Ao adentrar o espaço da sala de aula, vemos um local no qual circulam e interagem sujeitos com papéis sociais específicos e distintos: professores e alunos. Esse espaço, durante o período de um ano letivo, se configura como cenário de uma relação sui generis - relação de ensino e de aprendizagem, em que os enunciados desses sujeitos, em sua maioria, se voltam para a apropriação do conhecimento.
Vistos sob a perspectiva de Certeau (2014 [1990]), os alunos, sujeitos ordinários, se constituem como detentores de um saber próprio das práticas cotidianas, “um saber sobre o qual os sujeitos não refletem. Dele dão testemunho sem poderem apropriar-se dele. São afinal os locatários e não os proprietários do seu próprio saber-fazer” (p. 134). Assim, ao analisarmos seus enunciados, podemos reconhecer indícios de seus saberes e dos sentidos que vão sendo produzidos nas relações cotidianas de ensino e de aprendizagem.
No empenho de olhar mais atentamente aos enunciados dos alunos de uma escola municipal, localizada na cidade de Paulínia3, buscando compreender que condições de produção mobilizavam os sentidos em circulação e em que práticas pedagógicas eles se enraizavam, é que foi tecida a pesquisa de Mestrado, da qual um episódio ora focalizaremos.
A referida pesquisa toma como recurso de geração de dados um caderno, em que se registrava acontecimentos cotidianos que chamavam atenção por se tratarem de situações de interlocução entre os alunos, ou deles com a professora4. Durante o percurso em que se constituiu essa pesquisa, alguns episódios foram escolhidos por suscitarem questionamentos acerca da produção de sentidos e de como, em seus enunciados, os alunos indiciavam seus modos de elaboração dos conteúdos científicos e culturais com os quais trabalhavam.
Consideramos o caderno também como uma ferramenta cotidiana do trabalho pedagógico, pois o uso de tal recurso possibilitou a revisão da prática docente que ali era desenvolvida. Por meio dele, é possível perceber as maneiras de fazer dos sujeitos ordinários (alunos e também a professora). Acontecimentos simples, como a transgressão de uma regra, vistos sob a perspectiva de Certeau, por exemplo, indicam as resistências desses sujeitos à ordem dominante.
Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sociopolítica (CERTEAU, 2014 [1940], p. 40).
Para registrar o que se vivencia é necessário voltar a atenção para aquilo que o trabalho pedagógico poderia considerar não-significativo, por não se tratar de um conteúdo ou um saber sistematizado. Ainda que a força exercida pelas normas, burocracia e múltiplas funções de conduzir, controlar, cuidar e ensinar as crianças colabore para que muitos indícios “se percam” em meio a essa roda-viva, o relato escrito do cotidiano contribui para que esses sentidos sejam explicitados, ampliando a capacidade de ver e analisar os acontecimentos do chão da escola (SILVA, 1998).
Os relatos no caderno eram feitos sempre após o período de aula, privilegiando as situações de interação entre a professora e os alunos e entre eles mesmos. Vale destacar que não houve transcrição de gravação de áudios. As anotações, portanto, explicitam o modo como a realidade e os acontecimentos do cotidiano da sala de aula foram ressignificados pela professora da turma, assumindo-se essa condição limite de geração de dados. Nessa perspectiva, não há como separar a professora da pesquisadora, pois ambos os papéis se intercruzam, configurando um só sujeito. É importante salientar que, no intuito de preservar a identidade dos sujeitos envolvidos na pesquisa, os nomes dos alunos são fictícios e o trabalho foi autorizado pela direção da escola.
A escola, em que a professora atua desde 2014, quando ingressou nessa rede de ensino, é uma das 13 unidades de Ensino Fundamental I e está localizada em um bairro periférico, cuja população é composta por muitos migrantes, principalmente vindos da região nordeste do país. Ela atende aproximadamente 800 alunos deste e de outros bairros próximos, nos períodos matutino e vespertino. A maioria chega de ônibus de empresas contratadas pela prefeitura para prestar este serviço.
Há dezesseis salas de aula, distribuídas em um único corredor, uma sala de leitura5, uma sala de jogos6, duas quadras sem cobertura, parque, um grande refeitório, dois banheiros femininos e dois masculinos, uma sala de Educação Especial, duas salas de recuperação, sala dos professores, secretaria, sala de direção e de apoio pedagógico (coordenação).
