Introdução
Em Portugal, devido às reivindicações das associações de defesa dos direitos das pessoas LGBT, tem-se assistido a importantes alterações legislativas relativas aos direitos civis das minorias sexuais (Miguel Vale de ALMEIDA, 2010). Dentre essas alterações, pode-se citar a inclusão em 2004 do artigo 13º do princípio de igualdade na Constituição Portuguesa; a promulgação da lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (Lei nº 9/2010); a inclusão da identidade de gênero como motivação nos crimes de homicídios e ofensas à integridade física e discriminação à toda população LGBT (Lei nº 19/2013); e, mais recentemente, a promulgação do direito à autodeterminação da identidade de gênero e expressão de gênero e à proteção das características sexuais de cada pessoa (Lei nº 38/2018) (Rita GOUVEIA; Liliana MOSER, 2019; PORTUGAL, 2018).
Em virtude da legislação antidiscriminação, entre 2018 e 2019, Portugal deixou o 27º lugar, passando a liderar, juntamente com o Canadá e a Suécia, o Spartacus Gay Travel Index1 como destino gay-friendly (SPARTACUS, 2019). Tal fato tem fomentado a adoção de estratégias para promover o turismo LGBT no país, reforçadas pelo forte poder de compra e disponibilidade para viagens de forma mais frequente por parte dessa comunidade (Susan BAXTER, 2010).
No entanto, apesar dos avanços no enquadramento legal e dos compromissos assumidos por organismos públicos e agentes sociais, o Observatório da Discriminação contra Pessoas LGBT, com dados referentes a 2018, registrou 59 denúncias de crimes de ódio e 74 casos de incidentes discriminatórios, muitos ocorridos em contexto on-line, demonstrando que a legislação, embora seja inclusiva, ainda precisa ter maior reflexo na sociedade (ILGA PORTUGAL, 2019).
Sobretudo no âmbito esportivo, uma breve revisão da literatura possibilita encontrar um grande número de estudos confirmando a persistência de um clima hostil com relação à diversidade sexual no esporte (Marion DOULL et al., 2018; Kerry O’BRIEN; Heather SHOVELTON; Janet LATNER, 2013), com maior incidência no esporte masculino (Joaquín PIEDRA, 2015; Woojun LEE; George CUNNINGHAM, 2016). De acordo com Caroline Symons, Grant O’Sullivan e Remco Polman (2017), a intolerância quanto à diversidade sexual no esporte leva esse coletivo a permanecer invisível, sem revelar sua orientação sexual.
Com efeito, em uma entrevista concedida ao jornal Record, em 27 de fevereiro de 2018, o judoca português Célio Dias (2018a) assegurou: “Sempre me entendi como homossexual”. A revelação ganhou alguma projeção uma vez que se trata do primeiro atleta na história do esporte português a assumir sua homossexualidade. Na mesma entrevista, o atleta olímpico revelou haver passado por depressão ao ser eliminado nos Jogos Olímpicos de 2016, o que culminara com um diagnóstico de doença mental, denominado síndrome esquizo compulsiva2 (APA, 2004). Em datas posteriores à publicação da reportagem, ainda que de forma momentânea, outros jornais portugueses noticiaram a ‘saída do armário’3 do atleta, assim como realizaram outras entrevistas.
A partir da repercussão das notícias, elaboraram-se os seguintes questionamentos: que discursos foram produzidos a partir da ‘saída do armário’ do atleta? Existe intersecção entre raça e sexualidade nos discursos das matérias jornalísticas? Que discursividades são produzidas com relação à doença mental do atleta? Para responder a essas questões, o objetivo desta pesquisa foi investigar os discursos sobre homossexualidade e raça no meio esportivo, produzidos a partir da ‘saída do armário’ de um atleta português, e veiculados em jornais on-line.
Percurso teórico: intersecções entre gênero, sexualidade e raça
No desdobramento da segunda onda do movimento feminista, por volta dos anos 1970, o uso do termo sexo foi considerado ineficaz para descrever as relações entre homens e mulheres, surgindo o termo gênero. O que se pretendia era rejeitar o determinismo biológico, implícito no uso dos termos sexo ou diferença sexual (Joan SCOTT, 1990). Ainda que a definição inicial do conceito de gênero tenha sido formulada sobre a base da diferenciação com o sexo, nos anos 1990, a legitimidade “à suposta homologia entre diferenças biológicas e sociais” passa a ser questionada por feministas que buscam uma reelaboração desses termos (Adriana PISCITELLI, 2008, p. 12).
Nos estudos contemporâneos sobre gênero, destaca-se a contribuição da teoria queer, desenvolvida a partir do final dos anos 1980, por uma série de pesquisadores. Judith Butler (2003, p. 12) é uma das teóricas que discute e problematiza a distinção sexo/gênero. Para a autora, “o sexo, assim como o gênero, são construções sociais, produzidos, culturalmente e discursivamente”, afirmando, portanto, que o sexo não é natural, e sim histórico e cultural, constituído discursivamente, tal como o gênero. Comprometida com pensamentos de Michel Foucault, Butler (2003) ressalta que a sexualidade se institui historicamente a partir dos múltiplos discursos sobre o sexo, os quais regulam, disciplinam e normalizam, instaurando saberes e produzindo verdades. Nesse sentido, a autora define gênero como performativo, referindo-se à “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.” (BUTLER, 2003, p. 59).
