Autorregulação na segunda infância
O desenvolvimento de competências autorregulatórias das crianças da segunda infância tem emergido como uma área de interesse internacional na educação. Com o aumento do número de anos de frequência escolar obrigatória, a competência do aprendente de se autorregular é destacada como uma componente fundamental para o envolvimento e sucesso escolares (MCCLELLAND; WANLESS, 2015). Considerando a aprendizagem como um conceito multidimensional segundo a perspectiva sociocognitiva de Zimmerman (2013), os processos envolvidos na aprendizagem autorregulada requerem que o aprendente esteja consciente da sua utilização, mobilizando aspectos cognitivos, metacognitivos, motivacionais e emocionais em função dos seus objetivos e metas de aprendizagem. As fases de autorregulação cumprem um ciclo de ação, continuamente aberto a novos desenvolvimentos, com recuos e avanços, sempre diferentes, porque enriquecidos pelo contexto em que ocorrem, pela experiência anterior e pelos resultados que se vão alcançando. Na segunda infância, o desenvolvimento da autorregulação implica mais do que o autocontrole, porque a vontade de aprender é sobretudo natural e não deliberada. A autorregulação e o autocontrole estão ligados conceitualmente, uma vez que ambos dependem do desenvolvimento, mas diferem no grau; a primeira é adaptativa face a mudanças, podendo ser considerada uma forma mais madura de controle que implica o uso da reflexão (KOPP, 1982). Nesta fase, a criança já tem um potencial para o desenvolvimento de respostas de organização, de modificação e regulação dela própria e, por volta dos 4 anos, utiliza competências que envolvem a instrospecção e a consciencialização, tornando-se mais responsável e consciente dos seus pensamentos e ações (BRONSON, 2000). A maleabilidade das estruturas cerebrais que caracteriza esta fase, sobretudo ao nível do córtex pré-frontal (planejamento, atenção, memória de trabalho, tomada de decisão e controle inibitório) cria uma janela de oportunidades no desenvolvimento das competências autorregulatórias. A investigação tem explicado como as crianças se autorregulam pela relação entre a aprendizagem e o desenvolvimento humano: esta faixa etária caracteriza-se pela centração na ação em deterioramento do pensamento (SÁIZ; CARBONERO; ROMÁN, 2014) e pela utilização de uma conduta verbal que organiza e regula o comportamento (LOPES DA SILVA, 1985). É, então, necessário fazer um ensino explícito das estratégias autorregulatórias (VEIGA SIMÃO, 2013), nomeadamente de planejamento, monitorização e avaliação, porque as crianças têm dificuldade de especificar o conteúdo do seu pensamento e tendem a pensar retroativamente sobre a ação. A exteriorização dos pensamentos e a explicação dos comportamentos surge associada à linguagem ou private speech, que se define pela prática de as crianças falarem em voz alta para si próprias enquanto desempenham uma tarefa (HARRIS, 1990). A autorregulação é, pois, uma skill simultaneamente desenvolvida e aprendida, estando intimamente relacionada com a maturidade das crianças e as oportunidades dos contextos onde elas estão inseridas (SKIBBE et al., 2011). A percepção positiva sobre o contexto (WILLIFORD et al., 2013) e a possibilidade de desenvolver atividade física e competências escolares (BECKER et al., 2014) estão também relacionadas com a autorregulação. Mas ela não deve ser vista como um acréscimo nos conteúdos curriculares, é antes uma fusão (MARTIN; KRAGLER, 2012): quanto mais o projeto pedagógico integrar atividades que desenvolvam competências cognitivas e socioemocionais, mais evidentes serão os efeitos de transferência para outras áreas da vida (HUBERT et al., 2015). A modelagem e o treino de competências tornam-se, assim, práticas educativas influenciadoras das atitudes, emoções e motivações das crianças (WOOD; BENNETT, 2001), porque lhes permitem aprender a organizar-se e a modificar a ação, controlar a sua atenção e o esforço, regular as relações sociais com os pares, manipular objetos e cumprir regras da sala (DEMIRTAS, 2013; FERNANDES, 2012).
