Introdução
Este artigo objetiva analisar os efeitos de uma ação indutora do governo federal, materializada por meio do Programa Mais Educação (PME), e de sua ausência, nas matrículas em tempo integral no ensino fundamental no País. Para tal, alicerçado em diversas pesquisas (LECLERC; MOLL, 2012; BRASIL, 2013a; GUILARDUCCI, 2019), parte da compreensão de que o PME, instituído no âmbito do governo federal, configurou-se como uma política indutora voltada para a ampliação da jornada escolar para o tempo integral, numa perspectiva da educação integral contemporânea1. Adicionalmente, a partir dos estudos de Moll (2014), Bernado e Christovão (2016) e Mendonça (2017), sustenta-se no entendimento de que o PME, por meio do aumento na carga horária diária dos estudantes e da oferta de diversas atividades educativas, buscava se configurar como uma estratégia voltada para o enfrentamento das desigualdades educacionais e sociais, historicamente presentes no contexto educacional brasileiro.
Além disso, este estudo apoia-se também na ideia de que as políticas educacionais, inseridas na tensa relação entre o “estado de vir a ser, de foi ou nunca foi e não totalmente” (BALL, 1994, p. 16), produzem efeitos sobre determinados grupos sociais, devendo ser analisadas considerando os possíveis impactos e interações com as desigualdades (MAINARDES, 2006). Nesse contexto, tais políticas, ao operarem sobre determinada(s) desigualdade(s), pode(m) contribuir para o desvelamento de outra(s) no âmbito dos sistemas escolares (BALL, 1994; MAINARDES, 2006).
Com vistas a contribuir para um melhor entendimento deste trabalho, é necessário distinguir a educação integral da educação em tempo integral, uma vez que tais compreensões não são consideradas sinônimas nem, necessariamente, estão articuladas. Assim, compreende-se a educação integral como uma concepção de educação que considera a formação dos sujeitos em suas múltiplas dimensões (COELHO, 2009), estabelecendo uma articulação entre as aprendizagens escolares e as aprendizagens da vida social, a partir do envolvimento de diversos atores e do território no qual esses sujeitos estão inseridos (LEITE; 2012). Já a educação em tempo integral está relacionada ao quantitativo mínimo de sete horas diárias de atividades educativas ofertadas aos estudantes, sob a responsabilidade da escola, conforme apontado em ordenamentos normativos, tais como o Plano Nacional de Educação (PNE) 2001-2010 (BRASIL, 2001) e o PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014a).
Assim, de modo a dar consecução ao referido objetivo, este trabalho, de cunho quanti-qualitativo (MINAYO; SANCHES, 1993), toma por base a pesquisa documental, na qual é dado especial destaque aos ordenamentos que regulamentaram e organizaram o PME (BRASIL, 2007a, 2010a) e aos Manuais Operacionais da Educação Integral (BRASIL, 2008a, 2009a, 2012a, 2013b, 2014b) - doravante chamados de Manuais. Os documentos foram coletados no site oficial do Ministério da Educação (MEC). Na pesquisa bibliográfica, que consiste na busca por diferentes estudos e produções científicas acerca do objeto de estudo (OLIVEIRA, 2007), foram utilizados referenciais teóricos que abordam a temática da Educação Integral e(m) Tempo Integral (CAVALIERE; MAURÍCIO, 2011; COELHO, 2009; COELHO; HORA, 2011; LEITE, 2012; MOLL, 2014), em especial aqueles que tratam do Programa Mais Educação (COSTA, 2018; LECLERC; MOLL, 2012; MENEZES; DINIZ JÚNIOR, 2020; MÓL, 2020).
Também foram utilizados dados acerca das matrículas em tempo integral no Ensino Fundamental, referentes ao período de 20082 a 2021.
Tais dados foram extraídos no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), na aba resultados do Censo Escolar, e posteriormente organizados e analisados.
O artigo está organizado em três seções além da presente introdução. Na primeira seção o Programa Mais Educação é apresentando e contextualizado como indutor de políticas de ampliação da jornada escolar e como política de enfrentamento das desigualdades educacionais e sociais. Na segunda seção é analisado o contexto da indução no âmbito do PME e seus desdobramentos em relação ao número de matrículas em tempo integral no Ensino Fundamental. Por fim, as considerações finais resgatam as principais reflexões e análises do estudo, além de suas implicações para o contexto da educação.
