Introdução
A educação formal por vezes apresenta respostas prontas para problemas que poderiam ser investigados e atribui a tais respostas o status de verdade incondicional. Ao fazer isso, acaba reprimindo as indagações tão comuns nas crianças e nos jovens e enfraquece uma das faculdades mais pulsantes no ser humano: a curiosidade (MORIN, 2003). É na infância que a mente é movida pela curiosidade intuitiva capaz de problematizar e elaborar hipóteses originais com o propósito de compreender o mundo e seus fenômenos.
Nessa direção, encetamos nosso olhar à curiosidade na infância, visto ser uma fase da vida onde tudo parece mais grandioso, misterioso e amedrontador. As pessoas, os objetos, as emoções e os entusiasmos igualmente sempre parecem maiores que nós. Tudo é novo e a vida parece uma cascata de onde jorram novidades e eventos curiosos que nos causam assombro e medo.
Aliadas ao assombro, instantaneamente surgem perguntas em nossa mente, nascem os “porquês”. Essa dinâmica seria o que chamamos de curiosidade (FREIRE; FAUNDEZ, 2011; MANGUEL, 2016). A partir da curiosidade, somos cada vez mais encorajados a imergir naquilo que nos assusta, com uma mistura de medo e determinação, distância e vontade de ver de perto, prefiguração e testificação. Quando, enfim, nos damos conta, “estamos com mais um mistério nas mãos” como diria Fred, personagem da turma do Scooby-Doo.
O desenho “Scooby-Doo, where are you?” foi lançado nos Estados Unidos em setembro de 1969 pela emissora de televisão CBS, e passou a ser transmitido no Brasil em 1972 pela extinta TV Tupi sob o título de “Scooby-Doo, cadê você?” permanecendo no ar até o presente em canais de TV por assinatura. Mover-se pela curiosidade era uma habilidade da turma do Scooby-Doo que permanece atual, pois consideramos que o desenho não envelheceu após meio século de sua estreia.
A referida turma era comumente rotulada pelos seus antagonistas como jovens intrometidos e um cão falante, devido à sua curiosidade pulsante. Daphne, Fred, Velma, Salsicha e seu cão falante, Scooby-Doo são personagens conhecidos por suas aventuras em viagens em uma van, conhecida como “máquina de mistérios”, para desvendar enigmas aparentemente sobrenaturais por onde passavam. No decorrer dos últimos 52 anos (1969-2021), o desenho passou por transformações e novas aventuras foram acontecendo. Durante todo esse tempo, a turma de detetives não deixou de ser curiosa, fazer perguntas e procurar pistas para desvendar mistérios.
Programas de televisão com a temática de mistérios, crimes e horror eram os preferidos de crianças em idade escolar no final da década de 1990 (GROEBEL, 2002). Séries televisivas de animação e filmes de animação têm sido alvo de discussões acerca de sua apropriação no ensino escolar com finalidades pedagógicas direcionadas à ludicidade, aproximação entre arte e ciência e letramento científico (TOMAZI; PEREIRA; SCHÜLER; PISKE; TOMIO, 2009; GUIMARÃES; FATIN, 2016; SANTOS; GEBARA, 2017; MELO; NEVES; SILVA, 2018).
Piassi (2013) afirma que a utilização de filmes na escola permite aprendizagens acerca dos processos históricos de construção da ciência, seus métodos e epistemologias, em especial no ensino de ciências. Alguns dos estudos brasileiros que tratam do uso de filmes de animação no ensino de ciências apresentam perspectivas que não abordam apenas questões conceituais referentes à ciência. A partir de um levantamento impetrado por Machado e Silveira (2020), constata-se que esses trabalhos discutem perspectivas de ensino em que o conhecimento científico é voltado para o social, além de possibilitar interfaces com várias disciplinas escolares.
Com esses elementos em perspectiva, indagamos: O que podemos aprender sobre a curiosidade a partir da narrativa de resolução de mistérios no filme “Scooby-Doo e o Fantasma da Bruxa” (2001)? Este artigo, oriundo de uma pesquisa de mestrado, tem como objetivo discutir aspectos da curiosidade tendo como ponto de partida um filme de animação e seus personagens, especificamente, o uso de questionamentos para solucionar eventos comumente envoltos de mistérios. Além disso, as atitudes de procurar pistas, pensar perguntas e construir hipóteses demonstram o entusiasmo para a investigação (PIZZATO; ESCOTT; SOUZA; ROCHA; MARQUES, 2019). Sabemos que as interrogações mobilizam as investigações científicas e alimentam a curiosidade que atravessa toda a nossa trajetória de vida escolar, visto que aprender a perguntar e construir estratégias metodológicas diante da incerteza se constitui uma prática que deve acompanhar o fazer científico desde a infância.