Dimensões de autorregulação
Bronson (2000) descreve o desenvolvimento da autorregulação em quatro dimensões (controle emocional e comportamental, controle cognitivo, atitudes prossociais e motivação para a autorregulação) que contribuem para compreender como se podem estruturar as oportunidades para as crianças autorregularem as tarefas do contexto pré-escolar. À medida que as crianças vão interiorizando normas comportamentais e de expressão das emoções, elas se tornam gradualmente mais capazes de exercer o controle interno de si próprias (controle emocional e comportamental), podendo ser envolvidas na constituição do espaço das salas, na organização adaptável e reversível do meio físico e na arrumação dos materiais (BULUT PDÜK; YILDIZBAS; AYGUN, 2014). A flexibilidade e a funcionalidade dos espaços tornam-se, assim, aspectos centrais para a adequação pedagógica e a estruturação psicológica dos intervenientes (RENTZOU, 2014; ŞAHIN; DOSTOĞLU, 2014).
Uma vez que as estruturas cognitivas estão ainda em maturação, as funções executivas têm um papel primordial na mobilização das competências metacognitivas (BRYCE; WHITEBREAD; SZÜCS, 2014). Este aspecto é corroborado por educadores de infância, professores e investigadores que afirmam que as crianças se vão tornando mais orientadas para os objetivos, conseguindo pensar por si próprias, analisar tarefas específicas, tomar decisões e resolver problemas – conhecimento metacognitivo (PISCALHO; VEIGA SIMÃO, 2014a). A liberdade para fazer escolhas e tomar decisões são oportunidades muito importantes para as crianças se apropriarem das tarefas, podendo ocorrer em atividades dentro da sala, no exterior (MCCLINTIC; PETTY, 2015) ou em brincadeira livre (KONTOS, 1999), existindo sempre uma certa orientação do educador para estimular a curiosidade e a iniciativa da criança (PISCALHO; VEIGA SIMÃO, 2014a). As percepções do educador e a sua experiência prévia são influenciadoras da forma como integra, por exemplo, as tecnologias de informação e comunicação na sala (MASOUMI, 2015) ou potencia a literacia emergente (ONCUA; UNLUER, 2015; SANDVIK; DAAL; ADÈR, 2014). A investigação nesta área tem-se constituído como um apoio aos educadores para promoverem o desenvolvimento metacognitivo das crianças (WHITEBREAD; COLTMAN, 2010) e como uma oportunidade de formação contínua (HADLEY; WANIGANAYAKE; SHEPHERD, 2015; PISCALHO; VEIGA SIMÃO, 2014b).
A atenção ao outro e o envolvimento voluntário em atividades cooperativas são competências que se tornam, naturalmente, mais salientes durante a idade pré-escolar. Mas o desenvolvimento de competências sociais e emocionais está também relacionado com a adaptação do espaço físico, como no caso das áreas temáticas, que contribuem para a forma como as crianças alcançam as suas metas de aprendizagem (CUETO; LEÓN; MIRANDA, 2016).
A fim de dar, progressivamente, maior autonomia às crianças, os educadores devem focar-se mais no processo do que no produto das aprendizagens, podendo, para isso, recorrer à modelagem e à monitorização (PERRY; VANDEKAMP, 2000). A empatia é também salientada pela investigação como uma importante competência do educador neste âmbito (PECK; MAUDE; BROTHERSON, 2015). Por outro lado, o feedback dado às crianças acerca do seu desempenho funciona como um reforço motivacional para a relação com o adulto e para a prossecução na ação (MÄÄTTÄ; JÄRVELÄ, 2013). A validação de experiências influencia, ainda, o clima emocional da sala e contribui para a adoção de comportamentos adaptativos de autorregulação (FUHS et al., 2013).