A Educação em Tempo Integral no Programa Mais Educação
Recomendações editadas por organismos internacionais - especialmente aquelas direcionadas à América Latina e Caribe, no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) - expressa(ra)m consenso sobre o potencial da ampliação da jornada escolar diária dos estudantes, enquanto estratégia voltada para o enfretamento das desigualdades educacionais presentes em diferentes territórios e para a proteção social das camadas mais vulneráveis da população (UNESCO, 1996). Nesse sentido, alguns documentos editados pela Unesco se constituíram como estratégia para legitimar a necessidade da ampliação da jornada escolar nos países e, ainda, para influenciar a elaboração de políticas com este objetivo (DINIZ JÚNIOR, 2020a).
No caso brasileiro, na década de 1990, o governo federal empreendeu duas “tentativas de implementação de programas de educação integral e(m) tempo integral” (COSTA, 2019, p. 143), a saber: o Programa Minha Gente (PMG) (BRASIL, 1991a), no governo Collor, e, na sequência, o Programa Nacional de Atenção à Criança e ao Adolescente (PRONAICA) (BRASIL, 1993), no governo Itamar Franco. Na prática, com adequações às orientações do novo governo que se iniciava, o Programa Minha Gente foi substituído pelo PRONAICA. Embora ambos os programas fossem integrados por escolas de tempo integral - os Centros Integrados de Atendimento à Criança (CIACs) e os Centros de Atenção Integral à Criança (CAICs) -, tais escolas não constituíam os seus principais objetivos, mas apenas o “lócus para o alcance de objetivos sociais mais amplos” (BRASIL, 1991b, p. 2).
Embora o governo federal tivesse desenvolvido tais experiências, o ordenamento jurídico nacional vinculado à Educação Básica pública não contava, à época, com determinações associadas à ampliação da jornada escolar. Foi em meio a um cenário nacional que já contava com a presença dos CIACs e dos CAICs que, no ano de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) estabeleceu que a jornada escolar no Ensino Fundamental seria progressivamente ampliada para além das quatro horas de efetivo trabalho, na direção do tempo integral (BRASIL, 1996, Art. 34, §2º). Se, por um lado, a LDBEN avançou por trazer a educação em tempo integral à discussão nacional, por outro, na ocasião, não definiu a extensão dessa jornada escolar, possibilitando a emergência de diferentes interpretações sobre suas possíveis métricas.
Foi no ano de 2001 que o Plano Nacional de Educação 2001-2010 dimensionou a educação em tempo integral para, ao menos, sete horas diárias de atividades escolares (BRASIL, 2001). Ao indicar a prioridade do atendimento em tempo integral para as crianças das camadas sociais mais vulneráveis (BRASIL, 2001), o Plano sinalizou atenção à proteção social, revelando consonância com documentos internacionais da Unesco já apontados neste estudo. De acordo com o Plano, a oferta do atendimento em tempo integral constituiria “[...] um avanço significativo para diminuir as desigualdades sociais e ampliar democraticamente as oportunidades de aprendizagem” (BRASIL, 2001, p. 18). Ao destacar, de forma recorrente, “a questão da pobreza como um possível impedimento ao desenvolvimento do educando, [o PNE] menciona em seu texto aspectos que inter-relacionam proteção social e tempo integral” (SILVA, 2018, p. 81), de cuja conjugação depreende-se, no âmbito daquele Plano, que resulte possível estratégia para o enfrentamento das desigualdades - fim para o qual, não podemos deixar de considerar, apenas a oferta da educação em tempo integral não é suficiente.
Importante contextualizar a função atribuída à escola no contexto dos ajustes funcionais ao capitalismo, que em seu contexto de crise, no final da década de 1990, compreendia a educação escolar como estratégia para o alívio da pobreza (EVANGELISTA; SHIROMA, 2006), não para o seu enfrentamento, visando ao conformismo social (MOTTA, 2009). Não podemos deixar de considerar que a ampliação da jornada escolar com qualidade compõe histórica reivindicação das camadas populares, mas sua relação com o enfrentamento das desigualdades precisa ser acompanhada de problematizações acerca dos autores e conteúdo das propostas, de suas intencionalidades políticas-pedagógicas e das condições para sua materialização.
