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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.70 Natal out./dez 2023  Epub 06-Mar-2024

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n70id33789 

Artigo

A criança e o direito de participação: desafios para a Educação Infantil

El niño y el derecho a participar: desafíos para la Educación Infantil

Marta Regina Brostolin1 

Prof.ª Dr.ª Marta Regina Brostolin, Universidade Católica Dom Bosco (Campo Grande, Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo de Estudos e Pesquisa da Docência na Infância, E-mail: brosto@ucdb.br


http://orcid.org/0000-0003-4262-2222

1Universidade Católica Dom Bosco (Brasil)


Resumo

O texto, um ensaio teórico, fundamenta-se na Sociologia da Infância e na pesquisa bibliográfica. Objetiva discutir o direito de participação da criança e seu lugar na sociedade contemporânea a partir do respeito à sua voz e ação como sujeito de direitos. Os resultados evidenciam um avanço nos estudos da criança e da infância nos últimos anos, configurando um campo multidisciplinar em torno da compreensão da infância vivida pelas crianças a partir delas mesmas. As transformações sociais em curso afetam as relações entre crianças e adultos nas suas dimensões políticas, culturais e educativas, tornando-se necessário desconstruir a produção normativa adultocêntrica que subalterniza a criança e dificulta e/ou impossibilita sua participação na sociedade. A criança sai do seu lugar de objeto para tornar-se sujeito ator. A partir da mudança de lugar da criança, é necessário tornar a escola um espaço democrático de socialização e um contexto mais amigo das crianças onde acontece um diálogo respeitoso entre crianças e adultos, com relações mais simétricas.

Palavras-chave: Criança; Normatividade; Direito de participação; Educação infantil

Resumen

El texto, un ensayo teórico, se basa en la Sociología de la Infancia y en la investigación bibliográfica. Tiene como objetivo discutir el derecho de los niños a participar y su lugar en la sociedad contemporánea a partir del respeto a su voz y acción como sujetos de derechos. Los resultados muestran un avance en los estudios de lo niño y de la infancia en los últimos años, configurando un campo multidisciplinar en torno a la comprensión de la infancia vivida por los niños desde sí mismos. Las transformaciones sociales en curso afectan las relaciones entre niños y adultos en sus dimensiones políticas, culturales y educativas, haciendo necesaria la deconstrucción de la producción normativa centrada en el adulto que subordina al niño y dificulta y/o imposibilita su participación en la sociedad. El niño pasa de ser un objeto para convertirse en sujeto actor. A partir del cambio de lugar del niño, es necesario hacer de la escuela un espacio democrático de socialización y un contexto más acogedor a los niños, donde exista un diálogo respetuoso entre niños y adultos, con relaciones más simétricas.

Palabras clave: Niño; Normatividad; Derecho de participación; Educación Infantil

Abstract

The text, a theoretical essay, is based on the Sociology of Childhood and bibliographical research. It aims to discuss children's right to participate and their place in contemporary society based on respect for their voice and action as individuals of rights. The results show an advance in child and childhood studies in recent years, configuring a multidisciplinary field around the understanding the childhood experienced by children themselves. The underway social transformations affect the relationships between children and adults in their political, cultural, and educational dimensions, making it necessary to deconstruct the adult-centric normative production that subordinates children and hinders and/or makes their participation in society impossible. The child moves from being an object to become an actor. From the change of child's place, it is necessary to make the school a democratic space for socialization and a more child-friendly context where takes place a respectful dialogue between children and adults, with more symmetrical relationships.

Keywords Child; Normativity; Right to participate; Early childhood education

Introdução

Os estudos da criança constituem um campo multidisciplinar que tem se desenvolvido em todo o mundo, com destaque para os países de língua inglesa. À semelhança de outros campos interdisciplinares, o que define os estudos da criança não é a existência de uma teoria única e própria, nem a definição de uma autonomia epistemológica face aos saberes disciplinares ou sequer uma metodologia exclusiva. O que define a natureza do campo multidisciplinar dos estudos da criança é a mobilização de saberes de diferentes disciplinas em torno de um objeto próprio: a criança e a infância (Sarmento, 2015).

A interlocução que a Sociologia da Infância tem mobilizado com outras áreas de estudo tem sido fundamental para compreender a infância vivida pelas crianças a partir delas mesmas, como única condição para dar conta das complexidades que se revelam em seus mundos de vida na contemporaneidade. Essa perspectiva abre caminho para se poder falar em estudos da criança, com relações interdisciplinares que envolvem um conjunto de áreas de estudo no campo das ciências sociais (a pedagogia, a antropologia, a economia, a história e sociologia).