Contexto pré-escolar português
Dada a necessidade de educar as crianças para uma verdadeira maturidade humana, cognitiva e emocional e o quadro legal português (PORTUGAL, 1997a, 1997b), a educação pré-escolar é um contexto privilegiado para o desenvolvimento das competências autorregulatórias. Acresce, ainda, o fato de as Orientações Curriculares (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2016) e as Metas de Aprendizagem (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2010), enquanto documentos orientadores das práticas para este ciclo de ensino, preverem o desenvolvimento da autonomia e a responsabilização da criança, enquanto elemento ativo e construtor da sua aprendizagem. É, contudo, necessário compreender a aprendizagem autorregulada como um conjunto de competências de que a criança vai se dotando ao longo do desenvolvimento, mesmo antes da escolaridade obrigatória, e que inclui tanto dimensões de regulação emocional como de interação social. Estas últimas assumem particular relevância durante a segunda infância, dado que a aprendizagem se realiza mais pela apreensão dos contextos e relações neles estabelecidas do que pela capacidade cognitiva (BANDURA, 1997). Assim sendo, as concepções dos educadores sobre a aprendizagem das crianças e os modelos educativos adotados são determinantes para a forma como elas processam e integram novos conceitos (BROSTRÖM et al., 2015). Consideram-se, inclusivamente, mais eficazes os modelos que partem da experiência ou “curiosidade natural da criança e do seu desejo de saber e compreender porquê” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2016, p. 88). Em Portugal, o número de anos de escolaridade obrigatória tem aumentado e as crianças ingressam em instituições educativas cada vez mais cedo. O Ministério da Educação prevê, inclusivamente, que o acesso à educação pré-escolar estatal esteja disponível para todas as crianças a partir dos 3 anos, em 2017.
As questões de investigação a que nos propomos responder foram: Quais as percepções dos educadores sobre as práticas que promovem a autorregulação de tarefas? Quais práticas educativas promovem oportunidades para as crianças autorregularem a execução de tarefas na educação pré-escolar?
Método
Este é um estudo de casos múltiplos, cujo design permite dar significado aos contextos na sua especificidade, com descrições detalhadas de nível prático e conceptual (YIN, 2009). Procuramos compreender como é que as crianças apreendem e gerem a sua experiência cotidiana, através da análise cruzada entre os casos e do estabelecimento de contrastes e comparações. Neste tipo de investigação, as características do investigador são especialmente importantes, devendo incluir a empatia e a humildade para ser aceito no contexto, tomar contato com a rotina, os hábitos e comportamentos e tornar-se uma presença familiar. Nos estudos de caráter indutivo são também tidos em conta os efeitos de treino do observador. Por estas razões, o trabalho de campo foi extenso e intenso e recorreu a grelhas de registo a partir das quais se construiu o diário de campo – anotações, esquemas e esboços (AMADO; FREIRE, 2013).
Participantes
Foram selecionados quatro participantes através de um método intencional com os requisitos: ser formado em educação de infância, ter prática profissional e liderar, naquele ano letivo, um grupo de educação pré-escolar. As educadoras eram do sexo feminino e de nacionalidade portuguesa. As escolas estavam localizadas na área metropolitana de Lisboa, em Portugal. O nível socioeconômico das famílias variava entre baixo e médio-alto. Cada grupo tinha, no máximo, 24 crianças. Outros dados de caracterização podem ser consultados na Tabela 1.
Participante | Experiência profissional | Escola | Grupo de crianças |
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Contexto A | 10 anos | Privada | Multietário (3 a 5 anos) |
Contexto B | 4 anos | Privada | 5 anos |
Contexto C | 9 anos | Privada | Multietário (3 a 5 anos) |
Contexto D | 28 anos | Estatal | 5 anos |
Fonte: dados da pesquisa.
O contexto A era uma instituição particular de solidariedade social que integrava as valências de berçário, creche e jardim de infância no mesmo edifício. Existiam quatro grupos de educação pré-escolar, todos multietários. Quatro das crianças eram do sexo feminino e duas do masculino. A escola que correspondia ao contexto B abrangia alunos desde o berçário ao 2º ciclo, em edifícios distintos. Nesta escola, era o único grupo de 5 anos. Doze das crianças eram do sexo feminino e doze do masculino. O contexto C era uma instituição particular de solidariedade social com as valências de berçário, creche e jardim de infância, no mesmo edifício. O grupo era multietário, entre outros três grupos de pré-escolar; oito crianças eram do sexo feminino e três do sexo masculino. O contexto D funcionava numa escola de 1º ciclo, num edifício apropriado à educação pré-escolar. No total, haviam três grupos com crianças de 5 anos. Oito das crianças participantes eram do sexo feminino e nove do masculino. Uma criança estava referenciada com necessidades educativas especiais.