O episódio que ora focalizaremos, vivido em 2016, se configura como uma atividade rotineira de produção de texto coletivo (paráfrase de um conto). Essa atividade foi sugerida por uma colega, professora de outra turma de 5º ano. Antes de escreverem coletivamente a paráfrase, foi lido o conto (a professora leu e as crianças ouviram) e houve também a leitura de uma das produções escritas dos alunos de outra turma. Naquele ano, havia na escola oito professoras de 5º ano. O planejamento dos conteúdos a serem trabalhados era feito coletivamente e, sempre que possível, buscava-se compartilhar também as atividades. Por isso a leitura do texto coletivo da turma parceira foi feita junto com a leitura do conto selecionado.
A produção de textos coletivos se constituiu como uma prática comum nas aulas de Língua Portuguesa, entre a maioria das professoras da referida escola. Isso se deu principalmente após a então diretora, que também ocupou a função de orientadora do Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), solicitar que as produções coletivas de texto acontecessem pelo menos uma vez ao mês. Por meio delas, argumentava ela, seria possível fornecer ao aluno repertório e promover a reflexão sobre os elementos característicos de cada gênero, bem como sobre as especificidades da linguagem escrita. Essa premissa foi incorporada pelo grupo de professoras.
O episódio que será analisado focaliza a leitura prévia do conto “A pequena vendedora de fósforos” (ANDERSEN, 1995 [1845]), que mais tarde foi reescrito pela turma.
A história lida se passa na Europa, provavelmente na Dinamarca, país onde vivia o autor Hans Christian Andersen (1805 - 1875). Ele narra a véspera de ano novo de uma pobre menina, cujo pai a obrigava a vender fósforos na rua. Naquela noite extremamente fria, como não havia vendido nenhum e tampouco conseguido uma moeda sequer, ela ficou com medo de voltar para “casa”, que, como consta, “não passava de um telhado”. Descalça, com fome e com muito frio, a pequena vendedora encontra um cantinho e tenta se proteger acendendo os fósforos. Ao fazer isso, a menina tem visões: vê um fogão espalhando calor e, ao riscar outro fósforo, vê uma mesa posta e um ganso delicioso que vinha em sua direção; depois se vê sentada embaixo de uma árvore de Natal, cujas velas saem da árvore e sobem ao alto, transformando-se em estrelas. Ao ver uma das estrelas caindo, a menina se lembra do que dizia sua avó e conclui que alguém estava morrendo. Ela risca, então, outro fósforo, e da chama aparece sua avó, que já havia morrido. Com medo de que a avó desaparecesse, ela passa a acender todos os fósforos, pedindo que a senhora a levasse junto. Daquele momento em diante, “não havia mais frio, não havia mais fome - elas estavam com Deus”.
Nesse momento do conto, as crianças, muito comovidas com os acontecimentos e, ao mesmo tempo, encantadas com a linguagem usada pelo autor, começaram a se questionar se ela havia morrido. O autor explicita isso em seguida, esclarecendo que a menina havia sido encontrada morta, com o rosto corado e um sorriso nos lábios, na última noite do ano.
Antes que se iniciasse o processo de escrita, as crianças pediram que o conto fosse lido novamente, face à provocação e excitamento gerados por sua oralização. A segunda leitura foi disparadora de comentários dos alunos acerca da história narrada, o que me permitiu perceber a multiplicidade de sentidos em jogo. Segue o registro do episódio feito pela professora no seu caderno - ferramenta de campo:
Para uma atividade de reescrita coletiva, li para eles “A pequena vendedora de fósforos”. Eles me pediram que lesse novamente.
Na parte em que a menina vê uma estrela se apagar e cair no chão, as crianças questionaram se ela tinha realmente visto, se estava morta ou se estava delirando porque estaria morrendo. Iuri disse:
- Eu acho que ela viu uma estrela se apagando. Ela não tinha morrido ainda porque acendeu todos os fósforos.
- Eu concordo com o Iuri - disse Cairê - mas acho que ela já tinha morrido e viu a alma de sua avó vindo buscá-la.
- Prô, eu acho que ela imaginou tudo! Ela estava fraca e a estrela é porque a avó havia falado que quando uma estrela cai, uma alma vai para o céu. Ela imaginou tudo porque ela estava morrendo - Júlia disse (ela se envolveu muito).
Cristiano levantou a mão:
- Pode ser que uma estrela se apagou, mas ela estava fraca (não estava morta ainda), por causa do frio, então imaginou a estrela caindo... Como falou com a avó se estava morta?
