1 INTRODUÇÃO
À medida que as diferentes sociedades vão envelhecendo, uma atenção especial tem sido dada em termos políticos, sociais e científicos às relações intergeracionais (Nauck & Steinbach, 2009; Silverstein et al., 2002). Essas relações permeiam os contextos da vida humana, podendo ser observadas nas interações entre vizinhos, colegas de trabalho, amigos e membros de uma família, entre outros (Braz, 2013).
As relações familiares sofrem variações conforme as características e os comportamentos de cada membro, bem como de fatores socioestruturais e intergeracionais (Nauck & Steinbach, 2009). Nessa dinâmica relacional, a interdependência entre os membros determinará e será determinada pelo estabelecimento dos vínculos entre os familiares (Yamashiro & Matsukura, 2014).
Para Bengtson e Roberts (1991), as relações intergeracionais entre pais e seus respectivos filhos que atingiram a idade adulta caracterizam-se por valores, atitudes e trocas recíprocas de suporte que são fundamentais para a coesão e o bem-estar familiar de seus membros. Os autores, a partir das teorias clássicas da psicologia social e sociologia da família, elaboraram a teoria da solidariedade familiar intergeracional (SIF).
A SIF pode ser descrita como um construto multidimensional que, na sua formulação inicial, era composta por seis dimensões, a saber: afetiva, associativa, consensual, estrutural, funcional e normativa (Bengtson & Roberts, 1991). Mediante as descobertas posteriores, advindas das investigações utilizando a SIF, foi incluída a dimensão conflitual, que envolve as possíveis divergências e tensões que podem estar presentes nas interações familiares (Bengtson et al., 2002; Bengtson & Martin, 2001). A luz da teoria da SIF, define-se, portanto, que a interação entre pais e filhos é composta por: afetos e sentimentos existentes e compartilhados; tipo de associação e frequência do contato; grau de consenso e dissenso nas crenças e nos valores; fatores estruturais existentes que influenciam a interação – tais como a distância entre domicílios respectivos; troca de recursos e de apoio; normas internas familiares – que definem as funções e as obrigações de cada um; e divergências e tensões presentes nas interações familiares (Braz, 2013; Cabral & Macuch, 2016).
Além dessas dimensões, a ambivalência, em outras palavras, as contradições nos sentimentos, nos pensamentos e nos comportamentos que podem ser vivenciadas na relação entre pais e filhos adultos, também tem sido progressivamente mais reconhecida e incorporada como um fator determinante para as relações intergeracionais familiares (Bengtson et al., 2002). A exigência na conciliação de papéis, a distância geográfica e a escassez de tempo das gerações mais novas efetivamente podem servir de obstáculo à disponibilidade de prestação de cuidado às gerações mais velhas, em particular quando o seu nível de dependência se torna maior e em sociedades ou grupos sociais com maior dificuldade de acesso a apoios que complementem o providenciado pela família (Silverstein et al., 2002).
Nesse contexto, acredita-se que as mulheres e as pessoas de nível socioeconômico mais baixo tendem a estar mais vulneráveis a uma ambivalência estrutural, atendendo às elevadas expectativas de prestação de apoio. De fato, as relações familiares intergeracionais não são imunes à disponibilidade de recursos, de tempo ou financeiros, que variam de acordo com o grupo de pertença (Connidis & Mcmullin, 2002; Grundy & Henretta, 2006). Para além de variáveis demográficas, outras também devem ser levadas em consideração, como a maturidade dos familiares de cada geração, o sentimento de autoeficácia, a rede de apoio ou percepção de isolamento. Todas essas variáveis podem influenciar as trocas intergeracionais e moderar ou mediar o seu efeito no bem-estar de quem é provedor ou destinatário preferencial de ajuda (Coimbra & Mendonça, 2003; Merz et al., 2010).