Instrumentos
Para conhecer as percepções dos educadores sobre a promoção da autorregulação junto das crianças e recolher outros dados de caracterização, foi realizada uma entrevista semiestruturada individual com cada educadora. O guião da entrevista estava organizado em quatro blocos (AMADO; FERREIRA, 2013, Figura 1). Os objetivos da entrevista incluíam: tomar contato com o percurso formativo e profissional da educadora; conhecer as suas práticas educativas no contexto e inquirir sobre a familiaridade com o construto de autorregulação.
A fim de identificar as práticas promotoras de oportunidades para as crianças autorregularem tarefas, foram realizadas observações sistemáticas. Construiu-se uma grelha de registo a partir das notas de campo das observações naturalistas e de outros instrumentos de registo (VEIGA SIMÃO, 2002; WHITEBREAD et al., 2009). A grelha continha informações sobre a atividade (como as crianças estão organizadas: pequeno grupo, grande grupo ou atividades no exterior da sala), a tarefa (o que estão a fazer), as observações (como a educadora interage com o grupo), os comportamentos das crianças e respectivas verbalizações. A opção por este instrumento apoiou-se na necessidade de explorar a relação dinâmica entre as crianças e o meio e de contextualizar o estudo dos fenômenos educacionais (GROTH, 2010).
Procedimentos
Os participantes foram contatados pessoalmente e foi requerida autorização escrita à direção das escolas e aos pais das crianças. Os procedimentos éticos e deontológicos foram acautelados e o anonimato dos participantes protegido, conforme aprovação da Comissão Especializada de Deontologia. As entrevistas tiveram lugar em espaço próprio onde só a investigadora e a educadora estiveram presentes; depois de apresentados os objetivos da entrevista, obteve-se o consentimento informado. A duração variou entre 29:50m e 47:30m. As entrevistas foram transcritas, analisadas e, depois, destruídas. Os momentos de observação foram combinados, tendo em conta a disponibilidade dos participantes e as atividades. O tempo de observação foi de oito períodos por grupo. O período da manhã era entre as 9h30 e as 12h e o da tarde entre as 13/14h e as 15/16h. A observadora acompanhou as atividades, aproximando-se das crianças e interagindo o menos possível; anotou todas as informações durante e imediatamente após as observações. A recolha decorreu ao longo de seis meses.
Análise de dados
A análise de conteúdo foi do tipo misto; consideraram-se algumas categorias à partida, e surgiram outras durante as análises (BARDIN, 1989). Na leitura fluente dos protocolos, emergiram denominadores comuns nas respostas que foram organizados em temas e categorias. Os temas eram: a organização da aprendizagem, o desenvolvimento das competências das crianças e a investigação como meio de formação. Do primeiro tema faziam parte as categorias: explorar diferentes abordagens à aprendizagem; tornar a aprendizagem lúdica em vez de a escolarizar; incluir conteúdos formais na área do conhecimento do mundo2; promover a reflexão perante as dificuldades; diversificar as áreas de conteúdo; promover a regulação das atividades diárias; e abordar emoções através da música e dramatização. No segundo tema, integraram-se: proporcionar um desenvolvimento íntegro; promover a participação social e na aprendizagem; andaimar escolhas; modelar comportamentos; respeitar o desenvolvimento individual, potenciando-o; envolver emocional/motivacionalmente as crianças; e aprender a relacionar-se socialmente. As notas de campo foram organizadas a partir do registro sistemático das biografias e transformadas em indicadores (frases simples e contextualizadas que descreviam um comportamento ou verbalização). Os indicadores foram organizados em conjuntos que remetiam para a rotina de sala: atividades em pequenos grupos (as crianças desenvolvem diferentes tarefas agrupadas em áreas temáticas), atividades em grande grupo (mais dirigidas pela educadora) e outras atividades (momentos observados fora de sala). Os indicadores foram avaliados segundo as dimensões de autorregulação (BRONSON, 2000): controle emocional e comportamental, controle cognitivo, atitudes prossociais e motivação para a autorregulação. A avaliação foi efetuada num sistema de categorização mutuamente exclusivo, na íntegra por um perito e 20% por um juiz externo. O alfa de Cronbach para o acordo interjuízes foi de .823.