Apesar do explícito apontamento de ampliar a jornada escolar dos estudantes, na perspectiva da educação em tempo integral, o país vivenciou um hiato entre os anos de 1995 (término do PRONAICA) a 2007 (início do PME) em relação a políticas nacionais com esta finalidade, sendo possível perceber, conforme aponta Diniz Júnior (2020b), que no referido período as instâncias subnacionais engendraram esforços e políticas próprias para o alcance daquilo que fora apontado na LDBEN (BRASIL, 1996) e no PNE 2001-2010 (BRASIL, 2001).
Em 2007 o governo federal criou o Programa Mais Educação (PME) que, instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007 (BRASIL, 2007a) e regulamentado pelo Decreto nº 7.083/2010 (BRASIL, 2010a), teve por finalidade “contribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliação do tempo de permanência de crianças, adolescentes e jovens matriculados em escola pública, mediante oferta de educação básica em tempo integral” (BRASIL, 2010a, Art. 1º). Apesar de esses dois ordenamentos não trazerem, ipsis verbis, a expressão “desigualdades educacionais”, o combate a elas pode ser depreendido, por exemplo, da sua finalidade de contribuir para “a redução da evasão, da reprovação, da distorção idade/série, mediante a implementação de ações pedagógicas para melhoria de condições para o rendimento e o aproveitamento escolar” (BRASIL, 2007a, Art. 2º, Inciso II), o que não necessariamente revela uma educação integral com qualidade.
A preocupação com os baixos desempenhos dos estudantes na Prova Brasil - percebidos como uma das influências para a criação do PME (MENEZES; DINIZ JÚNIOR, 2020) - reforça o argumento de que o combate às desigualdades educacionais constituiu propósito do Programa. Além disso, o próprio Decreto nº 7.083/2010 determinou como finalidade do PME “contribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliação do tempo de permanência de crianças, adolescentes e jovens matriculados em escola pública, mediante oferta de educação básica em tempo integral” (BRASIL, 2010b, Art. 1). Ao possibilitar aos alunos do Ensino Fundamental um maior tempo na/com a escola, com vistas a oportunizar um conjunto de atividades educativas às quais, fora dela, provavelmente não teriam acesso, o PME não apenas focalizou o proposto enfretamento das desigualdades educacionais, como também preconizou como uma de suas principais estratégias a ampliação da jornada escolar para o tempo integral.
Importante considerar que a qualidade das atividades é fator determinante para tal enfrentamento, a despeito da reprodução das desigualdades. Ademais, há de se problematizar a serviço de que o conjunto de atividades se coloca: de uma educação integral, ou como estratégia para melhoria da aprendizagem em áreas avaliadas na Prova Brasil? Tal questionamento é relevante porque, contemporaneamente à década em questão, localizamos um discurso que não contextualiza a pobreza no âmbito das relações produtivas, mas antes veicula a ideia de que a educação é capaz de tirar os sujeitos daquela situação e que uma educação ineficaz, com baixos resultados, não gera condições para a sua superação. Tratase de uma educação eficiente para o alívio da pobreza, que acaba cumprindo um papel de conformadora frente às desigualdades sociais (ZANARDINI, 2014).
No que tange ao PME, a análise dos Manuais do PME (BRASIL, 2008a, 2009a, 2010b, 2011a, 2012a, 2013b, 2014b) possibilitou identificar dois grandes eixos de ação do Programa para com o proposto enfrentamento às desigualdades educacionais sob a égide da proteção social dos mais vulneráveis, quais sejam: 1. a oferta de atividades educativas (no contraturno escolar); e 2. a articulação de políticas públicas. A conjugação desses dois eixos resultou em estratégia para o “duplo desafio - educação/ proteção” (BRASIL, 2009a, p. 17), inserindose no contexto das políticas redistributivas de combate à pobreza e à vulnerabilidade social (CARVALHO; RAMALHO; SANTOS, 2019). É importante sinalizar que para ir ao encontro desse duplo desafio é necessário considerar a qualidade das atividades ofertadas, bem como o efetivo comprometimento dos programas com a educação/proteção.
Em relação às atividades educativas, o PME, instituído sob a perspectiva das Cidades Educadoras, compreendia a educação como responsabilidade de toda a comunidade, de modo a romper com a ideia da aprendizagem como obrigação exclusiva da escola, reforçando o entendimento de que ela se dá em diferentes espaços, no contexto do território educativo (CAVALIERE; MAURÍCIO, 2011). Nesse sentido, o PME propunha a reorganização das atividades educativas de modo a articular os saberes escolares - percebidos como aqueles socialmente construídos e valorizados - com os saberes comunitários e locais.