2 RELAÇÕES INTERGERACIONAIS EM FAMÍLIAS DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
O motivo para a prestação de apoio é determinante para o relacionamento entre as gerações, sendo a necessidade de quem é ajudado e a reciprocidade do apoio os mais frequentes. De uma forma geral, a direção de apoio ocorre, predominantemente, das gerações mais velhas para as gerações mais novas, ocorrendo a inversão dessa direção somente quando as gerações mais velhas se tornam dependentes do ponto de vista econômico ou funcional (Attias-Donfut, 2001; Lennartsson et al., 2010). Além disso, alguns acontecimentos familiares podem exigir uma maior reorganização familiar e uma renegociação de expectativas, como o nascimento de uma criança com deficiência e o curso de sua criação e educação ao longo do tempo (Katz & Kessel, 2002; Lee & Gardner, 2010; Matsukura & Yamashiro 2012; Reichman et al., 2008; Vanegas & Abdelrahim, 2019; Yamaoka et al., 2016).
De acordo com a literatura, o nascimento de um filho ocorre permeado por inúmeros e diversos sentimentos, expectativas e transformações no funcionamento familiar (Lee & Gardner, 2010; Matsukura & Yamashiro, 2012; Yamaoka et al., 2016). O nascimento de um filho com alguma deficiência, diferente do que foi idealizado e esperado, frequentemente é acompanhado pelo sentimento de frustração e de culpa (Katz & Kessel, 2002; Vanegas & Abdelrahim, 2019). Ademais, demandas consequentes da deficiência poderão acarretar nos cuidadores principais tensões, stress e sofrimento (Bujnowska et al., 2019; Figueiredo et al., 2009; Figueiredo et al., 2011; Franco, 2016; Franco & Apolónio, 2009; Jess et al., 2018; Kimura & Yamazaki, 2019; Omiya & Yamazaki, 2017; Silva & Dessen, 2001).
A literatura aponta que, em geral, recai sobre as mães o papel principal de cuidadora e que as avós, principalmente as maternas, têm sido uma fonte fundamental de suporte para as famílias com uma criança com deficiência, sobretudo do ponto de vista afetivo e funcional (Gardner et al., 1994; Hornby & Ashworth, 1994; Matsukura & Yamashiro, 2012; Ravindran & Rempel, 2010; Woodbridge et al., 2009). Tal suporte seria correspondente às dimensões da solidariedade intergeracional e está sujeito aos sentimentos, às crenças, aos valores e/ou aos (des) entendimentos pessoais prévios (Hastings et al., 2002; Lee & Gardner, 2010). A aceitação, o conhecimento, o nível de concordância e/ou (in)experiência para lidar com a condição de saúde da criança, assim como o papel de principal cuidadora também exercem influência direta no processo de interação e relação entre os membros da família, conforme a SIF (Araújo & Dias, 2010; Peixoto & Luz, 2007; Turnbull & Turnbull, 2001; Yamashiro & Matsukura, 2014).
Nas famílias com crianças com deficiência, a SIF, nas suas diversas dimensões, pode atuar como mecanismo de proteção e promoção de resiliência, bem-estar e saúde. Para Polleto e Koller (2008), os contextos de vida, como, por exemplo, o familiar, podem se configurar como risco ou proteção, a depender da qualidade das relações e da presença da afetividade e da reciprocidade propiciada em tais ambientes. As referidas autoras ainda ressaltam que quando houver conexões positivas entre os contextos e/ou dentro deles, certamente haverá a possibilidade de se acionarem processos de resiliência que favoreçam a melhoria da qualidade de vida, da saúde e a adaptação das pessoas e da sociedade.
Assim sendo, o presente estudo tem por objetivo identificar e discutir o fenômeno da solidariedade intergeracional entre mães e avós de crianças com deficiência em uma amostra brasileira. De maneira específica, pretende-se explorar se existem diferenças entre mães e avós nos níveis de solidariedade funcional, afetiva e conflitual e, também, na ambivalência e na maturidade; se a percepção de solidariedade funcional dada pelas avós corresponde à percepção de solidariedade funcional recebida por parte das mães e qual a dimensão que tem valores mais elevados. Por fim, avaliar-se-á quais são os preditores da solidariedade funcional dada pelas mães às avós e pelas avós às mães.