- E o seu ponto de vista? - perguntou Thaís.
- Por que, o meu é o certo? - questionei.
A classe respondeu:
- É!
Júlia não concordou com a classe:
- A história não explica!
Rebeca disse:
- Eu concordo com o Iuri, a menina estava quase morrendo, estava com frio e com fome. Ela morreu quando a estrela apagou.
As crianças se empolgaram muito no “debate” e até questionaram o fato de eu estar deixando que falassem e até “discutissem” suas ideias.
- Acho importante que possam falar sobre as formas como entenderam um texto - eu expliquei. - Eu acredito que não tem uma só maneira de entender aquilo que a gente lê e conversar sobre as muitas formas de entender nos ajuda a entender cada vez melhor.
O tempo não foi suficiente para reescrevermos a história toda.
No outro dia, expliquei a eles que iríamos continuar do ponto em que paramos.
- Vai ter debate de novo, prô? - Cristiano perguntou.
- Acho que não será necessário - respondi. - Nós já falamos bastante sobre o texto e podemos deixar, assim como no texto, nossas ideias implícitas. Não precisamos dizer que ela morreu e nem em qual momento. Podemos dizer que no dia seguinte as pessoas que passaram viram que ela estava morta com os fósforos ao lado dela.
- Prô, mas eu não ouvi a história, eu faltei, conta de novo? - Lucas pediu.
- Faz assim: seus colegas contam o começo e eu leio de novo a parte que ainda falta reescrever.
Cristiano quis contar e Júlia e Cairê ajudaram. Depois, li a história novamente (o final).
- Prô, ela morreu? De quê? - Lucas perguntou.
- De frio, de fome...
- Ah, tá! Quem morre de frio? - ele respondeu, questionando em um tom irônico.
- Sim, é possível morrer de frio.
Começamos a reescrita. Quando chegamos à parte em que o texto diz que somente sua avó a amava, Lucas perguntou:
- Prô, mas e a mãe e o pai dela?
- O texto não fala da mãe, só do pai.
- O pai dela fazia ela trabalhar no frio e batia nela se ela não vendesse - Cristiano explicou.
- Maldade isso! - Lucas protestou.
Continuamos. Ao final, quando a menina morre, Lucas novamente pergunta:
- Prô, ela morreu?
- Morreu, Lucas.
- E o pai dela, prô?
- Não sei, o texto não fala...
- Será que ele chorou? Ele amava ela, prô?
- Talvez, do jeito dele. O que você acha?
- Eu acho que não, ele fazia ela trabalhar no frio.
- É, deve ser difícil...
- Prô, eu não gostei dessa história não.
- Por quê?
- Ah, “mó” triste!
- É prô, as histórias normalmente falam que todo mundo casou, ficou feliz - Cristiano disse.
- Verdade, eu acho que a gente devia falar que ela ganhou muito dinheiro vendendo fósforos e comprou uma casa - Lucas sugeriu.
- Acho uma boa ideia. Faremos assim: hoje a gente faz a reescrita de como a história é e, outro dia, você pode fazer uma versão sua para a história, que tal?
- Tá.
(Ano III - 2016 - Turma de 5º ano)
Para efeito de análise, o episódio relatado será dividido em duas partes. Na primeira parte, é possível perceber que a leitura do conto disparou uma multiplicidade de sentidos - perplexidade, tristeza, inconformismo, dúvida etc. - evidenciados pelos comentários dos alunos.
Chartier (2004), historiador francês da cultura escrita ocidental, afirma que os diferentes materiais de leitura constituem práticas culturais e sociais que “são criadoras de usos ou representações que não são absolutamente redutíveis às vontades dos produtores de discursos e de normas” (p. 13). O autor continua:
Portanto, o ato de leitura não pode de maneira nenhuma ser anulado no próprio texto, nem os comportamentos vividos nas interdições e nos preceitos que pretendem regulamentá-los. A aceitação dos modelos e das mensagens propostas opera-se por meio dos arranjos, dos desvios, às vezes resistências, que manifestam a singularidade de cada apropriação (idem, p. 14).