Resultados e discussão
Percepções e práticas na educação pré-escolar
Nesta investigação, pretendíamos compreender as percepções dos educadores sobre a autorregulação e conhecer as práticas que promovem oportunidades para as crianças autorregularem as suas tarefas. Durante as entrevistas, respeitar o desenvolvimento individual, potenciando-o foi o aspecto sobre o desenvolvimento das crianças mais referido pelas educadoras. Foi tecido menor número de considerações sobre como dispor os espaços da sala para promover a aprendizagem autônoma e abordar emoções através da música e dramatização, assim como, modelar comportamentos e aprender a relacionar-se socialmente.
Do total dos 739 indicadores de oportunidades de autorregulação observados (Tabela 2), 279 diziam respeito a atividades em pequenos grupos (PG), 389 indicadores relacionavam-se com atividades em grande grupo (GG) e 71 remetiam para outras atividades (O). O contexto D foi onde se verificou maior número de indicadores no geral (265), nas dimensões controle emocional e cognitivo (104) e controle cognitivo (97). Mas foi no contexto B que se identificaram mais indicadores de atitudes prossociais (26) e motivação para a autorregulação (66). Houve uma predominância de controle emocional e cognitivo e de controle cognitivo, comparativamente a atitudes prossociais e a motivação para a autorregulação em todos os contextos e nos três tipos de atividades. As oportunidades referentes a atitudes prossociais foram as menos observadas, no geral.
Contexto A | Contexto B | Contexto C | Contexto D | ||||||||||||||
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Total de indicadores | PG | GG | O | Totais | PG | GG | O | Totais | PG | GG | O | Totais | PG | GG | O | Totais | |
Total de indicadores | 739 | 79 | 11 | 25 | 115 | 70 | 125 | 10 | 205 | 80 | 61 | 13 | 154 | 50 | 192 | 23 | 265 |
CEC | 235 | 24 | 6 | 10 | 40 | 18 | 20 | 5 | 43 | 16 | 26 | 8 | 50 | 9 | 81 | 14 | 104 |
CC | 250 | 37 | 3 | 6 | 46 | 19 | 47 | 4 | 70 | 20 | 15 | 2 | 37 | 15 | 77 | 5 | 97 |
AP | 79 | 4 | 2 | 6 | 12 | 9 | 16 | 1 | 26 | 11 | 3 | 3 | 17 | 10 | 13 | 1 | 24 |
MA | 173 | 14 | 0 | 3 | 17 | 24 | 42 | 0 | 66 | 33 | 17 | 0 | 50 | 16 | 21 | 3 | 40 |
Total indicadores PG 279 | Total indicadores GG 389 | Total indicadores O 71 |
Fonte: dados da pesquisa.
Dimensões de autorregulação, categorias e indicadores
Na triangulação dos dados, elaboraram-se mapas conceituais que associaram as dimensões de autorregulação com as categorias das entrevistas e os indicadores das observações. Em relação à dimensão controle emocional e comportamental (Figura 2), destacou-se a importância de se proporcionar um desenvolvimento íntegro, que inclui o cumprimento de regras e a adequação comportamental das crianças. Envolver emocional/motivacionalmente as crianças e abordar as emoções através da música e da dramatização foram outros aspectos sublinhados pelas educadoras como centrais para a promoção diária da aprendizagem.
Legenda: Total de indicadores observados na dimensão controle emocional e comportamental; categorias das entrevistas e exemplo de indicadores correspondentes.
Fonte: dados da pesquisa.
Na dimensão controle cognitivo (Figura 3), emergiram assuntos relacionados com a exploração de diferentes abordagens à aprendizagem e a diversificação das áreas de conteúdo, que remetem para a manipulação de objetos com diferentes objetivos. Outro aspecto que as educadoras referiram acerca da abrangência dos conteúdos curriculares prevê a inclusão de conteúdos formais na área do conhecimento do mundo.
Legenda: Total de indicadores observados na dimensão controle cognitivo; categorias das entrevistas e exemplo de indicadores correspondentes.
Fonte: dados da pesquisa.