3 MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa descritiva, de caráter quantitativo, realizada com uma amostra por conveniência, composta por díades de mães e avós de crianças com deficiência, conforme informações detalhadas nesta seção.
3.1 PARTICIPANTES E PROCEDIMENTO DE COLETA DE DADOS
Esta pesquisa foi composta por 38 díades de mães e avós de crianças com deficiência. Este estudo integrou um projeto de pesquisa, coordenado pela primeira autora, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sob o Parecer n° 3.061.301/ 2018.
As participantes foram recrutadas em oito instituições de reabilitação infantil do Estado de São Paulo, Brasil, por meio de indicação dos profissionais de saúde e educação das instituições. Os critérios de inclusão estabelecidos foram: (i) ser mãe ou avó de crianças com deficiência com alto grau de dependência, com idade entre dois e dez anos; e (ii) participar voluntariamente do estudo, firmando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, segundo a Resolução n°466, de 12 de dezembro de 2012.
A coleta de dados foi realizada no período de seis meses (setembro 2019 a janeiro 2020), nas instituições integrantes ou na própria residência das participantes, de maneira separada, ou melhor, de forma isolada para as 38 mães e 38 avós, com o intuito de garantir o sigilo das informações para ambas as participantes da díade Mãe-Avó (DAV). Após essa etapa, como compromisso social, foram oferecidas informações sobre o tema da pesquisa para as famílias e as instituições.
O nível de dependência-responsabilidade das crianças foi avaliado por meio do Pediatric Evaluation of Disability Inventory-Computer Adaptive Test (PEDI-CAT) (Mancini et al., 2016), tendo a mãe como informante. O perfil da amostra frente às (in)capacidades das crianças apresentou características semelhantes nos quesitos avaliados: gênero, diagnóstico e faixa etária em função das áreas do Inventario PEDI-CAT: AVD, Mobilidade, Social/Cognitivo e Responsabilidade. Em síntese, pode-se dizer que se trata de uma amostra homogênea de crianças, por não haver diferenças significativas em nenhuma das áreas investigadas no Inventário PEDI-CAT, o que era esperado para a pesquisa, uma vez que se buscava encontrar famílias de crianças com grau semelhante de dependência, neste caso, a maioria das crianças em atraso funcional. As variáveis gênero, faixa etária e diagnóstico estiveram presentes na amostra de forma equilibrada.
O Critério de Classificação Econômica Brasil – CCEB (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2018) foi utilizado para a caracterização de classe econômica das mães e avós. Foi possível observar melhores condições econômicas nas faixas A, B e C das mães comparativamente às avós, sinal de mobilidade social ascendente entre gerações. Houve o predomínio das faixas B e C tanto das mães quanto das avós, totalizando 76.2% e 92% da amostra, respectivamente (Tabela 1).
3.2 INSTRUMENTOS
Foram utilizados o Índice de Solidariedade Intergeracional, Escala de Ambivalência Intergeracional, Escala de Maturidade Filial e Escala de Maturidade Parental para avaliar o autorrelato de mães e avós.
O Índice de Solidariedade Intergeracional foi desenvolvido por Bengtson e Roberts, em 1971, e validado no Brasil por Braz (2013). Refere-se a uma escala de autorrelato que possui 20 questões de múltipla escolha subdivididas em sete dimensões: Afetiva, Consensual,
Conflitual, Estrutural, Associativa, Funcional e Normativa (Bengston & Roberts, 1991; Bengston & Oyama, 2007; Braz, 2013). Na presente pesquisa, foram utilizadas as dimensões Afetiva (seis itens, por exemplo: O meu relacionamento com a minha mãe/filha é) com escala de Likert com seis opções de respostas (1=inexistente a 6=excelente); Conflitual (quatro itens, por exemplo: Existe tensão conflito ou desacordo entre mim e a minha mãe) com escala de Likert com seis opções de respostas (1=discordo totalmente a 6=concordo totalmente); e Funcional: 16 itens para as mães (dada e recebida) e oito itens para as avós (por exemplo, transporte e compras), com escala de Likert com sete opções de resposta: (1=nunca a 7=sempre). No presente estudo, foram observados os seguintes valores de consistência interna medida por meio de Alfa de Cronbach: .90, para a afetiva percebida tanto pelas mães como pelas avós; .81, para a dimensão conflitual percebida pelas mães; .60, para a percebida pelas avós; .87, tanto para funcional dada como para a recebida, de acordo com a perspectiva das mães; e .76 para a funcional dada de acordo com a perspectiva das avós.