Enquanto o conto era lido, as crianças teciam relações das palavras do autor com as outras (muitas) vozes que lhes ecoavam e com as experiências anteriormente vividas por elas. Seus enunciados (Eu acho que ela viu uma estrela se apagando./ Ela não tinha morrido ainda porque acendeu todos os fósforos./ mas acho que ela já tinha morrido e viu a alma de sua avó vindo buscá-la. /Prô, eu acho que ela imaginou tudo!/ Como falou com a avó se estava morta?) manifestam o modo como cada aluno se relacionou com o texto, buscando construir sentidos para o narrado. Também trazem pistas para o grau de engajamento da turma na atividade, constituindo-se como elementos que marcam as posições valorativas dos sujeitos frente ao que estava sendo desenvolvido naquele contexto de aula.
Certeau (2014 [1990]) se refere à leitura como uma prática cotidiana, na qual os sujeitos produzem sentidos, inventam memórias, comparam, metaforizam e, assim, apropriam-se e se reapropriam do texto de outro (p. 48). Entretanto, o autor explica que “o funcionamento social e técnico da cultura contemporânea hierarquiza essas duas atividades. Escrever é produzir o texto; ler é recebê-lo de outrem sem marcar aí o seu lugar, sem refazê-lo” (idem, p. 240). Enquadrada nessa perspectiva técnica, ao inscrevê-la no âmbito do consumo, a leitura se caracterizaria por ser uma atividade passiva. Ao compreendê-la e tomá-la no campo das táticas, porém, Certeau (idem) explica que a leitura se configura como uma arte que não pode ser tomada como passividade. Ao peregrinar pelo texto, os sujeitos modificam-no por meio da interação com ele. Dessa maneira, o mesmo texto se constitui como território de múltiplas construções de sentido, produções próprias dos leitores7.
Este não toma nem o lugar do autor, nem um lugar de autor. Inventa nos textos outra coisa que não aquilo que era a “intenção” deles. Destaca-os de sua origem (perdida ou acessória). Combina os seus fragmentos e cria algo não sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações (idem, p. 241).
Porém, as operações que jogam com os sentidos do texto se encontram com forças (estratégias) que pretendem sujeitar os leitores ao papel de consumidores e sobredeterminar a relação destes com o texto lido.
A utilização do livro por pessoas privilegiadas o estabelece como um segredo do qual somente eles são os “verdadeiros” intérpretes. Levanta entre o texto e seus leitores uma fronteira que para ultrapassar somente eles entregam os passaportes, transformando a sua leitura (legítima, ela também) em uma “literalidade” ortodoxa que reduz as outras leituras (também legítimas) a ser apenas heréticas (não “conformes” ao sentido do texto) ou destituídas de sentido (entregues ao ouvido). Desse ponto de vista, o sentido “literal” é o sinal e o efeito de um poder social, o de uma elite. Oferecendo-se a uma leitura plural, o texto se torna uma arma cultural, uma reserva de caça, o pretexto de uma lei que legitima, como “literal”, a interpretação de profissionais e de clérigos socialmente autorizados (idem, p. 243).
Nesse jogo de reinvenção de sentidos, é comum que os alunos sejam enquadrados no papel de consumidores, aos quais fica tolhida a liberdade de manifestar a criatividade leitora. Dessa maneira, entende-se o estranhamento deles ao questionarem o fato de ser permitido (e esperado) que discutam seus modos de entender o conto8, bem como a pergunta de Thaís (E o seu ponto de vista?). Ao indagar sobre o ponto de vista da professora, Thaís poderia ter somente a intenção de querer conhecê-lo. Por outro lado, considerando que a relação, naquele contexto, constitui-se de sujeitos em diferentes papéis sociais - professora e alunos -, existe a possibilidade de que a aluna quisesse se certificar de que a sua compreensão do conto estivesse “adequada”, ou seja, dentro do esperado por aquele que ocupa a função de professor e, portanto, detém todas as respostas “corretas”.
Certeau (2014 [1990]) aponta que “a autonomia do leitor depende de uma transformação das relações sociais que sobredeterminam a sua relação com os textos” (p. 244). Porém, ele alerta que existem, embora disfarçadas e refreadas, experiências que transformam a atividade leitora e a distanciam da passividade. Essas artes de fazer, segundo o autor, levam leitores alhures, como desbravadores, construtores de cenas por onde se pode circular livremente, ainda que elas não lhes pertençam. Não se trata de serem escritores, pois não há lugar estabelecido. Certeau lembra que a “leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido” (idem, p. 245).