Apoiados nos direcionamentos teóricos de Edgar Morin (2000; 2003; 2014; 2015; 2020), Paulo Freire (2021), e Paulo Freire e Antonio Faundez (2011), mobilizamos argumentos que tangenciam a curiosidade para tomá-la como ponto de partida para tratar do tema a partir do referido filme de animação. Buscamos identificar na estrutura narrativa do filme como essa faculdade pode ser apresentada como força motriz que conduz à uma dinâmica de ação, assombro, pergunta e resposta em situações que envolvem descobertas.
Para analisar a narrativa do filme, utilizamos como referencial teórico-metodológico a ideia de método como estratégia a partir de Edgar Morin (2015). Dessa forma, assim como na narrativa do filme, à medida que adentramos nos acontecimentos envoltos em mistérios, buscamos estratégias para constatar os vestígios.
O artigo se divide em três seções. Primeiramente, discutimos o conceito de curiosidade a partir dos teóricos mobilizados, faculdade que caminha na incerteza e que necessita ser exercitada. Na segunda seção, partimos para os diálogos do filme e ilustramos, por meio de excertos da fala dos personagens e de suas ações, como a curiosidade lhes leva a desenvolver estratégias para solucionar problemas. Por fim, argumentamos que a utilização de um filme no ensino escolar transpõe a abordagem que se detém unicamente a tratar de conceitos científicos. Dessa maneira, por meio de uma obra audiovisual, podemos discutir acerca do fazer científico, legando a importância da curiosidade nessa construção.
A curiosidade como uma mola filosófica e científica
São diversas as razões que levam os cientistas a realizar uma investigação. Na maior parte das vezes, elas se devem à curiosidade de conhecer aquilo que ainda não conhecemos. A curiosidade e a imaginação fazem parte da atitude investigativa e questionadora das crianças que, mais tarde, pode se tornar um pesquisador acadêmico. Na busca pela arte de pesquisar, devemos assegurar que as faculdades infantis e juvenis sejam aperfeiçoadas durante a formação intelectual à medida que os anos passam. Mergulhar em um mistério é permitir ser movido pela curiosidade e adentrar nas messes do desconhecido em busca de pistas ou vestígios que foram deixados para trás (MANGUEL, 2016).
Edgar Morin (2003) afirma que a curiosidade é uma das faculdades humanas que despontam de maneira enérgica na infância. Para ele, “[...] o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade” (MORIN, 2000, p. 20). O autor discorre que inteligência e afetividade estão intimamente relacionadas e ambas resguardam uma à outra dos excessos ao nutrirem-se de maneira dialógica. Tendo em vista que a dialogia na obra de Morin se constitui uma configuração onde componentes são distintos, mas não se anulam, podemos pensar que o ato de raciocinar pode desnutrir-se de um déficit emocional. Morin (2000) assevera que a curiosidade é a mola da pesquisa filosófica ou científica e se apresenta como uma espécie de faculdade motriz que direciona o desenvolvimento da inteligência e serve como fio condutor à pesquisa científica.
Não se trata de manter uma atitude infantil, mas sim de preservar no adulto as faculdades juvenis quando o pesquisador investiga fenômenos novos, sejam estes fenômenos naturais ou sociais. Aqui, usamos a palavra infantil como uma ideia de abertura e desprendimento diante daquilo que é novo e, portanto, desconhecido.
A máquina de mistérios (figura 1) era o automóvel em que a turma do Scooby-Doo viajava pelos mais inusitados lugares. O furgão com detalhes psicodélicos, semelhante às Kombis que eram ícones da cultura hippie estadunidense nos anos 1960, os levava em incursões para solucionar os misteriosos eventos que se apresentavam a cada episódio.