Essa interlocução e o desenvolvimento do campo dos estudos da criança tem permitido, gradualmente, uma maior sensibilidade para escutar as vozes das crianças e realizar estudos aspirando a uma compreensão da condição humana a partir do ponto de vista da criança. Nesse campo teórico, as contribuições se mostram relevantes ao visibilizar crianças e infâncias urbanas, indígenas, quilombolas, imigrantes, que vivem nas ruas, envolvidas em guerras e conflitos. A promoção do estudo das crianças, a partir das suas próprias práticas, culturas e ações, resgata-as do olhar secundarizado a partir do papel que lhes é outorgado (Dornelles; Fernandes, 2015).

A Sociologia da Infância, ao assumir que as crianças são atores sociais plenos, competentes na formulação de interpretações sobre os seus mundos de vida e reveladoras das realidades sociais em que se inserem, considera as metodologias participativas com crianças como um recurso metodológico importante, no sentido de atribuir aos mais jovens o estatuto de sujeitos de conhecimento e não de simples objeto, instituindo formas colaborativas de construção do conhecimento nas ciências sociais que se articulam com modos de produção do saber empenhadas na transformação social e na extensão dos direitos sociais.

Dentre os direitos sociais, a participação infantil é, na contemporaneidade, um princípio incontornável nos discursos científicos e políticos que são produzidos acerca da infância. A Sociologia da Infância, ao considerar as crianças como atores sociais e como sujeitos de direitos, assume a questão da participação das crianças como central na definição de um estatuto social da infância e na caracterização do seu campo científico (Sarmento; Fernandes; Tomás, 2005).

A criança sai do lugar de criança objeto para tornar-se sujeito ator. Essa perspectiva abre o debate para a necessidade de superação de uma concepção normativa de criança e coloca o desafio de uma reestruturação das relações entre adultos e crianças, questionando o adultocentrismo que impera na sociedade (Coutinho, 2016).

Situada a base teórica em que se ancora, o texto é organizado em seções cujas temáticas perpassam pelo lugar da criança na sociedade contemporânea, pelo seu direito de participação, de escuta e pelo respeito à sua voz e ação como sujeito plural presente na sociedade com estatuto de ator social, produtor de culturas e partícipe na construção de conhecimentos com direito a uma educação infantil de qualidade que possibilite sua participação cidadã. Trata-se de um ensaio teórico fundamentado na pesquisa bibliográfica.

O lugar da criança na sociedade contemporânea

As crianças e a infância sempre existiram como uma construção a partir de um conjunto de representações sociais e de crenças que se estruturam por meio de dispositivos de socialização e controle, que existem a partir do século XVI e XVII. Mas os tempos atuais introduzem novas circunstâncias e condições de vida para as crianças e a inserção social da infância (Sarmento; Pinto, 1997).

A infância é um grupo social, do tipo geracional, permanente. Apesar da heterogeneidade existente, há elementos comuns entre as crianças, são eles: a vulnerabilidade e a dependência social, econômica e jurídica. Esses elementos comuns transformam-se ao longo do tempo, de espaços geográficos e sociais e configuram condições específicas de existência para as crianças (Sarmento, 2011).

A infância é constituída por crianças e sofre a renovação contínua inerente ao nascimento e ao crescimento dos seres humanos. Os adultos assumem o papel decisivo na determinação das condições de vida das crianças e são os detentores do poder político e social, que marcam a infância pela adoção de processos de administração simbólica (definição explícita ou implícita de normas de inclusão e interdição) das crianças por meio do exercício contínuo de um poder normativo. Esse poder se realiza tanto ao nível da produção de conteúdos significativos sobre o que é apropriado ou não para as crianças quanto na interação face a face e no desempenho dos seus papeis de pais, professores, formadores, funcionários das instituições que lidam com crianças (Sarmento, 2011).

O poder normativo que constitui a normatividade inerente à infância contemporânea — ou seja, as representações, as prescrições, as obrigações e as interdições presentes nas práticas consideradas características das crianças e das relações dos adultos com elas — desenvolveu-se a partir da modernidade e sustentou-se em quatro eixos estruturantes que, segundo Sarmento (2011), são:

  • – A escola pública, criada no final do século XVIII, com frequência obrigatória a partir da primeira metade do século XIX, constituindo-se em espaço institucional de pertença das crianças;

  • – A família nuclear que substituiu a outras formas de agrupamento familiar, assumindo-se como um espaço de vinculação e pertença afetiva da criança;

  • – A construção de um conjunto de saberes institucionalizados sobre a “criança normal”, propagados por uma reflexividade institucional e associados a um conjunto de prescrições — de natureza médica, psicológica, pedagógica e comportamental —, que foi especialmente relevante para a Psicologia do Desenvolvimento e para a ideia da criança como ser biopsicológico em processo de maturação e crescimento;

  • – A administração simbólica, com a definição, implícita e explícita, de regras de inclusão, interdição, compulsão e reconhecimento das crianças.

O conjunto de normas e regras decorrentes desses quatro pilares associados que constitui a normatividade infantil contribuíram, desde há cerca de dois séculos e meio, para colocar a criança num lugar social próprio, cuja desenho corresponde à representação social dominante da infância.