Ainda de acordo com Butler (2003), sexo e gênero surgem de algo que ela denomina como heterossexualidade compulsória ou matriz heteronormativa: um sistema formado por discursos, normas e práticas, ou seja, padrões heterossexuais considerados normais e desejáveis. A heterossexualidade compulsória atribui, então, uma coerência entre sexo, gênero e desejo (prática sexual), isto é, espera-se que um homem se identifique e se ajuste às formas de comportamento consideradas masculinas, assim como sinta desejo sexual e se relacione sexualmente apenas com mulheres. Quando não existe essa coerência, quando o gênero não decorre do sexo, ou o quando o desejo (prática sexual) não está orientado ao sexo oposto, existe uma subversão da ordem compulsória, portanto tais sujeitos não podem ser nomeados, pensados ou entendidos, por não fazer sentido na perspectiva da matriz heterossexual.
De acordo com Guacira Lopes Louro (2009, p. 27), “a produção da heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Uma rejeição que se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia”. Para Daniel Borrillo (2010, p. 22):
O termo “homofobia” designa, assim, dois aspectos diferentes da mesma realidade: a dimensão pessoal, de natureza afetiva, que se manifesta pela rejeição dos homossexuais; e a dimensão cultural, de natureza cognitiva, em que o objeto da rejeição não é o homossexual enquanto indivíduo, mas a homossexualidade como fenômeno psicológico e social.
As manifestações homofóbicas apresentam-se de diversas formas, desde a violência verbal e simbólica (insultos e xingamentos), a violência psicológica (constrangimentos, humilhações) até a violência física (BORRILLO, 2010). Em virtude desse tipo de coerção social, muitos homossexuais ocultam sua orientação e identidade sexual, mantendo sua invisibilidade dentro do armário.
Eve Sedgwick (2007, p. 19) afirma que o armário é compreendido “como um dispositivo de regulação da vida de gays e lésbicas que concerne, também, aos heterossexuais e seus privilégios de visibilidade e hegemonia de valores”. De acordo com Richard Miskolci (2014), o armário constitui-se de um conjunto de normas rigidamente instituídas, mas que não são de todo explícitas, por meio das quais se compreende que o espaço público é heterossexual, relegando, portanto, as relações entre homossexuais ao espaço do privado, da clandestinidade, do segredo. Assim, na invisibilidade do armário, os homossexuais podem se sentir mais seguros, protegidos das repreensões, das interdições, das violências física e simbólica.
Tendo em vista que em uma sociedade heterossexual a homossexualidade já supõe uma dificuldade para os indivíduos, determinados traços fenotípicos atribuídos aos negros (com destaque para cor da pele e cabelo) também podem produzir outras dificuldades e processos discriminatórios, dependendo do contexto social no qual se encontram inseridos. Kimberlé Crenshaw (2002) define a interseccionalidade como maneiras de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação, tais como o sexismo, o racismo, entre outros. De acordo com a autora, a partir do conceito de interseccionalidade é possível “pensar sobre a forma pela qual o cruzamento do racismo, do sexismo e da homofobia cria desigualdades que posicionam social e politicamente alguns grupos” (Vanilda Maria de OLIVEIRA, 2007, p. 386).
Partindo da compreensão de que a investigação sobre o conceito de raça e racismo é extensa e complexa, apresenta-se aqui uma menção breve a esses conceitos. Michael Banton (2001) identificou o início do processo de racialização no século XII, mas assinala que foi no século XIX que a raça passou a classificar as pessoas, dividindo-as em raças distintas: um processo político e ideológico pelo qual determinadas populações passaram a ser identificadas por apresentar determinadas características fenotípicas (cor da pele, forma do nariz, dos lábios, do queixo, do formato do crânio etc.) diferente do padrão socialmente aceito do homem/mulher branco/a.
Para Nilma Lino Gomes (2003), mesmo essas características fenotípicas mencionadas anteriormente, portanto, físicas e biológicas, foram e são construídas e interpretadas pela cultura. Além da cor da pele, o cabelo enrolado, também a cultura e a arte africanas foram tomadas como forma de hierarquizar indivíduos e povos, sendo os indivíduos negros classificados como inferiores (GOMES, 2008).
De acordo com Rosa Cabecinhas (2002, p. 56), “o termo raça foi sendo utilizado no sentido ‘espécie’, para designar grupos humanos distintos na sua constituição física e nas suas capacidades mentais”. Conforme a autora, o termo raça foi banido do discurso científico e político de forma progressiva, sendo substituído pelo conceito de etnia. Etnia refere-se, então, a um conjunto de indivíduos com um ancestral comum, com uma língua em comum, uma mesma religião, uma mesma cultura e território geográfico comum (Kabengele MUNANGA, 2004). Segundo os autores Jorge Vala, Rodrigo Brito e Diniz Lopes (1999), esse deslocamento de um processo de racialização (das características físicas ou raciais) para um processo de etnicização (das características comportamentais e culturais) deu lugar à ênfase nas diferenças culturais enquanto legitimadoras da desigualdade entre categorias de pessoas. Nesse sentido, Munanga (2004) assinala que a substituição do termo raça pelo termo etnia, considerado politicamente correto, não provoca mudança alguma no que diz respeito ao racismo, porque em ambos os termos ainda existe uma relação hierarquizada entre culturas diferentes.