De maneira didática e ilustrativa, associamos o conceito de curiosidade à imagem da máquina de mistérios para expressar como essa faculdade é o veículo que nos leva cada vez mais fundo nos questionamentos e nos move para procurar pistas na caminhada de entender o que acontece ao nosso redor. Nossas aventuras em busca de compreender o mundo surgem de questionamentos, do espanto, que nos faz perceber eventos, objetos, situações e tentar entender por que, de que maneira e quando acontecem.
Morin (2020) afirma que o espanto nos faz questionar de modo insaciável, até que a curiosidade seja alimentada e saciada. É na infância que essa faculdade deve ser estimulada, e deve manter-se em exercício desde então, de maneira contínua, mesmo na vida adulta. O autor afirma, ainda, que a produção de seus livros e suas pesquisas científicas foram sempre energizadas por sua curiosidade, por seus questionamentos e pelo prazer das descobertas e elucidações. Essa curiosidade teria se nutrido desde a sua infância. Nas palavras de Almeida (2017), o ato de ser curioso é o que nos impulsiona a fazer pesquisas acadêmicas e descobrir coisas.
Manguel (2016), em consonância com Morin (2000), caracteriza a curiosidade a partir da afetividade, dos sentimentos e a alegoriza como o entrar em um livro em que se percorre as páginas freneticamente, buscando cada vez mais avançar até as páginas ainda não desvendadas. Para o autor, a curiosidade se apresenta ainda na infância como uma vontade de seguir pistas para desvendar mistérios como nas famosas histórias do detetive britânico Sherlock Holmes. Há um misto de assombro e vontade de ir até o fim do mistério.
Desde os tempos antigos, a curiosidade se apresenta como ponto de partida para as indagações filosóficas. O ato de espantar-se diante da realidade ou dos problemas cotidianos se constitui em um ato humano curioso, um ato de existência humana (PEROZA; RESENDE, 2011). Esse espanto diante da realidade nos permite agir e estabelecer nossa realidade à medida em que respondemos a esses espantos ou nos movemos para iluminar o que nos é desconhecido.
Morin (2020) lembra que o mistério está no coração do conhecimento, uma vez que é preciso desconhecer nessa busca por conhecer. O conhecimento sempre perde o mistério antes de adquiri-lo. Como um tatear no escuro, o conhecimento necessita do mistério para ser construído, sem mistério, não há o que conhecer. Segundo o autor, o pensamento complexo não está alheio às incertezas que cercam a existência humana. Por essa razão, comporta dentro de si o mistério, terra onde só há incertezas e desconhecidos. A curiosidade, portanto, engrena correias do conhecimento e do mistério.
Para Paulo Freire (2021, p. 85), o exercício da curiosidade é indispensável para a construção de uma autonomia criativa. O autor argumenta que essa faculdade deve estar em pleno exercício, uma vez que é a responsável por convocar “[...] a imaginação, a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser”. Portanto, a curiosidade angaria toda sorte de faculdades que agem de maneira conjunta na busca de seu objeto. Dessa forma, instaura seu processo de busca de maneira cada vez mais metódica (PEROZA; RESENDE, 2011).
Freire e Faundez (2011) voltam àquele que ensina e apontam o exercício da curiosidade como um aprendizado indispensável ao docente, que deveria, antes de tudo, exercê-lo, aprendendo a fazer perguntas para que possa ensinar seus alunos a perguntar. Freire (2021) reforça que professores e alunos devem ser protagonistas de sua curiosidade, uma vez que o princípio do conhecimento é o ato de perguntar e buscar pistas para formular respostas a partir das perguntas.
Ao fazer menção às histórias do detetive britânico Sherlock Holmes, Manguel (2016) discorre sobre a curiosidade através de um personagem de romances e filmes. Alinhamos essa percepção à compreensão de Morin (2003) que afirma que o universo dos romances, da poesia e dos filmes são escolas de vida, uma vez que nos ensinam a aprender a viver. Uma dessas escolas é a descoberta de si, em que aprendemos a conhecer a nossa verdade na verdade dos personagens que nos atingem. Nos vemos nos personagens e eles encarnam em nós em uma dinâmica de projeção-identificação, conforme esclarece Morin (2014) ao discorrer sobre o cinema. Aprendemos sobre nós mesmos ao descobrir essas verdades nos personagens de filmes. Alimentamos a curiosidade que há em nós ao descobrirmos personagens igualmente curiosos e nos identificamos com eles.