Os caminhos que cada aluno percorreu para a apropriação do texto, conforme indicam seus enunciados, apresentam compreensões singulares. Bakhtin (2011 [1952-53]) se refere à compreensão como sendo sempre dialógica, porém há um desmembramento em atos particulares, que indissoluvelmente se fundem em um processo único. São eles:
1) A percepção psicofisiológica do signo físico (palavra, cor, forma espacial). 2) Seu reconhecimento (como conhecido ou desconhecido). A compreensão de seu significado reprodutível (geral) na língua. 3) A compreensão do seu significado em dado contexto (mais próximo e mais distante). 4) A compreensão ativo-dialógica (discussão-concordância). A inserção no contexto dialógico. O elemento valorativo na compreensão e seu grau de profundidade e de universalidade (idem, p. 398).
Neste processo complexo, Bakhtin (idem) considera que a interpretação ocorre no encontro de um texto com outros textos, de forma que para cada palavra seja possível extrapolar seus limites. O autor ressalta que o encontro de textos/palavras se constitui como um encontro de sujeitos e, por isso, a compreensão só pode ser dialógica.
O encontro das palavras do autor do conto - Andersen - com as influências extratextuais e as palavras alheias do leitor suscita um jogo de compreensões para o qual não há limites nos sentidos produzidos e tampouco para sua renovação. Bakhtin explica que esse jogo de criação de sentidos tem um fim ilimitado por conta de se constituir na interdependência do contexto ao seu acontecimento e dos sujeitos que dele participam:
Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão relembrados e viverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo (BAKHTIN, 2011 [1952-53], p. 410).
Ao exporem alguns dos muitos sentidos produzidos durante a leitura do texto, as crianças externalizam suas impressões e vão se dando conta de que foram produzidas diversas interpretações para o mesmo fato lido na história. A situação chamada pelos alunos de “debate” fomentou o estabelecimento de relações entre os sujeitos e deles com o texto lido. Ao retornarem a ele, mediados pelas palavras dos colegas, iniciou-se um processo de reelaboração dos sentidos produzidos durante a primeira leitura.
Em seus enunciados (Eu concordo com o Iuri/ Pode ser que uma estrela se apagou, mas ela estava fraca), os alunos se dirigem aos enunciados dos outros, respondendo a eles. Para Bakhtin (idem), a compreensão do enunciado é “de natureza ativamente responsiva” (p. 271). Por isso, o fato de terem se apropriado da leitura e também de terem dialogado com os enunciados dos colegas suscitou respostas e, consequentemente, gerou interlocução. Os ouvintes se tornaram falantes e, nesse processo, relações de ensino foram sendo estabelecidas.
Dessa maneira, Júlia pode discordar dos colegas que desejavam ouvir o meu ponto de vista. Seu enunciado (A história não explica!) sugere a percepção de que a morte da personagem estava implícita e, para ela, essa acepção dada ao fato permitia que cada um pudesse imaginar o que acontecera com a menina. Além disso, a aluna torna visível, ainda que de forma não deliberada, que foi instaurada uma situação de interlocução, na qual os alunos poderiam manifestar suas formas de elaboração e compreensão do texto lido.
O envolvimento dos alunos nesta atividade sugere que esse modo de ler o texto, buscando a negociação de sentidos entre o texto e o leitor, não se tratava de uma novidade. Entretanto, com exceção de Júlia, a insegurança que os alunos demonstravam para reverberar seus pontos de vista indica que momentos como aquele haviam sido pouco explorados.
A mudança de atribuição de sentidos não ocorre somente pelo diálogo, pois estes se encontram enraizados nas práticas e nos modos de ler dos sujeitos, e também diferem de acordo com o local e o momento histórico. Sabe-se, portanto, que há diferenças entre a leitura feita em casa, numa situação de provável lazer ou deleite, e na escola, sobretudo quando o objetivo da leitura consiste na verificação de sua compreensão, por meio de perguntas.
Nessa direção, torna-se importante contextualizar a escolarização da leitura, fenômeno estudado por Soares (2011). A autora reconhece que “sempre se atribuiu à literatura infantil (como também à juvenil) um caráter educativo, formador, por isso ela quase sempre se vincula à escola, a instituição, por excelência, educativa e formadora de crianças e jovens” (p. 18). Ela explica, também, que a partir do momento em que a escola se apropria da leitura como um dispositivo de ensino, esta se torna um saber escolarizado. Entretanto, o termo adquire conotação negativa pelo modo muitas vezes inadequado como tem sido realizado na escola.