Em um sentido mais restrito, o racismo é compreendido como doutrina ou conjunto de crenças que defende a superioridade de um grupo sobre outros. De acordo com Cashmore (2000), as manifestações do racismo estão intimamente relacionadas a necessidade, interesses e políticas de um grupo social, incorporando práticas, atitudes e crenças.
O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em preconceito raciais, comportamentos discriminatórios, disposições estruturais e práticas institucionalizadas que atribuem características negativas a determinados padrões de diversidade e significados sociais negativos aos grupos que os detêm, resultando em desigualdade racial, assim como a noção enganosa de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificáveis. (CASHMORE, 2000, p. 172).
Segundo Cabecinhas (2002), a partir da década de 1980 surgiram diversos conceitos relativos às novas formas de racismo emergentes nas sociedades. Entre as novas manifestações do racismo, fala-se em racismo moderno (John MCCONAHAY, 1983), racismo aversivo (Samuel GAERTNER; John DOVIDIO, 1986) ou racismo subtil (Roel MEERTENS; Thomas PETTIGREW, 1999). De forma geral, essas teorias distinguem dois tipos de preconceito: “um de carácter mais tradicional, no qual o preconceito é expresso através de condutas hostis e de rejeição; e um estilo moderno, no qual o preconceito é expresso subtilmente ou de forma mais encoberta” (Jorge GATO, Nuno CARNEIRO; Anne Marie FONTAINE, 2011, p. 147). É necessário citar ainda o racismo estrutural, que advoga que o racismo é consequência da estrutura social, do modo como “se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares” (Sílvio Luiz de ALMEIDA, 2018, p. 38). Portanto, sendo o racismo um elemento estrutural e estruturante das sociedades, faz-se presente também no fenômeno esportivo.
Assim, concordando com Adriana Piscitelli (2008), no sentido de que o debate sobre interseccionalidade permite compreender as interconexões entre raça, gênero e sexualidade presentes em uma sociedade, optou-se pela análise da homossexualidade no esporte, pensando o gênero e a sexualidade como construções sociais que podem ser pensadas e discutidas em conjunto com outros fatores sociais.
Percurso metodológico
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, utilizando como estratégia a análise de discurso de linha francesa (doravante AD). Na AD, os discursos são compreendidos como práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-histórico, mas que também constituem esse contexto. Segundo Michel Pêcheux (2008, p. 8), é “no contato do histórico com o linguístico, que [se] constitui a materialidade específica do discurso”. De acordo com Rita Caregnato e Regina Mutti (2006), a AD é constituída da articulação entre ideologia (posicionamento do sujeito ao se filiar a um discurso), história (contexto sócio-histórico) e linguagem (materialidade do texto). Pode-se dizer, portanto, que o discurso, ao ser produzido e interpretado, constitui uma ação social e é sempre marcado por uma ideologia. Dessa forma, uma formação discursiva (FD) refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social (formação ideológica), delimitando a produção de linguagem dos sujeitos.
Um importante conceito para a organização do corpus na AD é o acontecimento, entendido como o surgimento de um fato novo que convoca a memória para produzir sentidos (PÊCHEUX, 2008). Nesta pesquisa, considerou-se a ‘saída do armário’ do judoca português Célio Dias como um acontecimento histórico, em que o privado se torna público; assim como se conceberam os discursos sobre a ‘saída do armário’ do atleta, veiculados em jornais esportivos on-line, como um acontecimento discursivo.
O corpus da pesquisa foi composto de textos que abordavam temáticas relacionadas à ‘saída do armário’ do judoca português, publicados em jornais esportivos portugueses. Inicialmente, utilizando o critério de audiência, foram selecionados como fontes de coleta de dados os sites dos jornais Record, A Bola e O Jogo. Pelo fato de não encontrar muitas reportagens nos referidos jornais, estabeleceu-se como caminho alternativo para a seleção do corpus a ferramenta de busca do Google, utilizando as palavras-chave: Célio Dias, coming out, ‘sair do armário’. Por meio da ferramenta de pesquisa, foram encontradas matérias postadas nos anos de 2018, quando o atleta revelou sua orientação sexual, até 2019, totalizando sete reportagens. As matérias jornalísticas foram publicadas em jornais esportivos, com duas publicações no Record (REIS, 2018a, 2018b) e uma no jornal Mais Futebol (2018); em jornais de conteúdo geral, sendo uma publicação na seção esportiva do jornal de conteúdo geral Sábado (2018) e uma na seção Atualidades do SAPO24 (Margarida ALPIM, 2019), e em dois jornais voltados à comunidade LGBT, uma publicação no jornal Esqrever (Pedro CARREIRA, 2018) e uma no Dezanove (Diogo COSTA, 2019). Ressalta-se que as seguintes matérias jornalísticas apresentaram comentários dos leitores, os quais também foram analisados: Record (REIS, 2018a) com onze comentários; SAPO24 (ALPIM, 2019), com doze comentários, e Sábado (2018) e Esqrever (CARREIRA, 2018) com um comentário cada.