Nossa máquina de mistérios nos leva nessa direção para constatarmos que os personagens que se fazem presentes na infância ensinam e constituem sujeitos. Os “jovens intrometidos e o cão falante” têm em comum com Sherlock Holmes a curiosidade para questionar, procurar pistas e desvendar mistérios. Essa faculdade pulsante desses personagens permite que nos identifiquemos com eles, ou seja, nos apropriamos das faculdades humanas dos personagens, dentre as quais se destaca a curiosidade.
Podemos inferir que, se a curiosidade é pulsante na infância, as narrativas que acionam essa faculdade ecoam a curiosidade em nós, permitindo uma projeção e identificação com essas histórias. Desvendar mistérios era o trabalho da turma do Scooby-Doo. Eles faziam perguntas, questionavam os acontecimentos além daquilo que viam e partiam do princípio do espantar-se, do assombro. A ousadia de Fred, Daphne e Velma que sempre iam mais a fundo, mesmo quando as situações pareciam perigosas ou assustadoras, ao contrário de Salsicha e Scooby-Doo que eram visivelmente medrosos. Algo nessas situações os fazia querer saber mais sobre o que estava acontecendo, obter explicações. Esse algo era a paixão pelo desconhecido, pelo novo, que a curiosidade enseja.
Morin (2020) argumenta que os pequenos detalhes do cotidiano podem se tornar mais do que simples acontecimentos, mesmo na vida adulta, e que causam espantos e assombros quando vislumbrados pelo prazer da descoberta. “Meu espanto aumenta a cada olhar, a cada sensação” (MORIN, 2020, p. 10). Esse assombro é por demais comum na infância, quando somos novatos na arte do viver e nos espantamos com as coisas consideradas simples e sem tanta importância por aquelas almas que já estão caminhando há mais tempo por aqui. Por outro modo, o assombro nos faz notar algo que antes não estava ali, que não deveria estar ali ou que ainda não havia sido notado. Diante desse assombro, fazemos perguntas, duvidamos.
Freire e Faundez (2011, p. 75) afirmam que “[...] a existência humana implica assombro, pergunta e risco”. Assombrar-se é espantar-se, perguntar, arriscar-se. Nesse sentido, afirmam ser necessária uma educação que estimule a livre curiosidade e o ato de espantar-se, de assombrar-se. As perguntas são exploradas enquanto emergem do assombro. Novos questionamentos surgem a partir das respostas, gerando ações em uma dinâmica pergunta-resposta-ação.
Morin (2000) afirma que uma das lições dos últimos cem anos é que as incertezas fazem parte da vida. Logo, a educação para o século XXI não deve ensinar a acabar com as incertezas, mas a saber enfrentá-las. Segundo Morin (2015), a inteligência funciona como uma arte, uma vez que independe de receitas. Além disso, assevera que a inteligência possui a qualidade de reconstruir fenômenos e configurações por meio de vestígios, uma reconstituição a partir de rastros e pistas. A essa qualidade de inteligência dá o nome de aptidão “sherlock-holmesiana”, numa referência ao detetive britânico dos romances e filmes. A curiosidade caminha na incerteza e esse caminhar envolve apostas e consciência do risco.
Entendemos que a curiosidade, enquanto motor que nos move ao centro de um mistério, também nos permite saber lidar com a incerteza, uma vez que essa faculdade nos faz buscar pistas, não porque conhecemos e entendemos o mistério, mas justamente porque é algo novo, desconhecido, logo, motivo de assombro. Morin (2000) também aponta para o fato de que enfrentar a incerteza aciona necessariamente o uso de estratégias. Como o mistério é da ordem da incerteza, não se pode enfrentá-lo ou desvendá-lo por meio de programas pré-construídos e fixos.
A turma do Scooby-Doo usava um tom questionador e nunca deixava de pôr as evidências à prova com intuito de chegar a uma conclusão que se aproximasse dos fatos. A curiosidade não mostrava o caminho e a solução dos mistérios, mas era o motor que impulsionava a turma a questionar, a olhar os detalhes, a caminhar no incerto, a seguir os vestígios.
Entrelaçamos esse caminho na incerteza, que exige da curiosidade a formulação de estratégias no percurso, exercitando a própria curiosidade que acaba por torná-la crítica e metódica (FREIRE, 2021). Dessa maneira, a curiosidade espontânea avança para aquela que constrói um caminho para desvendar os objetos de sua paixão.