Nesse aspecto, podemos nos voltar ao estudo de Magnani (2001), que, ao investigar as práticas de ensino da literatura, refaz seu percurso histórico e lembra o modo como, para Platão, a educação era vista como meio para corrigir a natureza humana. Por esse prisma, o filósofo entendia que as primeiras fábulas deviam despertar nos meninos o amor à virtude (p. 77). Segundo a autora, “a intervenção da Pedagogia, com suas marcas históricas e sociais, propicia o surgimento de uma orientação trivializadora na produção de livros e, portanto, na formação de leitores, utilizando a literatura para a refiguração dos fatos e imposição de utopias” (p. 82). Além de perder de vista o caráter estético, a trivialização pretende eliminar a contradição e a complexidade do mundo, assim como enquadrar o leitor, criança e jovem, num projeto de sociedade, ditado pelas “leis adultas”.
Isso nos chama atenção para a conversa entre a professora, Lucas e Cristiano descrita no final do episódio, na qual os meninos manifestam suas insatisfações com o final triste do conto (L: Prô, eu não gostei dessa história não./ Prof: Por quê?/ L: Ah, “mó” triste!/ C: É prô, as histórias normalmente falam que todo mundo casou, ficou feliz./ L: Verdade, eu acho que a gente devia falar que ela ganhou muito dinheiro vendendo fósforos e comprou uma casa.). Lucas explica que não havia gostado da história porque não há final feliz, e Cristiano afirma que, nas histórias, “normalmente” as personagens casam e vivem felizes para sempre.
Apesar de demonstrar que Cristiano se apropriou de algumas características do gênero conto, cujas histórias, muitas vezes, terminam com a típica frase “casaram-se e viveram felizes para sempre”, seu enunciado responde à queixa de Lucas e denota que a literatura, tratada de forma trivializada, tal como elucida Magnani (2001), recorre ao caminho prazeroso para desenvolver o gosto pela leitura. Além disso, evidencia, também, um apelo à linearidade temporal, espacial e psicológica da narrativa, que, segundo a autora,
tenta reproduzir a ordem que se quer no mundo e na vida das pessoas. É como se na vida não houvesse movimento, só a estaticidade da “mão única”. Uma vez iniciada a narrativa, já se pode prever seu final, como se o destino de todos estivesse traçado desde sempre e nada pudesse alterar essa “ordem natural” das coisas (p. 116).
Para escapar desse processo de trivialização, a autora reitera a necessidade de tratar o texto como um “processo social e um lugar de conflitos” (p. 134). Dessa maneira, inclui a pluralidade de leituras, bem como sua problematização e reflexão acerca do texto lido. Gostar de ler, segundo essa perspectiva, não se limita a tangenciar a satisfação das necessidades de fantasia, muito comum nos “finais felizes”, mas perpassa e se enraíza no significado trazido pelo próprio ato de ler e experienciar a linguagem.
Ao retomar a atividade no dia seguinte, o envolvimento de Lucas (ausente quando a leitura aconteceu) suscitou uma série de questionamentos e possibilitou outras reflexões acerca do conto. Ao questionar a morte da personagem (Ah, tá! Quem morre de frio?), destaca-se a entonação com a qual expressa o estranhamento e sua indignação diante do fato por ele problematizado. Bakhtin (2011 [1952-53]) explica que a oração/palavra não contém em si aspecto expressivo, pois a entonação não pertence à palavra, mas ao enunciado. Somente em um enunciado concreto ela se reveste de expressão e adquire, assim, um tom valorativo. Segundo o autor,
Um dos meios de expressão da relação emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala é a entonação expressiva que soa nitidamente na execução oral. A entonação expressiva é um traço constitutivo do enunciado. No sistema da língua, isto é, fora do enunciado, ela não existe. Tanto a palavra quanto a oração enquanto unidades da língua são desprovidas de entonação expressiva (BAKHTIN, idem, p. 290 - grifos do autor).
Bakhtin (idem, p. 403) afirma, ainda, que a tonalidade do enunciado “serve de contexto axiológico-emocional na nossa interpretação (plena e centrada nos sentidos) do texto que lemos (ou ouvimos)”. Ao revestir seu enunciado de um tom irônico, Lucas dialoga com os enunciados anteriores, sobretudo com a resposta da professora a sua pergunta (Ela morreu de quê?/ De fome, de frio...).