No que se refere às atitudes prossociais (Figura 4), os temas remetem para as oportunidades que são dadas às crianças de desenvolveram a relação interpessoal, sobretudo com os pares. Assim se destacaram as necessidades de tornar a aprendizagem lúdica em vez de a escolarizar, de promover a participação social e na aprendizagem e de aprender a relacionar-se socialmente.
Legenda: Total de indicadores observados na dimensão atitudes prossociais; categorias das entrevistas e exemplo de indicadores correspondentes.
Fonte: dados da pesquisa.
Relativamente à dimensão motivação para a autorregulação (Figura 5), destacou-se a importância de particularizar, sempre que possível, a abordagem à aprendizagem de cada criança, o que implica respeitar o desenvolvimento individual, potenciando-o. As educadoras sublinharam igualmente o fato de ser preciso promover tanto a regulação das atividades diárias como a reflexão perante as dificuldades.
Legenda: Total de indicadores observados na dimensão motivação para a autorregulação; categorias das entrevistas e exemplo de indicadores correspondentes.
Fonte: dados da pesquisa.
Todas as educadoras referiram o interesse em participar nesta investigação enquanto reforço da sua formação profissional, como ilustram as citações: “Há muito por melhorar […] a evoluir como profissionais e como pessoas” (contexto B); “É sempre bom um olhar de fora que nos alerte para as situações, que a gente possa conversar, partilhar ideias.” (contexto D).
Estratégias pedagógicas e sua intencionalidade
Compreendemos que, no domínio do meio físico e da organização da aprendizagem, as educadoras planificavam as atividades seguindo as Orientações Curriculares (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2016), optando frequentemente por uma metodologia indutiva que integrava a experiência e a curiosidade das crianças nas atividades. As profissionais referiram que é necessário criar oportunidades para proporcionar um desenvolvimento íntegro das crianças, como ilustra a citação: “Dentro das áreas de conteúdo, vamos definir objetivos, definir estratégias para as dificuldades encontradas no grupo. E essas dificuldades vão ser mais trabalhadas […] tem que ser tudo trabalhado” (contexto D).
E é igualmente necessário envolverem as crianças emocional/motivacionalmente, como refere a citação: “Quando eu vejo que está a ser uma pressão muito grande, faz no dia a seguir […] quero que elas aprendam o conteúdo daquela área, mas se emocionalmente elas também não estiverem bem…” (contexto A, excerto que remete para a dimensão controle emocional e comportamental).
Também se observaram oportunidades deste nível nos quatro contextos, o que vai ao encontro das metas de aprendizagem para o pré-escolar e reforça aspectos centrais do desenvolvimento da aprendizagem: o envolvimento das crianças no estabelecimento dos objetivos do dia, no planejamento das atividades, na informação sobre a acessibilidade de recursos de ajuda, na definição dos critérios de sucesso e avaliação e na discussão sobre como podem progredir, respeitando o percurso pessoal (CLARK, 2012).
As educadoras referiram frequentemente que a educação pré-escolar não deve ser sinônimo de escolarização, mas sim um tempo de promoção da literacia emergente de acordo com o interesse e ritmo das crianças (ONCUA; UNLUER, 2015; SANDVIK; DAAL; ADÈR, 2014), como compreendemos em: “O meu objetivo principal não é que eles saibam o abecedário ou que saibam contar de 1 a 10.” (contexto C); “Nem eu como educadora de infância tenho obrigação de ensinar a ler e a escrever.” (contexto A).
Os momentos de promoção da relação socioemocional, observados por diversas vezes, tendiam a reforçar as competências autorregulatórias, mas também se relacionavam com percepções elevadas de autoeficácia das crianças e com o feedback formativo da educadora (BANDURA, 1997; MÄÄTTÄ; JÄRVELÄ, 2013). A proximidade do adulto tornou-se, então, um reforço e um modelo no desenvolvimento da autorregulação nas crianças (PERELS et al., 2009). Complementarmente, os momentos de relação com os pares, sobretudo nas áreas temáticas, constituíram-se como oportunidades para adotar atitudes prossociais. De fato, a escola deve ser um lugar de experiências sociais (SANTOS; SILVA, 2016), mas vai além disso, uma vez que a criação deste tipo de oportunidades se torna, muitas vezes, um incremento na motivação para a autorregulação.