A Escala de Ambivalência Intergeracional, composta por nove itens (por exemplo: Eu tenho uma relação íntima com a minha mãelfilha, mas sinto-me sufocada), busca apreender sentimentos, cognição e comportamentos contraditórios na relação pai-filho adulto. A escala do tipo Likert, com seis opções de resposta (1=totalmente em desacordo a 6=totalmente de acordo) (Michels et al., 2011). No presente estudo, foi observada uma consistência interna de .85 para as mães e de .91 para as avós.
A Escala de Maturidade Filial foi elaborada por Birditt et al. (2008) e adaptada e validada para o contexto de Portugal por Mendonça e Fontaine (2013). Essa escala, que avalia a capacidade de filhos adultos de perceber os pais como outros adultos com qualidades e vulnerabilidades, é composta por dez itens: seis deles compõem a dimensão Compreensão; e quatro, a dimensão Distanciamento, dimensões correlacionadas negativamente. Os itens utilizados na presente pesquisa fazem parte da escala compreensão (por exemplo: A medida que vou ficando mais velha, noto que eu e a minha mãe temos mais em comum). As filhas classificam a sua concordância com os itens em uma escala do tipo Likert com seis opções de resposta (1=totalmente em desacordo a 6=totalmente de acordo) (Mendonça & Fontaine, 2013). Neste estudo, foi observada uma consistência interna de .87.
A Escala de Maturidade Parental, desenvolvida e testada por Mendonça e Fontaine (2014), tem como objetivo apreender a capacidade dos pais de reconhecer seus filhos como adultos independentes, com limitações e necessidades, bem como se relacionar de forma consonants. E composta por dez itens, sendo utilizada, no presente estudo, apenas a dimensão Compreensão, com seis itens (por exemplo: Falo frequentemente com a minha filha acerca dos meus problemas). As/os mães/pais classificam a sua concordância com os itens com seis opções de resposta (1=totalmente em desacordo a 6=totalmente de acordo). No estudo de validação, foi possível identificar a confiabilidade interna da escala: α =.71 para as mães e α =.77 para pais no fator Compreensão (Mendonça & Fontaine, 2014). Neste estudo, foi observada uma consistência interna de apenas .54 para a dimensão compreensão, estando o valor abaixo do aceitável, devendo, assim, os resultados serem lidos com cautela.
3.3 PROCEDIMENTO DE ANÁLISE
De posse das informações coletadas e armazenadas em um banco de dados, procedeu-se às análises dos resultados. Foi utilizado o teste t de Student para amostras emparelhadas para comparar os valores das mães e das avós nas dimensões em análise: dimensões afetivas, conflituais e funcionais, relativas ao fenômeno da solidariedade intergeracional, bem como a ambivalência e a maturidade; foram ainda comparadas as percepções de solidariedade funcional dada pelas avós e recebida pelas suas filhas. A fim de explorar diferenças entre as dimensões dentro de cada um dos grupos, de mães e avós, foram realizadas Anovas de medidas repetidas. Por fim, de modo a verificar quais dimensões são predito ras da ajuda oferecida, foram feitas duas regressões lineares múltiplas, uma para as avós e outra para as mães. As análises foram obtidas por meio do recurso ao IBM SPSS Statistics versão 27.
