento) mais um aumento em ponto baixo (que corresponde a dois elementos), repetindo-se seis vezes, ao final, formará carreira com 18 pontos.
Resultados e discussão
Quatro grupos de estudantes, do gênero feminino, confeccionaram artesanalmente as peças e as apresentaram em sala de aula durante arguição coletiva quanto às estruturas anatômicas (forma e função) representadas por meio da técnica de crochê, relacionando os modelos sintéticos ao conteúdo das aulas teóricas e práticas. Os amigurumis (Figuras 1 a 7) foram constituídos por formas geométricas esféricas e cilíndricas, e seus tamanhos variaram entre cinco e 35 centímetros.
Entre esses, dois grupos abordaram o aparelho respiratório, embora um tenha criado o amigurumi em lã (Figura 1) e outro em linha (Figuras 2 e 3). A característica dos pulmões de maior significado para macroscopia é o padrão de lobação desses órgãos. Assim, o ensino da identificação dos pulmões de cada espécie animal (incluindo o homem) é efetivado com base no reconhecimento da anatomia topográfica de cada lobo pulmonar. Embora os dois pulmões sejam macroscopicamente semelhantes e espelhados um ao outro quanto à forma, o direito é sempre um pouco maior que o esquerdo, visto que essa discreta assimetria se deve à posição inclinada do coração no mediastino.
Fonte: Imagem do acervo da pesquisadora Catia Massari.
Nota: os alvéolos pulmonares foram representados por miçangas fixadas ao amigurumi; tais espaços em forma de saco são onde as trocas gasosas ocorrem através de um delgado epitélio pavimentoso intimamente relacionado com os capilares pulmonares
Fonte: Imagem do acervo da pesquisadora Catia Massari.
Nota: ao centro, observa-se o coração localizado no mediastino
Fonte: Imagem do acervo da pesquisadora Catia Massari.
Nota: a carina traqueal é a região de bifurcação da traqueia, onde se originam os dois brônquios principais
Os resultados desses dois grupos corroboram com as evidências de Cieri e Farmer (2016), Farmer (2017) e Icardo (2018), que apontam para a grande diversidade de morfologias pulmonares observadas em diferentes espécies de vertebrados, possuindo estes um pulmão direito e um esquerdo.
O ensino da morfologia dos pulmões não pode deixar de lado a fisiologia deles. Desde o primeiro ano do curso de graduação em Medicina Veterinária, é fundamental o docente abordar a função pulmonar, que é primordialmente a hematose alveolar através da capacidade de expansão do parênquima pulmonar, permitindo o intercâmbio de O2 e CO2, por meio de difusão desses gases, e, consequentemente, promovendo o processo de reoxigenação do sangue venoso, que se torna arterial. Portanto, isso vai ao encontro dos resultados publicados por Ramalho e Shah (2020), na Medicina humana, e por Balakrishnan e Tong (2020), na clínica médica de pequenos animais, especialmente ao abordarem a importância do estudo da função pulmonar aplicada à fisiopatologia das inúmeras doenças cardiovasculares.
O terceiro grupo optou pela abordagem da placentação comparada por meio de um conjunto de amigurumis feitos em linha, conforme as Figuras 4 a 6. Os modelos crochetados demonstram que, entre as espécies domésticas, uma interação mais intensa entre as membranas fetais e o endométrio uterino da mãe ocorre em carnívoros, como cães e gatos, por meio da placenta zonária. Menos complexa que esta é a placenta dos ruminantes, como bovinos, ovinos e caprinos, a qual é cotiledonária, apresentando diversos placentomas. Por sua vez, menos complexa ainda é a placenta dos suínos (e equinos também), pois as vilosidades do cório não penetram tão profundamente no endométrio. O grupo também representou, através de amigurumi, o tipo mais complexo de placenta, no caso, a discoidal (não observada nas espécies domésticas), a qual apresenta vilosidades coriônicas concentradas numa região em forma de disco, fazendo com que o cório penetre mais profundamente na parede uterina de primatas (humanos e não humanos) e roedores.
Fonte: Imagem do acervo da pesquisadora Catia Massari.