De modo a dar consecução a essas atividades, o PME estava organizado por meio de macrocampos relacionados à ampliação da formação dos estudantes, os quais incluíam atividades de acompanhamento pedagógico, cultura e promoção da saúde, entre outras voltadas para a sua formação integral (LE- CLERC; MOLL, 2012). Essa reorganização e articulação das atividades educativas com o território evidenciou que o referido Programa, ao menos em termos formais, não estava focado exclusivamente na ampliação da jornada escolar para o tempo integral, mas também na busca da efetivação de uma perspectiva de educação integral para os sujeitos envolvidos. Cumpre problematizar se o compartilhamento de responsabilidade com a comunidade integra uma proposta pedagógica consistente para uma educação integral ou se consiste em artimanha neoliberal de desresponsabilização do Estado para com a educação - especialmente considerando a previsão do desenvolvimento das atividades no âmbito dos referidos macrocampos pela ação voluntária de monitores3.
A necessidade da articulação de políticas públicas já estava determinada na Portaria Interministerial nº 17/2007 (BRASIL, 2007a), segundo a qual o PME teria por objetivo “contribuir para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio da articulação de ações, de projetos e de programas do Governo Federal [...]” (BRASIL, 2007a, Art. 1º). Por sua vez, o Decreto nº 7.083/2010 estabeleceu como princípio da educação integral, no âmbito do PME, “a integração entre as políticas educacionais e sociais [...]” (BRASIL, 2010a, Art. 2º, Inciso III). Assim, partindo do entendimento de que as palavras carregam consigo intencionalidades, da Portaria Interministerial nº 17/2007 para o Decreto nº 7.083/2010, a relação do PME com as políticas educacionais e sociais avançou da condição de “articulação” para “integração”, deixando de se constituir em uma simples ligação ou união para se estabelecer como uma possibilidade de articulação.
Assim, o avanço - evidenciado no ordenamento normativo - da compreensão da relação do PME com as políticas educacionais e sociais foi sendo, simultaneamente, expresso nos Manuais, passando, por exemplo, a influenciar diretamente não só os critérios para a adesão ao Programa, como também a sua organização em nível local, agregando, progressivamente, um conjunto maior de dispositivos intersetoriais (MENEZES; DINIZ JÚNIOR, 2020). Considerase que o PME não apenas se organizou por meio da integração de/com tais políticas, como também procurou consolidar-se como indutor dessa integração nos contextos locais, de tal forma que, tendo como origem a educação em tempo integral, o destino estava localizado - especialmente, mas não exclusivamente - na busca pelo enfrentamento das desigualdades educacionais.
A implementação do PME se deu em meio às disputas inerentes aos mo(vi)mentos de (des) articulações políticas de nosso país. Estudos apontam diferentes contradições e tensões no âmbito do Programa, relativas à influência de organismos internacionais na sua elaboração (DINIZ JÚNIOR, 2017), ao papel da agenda empresarial brasileira no contexto de sua criação (COSTA, 2018), ao “mito da integralidade formativa” proposto e seu funcionamento como uma “camomila dos excluídos4” (MÓL, 2020) e/ou à qualificação dos profissionais que atuavam no Programa (COELHO; HORA, 2011). Fato é que, mesmo diante de tais questões, o PME, no contexto de alguns estudos e pesquisas, é apontado como a estratégia indutora de educação em tempo integral (BRASIL, 2013a; LECLERC; MOLL, 2012, p. 102; GUILARDUCCI, 2019), desenvolvida, ou não, na perspectiva da educação integral, reivindicação histórica das camadas populares.
Destaca-se, ainda, que o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, que tem como uma de suas diretrizes a “superação das desigualdades educacionais” (BRASIL, 2014a, Art. 2º, Inciso III), reúne, de forma inédita, na sua organização - voltada para o enfrentamento deste entre outros desafios presentes no contexto da educação nacional -, meta específica direcionada para a educação em tempo integral. Elaborado em um período em que o PME passava por um vertiginoso crescimento no país, o PNE estabeleceu que, até o final do decênio da sua vigência, o tempo integral deverá abarcar, no mínimo, 25% das matrículas da educação básica, devendo envolver, ao menos, 50% das escolas públicas (BRASIL, 2014a, Meta 6). Importante observar que a escrita da Meta 6 não só contou com a colaboração de integrantes do MEC (MOLL, 2014), como também com a experiência do PME, que influenciou na elaboração das estratégias associadas a essa meta (COELHO; ROSA; SILVA, 2018). Naquele contexto político, o PME não apenas se consolidou como estratégia federal de indução da educação em tempo integral junto aos entes subnacionais, mas, também, como possibilidade do alcance da Meta 6 estabelecida no PNE 2014-2014, uma vez que sua operacionalização oportunizava que as instâncias subnacionais ofertassem a educação em tempo integral, de modo a irem ao encontro do referido Plano.