De acordo com Jean Jacques Courtine (2009, p. 54), quando se pensa na construção do corpus já se está considerando um corpus discursivo, o qual define como “um conjunto de sequências discursivas, estruturado segundo um plano definido em relação a um certo estado das CP (condições de produção) do discurso”. Por sequência discursiva, o autor afirma que são “sequências orais ou escritas de dimensão superior à frase”, alertando, porém, que essa noção é vaga, tendo em vista que a natureza e a forma do material recolhido são variáveis (COURTINE, 2009, p. 55).
A partir da leitura do corpus discursivo, foram selecionadas diferentes sequências discursivas (SD1, SD2, SD3 etc.) e, em seguida, identificados os sentidos produzidos pelo texto. Posteriormente, foram realizadas outras leituras dos textos e das SD para a busca de semelhanças e diferenças, com o objetivo de realizar a agrupação em trajetos temáticos.
De acordo com Jacques Guilhaumou e Denise Maldidier (2010, p. 164-165), o trajeto temático trata-se de um conjunto de configurações textuais que, de um acontecimento a outro, articula os temas e opera o ‘novo na repetição’. Em sentido analítico, o trajeto temático permite visualizar, no interior da dispersão do arquivo, momentos de regularidade e de sistematicidade de certas escolhas temáticas em um determinado momento histórico.
Resultados e discussão
As sequências discursivas foram organizadas em dois trajetos temáticos: a) a ‘saída do armário’ e b) a interseccionalidade no tatame.
A ‘saída do armário’
Na reportagem do jornal SAPO24, Alpim (2019) apresenta o atleta português: “judoca, modelo, blogger, estudante de psicologia. Mais: foi adotado e cresceu num bairro social no Monte da Caparica” (SD1). De acordo com Maria Elisa Ramos (2017), o Monte da Caparica, situado na Freguesia da Caparica (Concelho de Almada, distrito de Setúbal), é um local onde se pode encontrar diferentes expressões de exclusão social, além de problemas relacionados a famílias com baixo recurso econômico, baixo nível de escolaridade, grande número de situações de risco social. Observa-se na SD1 que a matéria chama a atenção para as diversas atividades do atleta, acrescentando dados referentes a sua origem, o bairro social no Monte da Caparica, denotando uma perspectiva de superação e que vai dar o tono da entrevista com o atleta ao longo da reportagem.
Sobre a descoberta da sua orientação sexual, o atleta, que iniciou no judô aos 13 anos de idade, afirma que foi um caminho de revelação e autoaceitação.
Sempre me senti atraído pelo mesmo sexo, mas foi só no quinto ano que percebi que eu era uma excepção à regra. Na altura foi um momento de ruptura para mim, mas foi também um momento crucial, de consciencialização daquilo que eu era. No início rejeitava aquilo que eu era. Mais tarde, comecei aceitar a minha atracção por homens, mas não queria que as outras pessoas soubessem (SD2) (DIAS, 2019a).
Ao discorrer sobre a “política do armário”, Sedgwick (2007) contribui para a compreensão da dinâmica do segredo da sexualidade. Segundo a autora, é no armário que os homossexuais constroem sua subjetividade, o que tem como consequência uma forma singular de experienciar o mundo, e que envolve a dificuldade de aceitar a si mesmo como homossexual e de revelar ou esconder sua orientação sexual aos demais. Para a autora, “mesmo num nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays, há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas” (SEDGWICK, 2007, p. 22).
Na SD2, é possível observar os conflitos no processo de descoberta da homossexualidade, nas expressões “ruptura”, “no início rejeitava aquilo”, “não queria que as outras pessoas soubessem”. Pode-se depreender, portanto, que ser homossexual passa pelos sentidos, já ditos, de ser considerado um indivíduo ‘anormal’, já que na sociedade o padrão considerado ‘normal’ é o heterossexual.
No âmbito esportivo, sobretudo, podem-se observar diferentes formas de intolerância, o que dificulta e muitas vezes impede a ‘saída do armário’ dos atletas. De fato, o esporte tem sido considerado como uma área que rejeita fortemente a homossexualidade, tendo em vista que o esporte competitivo é entendido como um lugar de configuração da masculinidade (Eric ANDERSON, 2015).