Nota: em I, observam-se os pontos de interação entre as membranas fetais e o endométrio materno: placenta difusa de suíno (A), placenta cotiledonária de ruminante (B), placenta zonária de carnívoro (C) e placenta discoide de primata (D). Em II, observa-se que, através de uma abertura de zíper localizada ventralmente na pelve dos modelos anatômicos, é possível remover completamente a placenta para visualizar a distribuição macroscópica das vilosidades coriônicas, ou seja, das pequenas projeções da superfície do cório, que, quando unidas às depressões da superfície do endométrio uterino da mãe, constituem áreas de trocas materno-fetais
De acordo tanto com Getty (1986) como com König e Liebich (2016) e Singh (2019), existem três maneiras de classificar as placentas. O primeiro modo é conforme a distribuição macroscópica das vilosidades coriônicas; o segundo é pela interposição das seis camadas de tecido (endotélio capilar coriônico, tecido conjuntivo, epitélio, epitélio endometrial, tecido conjuntivo e endotélio capilar) que separam a circulação sanguínea fetal e materna. O terceiro modo se refere ao grau da perda de tecido que ocorre durante o parto (placentas decíduas e não decíduas), e, por fim, o quarto modo é pela histologia, que define diferentes graus da permeabilidade placentária (as diferenças na barreira em relação à passagem de imunoglobulinas G - IgG são de particular relevância ao ensino de Medicina Veterinária). Diante disso, observa-se que o grupo optou por classificar as espécies conforme o primeiro modo, em que as vilosidades do cório foram representadas por linha mais avermelhada na superfície de cada tipo placentário.
Finalmente, o quarto grupo abordou o aparelho urogenital confeccionando pela técnica em crochê (Figura 7). Foram produzidos modelos de um par de rins (órgãos que formam a urina a partir da filtração glomerular do sangue), ureteres (canais que transportam a urina a partir dos rins), vesícula urinária (local de armazenamento da urina até o momento da micção) e uretra (canal que transporta a urina a partir da vesícula urinária até o meio externo).
Fonte: Imagem do acervo da pesquisadora Catia Massari.
Nota: observa-se (pontilhado em amarelo) o trígono vesical, isto é, uma região triangular onde os vértices compreendem os dois meatos ureterais e a parte proximal da uretra
O resultado desse grupo mostra ser essencial para a abordagem da região côncava na face medial de cada rim, pois é aí que se conecta a pelve renal ao ureter, artéria renal, veia renal, além de vasos linfáticos e nervos que adentram ou emergem do hilo renal. Assim, o presente manuscrito vai ao encontro do publicado por Moraes e Colicigno (2007, p. 162), que, ao realizarem um estudo morfofuncional dos rins, afirmam a importância do hilo renal como uma região “que permite a entrada e saída de estruturas dos rins”, de modo a manter a homeostase do organismo. Os autores também enfatizam a aplicação clínica do estudo das demais estruturas anatômicas do aparelho urogenital, uma vez que qualquer deformação ou desequilíbrio no funcionamento das estruturas pré, intra e pós-renais pode desencadear graves patologias renais, cardiovasculares, hemodinâmicas e neurológicas, prejudicando a qualidade de vida dos pacientes.
Outra região abordada no amigurumi do aparelho urogenital foi o trígono vesical, um local que, aparentemente, possui uma origem embrionária diferente da origem do restante da parede da vesícula urinária e acredita-se que apresente sensibilidade exacerbada, tendo importância cirúrgica quando se trata da anatomia topográfica (Singh, 2019).
Todavia, adverte-se que tais criações, embora sejam um belo relato de uma prática, demandam acompanhamento futuro de pesquisa com a finalidade de verificar o desempenho acadêmico das participantes-artesãs a longo prazo.
Contudo, acredita-se que a melhor maneira de ensinar e aprender Ciências Morfológicas, nos dias de hoje, é combinando vários recursos pedagógicos para complementar uns aos outros. Observou-se que a aplicação dos amigurumis nas aulas promoveu grande entendimento sobre Anatomia Comparativa às estudantes que participaram da criação das peças artesanais. Ademais, houve uma intensa aproximação entre as estudantes e o artesanato numa especialidade que teve sempre relação muito estreita com a Arte. A produção dos modelos tridimensionais permanentes em lã ou linha certamente possibilitará o uso destes nas futuras aulas da disciplina, sendo também materiais didáticos que podem ser manuseados em espaço não formal de ensino. Nesse último ponto, o este artigo concorda com os resultados de Amaral (2018), em que a maioria dos acadêmicos questionados acredita ser possível aprender Anatomia sem estar propriamente no ambiente tradicional de ensino, como o laboratório.