O PME no contexto da indução de políticas de educação integral em tempo integral: resultados e descontinuidades
O PME foi operacionalizado pelo MEC por repasse de recursos financeiros paras as escolas por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), articulado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Esta estratégia de transferência de recursos por parte da União está relacionada ao contexto da indução de políticas por aporte financeiro, no qual a União, a partir de objetivos e critérios, estabelece orientação para a articulação dessa política e, para isso, o repasse de recursos financeiros (GUILARDUCCI, 2019).
Para este repasse era considerado o número de estudantes atendidos pelo Programa, de modo que as instâncias subnacionais, com realidades distintas e desiguais, desde que atendendo ao mesmo número de pessoas, recebiam o mesmo montante de recursos para a execução do PME. Esse elemento aponta que o FNDE não considerava as desigualdades locais para o repasse de recursos (GUILARDUCCI, 2019). Apesar da vulnerabilidade social ser um critério para a adesão ao PME, esta não se convertia em critério para o repasse de recursos numa perspectiva equitativa, que considerasse as especificidades dos contextos para materialização do Programa.
Além deste componente, Guilarducci (2019) aponta o aporte técnico como um elemento articulado ao aporte financeiro no contexto da indução. No âmbito do primeiro, podemos destacar a elaboração de materiais editados pelo MEC, a exemplo dos Manuais (BRASIL, 2007c, 2008a, 2009a, 2010b, 2011a, 2012a, 2013b, 2014b), que orientaram a operacionalização do programa tanto no que tange às secretarias de educação, como às escolas (GUILARDUCCI, 2019).
Nesse sentido, compreende-se que tais elementos da indução de políticas presentes no PME - aporte financeiro e técnico - estão em consonância com o papel da União de ofertar assistência técnica e financeira às instâncias subnacionais para buscar garantir a um padrão mínimo de qualidade (BRASIL, 1996, Art. 3º § 1º). Deste modo, sinaliza-se como imprescindível para a efetivação do papel indutor do governo federal que a União considere as especificidades das instâncias subnacionais, concedendo, assim, seu apoio técnico e financeiro sob princípio da equidade.
Para proceder ao repasse da transferência voluntária de recursos para as escolas e, progressivamente, ampliar a capilaridade do PME no território nacional, o governo federal determinou uma série de critérios de adesão ao Programa, expressos anualmente nos Manuais da Educação Integral, os quais deveriam ser respeitados pelas secretarias estaduais, do Distrito Federal e dos municípios. Tais critérios, que inicialmente estavam relacionados a escolas com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e situadas em territórios de vulnerabilidade social circunscritos às regiões metropolitanas do país (BRASIL, 2008a), foram gradualmente ampliados no decorrer de sua existência.
Além do baixo IDEB e da localização em área de vulnerabilidade, os critérios para adesão ao programa foram sendo somados, progressivamente, a outras políticas sociais, como o Programa Nacional de Justiça de Segurança Pública e Cidadania (PRONASCI), o Programa Bolsa Família (PBF) e o Plano Brasil Sem Miséria (PBSM). A definição desses critérios, além de apontar para o caráter intersetorial do programa, também foi responsável pelo estabelecimento de redes de articulações que promoveram a ampliação de sua abrangência no território nacional (MENEZES; DINIZ JÚNIOR, 2020).
Há que destacar que esta articulação intersetorial, presente no PME, coloca-o no cenário de elaboração de uma política de caráter redistributivo que visa a combater as desigualdades e os riscos sociais, de modo que a escola assuma o desafio de educar os sujeitos e se consolidar como uma das instituições sociais de proteção à criança e ao adolescente (CARVALHO; RAMA- LHO; SANTOS, 2019). Assim, a transferência de recursos financeiros não apenas possibilitou a ampliação da jornada escolar, mas contribuiu também para a articulação de políticas setoriais nas instâncias subnacionais (MENEZES; DINIZ JÚNIOR, 2020). Contudo, convém refletir sobre a função social atribuída à escola em consonância com orientações de organismos internacionais na década de 2000 pois, nesse contexto, as articulações, integrações e parcerias podem configurar-se como subterfúgios diante da falta de condições estruturais para a ampliação da jornada escolar, consistindo mais em alívio da pobreza e de seus riscos para o capitalismo, do que realmente em eixo de uma formação ampla e multidimensional fundamentada pedagogicamente.