Quando nos voltamos ao ensino de ciências, percebemos como a curiosidade se mostra potente em uma educação voltada às questões que envolvem o labor científico. Ao abordar as possibilidades educativas de um filme, Piassi (2013) afirma que o saber a ensinar não é somente sobre os conceitos, mas também a construção histórico-metodológica da ciência que trata dos processos que envolvem a produção do conhecimento e a filosofia da ciência.
Defendemos que a curiosidade, como uma das molas que tensiona a pesquisa científica, constitui-se no conhecimento a ser apropriado na escola, aproximando a esfera do saber que trata da construção científica. É a curiosidade que impulsiona o prazer pelas descobertas, pela elucidação enquanto faculdade afetiva (MORIN, 2020). Por meio da curiosidade, ocorrem ininterruptos espantos e interrogações como veremos na narrativa do filme que discutiremos a seguir.
A dinâmica da curiosidade em “Scooby-Doo e o Fantasma da Bruxa”
A turma do Scooby-Doo sempre conta com a potente curiosidade da infância e da adolescência, as duas fases da vida nas quais somos proeminentemente curiosos. A complexidade dos personagens, as aventuras, as artimanhas utilizadas pela turma para solucionar os eventos misteriosos muito mudaram com o passar do tempo, porém, a curiosidade não deixou de estar apaixonadamente presente.
Criado por William Hanna e Joseph Barbera, “Scooby-Doo, cadê você?” foi lançado ao final dos anos 1960. Os contornos simples, característicos dos animadores, podem ser percebidos em vários de seus trabalhos, como Tom e Jerry, Os Flintstones e “As Aventuras de Zé Colmeia” que foram inicialmente séries televisivas e depois filmes de animação (COSTA, 2010). De igual modo, “Scooby-Doo, cadê você?” passou para o universo dos longas-metragens. “Scooby-Doo e o Fantasma da Bruxa” foi um dos primeiros filmes lançados diretamente em vídeo a apostar em uma narrativa de mistério com elementos sobrenaturais.
Notamos que o cinema de animação geralmente é voltado ao público infantil. Para Costa (2010), esse gênero pode atingir diferentes faixas etárias e abranger todos os gêneros e registros temáticos. O autor também afirma que a animação expressa extraordinárias manifestações: a “[...] vívida ilusão de realidade e a expressão total de uma subjetividade” (COSTA, 2010, p. 15, tradução nossa). Isso nos permite perceber o potencial que esse gênero cinematográfico tem para atrair as crianças, que são pura paixão, sonhos ambulantes.
“Scooby-Doo e o Fantasma da Bruxa” é uma película que difere em parte da típica receita dos casos misteriosos das séries animadas de Scooby-Doo. Isso porque, diferente dos primeiros episódios, os “fantasmas” que surgem nessas narrativas não são apenas criminosos fantasiados que tentam levar vantagens. Esses filmes de animação avançaram em suas tramas na direção da fantasia e os elementos sobrenaturais ganharam destaque.
No entanto, como um longa-metragem de animação, “Scooby-Doo e o Fantasma da Bruxa” se destaca por conter um dispositivo narrativo que abrange dois mistérios dentro de um único filme. No primeiro, ainda temos a antiga receita de casos misteriosos comuns em Scooby-Doo, em que a turma utiliza a sua expertise para buscar pistas e solucionar o mistério. No segundo, algumas coincidências da narrativa avançam na direção da fantasia e do sobrenatural. Neste artigo, focaremos na configuração do primeiro.
A película narra um episódio onde a turma do Scooby-Doo vai em sua máquina de mistérios até uma pequena cidade no estado de Massachusetts (EUA), convidados por Ben Ravencroft, um aclamado escritor de romances e horror. A pequena cidade é conhecida pela lenda local de uma bruxa – Sarah Ravencroft – que vivera no antigo vilarejo no período colonial, por volta dos anos de 1600, e que teria sido sacrificada pela população da aldeia por suas práticas de bruxaria. Sarah seria ancestral do escritor que convidara a turma. O fantasma, portanto, seria a bruxa que teria retornado para assombrar o vilarejo depois das escavações que foram feitas para a construção de uma aldeia temática na cidade com o objetivo de atrair turistas.