4 RESULTADOS
Inicialmente, foram exploradas as diferenças entre mães e avós de crianças com deficiências nas dimensões da solidariedade estudadas (funcional, conflitual e afetiva), assim como da ambivalência e maturidade. Para o efeito, foram realizados teste t de Student para amostras emparelhadas. Os resultados indicam que existem diferenças significativas na dimensão ambivalência [t (37) =-7.60; p≤.001; d de Cohen=-1.23], reportando as avós (M=4.56; DP=1.45) níveis superiores de ambivalência por comparação com as mães (M=1.97; DP=1.25); essas diferenças têm uma magnitude do efeito elevada. Foram também observadas diferenças significativas nas dimensões compreensão da maturidade parental e filial [t (37) = -2.45; p≤.002; d de Cohen=-0.40], reportando as avós (M=4.95; DP=0.70) níveis superiores de maturidade parental por comparação a maturidade filial das mães (M=4.34; DP=1.51); essas diferenças têm uma magnitude do efeito fraca. Nenhuma diferença foi observada quanto às diversas formas de solidariedade e, também, não foram observadas diferenças significativas entre a solidariedade funcional dada pelas avós e a percepção da solidariedade funcional recebida pelas mães.
Para avaliar para quais das dimensões anteriormente descritas as participantes de cada um dos grupos apresentavam valores mais elevados, foi realizada uma ANOVA medidas repetidas. No caso das avós, tendo sido observada uma violação do pressuposto da esfericidade, pelo que se atendeu ao fator de correção Greenhouse Geisser que evidenciou a existência de diferenças significativas: F(2,995, 107.311) = 7.33, p ≤.001; eta quadrado parcial=.169: as avós apresentam níveis mais elevados de solidariedade afetiva (M=5.0; EP=.85) e níveis mais baixos de solidariedade funcional dada (M= 3.9; EP = 1.16).
No caso das mães, também perante a ausência de esfericidade, foi observada a correção de Greenhouse Geisser F (3.190, 118.147) = 24.29, p ≤.001; eta quadrado parcial=.396 que evidenciou que as mães apresentam também níveis mais elevados na dimensão da solidariedade afetiva (M=5.1; DP=.1.1), mas os níveis mais baixos são observados para a ambivalência (M= 2.0; DP = 1.2).
Por fim, de modo a averiguar que variáveis mais influenciam na oferta de apoio funcional, foram feitas duas regressões lineares múltiplas, uma para o grupo das avós e outra para o grupo das mães. A variável dependente era, então, a solidariedade funcional dada e as variáveis independentes as dimensões afetiva e conflitual, a ambivalência e a maturidade. No caso das avós, o modelo não se revelou significativo, estando um pouco acima do limiar de significância [F(4, 33)=2.4; p=.07], explicando 14% da variância e tendo como preditores significativos a maturidade (Beta=-.35; p=.03) e a ambivalência (Beta=-43; p=.04). Já no caso das mães, o modelo foi significativo [F(4, 33)=4.7; p=.04], explicando 29% da variância (R 2 ajustado=.29), sendo a maturidade filial o único preditor significativo (Beta=-.38; p=.05).
5 DISCUSSÃO
O presente estudo teve por objetivo identificar e discutir o fenômeno da solidariedade intergeracional entre mães e avós de crianças com deficiência em uma amostra brasileira. Partiu-se da hipótese de que a percepção dos níveis de suporte afetivo, funcional e elementos das dimensões conflituais, assim como a ambivalência e a maturidade impactam nas atitudes solidárias. Além disso, pretendeu-se explorar se a relevância dessas dimensões poderia estar dependente do estatuto (normas) de mãe ou avó, associada às responsabilidades diretas ou indiretas de cuidar e educar uma criança com deficiência com alto grau de dependência.
