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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.70 Natal out./dez 2023  Epub 06-Mar-2024

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n70id33341 

Resenha

O pesadelo que nunca acaba. Neoliberalismo contra a democracia

Never ending nightmare: the neoliberal assault on democracy

La pesadilla que no acaba nunca. El neoliberalismo contra la democracia

Camila Chiodi Agostini1 

Doutoranda Camila Chiodi Agostini, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Passo Fundo (Brasil), Funcionária da Universidade Federal da Fronteira Sul (Brasil), Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (GEPES/UPF), E-mail: camila.chiodi.agostini@gmail.com


http://orcid.org/0000-0002-7501-9553

Altair Alberto Fávero1 

Prof. Dr. Altair Alberto Fávero, Universidade de Passo Fundo (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (GEPES/UPF), E-mail: altairfavero@gmail.com


http://orcid.org/0000-0002-9187-7283

1Universidade de Passo Fundo (Brasil)

LAVAL, Christian; PIERRE, Dardot. La pesadilla que no acaba nunca, . El neoliberalismo contra la democracia. Díez, Afonso. Barcelona: Gedisa Editorial, 2017. recurso eletrônico,


A obra de Laval e Dardot, do ano de 2017, intitulada O pesadelo que nunca acaba: neoliberalismo contra a democracia, propõe uma discussão na linha de razão-mundo, como o neoliberalismo, diante de suas crises e das mudanças rápidas ocorridas em todo o mundo, que têm produzido um ataque contra a democracia. Logo na introdução, os autores avaliam que a realidade, tanto francesa quanto global, se apresenta enquanto um sistema que não escolhe partido único, mas atua enquanto uma razão política neoliberal. Nessa racionalidade, os indivíduos encontram-se enjaulados enquanto pessoas e identidades pré-formuladas, mesmo em sistemas ditos democráticos, que direcionam seus dispositivos legais em favor de tiranias e processos de vigilância total.

Para os autores, as denominações ultraliberalismo, totalitarismo neoliberal ou mesmo capitalismo não dão conta de explicitar a multiplicidade dos fenômenos que estão ocorrendo e muito menos apontar respostas. O neoliberalismo precisa, segundo eles, ser considerado enquanto uma “[...] radicalização neoliberal em toda a diversidade e complexidade de seus aspectos [...]”, e o objetivo é “[...] entender como a crise multiforme que vivemos, longe de ser um freio, tornou-se um meio de governar". É a partir da ideia que “o neoliberalismo não cessa, pelos efeitos de insegurança e destruição que ele próprio engendra, de se alimentar e se reforçar” (Laval; Dardot, 2017, p. 13) que a obra em questão é desenvolvida. A obra em tela, além da introdução e da conclusão, está organizada em seis capítulos. O capítulo intitulado Governar durante a crise (Gobernar mediante la crisis), dividido entre quatro temas, expõe, de forma geral, o modo como a democracia se apresenta hoje enquanto um resultado de um governo de poucos, tendo por base um “[...] conjunto de relações de poder por meio das quais as sociedades e suas instituições, assim como a natureza e as subjetividades, são submetidas à lei da acumulação do capital financeiro” (Laval; Dardot, 2017, p. 18). Com a crise de 2008, ocorreu uma radicalização neoliberal, durante a qual a população em geral foi compelida a pagar a dívida existente, decorrente da isenção de impostos e quebra da bolsa de valores. Os governos, pressionados pelas oligarquias de grandes empresas e bancos, passaram a diminuir o assalariamento e a interferir na organização dos assalariados, promovendo mais empobrecimento dos trabalhadores. Governar pela crise sugere um aumento de políticas de competitividade de forma a converter a própria crise em favor daqueles que vivem do capital, sendo a própria crise um estado de regularidade.

No segundo capítulo, O projeto neoliberal, um projeto antidemocrático (El proyecto neoliberal, un proyecto antidemocrático), os autores avaliam que o neoliberalismo mantém pouco daquilo que foram os primórdios de seu projeto inicial após a segunda guerra mundial, mas que um dos pontos da época ainda permanece: sua postura antidemocrática, que impõe as regras de mercado para a orientação política dos governos, tornando-as invioláveis e irrefutáveis a todos. Nesse sentido, a atuação contra a soberania do povo, pelo procedimento técnico de nomeação de governantes e pela superioridade do direito privado sobre o governo do Estado, faz com que este se comporte como um agente particular, uma espécie de “demarquia” ou uma constitucionalização do direito privado, em que a vontade do povo é limitada pela lei. Por fim, há a ideia ordoliberal de uma “constituição econômica”, que baseia um Estado que não é mínimo e que deve defender o interesse da ordem econômica.