Além do recebimento dos recursos vinculados ao PDDE para a execução do PME, as matrículas em tempo integral, em consonância com Decreto nº 6.253, de 2007, que regulamentou o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização do Magistério (Fundeb), determinava que as escolas com matrículas em tempo integral fariam jus ao recebimento de recursos do referido fundo (BRASIL, 2007b) para este atendimento. Fato é que em 2008, primeiro ano de implementação do programa, ele esteve presente em mais de 1.300 escolas, atendendo a mais de 300 mil estudantes e, dois anos após seu início, já havia 10.026 escolas ofertando o programa a 2.551.723 estudantes (MENEZES; LEITE 2012). Após cinco anos de implementação, em 2013, o PME já estava presente em 87% (4.836) dos munícipios do país (BRASIL, 2013a). No que tange ao número de matrículas no Ensino Fundamental, a Tabela 1 apresenta dados relacionados à esta etapa da Educação Básica, de acordo com o Censo Escolar.
ANO | TOTAL DE MATRÍCULAS | MATRÍCULAS EM TEMPO INTEGRAL |
---|---|---|
2008 | 28.443.074 | 673.823 |
2009 | 27.902.134 | 945.044 |
2010 | 27.064.103 | 1.264.309 |
2011 | 26.256.179 | 1.686.407 |
2012 | 25.431.566 | 2.101.735 |
2013 | 24.190.369 | 3.005.846 |
2014 | 23.446.790 | 4.273.510 |
2015 | 22.756.164 | 4.412.954 |
2016 | 22.419.989 | 2.345.173 |
2017 | 22.056.515 | 3.593.080 |
2018 | 21.760.831 | 2.367.523 |
2019 | 21.413.144 | 2.332.144 |
2020 | 21.250.564 | 1.738.352 |
2021 | 21.262.276 | 2.122.658 |
Fonte: Elaborado com base no Censo Escolar (BRASIL 2008b, 2009b, 2010c, 2011b, 2012b, 2013c, 2014c, 2015, 2016a, 2017, 2018, 2019, 2020).
Antes de proceder à análise dos dados referentes ao número de matrículas em tempo integral no Ensino Fundamental é importante destacar a redução superior a 24%, no período analisado, no total de matrículas nesta etapa da Educação Básica. Com base nos dados apresentados é possível observar que no período analisado houve simultaneamente diminuição no número total de matrículas no Ensino Fundamental e crescimento nos números relacionados ao tempo integral. Sublinhamos particularmente o aumento acumulado de mais de 550% das matrículas nessa modalidade durante a vigência do PME (2008 a 2015).
Com o objetivo de evidenciar a evolução do tempo integral no Ensino Fundamental no período de 2008-2021, foi elaborado o Gráfico 1, tendo por base os dados da Tabela 1, o qual revela uma elevação do percentual de matrículas no período de 2008 a 2015 - período de vigência do PME - e uma instabilidade com tendência de queda no período de 2016 a 2021.
Fonte: Elaborado com base no Censo Escolar (BRASIL 2008b, 2009b, 2010c, 2011b, 2012b, 2013c, 2014c, 2015, 2016a, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021).
De modo a contribuir para as análises dos dados apresentados no Gráfico 1, relacionando-o com os mo(vi)mentos do governo federal no que diz respeito à indução de políticas de educação em tempo integral, o período analisado foi dividido em dois momentos: 1. de franca ampliação do PME (2008 a 2015) e 2. de instabilidade em relação a uma política indutora por parte do governo federal (2016 a 2019).
O primeiro período - de franca ampliação do PME - foi marcado pelo progressivo incentivo às articulações intersetoriais de políticas para a adesão ao Programa por parte das instâncias subnacionais. No ano de 2008, conforme já evidenciado, o Programa esteve limitado a escolas de regiões metropolitanas, ao passo que, no ano de 2013, o Programa ampliou significativamente seus critérios de adesão de modo a possibilitar sua capilaridade no território nacional (MENEZES; DINIZ JÚNIOR, 2020).