Os resultados apontaram tanto para semelhanças como para diferenças significativas na percepção de determinadas dimensões do relacionamento entre as avós de crianças com deficiência e suas filhas, nas temáticas estudadas. Observa-se que, embora não haja diferença entre as dimensões afetivas da avó e da mãe, são estas as que têm média mais elevadas em cada grupo. Médias mais altas relativas à dimensão afetiva em ambos os componentes das díades (mãe e avó) reforça a hipótese de que a provisão de suporte afetivo está presente nas díades por meio de trocas mútuas de afeto tanto da mãe quanto da avó. Assim, verifica-se que esses dados corroboram parte dos resultados do estudo de Yamashiro e Matsukura (2014), também realizado no Brasil, que indicam que as práticas de apoio exercidas no contexto familiar integram o cotidiano das avós e representam importante fonte de apoio às mães e aos netos com deficiência.
Assim, entende-se que a relação de reciprocidade presente na dimensão afetiva da solidariedade revela aquilo que é previsto quando a pessoa se movimenta, ao longo do tempo, para outras fases do seu ciclo de vida (Carter & Macgoldrick, 1995), como a fase adulta, associada ou não a uma situação estressora; neste caso, envolve o cuidar e educar de uma criança com deficiência com alto grau de dependência.
Ramos (2017), ao valorizar a qualidade dos vínculos afetivos, relacionais e comunicacionais entre diferentes gerações, indica impactos positivos na promoção de novas relações e formas de solidariedade. Assim, na amostra estudada, a dimensão afetiva, quando comparada com a dimensão funcional dada e recebida pela avó, superou a oferta de ajuda em questões práticas (como ajuda financeira, nas compras e no cuidado pessoal) – relativas à dimensão funcional da solidariedade intergeracional. Esses dados indicam um diálogo com as abordagens que discutem o envelhecimento saudável, em contraposição de estereótipos e discriminações, as quais reconhecem potencialidades e recursos de pessoas mais velhas favorecendo, além da atividade produtiva, o bem-estar e as relações sociais e intergeracionais (Ramos, 2017; World Health Organization [WHO], 2020).
Contudo, em contraposição ao apoio afetivo, no que se refere à oferta de apoio funcional, no presente estudo não foram observadas diferenças entre mães e avós, embora seja, para as avós, a dimensão em que obtiveram médias mais baixas. Esses resultados demonstram a necessidade de as avós assumirem um papel de maior protagonismo face a uma situação inesperada e, por vezes, estressante e impredizível (Carter & Macgoldrich, 1995), tornando-se uma fonte importante de suporte, mesmo que não tenham o papel de cuidadoras principais. Yamashiro e Matsukura (2014) destacam que, em entrevistas, as avós revelam que o papel desempenhado por elas nem sempre foi o mesmo e apontam o nascimento do neto com deficiência como o fator que as fez repensar este papel.
O papel das avós é marcado por uma relação complexa e plural, existindo múltiplos fatores que podem influenciar a diversidade de relações avós-netos e o maior ou menor envolvimento, nomeadamente: a estrutura psíquica dos avós, a história familiar, o tipo de relacionamento com os filhos, a idade, o gênero e a saúde dos avós, o meio social e cultural em que vivem; a distância a que vivem dos netos e filhos; o sentimento de competência para lidar com as mudanças socioculturais e com as novas exigências colocadas por filhos e netos. (Ramos, 2017, p. 235)
Nesta pesquisa, destaca-se a importância da maturidade, por um lado, e da ambivalência, por outro. Observou-se que a maturidade parental das avós era ligeiramente superior à maturidade filial das suas filhas; também se constatou que a ambivalência era particularmente elevada nas avós e largamente superior à das suas filhas, para as quais essa dimensão tem as médias mais baixas. Ambas as dimensões se revelaram preditoras significativas e positivas do apoio dado pelas avós às suas filhas, apesar da ausência de significância do modelo (p=.07). Assim como a baixa consistência da dimensão, a compreensão da maturidade exige alguma prudência ao considerar esses resultados.