Embora não tenham sido encontradas, até então, publicações que relacionem as Ciências Morfológicas especificamente com a técnica de crochê, sabe-se que a anatomia artística é o estudo da morfologia externa e interna do corpo para fins de criação pictórica ou escultural. Com isso, a Anatomia se relaciona tanto com a Medicina como com a Arte, sendo considerada Ciência e Arte em simultâneo (Di Dio, 1998).
Nesse contexto, os efeitos de métodos complementares de ensino concernentes ao desenvolvimento processual e técnico dos alunos já são verificados por alguns pesquisadores. A produção de desenhos pelos estudantes durante o aprendizado de Anatomia Veterinária e as oficinas de desenho por eles organizadas demonstraram ser uma ferramenta importante, pois permitiram um aprendizado autodirigido em cursos que substituíram as dissecções de cadáveres, as quais foram canceladas durante a pandemia de covid‐19 (Laakkonen, 2020). Ademais, devido às restrições causadas pela impossibilidade de aulas presenciais, aumentou-se a necessidade de encontrar alternativas educacionais que fornecessem as medidas de segurança necessárias, ao mesmo tempo em que minimizassem a defasagem acadêmica (Alsharif et al., 2020). Aqui, entende-se que os amigurumis se fizeram recursos instrucionais importantes, uma vez que puderam ser desenvolvidos em casa durante tempos de isolamento social.
Também se acredita que o artesanato possa ter ampliado o desenvolvimento cognitivo dos discentes, visto que a cognição implica a atividade de dois procedimentos distintos e especializados para se representar e processar a informação: um procedimento verbal, para tratar diretamente com a linguagem, e outro não verbal, especializado para tratar de eventos e objetos não linguísticos. Ao se dispor de alguma informação, essas partes se adaptam às diferentes modalidades em que se apresentam: visão, audição, tato, olfato e gustação. Por certo, os estudantes que foram expostos simultaneamente a aulas de Anatomia e atividades hands on, como a apresentada pelo presente trabalho, poderão obter melhores resultados acadêmicos, sendo esse fato denominado “efeito aditivo”. Logo, quando tais conhecimentos se somam, as informações memorizadas dessa maneira permitem ser recuperadas mais facilmente pelas alunas-artesãs (Carvalho, 2002).
Ao analisar como os profissionais da área da Saúde aprendem, existem dois principais paradigmas educacionais dos séculos 20 e 21: o objetivismo clássico, que trouxe algumas consequências geradoras de impasses para a prática médica ao fazer com que o estudante foque na doença e exclua as dimensões subjetivas do adoecer nos pacientes, e o construtivismo, que tem como pressuposto um estudante ativo e construtor do próprio conhecimento, o qual aprende o “fazer” em saúde utilizando uma série de saberes, competências e habilidades (Burke, 2020). Diante disso, o estudo realizado sobre a confecção de amigurumis para fins de ensino de Anatomia apresenta uma relação intrínseca com o construtivismo.
Na educação científica, a transição que ocorre do objetivismo para o construtivismo é uma mudança vista com otimismo, já que concepções completamente diferentes (ontológicas, epistemológicas e axiológicas) existem entre esses dois paradigmas. Perante a perspectiva construtivista, enfatiza-se oferecer aos estudantes oportunidades para que compreendam a necessidade de desenvolver conhecimentos, aptidões e atitudes, permitindo-lhes conectar suas aprendizagens prévias, oriundas de suas particularidades culturais, à futura utilidade daqueles conteúdos ministrados no ensino superior. Os alunos tomam, então, consciência junto aos seus pares de que aprender é importante para eles, decidindo sobre os meios através dos quais a aprendizagem possa ser explorada. Assim, o aprendiz tanto resolve problemas como examina soluções, sendo tal visão curricular muito mais próxima ao verdadeiro cotidiano dos cientistas (Davis et al. 1994).
Em contraste com o paradigma objetivista de aprendizagem, o construtivismo oferece uma visão alternativa factível ao ensino de Ciências. As contribuições para o construtivismo provêm, basicamente, de três pensadores, que fazem uma interlocução com o tipo de trabalho artesanal aqui descrito: i) Vygotsky: por propor que a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial, denominada de zona de desenvolvimento proximal, engloba funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação pelos estudantes de Anatomia que receberam a colaboração de pessoas mais experientes, como docentes, colegas e familiares; ii) Bruner: por propor a teoria dos andaimes, em que a professora fornece uma orientação cuidadosamente programada, reduzindo a quantidade de assistência à medida que o aluno progride no aprendizado da tarefa de confeccionar peças anatômicas fidedignas; e iii) Piaget: por propor esquemas de ação que são formas como o estudante interage com o mundo, organizando mentalmente a realidade que o cerca em casa para entendê-la no contexto do ensino superior (Burke, 2020).