A normatividade infantil é uma construção histórica que nasceu na modernidade, mas se consolidou no século XX por meio de documentos legais nacionais e internacionais que regulam a vida das crianças e padronizam as relações entre os Estados, famílias e crianças. A Convenção dos Direitos das Crianças de 1989, a CDC, é a expressão mais significativa da globalização política e cultural de um determinado modelo de infância.

Essa orientação normativa, segundo Marchi e Sarmento (2017), do que é criança não existe só no plano legislativo, mas exprime-se na sociedade em resposta à questão: O que é ser criança e como age uma criança? Segundo os autores, são padrões de comportamento, conduta, hábitos e procedimentos dos adultos que caracterizam a administração simbólica da infância. Esse conjunto normativo estabelece um lugar social da criança e institui o ofício de criança que, para Sarmento (2011), é o conjunto de comportamentos e ações que se espera da criança, inicialmente concebido como ofício de aluno.

A escola realizou a desprivatização das crianças e desvinculou-as parcialmente do espaço doméstico e da exclusividade da proteção familiar. Com a escola, a infância foi instituída como uma categoria social dos cidadãos futuros, em estado de preparação para a vida social plena.

Na verdade, é o aluno mais do que a criança de quem a escola se ocupa. Concomitantemente com a escola e a invenção do aluno, a criança é investida de uma condição institucional e ganha uma dimensão pública. De algum modo, perante a instituição, a criança é anulada, enquanto sujeito plural concreto, com saberes e emoções, aspirações, sentimentos e vontades próprias, para dar lugar ao aprendiz, destinatário da ação adulta, agente de comportamentos prescritos, pelo qual é avaliado, premiado ou sancionado. A escola criou uma relação particular com o saber, uniformizando o modo de aquisição e transmissão do conhecimento, sem respeitar as diferenças (classe, cultura) (Sarmento, 2011).

A escola formatou uma cultura escolar e o aluno tem por ofício adquirir a cultura escolar. De suas raízes religiosas medievais para a adoção de um modelo organizacional fabril, a escola entra em crise e promove inversões da analogia da escola com a fábrica e da criança com o operário. Institui uma pulsão reformista que define a escola pública como empresa prestadora de serviços educativos, o professor como proletário especializado em funções docentes e o aluno como aprendiz. Uma escola às avessas que, segundo Sarmento (2011), reformou o trabalho pedagógico nas suas metodologias e nas suas formas, o que implicou mudanças no processo de aprendizagem.

Nessa perspectiva, os adultos assumem um papel decisivo na determinação das condições de vida das crianças pela adoção de processos de administração simbólica destas, porém, elas também contribuem para reconfigurar as práticas familiares, escolares, institucionais e espaços sociais em que se encontram. A ideia hegemônica do que é ser criança é produzida nas práticas sociais dos adultos e das crianças em cada momento histórico. Práticas e concepções que se afastam da normatividade podem excluir crianças de seu estatuto social (Sarmento, 2011).

As tecnologias da informação e comunicação, TICs, reinventam o ofício de aluno e as palavras-chave dessa nova configuração são a autonomia, a criatividade, a iniciativa, o empreendedorismo, mas as palavras-chave do velho ofício não perdem atualidade, tais como a disciplina e o esforço individual. O novo ofício de aluno é potencializado pelo efeito do individualismo institucionalizado (globalização) que enfraquece os laços sociais. O indivíduo é chamado a um desempenho que se espera competente, sendo seu sucesso considerado um mérito pessoal. Aí, configura-se o ofício de aluno, no valor do mérito, da competitividade e da autonomia da criança. O ofício de aluno dá lugar a um trabalho escolar que mobiliza, além das capacidades cognitivas, aspectos atitudinais, comportamentais e disposicionais recobertos pela expressão competências e resultados de aprendizagem (Sarmento, 2011).

Essa configuração mobiliza-se em torno da tensão entre autonomia e controle. A criança-aluno é chamada a desenvolver-se como indivíduo competente, capaz de definir seu percurso escolar e social, mas é colocado sob controle avaliativo. O que é paradoxal nessa modalidade de administração simbólica da infância é que, ao mesmo tempo que a autonomia das crianças é defendida, coloca as crianças no controle direto ou indireto dos adultos. As condições desiguais de acesso das crianças ao usufruto de seus direitos sociais levam à necessidade de pluralizar os sentidos da autonomia: por obrigação (aluno de sucesso) e por privação (abandono dos que fracassam). Dessa forma, o ofício de aluno, bem como o ofício de criança, é incompleto, imperfeito e parcial, conclui Sarmento (2011).

As transformações sociais contemporâneas incidem nesse cenário e as mudanças na condição social da infância são desigualmente experimentadas pelas crianças, no que se refere ao usufruto dos seus direitos sociais, bem como nas situações cotidianas de mobilidade, segurança, vida saudável, relações intergeracionais democráticas, TICs e cultura global de produtos e serviços para as crianças.