Na amostra estudada, as declarações de ambivalência das avós estão acompanhadas de uma maior maturidade parental, o que possibilita relações de afeto e respeito com as filhas que educam e cuidam do neto com deficiência e dependências em um processo de compreensão entre gerações. Com efeito, as avós consideram as suas filhas como adultas que podem ter opiniões e adotarem opções diferentes das suas, que têm direito a errar, mas que apoiam na dura tarefa de educar uma criança com deficiência. Nas relações intergeracionais, as mães, por seu lado, ainda veem bastante o apoio prestado pelas avós como sendo a manifestação da extensão do seu antigo papel materno. Aliás, observou-se uma correspondência entre a percepção de suporte funcional que a avó dá as filhas e a percepção da filha receber esse apoio por parte da sua mãe, aparentemente sem criar sentimento de mal-estar. Assim, as mães de crianças com deficiência não ressentem tanto ambivalência, quer em relação a ajuda recebida, nem com a ajuda que ainda possam dar, interpretadas à luz da situação particularmente difícil na qual se encontram.
Os resultados indicam que as avós, pelo contrário, se apresentam fortemente ambivalentes; desse modo, embora contribuam e cooperem com suas filhas, podem sentir que essa exigência interfere, de alguma forma, com outros projetos e desejos pessoais. Contudo, é possível criar a hipótese de que a maior maturidade permite as avós assumirem mais facilmente os sentimentos de ambivalência nos processos interativos entre ambas, sem que isso interfira demasiadamente com as prestações de apoio funcional, aumente o conflito ou reduza o apoio afetivo. Aliás, os resultados da presente pesquisa mostram que o apoio funcional dado pelas avós é relativamente independente das dimensões afetivas e conflituais da solidariedade intergeracional. Para as mães, pelo contrário, o apoio funcional dado às avós é dependente do seu nível de maturidade filial, que as torna mais sensíveis às outras necessidades das avós, além do seu papel materno.
Hogerbrugge e Komter (2012), apesar de apontarem que a viabilidade do modelo de solidariedade intergeracional tenha sido confirmada em seu estudo com população holandesa, a relevância do conceito de ambivalência intergeracional para estudar mudanças nas relações familiares naquele contexto foi questionada. Os autores afirmam que, dado o desenvolvimento relativamente recente do conceito de ambivalência intergeracional, o debate teórico ainda não conduziu previsões claras sobre a sua relação com os domínios da solidariedade.
Na direção de trazer ao debate o conceito de ambivalência intergeracional, este estudo reuniu as informações sobre maturidade parental e autorrelato de ambivalência. Nota-se que as mães de crianças com deficiência confrontam-se com mais dificuldades, erros e obstáculos no cotidiano, o que pode ser responsável por uma menor ambivalência na percepção de solidariedade. O fato de serem ajudadas pelas suas próprias mães em diversas tarefas é provavelmente considerado expectável pelas filhas, que parecem ter menos consciência de que as suas mães são adultas, cujos papéis e projetos não se limitam à maternidade. Ressalta-se que as avós exerceram esse papel, a princípio, sem problema quando as suas filhas eram pequenas e, mesmo diante das limitações que a necessidade de apoio das filhas lhes coloca ao nível da sua vida pessoal, sentem-se capazes de ofertar apoio, o que pode reforçar a sua percepção de eficácia. A superioridade na ambivalência pontuada pelas avós corrobora essa interpretação à medida que tem como consequência a vivência dos dois lados dessa relação: o que ganham e as satisfaz, mas também o que desejariam se pudesse ser diferente.
As solidariedades familiares não se explicam, unicamente, pelas relações de afeto, negociações e estratégias entre os membros das famílias, mas são igualmente originadas, por um sentimento de obrigação e de dever influenciado pelos valores, normas e costumes da cultura e da sociedade em que vivem os indivíduos e as famílias. (Ramos, 2017, p. 239)
As avós participantes deste estudo revelaram que têm espaço para as expressões, ao denotar elevados graus de ambivalência. Ao estudar-se a relação de avós e mães que se confrontam com uma criança com deficiência, reafirma-se a pertinência das contribuições trazidas por Bengston e Oyama (2010) ao considerarem que é impossível discutir solidariedade sem considerar seu oposto, o conflito e vice-versa. Destaca-se que uma das mudanças necessárias, de segunda ordem, no status familiar ao longo do ciclo de vida da família, inclusive em estágio tardio, consiste em abrir espaço para a sabedoria e a experiência das pessoas idosas, apoiando a geração mais velha sem, contudo, limitar a sua autonomia e liberdade (Carter & Macgoldrich, 1995; Rabelo, 2016).