Com o foco na curiosidade, no assombro, nos questionamentos, perpetramos uma discussão da narrativa em excertos da película. Primeiramente, levantamos as perguntas que emergem das falas dos personagens e que possibilitam desvendar parte do mistério. Em seguida, partimos para a contextualização das perguntas, ações, exclamações e demais manifestações dos personagens no processo de investigação.
As perguntas que envolvem o mistério ocorrem depois que Salsicha e Scooby-Doo relatam uma aparição do que seria o fantasma da bruxa quando retornavam andando por uma rua deserta à noite, após saírem de um restaurante local. A turma faz uma espécie de entrevista com Scooby-Doo e Salsicha. Ao passo que são arrazoados, novos questionamentos começam a surgir. Solicitam que mostrem onde avistaram o fantasma da bruxa. Todos observam o local e os questionamentos não param de surgir, enquanto buscam entender o ocorrido por meio das pistas que se apresentam (figura 2).
Podemos observar a descrição dos acontecimentos e a dinâmica da turma na busca para entender o ocorrido. Constata-se que a curiosidade fomenta as estratégias a partir da dinâmica entre assombro, ação, pergunta e resposta, que ocorre à medida que algumas questões são respondidas e outras surgem. A narrativa demonstra uma sequência de assombros sentidos pelos personagens, o que os permite conhecer as pistas que surgem e, simultaneamente, estabelecem estratégias que agem sobre a incerteza do ocorrido (figura 2).
O assombro surge diante de uma situação inusitada, quando Scooby-Doo e Salsicha estão em fuga e esbarram com o restante da turma em uma esquina. Velma faz uma pergunta que expressa o assombro diante do ocorrido, já que não entendeu por que a dupla estaria correndo desesperada. A resposta à pergunta de Velma, “fantasma”, causa outro assombro expresso em uma nova pergunta feita por Ben, o escritor: “O quê?” (figura 2).
A turma resolve, então, visitar o local onde a assombração foi vista (figura 3). Essa observação se constitui na primeira estratégia diante da incerteza do que havia ocorrido. A curiosidade vai movimentando a paixão pelo desconhecido em busca de pistas e respostas. Esse exercício permite entender que existe uma dinâmica entre esses momentos e que cada um deles são provisórios.
Uma pergunta tem a potência de resolver um problema inicial, porém pode ser reformulada durante a busca por sua resposta ou, ainda, ser respondida e a sua resposta causar assombro. Por sua vez, a curiosidade novamente move o pensamento na formulação de uma nova pergunta. Para Morin (2020, p. 12) “[...] o espanto ininterrupto leva à interrogação ininterrupta”. Notamos a turma envolta nessa dinâmica em que ocorrem assombros e interrogações que emergem constantemente, produzindo a trajetória da solução dos eventos misteriosos.
A turma formula hipóteses mediante a observação do local da aparição. A formulação é uma prática que surge a partir do desejo de entender os assombros (FREIRE, 2021). Portanto, vemos que Fred faz associações por meio dos achados como os galhos de árvores na lateral esquerda da rua cujas copas estavam todas cortadas. Com base nesses elementos, conclui que os galhos no chão eram das árvores. Por conseguinte, Daphne menciona outro assombro: os galhos foram arrancados numa linha reta perfeita (figuras 2 e 3).
À medida em que a narrativa do filme avança, algumas hipóteses parecem ir e voltar no desvendar do mistério. Velma observa um pó brilhoso no chão da rua (figuras 2 e 3), e pergunta sobre as bolas de fogo em um tom de curiosidade. Em um momento posterior da narrativa, Velma e Fred relatam estar intrigados com as explosões do palco de um grupo de cantoras da cidade, associando o material pirotécnico às bolas de fogo que Salsicha e Scooby-Doo relataram. Dessa maneira, a hipótese é que as cantoras são suspeitas.
Na sequência, Velma, Salsicha, Scooby-Doo e o escritor Ben revisitam o local onde a assombração foi vista, motivados pela curiosidade de observar novamente o ambiente. Traçam mais uma estratégia no caminho metódico, olhar atentamente para observar os detalhes que talvez não tenham sido apreendidos em uma primeira observação. Novos achados culminam em uma nova dinâmica a partir de uma aparente aptidão sherlock-holmesiana (figura 4).