Nesse contexto, Sarmento e Pinto (1997) apontam alguns paradoxos da infância: as crianças são mais visibilizadas a partir da sua existência em menor número, de acordo com os indicadores demográficos. Embora haja legislação internacional assegurando os direitos das crianças, não há garantias de melhores condições de vida. As crianças são encaradas como futuro da humanidade, mas vivem oprimidas no presente. A própria ideia de infância é paradoxal, pois os discursos e as políticas contraditórios apresentam diferentes imagens e concepções de crianças.

Consideradas pertencentes à um grupo minoritário, as crianças vivem uma situação de exclusão da participação plena da vida social, portanto, é necessário olhar a criança a partir de si própria, como sujeito de direitos. Esse olhar sustenta-se na interdisciplinaridade, capaz de compreender e interpretar os múltiplos fatores que constroem a infância (Sarmento; Pinto, 1997).

As crianças possuem características próprias à sua etapa de desenvolvimento, o que não as torna menos competentes e ou incapazes enquanto atores sociais, mas as configuram um grupo singular e, ao mesmo, tempo plural. As crianças foram modernamente tematizadas a partir de uma negatividade constituinte, a imagem de criança submissa à autoridade adulta, retratada pela ausência de voz e ação. Esse grupo sofre com a invisibilidade social e a afonia infantil, mas resiste participando ativamente da construção cultural.

Na sociedade contemporânea, diversos movimentos nacionais e internacionais lutam pelos direitos das crianças, no entanto, esbarram nas desigualdades sociais que limitam sua efetividade. O mundo parece ter se tornado mais complexo, desigual e heterogêneo com o predomínio da questão econômica que subordina os Estados nacionais a agências multilaterais que influenciam e impõem suas ideologias e políticas públicas que pouco fazem pelas crianças. Nesse cenário, as organizações e movimentos sociais se tornam um espaço de luta, resistência e assumem um potencial de transformação social (Tomás, 2014).

Para Tomás (2014), o século XX foi considerado o século da criança, o que levou a uma descolonização da infância. Para a autora, são marcos desse processo a ampliação do conhecimento sobre criança e infância e o reconhecimento das crianças como atores sociais, sujeitos participativos e produtores de culturas infantis. Crianças são seres culturais, seus direitos são considerados pela autora como um conjunto de valores consagrados em legislações em âmbito nacional e internacional que se destinam a fazer respeitar e concretizar determinados princípios e condições de vida para as crianças.

A Convenção dos Direitos das Crianças (1989), CDC, um instrumento internacional jurídico, e outros documentos legais nacionais tiveram o papel fundamental de reposicionar a criança na sociedade contemporânea, reconhecendo que a criança tem direitos semelhantes aos dos adultos. Ao ratificar a CDC, os países comprometeram-se a proteger e a assegurar os direitos das crianças e aceitam a responsabilidade frente à comunidade mundial pelo seu cumprimento.

A CDC nasce num momento de transformações sociais, culturais, tecnológicas e econômicas provocadas pelo capitalismo avançado em que as crianças dos países do Cone Sul mais sofrem as consequências. A CDC, resultado de muita pressão social em torno dos direitos das crianças, embora defenda as crianças como sujeitos de direitos, sofreu muitas críticas. Dentre elas, segundo Marchi e Sarmento (2017), está o descompasso entre a noção universal de direitos com as particularidades dos contextos locais de crianças e infâncias. Outra crítica é o domínio dos países do Norte global na sua elaboração, trazendo para o texto suas concepções de criança e infância. As crianças que não se enquadram nesses padrões são excluídas para as margens (crianças pobres, indígenas, ciganas, que vivem em situação de rua).

Institui-se, assim, um determinado tipo de infância que exclui certas crianças de seu estatuto social. Elas são o grupo geracional mais afetado pelas desigualdades sociais provocadas pela globalização e pelo ideário neoliberal. A CDC não conseguiu acabar com a discriminação e as desigualdades sociais que envolvem as crianças. A CDC contém ambiguidades culturais e econômicas. Dos três “P”, o direito de participação é o menos observado, a instituição centra-se nos direitos de provisão e proteção sem se reconhecer o estatuto das crianças de atores sociais com direito a participar socialmente da partilha de decisões nos seus mundos de vida (Sarmento; Pinto, 1997).

Existe uma contradição entre essa infância idealizada, baseada em seus direitos e a realidade atual da infância no plano global. Marchi e Sarmento (2017) questionam se não seria preferível considerar a multiplicidade de concepções de infância, a diversidade de modos de vida das crianças, de suas relações com os adultos, numa perspectiva crítica, cosmopolita e multicultural dos direitos da criança e a consideração de novas políticas de infância, mais atentas às condições subalternas.