Com o título Sistema neoliberal e o capitalismo (Sistema neoliberal y capitalismo), o terceiro capítulo analisa a investida neoliberal que condiciona a atuação de um Estado para ser o garantidor e o interventor para a perpetuação desse modelo. Os destaques do capítulo são feitos com a sustentação do neoliberalismo enquanto um sistema globalizado, institucional e normativo, no qual disciplina e iniciativa governamental atuam de forma conjunta. Enquanto processo histórico normativo, se baseia em um conjunto de decisões jurídico--políticas que se tornam leis, as leis do capital, e formam a sociedade do capital. Por isso, o avanço sobre a natureza é irrestrito sem preocupações com as questões ambientais, num processo instrumental de financeirização ou capitalização da biodiversidade. O tópico final do capítulo descreve a falta de limitação como regra para o surgimento da subjetividade humana, na qual a coextensividade da vida e dos negócios se insere em um modo de vida individual enquanto direito próprio. Para os autores, o sujeito goza do valor que atribui a si mesmo, de forma que usufrua de seu sucesso acumulando mais sucesso. Nesse contexto, a democracia vai significar justamente a possibilidade de dirigir a sua empresa (e a si mesmo) como bem entender, sendo responsável pelo seu fracasso ou sucesso.

A União Europeia e o Império das Normas (La Unión Europea o el Imperio de las normas) é o título do quarto capítulo e trata da construção da União Europeia, com o enfoque jurídico normativo, histórico e de poderio econômico que os autores denominam enquanto um império inédito na história. A atuação do bloco ocorre por meio de suas políticas de enquadramento, enquanto um Estado de direito que atua sobre as lógicas de mercado, como o controle nacional através do orçamento e da moeda unificada. No aspecto social, o modelo é concorrencial.

Com o título O nó deslizante da dívida (El nudo corredizo de la deuda), os autores analisam no quinto capítulo de que forma a dívida é utilizada como um meio de governo, a partir da situação da Grécia, uma maneira hábil de controlar os países com os objetivos do capital. Outra forma de controle é por meio da estatização jurídica das legislações de cada país, relativas às normas de interesse do capital, para que não haja eleição contrária aos tratados, estabelecendo uma nova forma de soberania nacional. Dessa forma, afirmam a existência de sociedades escravizadas pela dívida, que precisam se adequar e transformação com a chantagem econômica e laboral, a asfixia financeira e o medo das privatizações exercidas pelos detentores do poder.

Por fim, no capítulo sexto, intitulado O bloco neoliberal oligárquico (El bloque oligárquico neoliberal), Laval e Dardot avaliam o atual fortalecimento do neoliberalismo, enquanto única realidade aceitável, e os elementos que contribuem para o seu fortalecimento. Enquanto os atores, eles apresentam “[...] grupos políticos, forças sociais, poderes econômicos e ambientes midiáticos que formam uma ‘nova aristocracia’, que já subverteu profundamente os princípios democráticos” (Laval; Dardot, 2017, p. 130). A dominação neoliberal também estaria favorecida pelo processo de profissionalização da política que desestrutura a democracia representativa. A corrupção sistêmica, o poder corporativo, a osmose entre o setor bancário e a alta administração estatal, o uso de especialistas econômicos, a grande mídia e a esquerda de direita também são apontadas como elementos de fortalecimento.

Concordamos com os autores que na conclusão escrevem que esses são tempos complicados e, acrescentamos, perigosos. O avanço neoliberal atua sobre o sujeito, sobre a economia e sobre a vida como um todo de forma vertiginosa, ao passo não parece se evidenciar uma forma alternativa de vida fora dos braços neoliberais. A osmose apresentada conjuga poder, lei e subjetivação, ao passo de confluir que a vida fora do mercado é impossível de ser vivida. O esfacelamento da democracia, enquanto representação da vontade do povo, se verifica na lógica neoliberal que quebra os direitos sociais e o atendimento às necessidades mínimas de vida humana, em contrapartida de garantia apenas dos interesses em jogo da lógica capitalista. A obra nos mostra que a investida neoliberal trata de atender aos interesses únicos do capital, utilizando estratégias para a sua manutenção, inclusive com a fragilização da própria democracia. A investida tem abarcado novos braços, inclusive durante a recente pandemia de Covid-19. E, nesse jogo, são os indivíduos que ficam à mercê do barco. Uma obra potente, instigadora e altamente necessária para enveredar pelas discussões sobre os rumos do planeta nos próximos tempos.

Referências

LAVAL, Christian. PIERRE, Dardot. La pesadilla que no acaba nunca. El neoliberalismo contra la democracia. Tradução Afonso Díez. Barcelona: Gedisa Editorial, 2017. [ Links ]

Recebido: 24 de Julho de 2023; Aceito: 31 de Julho de 2023

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