Esta pesquisa, ao investigar as relações de mães e avós de crianças com deficiência, reafirma o importante papel das mulheres na criação de filhos no Brasil, a despeito das mudanças econômicas, sociais e, especialmente, diante dos novos arranjos familiares contemporâneos. Assim, os dados aqui produzidos corroboram o estudo de Borsa e Nunes (2011) em que as autoras, ao discutirem os aspectos psicossociais da parentalidade, considerando a ênfase atribuída ao papel da mãe na família nuclear, em comparação ao papel do pai, concluem que, mesmo frente às diversas mudanças ocorridas nos papéis sociais e na dinâmica das famílias contemporâneas, as mulheres ainda são vistas como as principais cuidadoras, sendo atribuído a elas o cuidado prioritário não apenas dos filhos mas também do lar. Pesquisas realizadas na Europa e nos Estados Unidos revelam, segundo Ramos (2017), que o gênero tem sua influência com o papel da mulher sendo mais ativa, participativa, envolvendo-se com aspectos emocionais e de maternagem, socialização e práticas educativas cotidianas domésticas e cuidados com a saúde do neto.
Bengtson e Roberts (1991) afirmam que os testes empíricos do modelo de Solidariedade Intergeracional revisado fornecem suporte para a visão teórica de que a solidariedade normativa – expectativas de que os filhos adultos e pais idosos devem desempenhar papéis e obrigações familiares – dá contribuições importantes para a solidariedade afetiva e associativa. Os autores destacam, apoiados no apontamento de Rossi e Rossi (1990), que níveis de variáveis como compromisso normativo e afeto mútuo refletem a longa história do relacionamento entre pais mais velhos e filhos de meia-idade. Ademais, indicam que uma teoria completa da solidariedade familiar também deve especificar os preditores exógenos de cada elemento, bem como as consequências da solidariedade familiar para o bem-estar individual. E, por fim, afirmam que a dialética entre o teste empírico e as proposições formalmente declaradas facilitará o refinamento contínuo de uma teoria da solidariedade familiar. Os referidos autores acreditam que a interação entre ideias e observações forneçam informações novas das quais surgirá uma melhor compreensão da solidariedade familiar (Bengtson & Roberts, 1991).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve por objetivo identificar e discutir o fenômeno da solidariedade intergeracional entre mães e avós de crianças com deficiência em uma amostra brasileira. Sua contribuição recai essencialmente sobre os seguintes tipos de resultados: a solidariedade intergeracional, nomeadamente afetiva, a ambivalência e a maturidade parental e a filial.
Algumas implicações podem apoiar a reflexão sobre a complexidade existente na reciprocidade das relações familiares intergeracional entre cuidadoras de crianças com deficiência, com elevado nível de dependência. Ressalta-se a importância do papel das avós não apenas no processo de cuidado dos netos, mas, sobretudo, no apoio afetivo às filhas. Contudo, deve-se atentar às necessidades de apoio, de informação e de autonomia dessas avós.
Como uma das limitações desta pesquisa, destaca-se o seu desenho transversal. Outra refere-se à utilização de uma amostra não probabilística, o que inviabiliza a generalização dos resultados. A despeito disso, os resultados abrem novas possibilidades de investigação a partir da adoção de procedimentos metodológicos distintos, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, visando colaborar com descobertas e intervenções em prol da coesão e bem-estar dessas famílias. Estudos futuros podem também introduzir outros indicadores de risco e de ajustamento adicionais, como é o caso dos associados à criança e a outras pessoas que podem ser fontes de apoio, sejam ou não membros da família biológica. De modo especial, no contexto brasileiro, para futuros estudos, será importante coletar dados em outros estados do país considerando as diferenças regionais.