Violências diversas atingem a infância: a pobreza, a violência física e sexual, a migração, dentre outras. As crianças têm seus direitos violados sempre que interesses econômicos ou políticos hegemônicos se sobrepõem às necessidades de proteção e desenvolvimento infantil. Para Marchi e Sarmento (2017), a última década tem evidenciado a contradição entre a normatividade infantil produzida pela modernidade a partir de sua matriz adultocêntrica e as condições de vida das crianças vítimas das desigualdades, geradas pelo capitalismo financeiro, por crises climáticas e de saúde, pelas guerras e pelos conflitos que assolam países e sociedades.

A participação infantil e a escuta da criança: implicações e desafios para a Educação Infantil

Longo tem sido o percurso histórico das instituições sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos das sociedades ocidentais reconhecessem a criança, o seu estatuto de sujeito e a sua dignidade de pessoa. Dentre os marcos fundantes desse reconhecimento, destacam-se a Declaração Universal dos Direitos da Criança, promulgada pela Organização da Nações Unidas (ONU), em 1959. Essa Declaração e a precedente, de 1924, conhecida como a Declaração de Genebra, sob os auspícios da Liga das Nações, tiveram como foco defender a ideia de proteção à criança. A Convenção dos Direitos da Criança de 1989, a CDC, reconhece, também, a especificidade da criança, adotando uma concepção próxima à do preâmbulo da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, afirmando que a criança necessita de proteção e cuidados especiais devido à sua falta de maturidade física e intelectual (Rosemberg; Mariano, 2010).

A partir desse arcabouço legal, o embate entre a proteção e a participação infantil implica em uma complexidade de fatores que se estende além do contexto cultural e do âmbito particular da família, pois a perspectiva adulta pressupõe a falta de competência da criança para a participação social (Brostolin, 2021). Segundo a autora, essa compreensão produz a invisibilização da criança no espaço público, provocando um distanciamento entre o direito de proteção e o direito de participação. Para Brostolin:

[...] a compreensão da criança vulnerável, desprotegida e dependente do adulto compromete a realização dos direitos que assistem a criança diante da tradicional distinção entre os direitos de proteção, provisão e participação, os três “p”, assegurados pela Convenção dos Direitos da Criança, a CDC, de 1989. Dentre estes, o direito de participação é comprovadamente o direito com menos progresso e essa constatação nos permite afirmar a urgente necessidade de envolver a sociedade em um processo de aprendizagem que reveja a relação assimétrica entre adultos e crianças e permita um compartilhamento de divisão de poder e negociação (Brostolin, 2021, p. 4).

De acordo com Pereira (2017), o conceito de participação na infância é polissêmico e complexo, apresentando-se sob dimensões diferentes. Pela dimensão do direito, a participação documentada pela primeira vez na CDC, de 1989, reconhece o direito da criança de participar em tudo que lhe diz respeito. São os artigos 12,13,14,15 e 17 que salvaguardam, promovem e explicitam o direito a participação das crianças.

Segundo Pereira (2017, p. 168), “[...] o artigo 12 é o exemplo máximo ao declarar que todas as crianças têm direito a expressar opiniões sobre assuntos que lhes concernem, tendo em conta a sua idade e maturidade”. A autora ainda afirma que crianças e adultos fazem parte da mesma sociedade, cabendo à criança o direito de participar na sua organização e defender seus interesses. Fernandes e Trevisan (2018) reforçam que projetos que envolvem a participação infantil podem gerar maior conscientização dos direitos das crianças e fortalecer as relações de comunidade por meio do diálogo intergeracional e das experiências partilhadas.

Para Pereira (2017), a participação das crianças e dos adultos não deve ser avaliada pelo mesmo quadro de referência, uma vez que as crianças têm menos experiências e conhecimentos, pois vivem a menos tempo na sociedade, razão pela qual não lhes foi possível reunir mais saberes e capacidades.

Compete, então, ao adulto possibilitar a participação da criança por meio de sua ação e voz, criando espaços significativos de discussão, mobilizando suas diversas linguagens e possibilitando a construção de uma voz própria. A auscultação de opinião e de processos de tomada de decisão é absolutamente indispensável para possibilitar voz as crianças, uma voz que mesmo baixinha, ressoa nos espaços, mas nem sempre é escutada e respeitada.

Fernandes e Souza (2020) asseveram que o conceito de voz é polissêmico e vem ganhando nos últimos anos visibilidade na academia, ainda que exista a preocupação com a banalização do termo. A sua origem etimológica encontra-se no latim “vox” que significa grito, som, fala. O avanço nas pesquisas com crianças evidencia a preocupação em captar e ampliar as vozes infantis por meios metodológicos cada vez mais amigáveis e respeitosos mantendo a vigilância epistemológica e assegurando a alteridade da criança que, entre ditos e não ditos, possibilita ao pesquisador ir além do modismo, da banalização da sua voz.