Quando questionado a respeito de ser o primeiro atleta na história do desporto português a ‘sair do armário’, Célio Dias afirma: “Aceito bem e para mim é importante. Sempre me entendi como homossexual, com preferência por pessoas do sexo masculino. Não é algo que me define enquanto pessoa, mas é algo que tive de aceitar”. (SD3) (DIAS, 2018a). Na mesma entrevista, também ressalta: “Tenho lidado muito bem com a minha homossexualidade. E a partir de determinado momento não fazia sentido esconder. Posso ser perfeitamente feliz como qualquer outra pessoa”. (SD4) (DIAS, 2018a). É possível notar na SD3 e na SD4 que o atleta se inscreve em uma FD que compreende a homossexualidade como algo natural, que não é uma opção de escolha individual. Na SD4, ao afirmar que “não fazia sentido esconder”, o atleta, ao ‘sair do armário’, está também contestando valores e crenças arraigadas na sociedade e no esporte (Gustavo SAGGESE, 2009). No entanto, compreende-se que a revelação causa alívio, já que a dinâmica de esconder e limitar ações e pensamentos, típicas de quem está no armário, pode ser estressante e cansativa.
Na opinião do atleta:
O homem gay português ainda divide muito a sua identidade sexual do resto da sua identidade. Existe o ‘eu’ que é gay e depois o existe o ‘eu’ social […] Eu acho que isso acontece pela pressão para heterossexualidade que existe na nossa sociedade. Somos um país de tradição católica, tanto que acredito que somos ainda afectados pela visão heteronormativa que provém da Igreja e que sempre moldou a forma como vemos a sociedade. (SD5) (DIAS, 2019a).
O último recenseamento, realizado em 2011, mostra que cerca de 80% da população portuguesa se declara católica romana, configurando-se em um dos indicadores mais elevados a nível europeu. A prática religiosa também é uma das mais altas da Europa: cerca de 36,2% participam de um ato religioso pelo menos uma vez por semana e 43% pelo menos uma vez por mês (INE, 2012). De acordo com Helena Vilaça e Maria João Oliveira (2015), os altos indicadores de religiosidade em Portugal não impediram o surgimento de atitudes mais liberais da sociedade portuguesa em relação à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo.
No entanto, os resultados de um estudo realizado com oitocentos sujeitos, que objetivou analisar a relação da fé religiosa nas atitudes dos portugueses face à homossexualidade, mostram que os participantes com um nível de religiosidade mais elevado evidenciam uma rejeição maior às pessoas LGBT, menor aceitação do reconhecimento legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo e maior preconceito no que se refere às relações de intimidade entre e/ou com homossexuais (Cátia Daniela Rodrigues CARVALHO, 2012).
Borrillo (2010) alerta que, embora exista uma defesa da naturalidade da heterossexualidade, baseada principalmente em argumentos da biologia e da necessidade de reprodução da espécie, a imposição de um modelo heterossexual é um dispositivo de manutenção da ordem social. Dessa forma, abalos na estrutura heterossexual, como no caso de coming out de atletas, são amplamente contestados e intolerados, o que pode ser observado no maior número de comentários negativos dos leitores dos jornais analisados, ou seja, a visibilidade do atleta gay incomoda.
Não entendo como isto é notícia quando todos temos isto, aquilo e aqueloutro… será que é exibicionismo estúpido? A escriba não tem mais nenhum assunto para escrever? Que tristeza de assunto. Eu cá sou X, Y, e Z e depois o que é que isso interessa? Sou o que sou. E todos somos como somos. Sem mediatismos baratos e estúpidos. (SD6) (Comentário de leitor) ALPIM, 2019).
O argumento de que o tema tratado seja por falta de assunto e por exibicionismo parece ser mais um pretexto para evitar a discussão, promovendo o silenciamento. Conforme afirma Eni Puccinelli Orlandi (2005), o silenciamento também produz sentidos, é um não dito ou um interdito. Assim sendo, o que está estabelecido social e politicamente é que determina o que será silenciado.
No entanto, é necessário destacar que os comentários mais criticados por outros leitores foram aqueles mais desrespeitosos e agressivos: “O fardo carregado pelas mães. Os gays não são semideuses. A maioria é fruto do consumo de drogas. A civilização destrói o sujeito, que destrói a família, que é base para a civilização” (SD7) (Comentário de leitor) (ALPIM, 2019). A SD7 mostra o preconceito enraizado em estereótipos que relacionam o homossexual a comportamentos reprováveis, além do conteúdo absurdo, visto que não existe relação entre a orientação sexual e o uso de drogas.
A interseccionalidade no tatame
Em uma entrevista concedida ao jornal Dezanove, Célio Dias afirma:
A interseccionalidade em si fala de vários tipos de discriminação acumulados numa só pessoa, e a forma como a relação entre eles impactam a vida do indivíduo. Eu, por exemplo, sou gay e negro, para além da discriminação que carrego pela minha orientação sexual, ainda lido com os preconceitos que vêm com a cor da minha pele. Em relação a como tem marcado a minha jornada, já conheci várias pessoas, da comunidade LGBT+ inclusive, que me viam de uma forma distorcida com base nessa relação, contudo, nunca deixei que me definisse como pessoa. (SD8) (DIAS, 2019a).
Na SD8, um efeito de sentido produzido é a ideia de que ser homossexual e ser negro é ser habitante de dois mundos distintos, que são, ao mesmo tempo, causadores de preconceito e discriminação.
De acordo com Pedro Silva e Raimundo Castro (2017), o estudo interseccional de categorias como raça, classe, gênero e sexualidades vêm sendo realizado desde a década de 1980, e é intensificado após o surgimento da teoria da interseccionalidade de Crenshaw (1989), dentro dos estudos feministas trabalhados por pesquisadoras negras. Ao enfocar mais de um aspecto social, a teoria interseccional permitiria um entendimento mais complexo e dinâmico das relações humanas.