A função docente na sala de aula de Ciências Morfológicas também se altera no paradigma construtivista, deixando a professora de ser uma fonte absoluta detentora de conhecimento ao tornar-se uma pesquisadora que investiga como os seus alunos estão construindo o conhecimento. Logo, este estudo corrobora com Davis et al. (1994), pois percebeu-se que há maneiras alternativas de encarar a realidade para resolver problemas, além de as participantes da atividade terem tomado consciência de que aprender é uma responsabilidade que diz respeito a elas próprias, exigindo autonomia e criatividade. Ao se propor alternativas para o ensino-aprendizagem, as estudantes tiveram a oportunidade de experienciar escolhas, construir modelos anatômicos a partir de suas vivências e competências pessoais que fazem sentido para elas, desenvolvendo um entendimento compartilhado e, ao mesmo tempo, responsabilizando-se pela atividade elaborada ao valorizar as diferenças individuais de cada modelo didático produzido.
Ademais, teorias educacionais (fora da Medicina) mostram que a aprendizagem é amplamente incrementada quando ocorre uma combinação de aprender fazendo (comportamentalismo), aprender pensando (cognitivismo) e aprender interagindo com outras pessoas (socioconstrutivismo). Ao considerar as três teorias educacionais mencionadas, pode-se traçar um paralelo entre elas e a práxis em cirurgia: se o behaviorismo é sobre “fazer” e o cognitivismo é sobre “pensar”, parece sensato considerar que uma visão holística da prática cirúrgica também deva incluir a interação com a equipe (construtivismo social) (Grounds, 2021). Por isso, a Anatomia integra o departamento de cirurgia e os resultados deste trabalho fortalecem o construtivismo social ao teorizar que os estudantes criam significados com base em suas experiências e interação com os outros ao invés de passivamente adquiri-los.
Durante a experiência relatada, indiretamente ocorreu a inclusão de membros da família (especialmente os idosos) como cocriadores das peças de artesanato, contribuindo sobremaneira como fonte potencial para o desenvolvimento criativo de um processo curricular colaborativo. Todavia, verificou-se que, embora um ensino-aprendizagem mais inovador esteja ganhando espaço nas salas de aula, é necessário que os professores estejam atentos como orientadores da tarefa, sendo responsáveis por guiar a criatividade de seus alunos em confluência com a responsabilidade e o rigor da instrução acadêmica.
Por fim, é notório que a habilidade e o treinamento nas mais diversas técnicas artísticas são características compartilhadas entre os grandes anatomistas do passado e, também, da era contemporânea (Amorim Junior et al., 2018). Consequentemente, o desafio hoje é associar os conteúdos às novas ferramentas para a produção de peças anatômicas tanto em qualidade como em quantidade satisfatória para atender turmas cada vez mais numerosas.
Conclusão
Os resultados sustentam as relações entre a teoria construtivista e a prática das aulas desenvolvidas em casa pelos estudantes durante a pandemia. Esta pesquisa, de natureza exploratória, certamente permitiu refletir acerca de como ensinar Anatomia de forma alternativa e possibilitar um maior envolvimento dos estudantes no processo de aprendizagem, em tempos de ensino remoto, a partir de uma perspectiva construtivista. Tal perspectiva permitiu a inclusão da confecção dos amigurumis para fins de avaliação da aprendizagem em Anatomia, uma vez que os estudantes não foram julgados somente com base em um conhecimento específico, mas, sim, a partir de suas capacidades em resolver o problema da criação das peças anatômicas em domicílio com uma solução viável.
Conclui-se que é possível a criação de modelos sintéticos em crochê de relativa semelhança com as peças anatômicas originais. Os amigurumis foram desenvolvidos com materiais de fácil acesso, textura macia e baixo custo, sendo uma técnica de artesanato em potencial para ser aplicada ao ensino de Ciências Morfológicas. Afinal, como a Arte está nos primórdios da Anatomia e deverá continuar andando lado a lado com a disciplina, o artesanato também pode auxiliar na formação de novos profissionais.
Todavia, é importante considerar a necessidade de aprofundamento acerca das limitações do material e suas características para o ensino em Ciências Morfológicas. Por isso, novos estudos devem aprofundar a problematização sobre potencialidades e limites do recurso metodológico utilizado nesta pesquisa.