A voz das crianças se caracteriza, principalmente, pela polivocidade e exprime-se de múltiplos modos, desde a linguagem verbal à linguagem gestual, passando pelas imagens, desenhos e registros diversos. Essa polivocidade exige sensibilidade e metodologias apropriadas para a sua escuta e interpretação (Sarmento; Trevisan, 2017). Exige uma escuta sensível, aberta e compreensiva da voz e ação da criança, não sendo um diálogo vertical e isolado, mas, sim, um ato horizontal partilhado entre adultos e as crianças.

O reconhecimento do papel central das crianças tem exigido um olhar mais cuidadoso e ético sobre os métodos de pesquisas, o que exige aproximações metodológicas que respeitem a alteridade das crianças, suas linguagens e tempos, sem as deixar submissas à voz do adulto que as interpreta. A participação infantil nas pesquisas as possibilita uma melhor produção de conhecimento acerca de si mesmas e de seus pares.

Fernandes e Marchi. (2020) chamam atenção para as pesquisas desenvolvidas nos últimos anos que possuem caráter de cultura de consulta, que, de certa forma, esvaziam o conceito de voz, pois dar voz à criança não significa simplesmente deixá-la falar, mas, sim, compreender e teorizar o mundo social infantil. Para as autoras, esse desafio apresenta três fatores:

  • – autenticidade refere-se à não deturpar o ponto de vista da criança em relação a problemas de tradução, interpretação e mediação diante das estratégias utilizadas para captar as vozes infantis, com atenção em como se constrói a pesquisa entre adultos e crianças, as relações de poder que se estabelecem e como se cria as condições para que a autenticidade possa exprimir-se;

  • – diversidade – o conceito “voz da criança” é uma categoria muitas vezes utilizada para falar de uma voz indiferenciada, independentemente de classe social ou cultural, e esconde a questão da diversidade. Deve-se ter cuidado para possibilitar a visibilidade da voz plural e diversa, respeitando a criança como ator social;

  • – natureza de participação – a pesquisa deve ser compreendida como um processo realizado com as crianças e não nas crianças.

A expressão “dar voz” à criança, segundo Marchi (2018), já é lugar comum nas pesquisas atuais, entretanto, é necessário considerar-se a possibilidade de esvaziamento de sentido em função da mudança epistemológica e metodológica em que a criança deixa de ser objeto para ser sujeito da pesquisa. Para a autora, dar voz envolve um duplo sentido, primeiro os pesquisadores assumem a posição política de olhar para um grupo social minoritário e historicamente ausente nas pesquisas. Segundo, levar em consideração a participação das crianças e escutar o que elas têm a dizer sobre seus mundos, modos de pensar e agir.

Não se trata de dar voz, permitir, mas sim reconhecer a existência de diferentes vozes presentes, lembrando que a voz das crianças pequenas nem sempre é verbal e que elas têm outras formas de manifestar-se. Dar voz não significa falar em nome do outro, não se trata de subsumir a voz do outro (Marchi, 2018).

A invisibilidade ou a exclusão das crianças de esferas sociais de influência representadas pelo mundo do trabalho e da convivência social com adultos fora do círculo familiar comprometeu sua participação na vida comunitária e política. O confinamento da infância a um espaço social condicionado e controlado pelos adultos produziu, como consequência, o entendimento generalizado de que as crianças estão naturalmente privadas do exercício de direitos políticos (Sarmento; Fernandes; Tomás, 2007).

O afastamento da criança do mundo político, aliado ao fato de não terem poder de partilhar decisões com os adultos reforça a negatividade da criança. A participação relaciona-se com o espaço em diferentes formas, permite a localização das crianças no espaço público enquanto agentes sociais. Essa ideia permite o reconhecimento enquanto coletivo fundamental para considerá-las como agentes politicamente competentes. Permite também a expansão desses domínios com relações mais recíprocas e mais negociáveis entre adultos e crianças, quando os adultos trabalham em conjunto com as crianças. (Fernandes; Trevisan, 2018).

Nesse cenário, a participação das crianças no espaço das relações com os outros que lhe são significativos, sejam eles adultos ou crianças, é afetada por fatores que decorrem das relações de poder e hierarquia que existem entre adultos e crianças. Assim, para Sarmento, Fernandes e Tomás (2007), considerar a participação das crianças no espaço público exige que levemos em conta a influência das estruturas e instituições que as envolvem, sejam elas educativas, econômicas, jurídicas ou sociais, que muitas vezes funcionam como obstáculos para a construção de espaços de participação infantil.

Considerar a participação das crianças remete ao reconhecimento dos seus direitos como integrantes da sociedade, que precisam de tempo e espaço propiciadores e potencializadores para sua participação. “A participação autêntica envolve a inclusão e não somente a integração [...]” afirmam Fernandes e Marchi (2020, p. 6). Essa participação deve considerar quatro aspectos nas dinâmicas participativas, segundo as autoras: espaço – formas de expressar pontos de vista; voz – por meio de diferentes formas de expressão; audiência – ser escutadas de forma significativa; influência – suas opiniões devem ser consideradas no processo de tomada de decisão. Os princípios que sustentam a participação infantil indicam que é necessário investir na autonomia infantil, pois a verdadeira autonomia se sustenta em um compromisso recíproco entre os sujeitos envolvidos. Superar a concepção de devir das crianças é fundamental para que a participação infantil se torne realidade.