Especificamente em 2013 e 2014, os Manuais apresentavam como um dos critérios de adesão ao Programa as “escolas localizadas em todos os municípios do país” (BRASIL, 2014a, p. 7), o que apontava para predisposição da União em ampliar o Programa e, com isso, garantir a indução de políticas locais através do aporte financeiro e técnico.
No ano de 2015 o país já contava com 19,4% do total de matrículas do Ensino Fundamental em tempo integral, aproximando-se do percentual estipulado, no ano anterior, pelo PNE 2014-2024 - 25% das matrículas. Como resultado da implementação do PME, até o momento, é possível identificar que, além de recolocar na pauta nacional a questão da educação integral e(m) tempo integral (SOUZA; MENEZES; COELHO; BERNADO, 2017), possibilitou a articulação do Programa com outras políticas de educação em tempo integral de âmbito local e a articulação de políticas na perspectiva da proteção social (BRASIL, 2013a; MENEZES; DINIZ JÚNIOR, 2020).
Considerando a política como espaço de disputas, há que sinalizar que a trajetória do PME foi marcada por diversos conflitos que dificultaram a sua continuidade como política indutora no território nacional. Dentre estas disputas podemos sinalizar aquela que estava no âmbito do próprio governo Dilma Rousseff, de mesmo partido político do governo Lula, responsável pela implementação do referido Programa. O desacordo em relação ao PME no âmbito do governo federal ficou evidente na declaração do ministro da Educação, Aloísio Mercadante, em 2016, quando disse que as crianças atendidas pelo PME aprendiam capoeira, mas não sabiam matemática (OLIVEIRA, 2019), sinalizando, assim, o seu claro descontentamento e desacordo com o Programa. Além disso, as fundações empresariais, que desempenharam um importante papel para o fortalecimento5 do PME (COSTA, 2018), também contribuíram para o seu declínio, a exemplo da edição de um estudo, por parte da Fundação Itaú Social e do Banco Mundial (FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL, 2015), que apontou que os estudantes inscritos no Programa não obtinham melhores resultados na avaliação de sua aprendizagem, revelando uma perspectiva pedagógica neotecnicista6 (SAVIANI, 2013) por parte das instituições responsáveis pelo referido estudo.
Deste modo, compreende-se que, ainda na gestão do governo Dilma Rousseff, o segundo período - de instabilidade em relação a uma política indutora por parte do governo federal - já estava sendo evidenciado. Além disso, o ano de 2015 foi marcado por instabilidades políticas, de modo que em 2016 foi deflagrado e aprovado o processo de impeachment da presidenta, substituída pelo seu então vice-presidente Michel Temer; compreendemos, portanto, que o cenário vivido a partir do ano de 2016 já estava sendo desenhado no ano anterior, durante o governo Dilma.
Em consonância com o estudo de Dourado (2007), que versa sobre a ausência de planejamento e a descontinuidade das/nas políticas educacionais no país, o novo governo federal instituiu o Programa Novo Mais Educação (PNME), que objetiva melhorar a aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática “por meio da ampliação da jornada escolar de crianças e adolescentes, mediante a complementação da carga horária de cinco ou quinze horas semanais [...]” (BRASIL, 2016b, Art. 1º).
Convém destacar que a Portaria que institui o PNME não revogou aquela que deu origem ao PME, de modo que a descontinuidade deste último deu-se a partir da suspensão dos repasses de recursos financeiros às escolas para a sua execução (IGLESIAS, 2019). Ademais, o fato de o PNME possibilitar a ampliação da jornada escolar em cinco horas semanais sinaliza que sua implementação, neste formato, não contribuiria efetivamente para o alcance da Meta 6 estabelecida no PNE, referente à oferta de educação em tempo integral. Diante disso, é possível observar o papel exercido pelo governo federal - de apoio técnico e financeiro - no que diz respeito às políticas educacionais vivenciadas nas instâncias subnacionais, especialmente aquelas com pouca capacidade administrativa e financeira.
Efetivamente, no ano de 2016, é possível observar uma diminuição de 8,9 pontos percentuais (p.p.) no número de matrículas em relação ao ano anterior. Este resultado evidencia que as crises e mudanças vivenciadas no âmbito do governo federal, que contribuíram para as alterações ou para o fim de repasse de recursos financeiros, via PDDE, para a ampliação da jornada escolar, prejudicaram sua oferta nas instâncias subnacionais.