Especificamente no âmbito esportivo, embora exista uma noção recorrente de que o espaço é de justiça e igualdade de oportunidades, o processo histórico de discriminação racial pode ser observado por meio da exclusão do negro em determinadas modalidades, como o tênis (Márcio Antônio TRALCI FILHO, Alessandro SANTOS, 2017). Para Fabrício Gregório e Beatriz Melo (2015), ainda que exista uma boa representatividade da população negra em alguns esportes, assim como é certo que boa parte dos negros consiga alcançar ascensão social por meio do esporte, o fato de não conseguirem adentrar em todo o ambiente esportivo tem como consequência o reforço de estereótipos biologizantes.
Mesmo nas modalidades em que há grande inserção de negros, como o futebol, vários casos de racismo vêm ganhando repercussão na sociedade, sendo divulgados em diferentes jornais esportivos (Aline dos SANTOS, 2016). Recentemente, em jogo realizado no dia 16 de fevereiro de 2020, o atacante Marega, jogador do Futebol Clube do Porto, foi vítima de insultos raciais por parte da plateia/torcedores, durante uma partida pela Primeira Divisão do futebol português. Após o ocorrido, Marega recebeu várias manifestações de solidariedade em Portugal (Isaura ALMEIDA, 2020).
É necessário ressaltar que, em relação ao esporte, a Lei nº 113/2019 (que altera a Lei nº 39/2009) estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a sua realização com segurança (PORTUGAL, 2019). A referida Lei não menciona os termos homofobia ou orientação sexual, embora cite medidas sancionatórias aos envolvidos em “perturbações de ordem pública, manifestações de violência, racismo, xenofobia e qualquer outro ato de intolerância” (PORTUGAL, 2019, p. 10).
Célio Dias, em uma entrevista ao jornal SAPO24, afirma não ter vivenciado episódios racistas mais violentos, embora tenha percebido situações de discriminação em distintos momentos, como quando começou a dar entrevistas e após ter lançado seu blog; sentia que os entrevistadores não davam credibilidade a suas respostas, o que, segundo ele, está relacionado ao rótulo de que negro não é inteligente (DIAS, 2019b). Essas situações de discriminação não ocorreram no ambiente esportivo, com o atleta, mas sim com o cidadão, relacionando-se claramente com o fato de ser negro. Em outro relato, ressalta que:
Nas zonas mais conservadoras da cidade, quando entro numa loja há sempre um assistente de loja que está atrás de mim. Ou então está a arrumar as coisas e a olhar de lado. E eu sinto que isso não acontece quando na loja estão pessoas brancas. Mesmo quando fui para o S. João de Brito [teve uma bolsa para frequentar o secundário no colégio] senti esse estigma inicialmente. Quando disse que queria ser médico, os alunos da minha turma riram-se. São estes pequenos episódios que fazem com que o ser negro ainda seja um estigma na sociedade (SD9) (DIAS, 2019b).
No que se refere ao preconceito sexual no esporte, Célio Dias afirma não ter sido afetado.
As pessoas já me olham como um campeão. Há histórias horríveis no judô de homens homossexuais que foram completamente rejeitados pela sua orientação sexual. O facto de eu ser grande e de ter bons resultados - um ano depois de começar a praticar judô fui logo campeão nacional - protege-me. (SD10) (DIAS, 2019b).
Ao contrário de alguns países, como Estados Unidos ou Reino Unido, onde já existem um número significativo de estudos acerca do preconceito sexual no esporte ou de coming out (Eric ANDERSON, Mark MCCORMACK, Harry LEE, 2012; Willian CASSIDY, 2017), em Portugal quase não existem estudos que analisem a situação de atletas LGBT no esporte, assim como não existiam atletas abertamente homossexuais no país.
A esse respeito, em outra entrevista ao jornal Esqrever, voltado à população LGBT, o judoca português afirma:
Enquanto jovem precisei de uma referência LGBTI na minha vida e não tive, tal como não tive referências de alguém que tenha crescido num bairro social ou que fosse negro. Mas consegui que estas minhas características fossem unas e me tornassem naquilo que sou. Por isso sinto este chamamento de passar a mensagem a jovens - não só LGBTI - como todas as restantes pessoas, de forma a podermos mudar a sociedade. Porque o preconceito existe e continuará a existir enquanto virmos duas mulheres a beijarem-se na rua ou dois homens a cuidar da sua criança e isso ser visto como um gesto perfeitamente normal. (SD11) (DIAS, 2018c).
Para o pesquisador espanhol Joaquín Piedra (2015), em países onde praticamente inexistem atletas assumidamente homossexuais, a dificuldade de implantar medidas de proteção a esse coletivo é maior, tendo em vista que tais medidas não se podem dirigir a pessoas individuais, e sim a nível geral. Por outro lado, a falta de referência de atletas abertamente LGBT dificulta a adoção de estratégias mais inclusivas no esporte. No entanto, sendo o esporte uma instituição segregadora de gênero que reproduz a segregação existente na sociedade como um todo, é preciso levar em consideração que a permanência no armário e o medo em revelar sua orientação sexual está associado à provável retaliação de oportunidades de trabalho e financiamento da carreira esportiva. Ademais, conforme afirma Anderson (2011), a política de muitos clubes e instituições esportivas é a de silenciar os atletas não heterossexuais.