Nesse sentido, ao questionar em um tom irônico “quem morre de frio?”, evidencia-se, assim, muito mais pela entonação do que pela composição semântica do seu enunciado (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 235) o reconhecimento de Lucas sobre a possibilidade de que uma pessoa possa morrer de fome, mas seu estranhamento diante do fato de uma morte causada pelo frio. Lucas, assim como outras crianças da sala, nasceu na região nordeste e veio com a família, que buscava oportunidades de emprego, para o sudeste. Provavelmente, ele não tivera contato com notícias sobre a morte de pessoas, sobretudo moradores de rua, nos dias de muito frio. Por isso, ao explicar que “é possível morrer de frio”, a professora referiu-se a acontecimentos cotidianos, que, evidentemente, eram do conhecimento dos alunos.
Entretanto, consideramos importante destacar que pode ter sido cometido um equívoco ao não se explicitar as condições de produção do texto literário que estava sendo trabalhado, “A pequena vendedora de fósforos”, conto escrito pelo autor dinamarquês Hans Christian Andersen. Se tivesse optado por explicar que a personagem do conto estava exposta a um frio europeu, portanto rigoroso, num contexto de Revolução Industrial, em meados do século XIX, talvez pudessem ter sido ampliadas as possibilidades de compreensão do texto e produção de sentidos. Naquele período, grande parte das crianças da classe trabalhadora era submetida a longas e insalubres jornadas de trabalho. Além disso, a condição extrema de exploração a que esta classe estava subjugada teve como consequência a miséria, a fome, doenças e a morte de muitas crianças. Ao desconsiderar essas informações no trabalho com o conto, não apenas foram limitadas as possibilidades de compreensão, como também ignorada parte estrutural do texto, pois
a estrutura do enunciado, bem como da própria vivência expressa, é uma estrutura social. O acabamento estilístico do enunciado - o acabamento social e o próprio fluxo discursivo dos enunciados que de fato representa a realidade da língua - é um fluxo social. Cada gota nele é social, assim como toda a dinâmica da sua formação (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 217).
Nesse prisma, outro elemento discursivo importante, a autoria, não teve destaque neste trabalho com o conto. Tal como afirma Soares (2011 [1999]), isso faz com que o autor seja desapropriado do seu texto, tornando-o “independente da obra a que pertence” (p. 29). Bakhtin (2011 [1919]) não considera que arte e vida correspondam à mesma coisa, mas entende que elas se unificam na responsabilidade do autor. Em outro estudo, ele explica que “o homem é o centro organizador do conteúdo-forma da visão artística, e ademais que é um dado homem em sua presença axiológica no mundo” (2011 [1924]). Essa orientação axiológica e a presença no mundo diferenciam a realidade estética da realidade cognitiva e ética, mas não a tornam indiferente a elas. Por isso, denota-se a relevância que o conhecimento acerca da vida e das condições em que o autor produziu sua obra tem para os processos de significação e compreensão do texto.
Ao esquadrinhar os episódios vividos e relatados no caderno de registros, buscando indícios para compreender os sentidos produzidos nas situações de interação entre os diferentes sujeitos na sala de aula, a professora se deparou com uma complexidade de processos de elaboração de sentidos vivenciados por eles. Guedes-Pinto (2012, p. 140) afirma que entende
as práticas escolares como práticas socioculturais que se constituem no desenvolvimento da história humana e que se realizam e se significam na materialidade das relações entre os sujeitos, que exercem determinados papéis sociais e que ocupam determinadas funções dentro de seu contexto de atuação.
Dessa maneira, as relações que se estabelecem na escola entre os diferentes sujeitos sociais vão se desdobrando em infinitas possibilidades de elaboração e de produção de sentidos. No entrecruzar desses sentidos que circulam nos enunciados, nos gestos, nas recusas e no envolvimento dos alunos, esses sentidos podem ser reelaborados e ganham outros significados, que, mediados pela professora e também pelos alunos, se constituem como modos de apropriação da cultura.
Nesse processo, destaca-se o papel da prática de leitura, conforme foi possível observar por meio dos registros, pois ela pôde fomentar a interlocução entre os sujeitos e deles com o material lido, permitindo que os sentidos circulassem mais livremente. Como último aspecto, pode-se destacar o quanto crianças, em meio a práticas leitoras marcadas por um contexto interlocutivo, se engajam na atividade, buscando elaborar compreensões para o lido, travando, assim, diálogos em várias instâncias.