No ano de 2017 é possível observar o aumento no número de matrículas em tempo integral, o que pode evidenciar que as instâncias subnacionais optaram pela organização do PNME de modo a ofertar 15 horas semanais, contemplando, assim, a jornada escolar de tempo integral. Já os dados de 2018 apresentam uma queda de 5,4 p.p. em relação ao ano anterior e se mostram estáveis em relação ao ano de 2019. Entretanto, se destaca que nos dois últimos anos do período analisado apenas 10,9% das matrículas do Ensino Fundamental são de tempo integral, um expressivo distanciamento entre a realidade apresentada e a meta estabelecida no PNE 2014-2024. Além disso, pode-se inferir que as mais de 2 milhões de matrículas em tempo integral no país, observadas no ano de 2019, estavam presentes em municípios e estados com capacidade administrativa e financeira para a manutenção de políticas próprias de educação em tempo integral.
A análise do período de 2008 a 2021 possibilita identificar o importante papel da União como articuladora de políticas de educação em tempo integral, uma vez que a execução do PME foi acompanhada de aumento significativo no número de matrículas em tempo integral. Revela, ainda, que as descontinuidades de uma política desta natureza contribuíram para a diminuição do atendimento em tempo integral dos estudantes do país e, por conseguinte, para a desarticulação de ações com foco no combate às desigualdades educacionais.
Há que se destacar a queda constatada nas matrículas em tempo integral no ano de 2020, correspondendo a 8,2% do total das matrículas no ensino fundamental naquele ano. Como se sabe, no referido ano foi deflagrada a pandemia de Covid-19, que impossibilitou as escolas de atenderem aos estudantes nas atividades presenciais. Essa situação pode ter contribuído para a referida queda.
Afora esta constatação, se pode apontar que a lógica pela qual o governo federal articulou tal política potencializou as desigualdades já existentes, uma vez que cidades e estados com capacidades administrativas e financeiras distintas e desiguais recebiam recursos para a execução do Programa considerando o número de estudantes atendidos, não as especificidades locais. Nesse sentido, é possível compreender que uma política indutora demanda planejamento para o tratamento das diferenças e desigualdades regionais e locais, para talvez constituir-se efetivamente como uma estratégia que possibilite às instâncias subnacionais, de acordo com suas realidades, planejar, executar e dar sustentabilidade às suas políticas de educação em tempo integral com qualidade.
Considerações Finais
O estudo evidenciou a compreensão da ampliação da jornada escolar, na direção do tempo integral, como proposta para o enfrentamento das desigualdades educacionais, retirando da escola pública o seu papel de produtor de desigualdades sociais (SILVA, 2013). Adicionalmente, no caso brasileiro, destacou-se que já na década de 1990 o país buscou empreender ações para esta ampliação; destas, ocorreu no ano de 2007 a efetivação de uma ação indutora, o Programa Mais Educação, com maior tempo de vigência.
Considera-se que o PME foi organizado em dois grandes eixos de ações na busca pelo enfrentamento dessas desigualdades. O primeiro deles se referiu às atividades educativas que, pela articulação entre os saberes escolares e os locais/comunitários, contribuiriam para a melhoria da qualidade da educação, na perspectiva da educação integral. Quanto ao segundo eixo - articulação de políticas sociais -, apresentou que a integração destas políticas, no âmbito do Programa, se deu tanto na perspectiva da proteção social como para a sua gradativa capilaridade no território nacional. Contudo, cabe destacar que ambos os eixos exigem condições para que sua materialização corrobore com o referido enfrentamento, sendo impossível desconsiderar as especificidades políticas, pedagógicas e epistemológicas concernentes à educação escolar.
Destacou-se que a indução, financeira e técnica, por parte da União, materializada no PME, contribuiu para a ampliação das matrículas em tempo integral no Ensino Fundamental. Entretanto, observamos que o repasse de recursos financeiros não considerou as especificidades regionais e locais, o que pode ter contribuído para a dependência de instâncias subnacionais quanto ao apoio técnico e financeiro da União para a elaboração e sustentabilidade de políticas locais de educação em tempo integral.
Além disso, a ausência de uma política indutora, por parte do governo federal, evidenciou a diminuição das matrículas em tempo integral no Ensino Fundamental, revelando, assim, as desigualdades administrativas e financeiras das instâncias subnacionais para a manutenção de políticas próprias. Por fim, constatou-se, que a ausência de planejamento e a marca da descontinuidade das políticas educacionais no país contribuem para o aprofundamento das desigualdades educacionais.