Nesse sentido, é necessário retomar a noção de política do silêncio, segundo Orlandi (2005). Para a autora, o silêncio político apresenta-se sob a forma de silêncio constitutivo ou silêncio local. O silêncio constitutivo ocorre quando se diz uma determinada palavra para não dizer outra, silenciando outros sentidos possíveis, não desejados naquele momento. Por sua vez, o silêncio local se refere à censura ou à proibição de inserção do sujeito em determinadas FD, o que acaba por afetar sua identidade. Tanto na SD9 quanto na SD10, podem-se observar indícios de silêncio político, que se expressam na ausência de referências, tanto em relação à estranheza dos alunos pelo fato de um negro desejar ser médico (SD9), quanto na quase nulidade de atletas assumidamente homossexuais no esporte (SD10).
Como afirmado anteriormente, Célio Dias ‘saiu do armário’ ao dar uma entrevista ao jornal esportivo Record, em fevereiro de 2018. Nessa mesma entrevista, o atleta fala do diagnóstico de saúde mental (DIAS, 2018b). De acordo com Célio, após as Olímpiadas do Rio em 2016, ao perder para um atleta considerado menos preparado fisicamente, passou por um período difícil: depressão, duas tentativas de suicídio e um surto psicótico. Em seguida, foi diagnosticado com uma síndrome esquizo compulsiva, do quadro da família da esquizofrenia (DIAS, 2018b). Em outro jornal, a reportagem afirma que a “esquizofrenia, quando não controlada, leva-o a perder o contacto com a realidade e a ter um discurso e um comportamento desorganizados. Já as vozes que ouve, próprias também desta perturbação, são constantes” (ALPIM, 2019). Apesar das dificuldades, o atleta pensa em retomar os treinos e participar de competições, por isso aguarda saber se a medicação que toma é considerada doping.
Entretanto, assegura que existe muita discriminação e preconceito acerca da doença mental:
O da doença mental é um dos que eu senti mais na pele. O desporto não está preparado para pessoas com doença mental. O desporto está associado a saúde. Quando tive o meu primeiro surto psicótico, as pessoas tinham medo de mim. Apesar de eu estar descompensado, eu sentia que o olhar delas era de medo. (SD11) (DIAS, 2019b).
Pode-se dizer, a partir dos efeitos produzidos na SD11, que existe uma contradição entre esporte/sinônimo de saúde e doença mental. De fato, a vinculação do esporte com a saúde é referendada como um dos aspectos mais relevantes da sua prática (Yara Maria de CARVALHO, 1995). Por outro lado, existe também uma vinculação entre doença mental e loucura. Em alguns trechos da SD11, “quando eu tive o meu primeiro surto psicótico, as pessoas tinham medo […] o olhar delas era de medo”, pode-se observar uma retomada dos já ditos ou os discursos pré-construídos sobre doença mental, vinculando-a à agressividade e à loucura.
Michel Foucault (2000) realizou uma análise histórica da loucura, mostrando que na modernidade, esta passou a ser vista como uma alienação mental, e mais tarde como doença mental, passível de cuidados médicos. Historicamente, fala-se do comportamento agressivo e imoral do indivíduo com doença mental como algo naturalizado. Nesse sentido, o autor afirma que “a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal” (FOUCAULT, 1994, p. 71). Ou seja, a relação saúde-doença, assim como a relação heterossexualidade-homossexualidade, branco-negro e normal-anormal, inscreve-se na realidade da existência coletiva, em que as identidades e comportamentos que mais se aproximam do modelo padrão aceitável são mais favorecidas.
Nos comentários dos leitores das matérias selecionadas, foi possível entrever variados discursos sobre a ‘saída do armário’ do atleta português, assim como sobre a intersecção entre homossexualidade, raça e doença mental.
O homem tem de facto todas estas características. Acredito que sim, … e é um sofrimento? Pois deve ser, isto, … naturalmente que deve ser, acredito de boa fé, embora ele diga que é um privilégio. Isto é tudo verdade? Pois naturalmente que deve ser, nada nos diz que não. Que pretende a entrevista? É notícia? Isto é que é difícil entender. Contribuir para o bem do doente? Parece que não. Ele até parece que está feliz, … sente-se diferente e previligiado. Vender jornal? Parece que sim…! (SD12) (Comentário de leitor) (ALPIM, 2019).