Notamos que Velma estabelece um método passando de uma primeira impressão para destrinchar os dados, enquanto o assombro alimenta perguntas, respostas e ações. Para isso, parte-se do querer olhar mais de perto, olhar novamente, ir mais a fundo, olhar outro lugar que não é aquele do início. Desse modo, a curiosidade permite a construção de um caminho de busca, de um método (figura 4). Lembramos de Morin (2015), para quem o método é uma estratégia onde navegamos em um oceano de incertezas entre arquipélagos de certezas. Logo, o caminho de descobertas nas pesquisas científicas é tecido à medida em que caminhamos e fazemos perguntas.
Velma e a turma encontram marcas de pneus e querem saber de onde vieram. Buscam, então, saber onde a trajetória leva, até que chegam a um celeiro (figura 5). Curiosamente, o prefeito da cidade sai do celeiro e segue em uma rua. Esses achados exigem uma nova tomada de decisão, uma aposta. Logo, a turma novamente cria a estratégia de se dividir. Temos, então, uma bifurcação: seguir as marcas de pneus e ver o que há no celeiro, e seguir o prefeito que está em atividade suspeita (figuras 4 e 5).
Todos esses passos são dados à medida em que a curiosidade impulsiona a turma na incerteza. Isso relembra a dinâmica não linear na resolução do mistério, visto que a pergunta não necessariamente leva a uma resposta, e quando ocorre a resposta, surgem novos assombros e pistas, reiniciando o processo. Assim, percebemos que a turma estabelece novas estratégias diante da incerteza partindo da curiosidade espontânea para uma metodologia.
Esse caminhar permite a formulação de uma teoria, potente o suficiente para acomodar e fazer sentido diante dos dados levantados. Nesse caso, Velma elabora o que chama de “teoria do coletor de frutos”, que lhe permite explicar a aparição do fantasma da bruxa que teria sido avistada por Salsicha e Scooby-Doo ao final da primeira parte da narrativa.
Velma soluciona o mistério e apresenta sua teoria após a turma ter capturado um cidadão do lugar fantasiado de fantasma. A personagem explica que as bolas de fogo eram materiais de palco da filha do farmacêutico que estava vestido de fantasma, por isso, havia um resíduo de pó brilhoso na rua onde Salsicha e Scooby-Doo avistaram o fantasma (figuras 2 e 3). O que permitia que o farmacêutico aparentemente voasse era um caminhão coletor de frutos que tinha um extensor, fato confirmado pelas evidências das copas das árvores arrancadas em linha reta e das marcas de pneus que levavam até o celeiro, onde estava o coletor de frutos (figuras 4 e 5).
Velma prossegue argumentando que o farmacêutico precisava de alguém para dirigir o coletor de frutos e de outra pessoa para içá-lo no extensor do veículo. Conclui, portanto, que havia vários outros cidadãos envolvidos. Todos fizeram isso por motivos publicitários, a fim de aumentar o turismo local e obter lucros. Comparamos a situação com o que Freire (2021) afirma: quanto mais se avança no rigor metodológico que a curiosidade suscita, mais os achados se aproximam da exatidão. O autor exemplifica:
Um ruído, por exemplo, pode provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o espaço. Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação (FREIRE, 2021, p. 85).
Morin (2003, p. 22) afirma que o desenvolvimento da inteligência geral, que parte dos problemas gerais para solucionar as problemáticas específicas, recruta “[...] o bom uso da lógica, da dedução, da indução – a arte da argumentação e da discussão”. Velma apresenta uma argumentação em favor de sua teoria para comportar os achados e a discute com a turma. Sua teoria é confirmada pelas evidências e por aqueles que são desmascarados, que confessam a sua participação no plano.
Essa configuração rememora as qualidades da inteligência que Morin (2015) descreve sobre articular, desenvolver e modificar as estratégias a partir dos achados da experiência e organizar reconstituições por meio dos fenômenos. Portanto, a curiosidade aciona as diversas qualidades da inteligência humana ao mover o pensamento na incerteza.