O caminho da autonomia dado a percorrer às crianças é particularmente relevante no modo como lhes é permitido se apropriarem das tarefas. O recurso ao private speech é mais evidente no tempo em pequenos grupos: a necessidade de recordar a si mesmo qual o objetivo a alcançar e quais os meios a mobilizar indicam o desenvolvimento da consciência metacognitiva (ZIMMERMAN, 2013) – dimensão controle cognitivo. O número de indicadores de motivação para a autorregulação do contexto B (Gráfico 1) pode contribuir para traçar considerações sobre a maturidade do grupo, já que todas as crianças têm 5 anos (contrariamente aos grupos multietários), mas a maioria das oportunidades desta dimensão foram observadas nas atividades em grande grupo (Tabela 2). Assim, vale a pena salientar a metodologia da educadora: “Um tempo específico da nossa rotina diária que é planear, fazer, rever.”
Dos quatro contextos, o contexto B é o único onde decorre um ensino explícito de estratégias de planejamento (SÁIZ; CARBONERO; ROMÁN, 2014; VEIGA SIMÃO, 2013). Já no contexto C, apesar de se ter observado um número considerável de indicadores de motivação para a autorregulação, a educadora não referiu a regulação das atividades diárias como uma prática recorrente. Todavia, as crianças têm oportunidade de escolher, duas vezes por dia, a atividade que pretendem realizar; os seus objetivos e meios são, como já vimos, particularmente autorregulados nestes momentos. Mas esta prática não parece ser intencional. O reforço emocional e a relação social são muito encorajados com o grupo de crianças e o tempo nas áreas temáticas é, por excelência, propício a tais oportunidades, como ilustra a citação: “Eu valorizo muito a relação. Acho que nesta idade é isso que fica” (contexto C).
De fato, em todos os contextos se verificou a possibilidade de as crianças escolherem a área onde vão brincar. Os materiais didáticos e a sua localização cumprem também uma função pedagógica, previamente determinada pelas educadoras, contrariando outras realidades onde a utilização dos brinquedos é pouco ponderada (KISHIMOTO, 2001).
Graus de liberdade na autorregulação de tarefas da educação pré-escolar
Na educação pré-escolar, as oportunidades devem permitir às crianças decidirem, em graus cada vez mais elevados, o quê, por quê, como, onde, quando e com quem desenvolvem as suas tarefas (Figura 6), ao invés de lhes serem prescritas atividades pelos educadores, por vezes pouco flexíveis (VEIGA SIMÃO, 2012). Estes graus efetivos de liberdade poderão proporcionar o desenvolvimento da aprendizagem do seguinte modo:
O quê? (dimensão das meta-aprendizagens ou objetivos de aprendizagem) O educador pode proporcionar oportunidades às crianças para optarem entre um vasto leque de hipóteses, como as áreas temáticas na sala. O adulto deve encorajar escolhas conscientes e intencionais nas várias atividades disponíveis que podem enriquecer a aprendizagem. Muitas crianças podem sentir-se perdidas entre tantas possibilidades e, por isso, o educador tem um papel essencial, não só em corresponder ao agrado da criança, mas também a promover atividades que desenvolvam as suas competências e conhecimento. Um exemplo sobre a diversificação do tipo de tarefas a abordar pelas crianças acontece no contexto C, onde as crianças experienciam duas áreas diferentes no mesmo dia.
Por outro lado, os educadores podem levar as crianças a se perguntarem sobre o que estão a desenvolver em determinada tarefa. Este autoquestionamento, decorrendo dos objetivos e controle das crianças, é essencial na automonitorização, autojulgamento, controle da ação e volição que são, entre outros, processos autorregulatórios.
Por quê? (dimensão da intencionalidade, do motivo) O papel do adulto deve ser o de promover oportunidades para as crianças encontrarem a razão pela qual querem desenvolver determinada tarefa, ou seja, levá-las a refletir sobre a justificação da sua escolha. Num momento observado no contexto B, a educadora pediu às crianças que ilustrassem uma refeição; enquanto o faziam, a educadora ia questionando: “Porque escolheste esses alimentos? Porque os desenhas dessa forma?”.