Porra rapaz? Não serás também cego, surdo, mudo e paralítico? O que um tipo faz para dar nas vistas! … Assume os defeitos, doente mental não me pareces, quando nem o JC era muito bom da mola, todos temos uma panca, e segue em frente. Mas a vitimização assistida é a pior trampa em que um ser humano pode entrar. Vai em frente e verás que este foi apenas um episódio menos bom na tua vida. Potencia as virtudes, não ligues ao que não interessa e… sê feliz. (SD13) (Comentário de leitor) (ALPIM, 2019)
Pode-se perceber na SD12 que o leitor-comentarista chega a se perguntar acerca da veracidade das informações veiculadas, o que parece indicar a dificuldade em aceitar a ‘saída do armário’ e a revelação de doença mental em relação com o esporte. Considera ainda a possibilidade de que a notícia seja fruto de uma estratégia jornalística. Já outro entendimento, expresso em SD13, é de que o acontecimento foi uma forma de o atleta conseguir notoriedade.
Retoma-se a questão da visibilidade em outro comentário, em que se observam diferentes reações ao título da matéria: “‘Sou negro, homossexual e tenho doença mental’: as vozes que Célio Dias ouve e a luta contra os estereótipos”. Algumas vezes, os comentários ofensivos relacionam-se apenas com a questão racial, outras vezes com a intersecção entre sexualidade, raça e doença mental. “Com tantos problemas, o melhor é voltar para a terra de origem” (SD14) (Comentário de leitor) (ALPIM, 2019). “Mais um maluco preto que os portugueses têm que aguentar!” (SD15) (Comentário de leitor) (ALPIM, 2019).
Ó Célio a sua expressão: “sou negro, homossexual e tenho doença mental” leva-me a recomendar-lhe que acrescente “e muito estúpido”. A sua intimidade a ser por si glorificada está na moda, mas é profundamente idiota. O ser negro não é defeito nenhum, se acha que isso o diminui é parvo. Se tem doença mental consulte um psiquiatra, e faça um favor a si próprio não se ridicularize de maneira tão abjecta. (SD16) (Comentário de leitor) (ALPIM, 2019).
Fica muito claro nas SD acima que a visibilidade dos homossexuais, negros, ‘loucos’ representam uma ameaça ao discurso hegemônico heterossexual, branco e saudável que tem caracterizado o fenômeno esportivo. Dessa forma, o acontecimento discursivo relacionado à ‘saída do armário’ e sua intersecção com a raça e a saúde mental é um discurso que ocorre no interior de relações de poder. A esse respeito, Foucault (2014, p. 17-18) esclarece que:
As relações de poder funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Daí a importante e polêmica ideia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e, de outro, aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder.
O conceito de dispositivo, na perspectiva de Foucault (2014, p. 244), refere-se a uma rede que se estabelece entre um conjunto heterogêneo de elementos, que englobam “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões filosóficas, morais, filantrópicas”. Nesse sentido, pode-se entender que o esporte é uma das instituições que instala os dispositivos da racialidade, da anormalidade e da sexualidade.
É importante destacar que alguns comentários, ainda que em número menor, ressaltam a coragem do atleta em assumir sua sexualidade e falar sobre a doença mental. “Força Homem, porque tu és uma força da natureza e vais conseguir…” (SD17) (Comentário de leitor) (ALPIM, 2019).
Considerações finais
A partir dos discursos de jornais on-line portugueses sobre a ‘saída do armário’ do judoca português Célio Dias, foram colocadas algumas questões de investigação, que aqui são retomadas: quais discursos foram produzidos a partir da saída do armário do atleta? Que intersecções se podem entrever nas sequências discursivas analisadas?
Essas indagações permitiram perceber que a construção de padrões que legitimam a participação em atividades esportivas, sobretudo o esporte profissional, afasta, silencia e exclui os indivíduos que não se adequam à ‘norma’.
Em muitos momentos, especialmente nos comentários dos leitores, o esporte alinha-se com uma formação discursiva cujos valores exaltam a saúde, a heteronormatividade e a branquitude. Em outros, a revelação do atleta foi vista com incredulidade, desconfiança e negação - que não deveria ser divulgada ao espaço público. Ressalta-se que o maior número de comentários foi da seção de atualidades do jornal SAPO24 e na primeira entrevista ao jornal esportivo Record. No entanto, os comentários mais agressivos dos leitores foram encontrados no jornal SAPO24, ou seja, um jornal não especializado em esporte.
Das narrativas do atleta português, apreende-se que o maior desafio é superar a doença mental, apesar de que a questão racial o incomode algumas vezes. Por outro lado, o coming out foi compreendido como um processo de revelação que tem como consequência a expressão da liberdade e a autoaceitação, ainda que ‘sair do armário’ signifique estar exposto a situações homofóbicas e de reprovação social.
As dificuldades na realização desta pesquisa referiram-se principalmente à escassez de outros estudos que abordassem a presença de indivíduos homossexuais no esporte no contexto português, assim como de coming out de atletas em Portugal. Dessa forma, conhecer melhor a realidade das pessoas LGBT no esporte, bem como investigar o preconceito racial nesse âmbito, pode contribuir para que mais atletas tornem pública sua orientação sexual, assim como a discriminação a que são submetidos. Dar voz aos atletas que se desviam da ‘norma’ pode ser o primeiro passo para ganhar espaço e visibilidade na sociedade, o que pode pressionar autoridades, federações e clubes a redimensionar as conformações heteronormativas e o racismo ainda presentes no esporte.