É consenso na atualidade a importância da Educação Infantil como instituição que complementa a educação da família e, por meio de um trabalho pedagógico, contribui para a ampliação das relações sociais e o enriquecimento das muitas linguagens da criança. Dessa forma, o trabalho educativo é um ato de produzir direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade produzida coletivamente pela sociedade.

Nesse sentido, as instituições de Educação Infantil devem se caracterizar como espaços que possibilitam a imersão das crianças em experiências sensoriais, expressivas, corporais, lúdicas e verbais, ambientes nos quais as crianças expressam-se como seres criativos (Delgado, 2015).

Entretanto, a falta dessas condições provocaram a revisão de seus significados, que tomaram espaço no debate nacional, direcionando políticas no quadro das reformas educacionais. Portanto, houve um deslocamento do discurso da igualdade social para a defesa da qualidade que segue critérios baseados na lógica do mercado e na ideologia neoliberal, considerando as famílias consumidoras de serviços e produtos, o que reforça as desigualdades sociais e educacionais.

A modernidade introduziu a escola como condição de acesso à cidadania e, ao mesmo tempo, separou as crianças do espaço público. As crianças são vistas como cidadãos do futuro e, no presente, encontram-se afastadas do convívio coletivo, salvo no contexto escolar, e resguardados pelas famílias da presença plena na vida em sociedade.

E, nesse espaço escolar, até que ponto as crianças são respeitadas em seus direitos como atores sociais? Há espaço de participação e escuta infantil? Escutar uma criança é não ter resposta para todas as suas indagações e aprender junto com ela, é permitir que pergunte. Porque seus porquês evidenciam curiosidade, criatividade, inventividade, ferramentas que a criança usa para expressar-se e relacionar-se. Quando o professor está aberto a escutar a criança, “ele diminui o uso do ‘controle’”. O diálogo é um indicativo de respeito à criança (Santos; Rebouças; Varandas, 2019).

Dar voz à criança significa uma escuta sensível por parte do outro, representa estar num espaço dialógico e respeitoso e não apenas colocar a criança no lugar de quem escuta e não de quem fala. A questão não é inverter esse lugar, mas proporcionar reciprocidade na relação adulto-criança. A escuta atenta, sensível, dialética envolve o cuidado, a atenção e não apenas ouvir no sentido sensorial.

É uma escuta que coloca os professores, a equipe técnico-pedagógica, as crianças e as famílias em diálogo para pensar em qual é o sentido da escola na infância. Escutar as crianças no plano pedagógico significa construir saberes a partir das relações entre crianças e adultos na construção do conhecimento e não só seguir o currículo oficial (Fernandes, 2019).

A escolarização, o controle social e os critérios modernos de infância se imbricam. As transformações sociais que ocorreram a partir do século XVII serviram de contexto para que a escola se tornasse um lugar de cuidado da infância e, no mundo ocidental, um espaço para a imposição da disciplina e separação do mundo adulto do mundo das crianças, difundindo a percepção de que a criança era um ser do futuro. A institucionalização dos cuidados com as crianças e o tempo excessivo que passam envolvidos com a escola se tornaram impeditivos para a sua participação social, tendo em vista o grau de controle exercido pelos adultos e a pouca influência que as crianças possuem sobre seus ambientes (Pires; Branco, 2007).

Pensar a prática pedagógica na Educação Infantil significa pensar seus desafios específicos, que vão além das formações, pois o professor precisa compreender esse contexto, seus avanços e retrocessos ao longo da história. Entre eles, estão as discussões sobre a indissociabilidade do cuidar e educar; as relações construídas com as famílias; as concepções dos documentos que orientam as práticas e as concepções destes em relação às crianças e às infâncias. A forma de pensar e de conceber das crianças sobre essas questões é fundamental para que possa garantir uma educação de qualidade que as respeite e as escute.

Não se trata, portanto, de desconsiderar o papel do educador e da escola na infância, mas de reconfigurar o fazer cotidiano nesses espaços, de modo a possibilitar a construção de um currículo pautado no respeito à criança como protagonista em seu processo de aprendizagem, desenvolvimento e vivência de sua infância. Isso implica valorizar suas falas, interesses, necessidades e produções, além de possibilitar o seu acesso a experiências diversificadas de aprendizagem, tratando-as como pessoas que são.

Faz-se necessário construir espaços, tempos, situações e relações que permitam à criança o acesso à cultura através de sua apropriação crítica e considerar o papel da criança na produção e transformação dessa mesma cultura que procuramos socializar. Desse modo, a institucionalização pode ser construída com base em uma pedagogia da participação e dos direitos das crianças que se entrelaçam com a ação dos professores.