A curiosidade e o fazer científico
A educação formal que deveria dispor de meios para exercitar a curiosidade é, por vezes, a responsável por extingui-la. Nessa direção, Freire (2021) argumenta que o professor deve entender-se epistemologicamente curioso para que possa auxiliar o aluno nesse exercício de sua curiosidade. Aquele que ensina é, portanto, um ator que pode direcionar os caminhos que a curiosidade inflama na criança, canalizando os questionamentos na direção de novas descobertas, permitindo o rigor e a criticidade.
Ao considerarmos questões relacionadas à construção da ciência, Piassi (2013) ressalta a força de filmes no ensino de ciências para tratar do fazer científico. Dessa forma, a turma do Scooby-Doo demonstra comportamentos próprios da atitude investigativa e científica no filme, quais sejam a formulação de perguntas e construção de hipóteses (PIZZATO; ESCOTT; SOUZA; ROCHA; MARQUES, 2019). Além disso, a busca por informações a partir da observação reforça o entusiasmo para investigação.
A base das pesquisas científicas são perguntas essenciais que despertam curiosidade nos pesquisadores e que culminam em respostas, ou os levam a formular novas perguntas. As perguntas se instauram a partir do objeto do desejo, da paixão por entender, descrever, aprimorar os fenômenos, sejam eles naturais ou sociais. O motor da curiosidade permite ao fazer científico não apenas engatar a primeira e mais potente marcha para sair da inércia, mas também o move durante todo o percurso.
“Scooby-Doo e o Fantasma da Bruxa” demonstra a juventude que persegue metodicamente pistas mistério adentro por meio das estratégias direcionadas pelos detetives. As primeiras impressões não são suficientes para direcionar as resoluções, logo, é necessário olhar novamente, fazer novos questionamentos, permitir-se espantar pelos detalhes. Isso em muitas instâncias se tangencia com o fazer científico que caminha na incerteza, formula hipóteses e busca dar respostas que podem coadunar as hipóteses, levantar os argumentos que abrangem as pistas encontradas. Desse modo, a curiosidade se apresenta como uma faculdade imprescindível na produção de conhecimento.
Ensinar a enfrentar as incertezas é um caminho necessário para a educação no século XXI, pois permite a consciência do desconhecido (MORIN, 2000). Logo, a busca por conhecer e interpretar a realidade se apresenta como um grandioso labor não apenas por conta do desconhecido, mas também pela paixão que provoca. O não-compreendido inflama a curiosidade que há em nós, e desperta toda sorte de estratégias exigidas pela busca por entender e conhecer.
Considerações finais
Constatamos que a curiosidade é uma faculdade que desponta na infância e nos acompanha na aventura da vida. Esse querer, essa vontade de descobrir, entender e conhecer faz parte de nós e somos retroalimentados por essa paixão quando vemos as afetividades expostas nos personagens com os quais nos identificamos.
Essa faculdade tão vívida na infância funciona como uma mola que nos impulsiona a querer conhecer o funcionamento dos fenômenos e desvendar questões a partir dos nossos temas de pesquisa. Logo, a curiosidade é parte vital do fazer científico.
Aprendemos no filme “Scooby-Doo e o Fantasma da Bruxa” que os personagens são impulsionados pela curiosidade ao buscar caminhos para desvendar o mistério. Formulam perguntas, respostas e novas estratégias à medida em que as pistas se apresentam, numa dinâmica de questionamento que se instaura com os espantos e observações de detalhes para encontrar o que buscam.
Constatamos que a turma do Scooby-Doo caminha na incerteza ao levantar interrogações e questionamentos que surgem ininterruptamente para montar uma trajetória na resolução dos eventos a serem solucionados. A curiosidade, enquanto faculdade motriz na infância abre possibilidades para pensar outros filmes de animação em que essa faculdade se faça presente com vistas ao ensino de outras disciplinas escolares.
A formulação de hipóteses, a argumentação necessária para contemplar os achados e a construção metódica para desvendar os mistérios impulsionados pela curiosidade constituem uma potente ferramenta de aprendizagem. Esse desvendar traz consigo a potência do entendimento de que as situações da primeira parte do filme – a aparição do “fantasma” – faziam parte de articulações sociopolíticas e econômicas para gerar lucro aos empreendedores locais.
Os filmes ensinam quando vão ao encontro do sujeito que se identifica e se projeta na película. Há, portanto, outros mistérios e novas perguntas que podem surgir a partir dessa reflexão. Pensamos que é assim que o conhecimento se constrói, por ininterruptos questionamentos.