As imagens sociais de infância e criança influenciam as práticas educativas. Com base nessa premissa, coexistem visões antagônicas sobre a criança e infância, aquela que retrata a inocência, anjo, alegria, futuro da sociedade e a outra associada a aspectos negativos de incompetência e imaturidade que comprometem o direito de participação infantil e o reconhecimento do estatuto social da criança. Criança e infância são construções sociais que interferem nos cotidianos infantis. A educação também é uma construção social e as diferentes imagens de criança e infância nos diferentes países se refletem nas políticas e nos serviços de atendimento (Tomás, 2014).

As transformações contemporâneas têm determinado melhorias substanciais, embora parciais, das condições de vida das crianças e são visíveis os avanços verificados em indicadores como as taxas de mortalidade infantil, a libertação de formas opressivas de trabalho, o usufruto da informação e da cultura escrita e o acesso a bens de primeira necessidade como educação, saúde e moradia (Sarmento; Fernandes; Tomás, 2007). Entretanto, vale destacar que esses progressos não são universais, nem comuns a todas as crianças do mundo. Portanto, ainda são muitos os desafios existentes em prol dos direitos das crianças e do seu reconhecimento como cidadão infantil.

Considerações Finais

A infância sofre um processo de redefinição por meio da restrição às condições estruturais que lhe são correlatas. As formas de vida das crianças em cada momento histórico concreto são determinantes na configuração de processos de controle e administração simbólica que os adultos exercem sobre elas e são a base da origem das imagens sociais da infância. Portanto, torna-se necessária a criação de uma imagem de criança capaz de defini-la por aquilo que é, o que faz, e o que a torna distinta e diversa em relação a pessoas de outras faixas etárias como a adulta.

O debate sobre a normatividade é essencial para compreendermos os processos de transição e mudanças em curso na relação entre crianças e adultos nas suas diferentes dimensões políticas, educativas e culturais. Há necessidade de se desconstruir analiticamente a produção normativa adultocêntrica.

A CDC (1989), ao promover uma imagem das crianças como seres de direitos ativos e participativos na sociedade, configura simbolicamente as crianças como cidadãos plenos pela primeira vez. Nesse domínio, os direitos de participação em assuntos que as afetam e a importância da audição de suas vozes no espaço público e privado são temas de investigação emergentes na atualidade.

Entretanto, uma perspectiva crítica da CDC (1989) na sociedade globalizada identifica promessas impossíveis de cumprir frente à realidade social, em que a pobreza, a fome, a ausência de cuidados médicos, o abandono escolar, o trabalho infantil e as crianças-soldados questionam as promessas da CDC. É, na análise das desigualdades sociais sobre as crianças, que se pode sustentar uma orientação política que anuncie as condições de inclusão, bem-estar e cidadania a todas elas.

A cidadania infantil demonstra uma realidade ambígua quando pensamos nas condições de vida concreta das crianças e suas oportunidades de participação. As condições de vida afetam a forma dos adultos verem as crianças, bem como as oportunidades sociais que possuem; as crianças vivem diferentemente a mesma condição comum infantil.

Nesse cenário, as escolas insistem em prestar um serviço às crianças e famílias e não serem lugares amigos das crianças. Impera ainda a imagem clássica de criança-aluno-incompetente que alimenta relações pedagógicas cristalizadas e tradicionais que perpetuam relações desiguais. A escola ocupa-se mais do aluno do que da criança. Ao adquirir uma condição institucional, “morre a criança” enquanto sujeito concreto com vontade própria para dar lugar ao aprendiz. Precisa-se avançar nesse processo e pensar, tornar a escola um espaço democrático de socialização, de diálogo respeitoso entre crianças e adultos, com relações mais simétricas. Muitos professores desconhecem que os direitos das crianças podem ser norteadores de sua ação pedagógica. Esse é um tema que precisa estar presente nos debates das escolas e dos cursos de formação inicial e continuada de professores, bem como em pesquisas com crianças que discutam a participação como forma de inclui-las na sociedade.

A criança é um outro distinto do adulto e no seu grupo de pares. Essa alteridade se torna um desafio para o professor ao exigir uma significativa metodologia que se coloca na interdependência entre o mundo da criança e do adulto. A ideia de possibilitar voz à criança deve mobilizar processos dialógicos para assegurar a alteridade de crianças e adultos.

O ambiente da Educação Infantil mostra-se um espaço fértil para a participação das crianças, colocando vários desafios em relação aos recursos e metodologias como forma de escutar as crianças. Um dos caminhos pode ser por meio de suas próprias linguagens e formas de compreender o mundo, observando-as em seus contextos, percebendo suas interações, necessidades e interesses numa perspectiva investigativa, interpretativa e crítica, assegurando que sua participação se torne audível e visível em suas manifestações e dinâmicas.

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Recebido: 01 de Setembro de 2023; Aceito: 03 de Novembro de 2023

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