Como? (dimensão da decisão estratégica e das escolhas do método) O educador pode dar oportunidade às crianças de, por exemplo, escolher a área, os pares com quem pretendem interagir e os materiais a usar. A singularidade ou multiplicidade dos ambientes de aprendizagem onde as crianças desenvolvem o conhecimento e as suas competências depende, assim, delas próprias. Na presente investigação, este aspecto é particularmente saliente nos momentos em que as crianças escolhem a área e os colegas com quem brincam para dar continuidade a uma tarefa iniciada anteriormente. Daqui decorre a importância do planejamento estratégico e dos processos autorregulatórios relacionados.
Onde? (dimensão contextual da aprendizagem) Este aspecto refere-se à transversalidade dos ambientes de aprendizagem que podem ser potenciados pelos educadores. O fato de considerarmos, aqui, outras atividades é prova disso mesmo: uma ida à biblioteca, uma visita de estudo ou uma experiência científica fora da sala são oportunidades que facilitam a partilha, a colaboração e as atitudes prossociais. Não obstante a validade destas atividades maioritariamente propostas pelos educadores, as crianças devem ser envolvidas na sua escolha, na organização e na estruturação do ambiente.
Quando? (dimensão temporal da aprendizagem) A aprendizagem desenvolve-se num maior ou menor espaço de tempo e os resultados desejados podem estar próximos ou requerer um período de tempo alargado. Considerando este fato, os educadores devem propor às crianças desafios que sejam temporalmente diferentes. No contexto C, faz-se o registo do fim de semana à segunda-feira. É expectável que as crianças desempenhem esta tarefa no espaço de tempo correspondente àquele dia. Já o trabalho de grupo sobre os planetas, desenvolvido no contexto B, foi concluído ao longo da semana. Sobretudo em tarefas que integram diversos momentos (no trabalho de grupo: escolha do tema, pesquisa, seleção da informação, preparação do suporte de apresentação, ensaio e apresentação em grupo), a necessidade de desenvolver estratégias de controle do tempo é um ponto crítico para uma gestão eficaz.
Mas este aspecto relaciona-se também com o desenvolvimento e a maturidade emocional das crianças, uma vez que é necessário respeitar os ritmos de realização de cada um em tarefas idênticas. Por exemplo, quando da realização da prenda do dia do pai (contexto D) e na elaboração de grafismos (contexto A), as educadoras oportunizaram a motivação para a autorregulação, sublinhando o planejamento e a gestão do tempo como processos autorregulatórios essenciais.
Com quem? (dimensão social da aprendizagem) Os educadores podem dar oportunidade às crianças de escolher, por exemplo, entre desenvolver a sua aprendizagem através de interações formais ou informais, com o educador ou os pares. As escolhas que as crianças fazem em relação a estarem sozinhas ou interagirem de forma colaborativa relacionam-se com a forma como elas próprias percebem a aprendizagem. Elas podem perceber o adulto com diferentes papéis: alguém a quem eu posso recorrer para pedir ajuda ou alguém que, simplesmente, está presente, mas a quem eu raramente recorro. Este aspecto pode, inclusivamente, influenciar a aprendizagem e a forma como as crianças regulam as tarefas.
Nos quatro contextos estudados, as educadoras assumem um papel de recurso no tempo das áreas temáticas, interferindo o menos possível e permitindo a interação livre entre as crianças, que reforça a percepção de um ambiente socialmente inclusivo. Neste caso, os processos autorregulatórios estão relacionados, por exemplo, com a seleção de modelos e a procura de ajuda.
Considerações finais
Esta investigação foi uma oportunidade de reflexão acerca da educação pré-escolar em Portugal, tendo pretendido conhecer as percepções dos educadores sobre as práticas que promovem a autorregulação de tarefas e identificar as práticas educativas que criam oportunidades para as crianças autorregularem as tarefas.
Uma vez que nos sistemas de educação formal os objetivos de aprendizagem são necessários, os educadores devem procurar promover graus de liberdade e oportunidades para os aprendentes efetuarem tomadas de decisão pessoais. Elas são centrais para que as crianças possam regular o seu processo de aprendizagem. É tarefa dos educadores explorar os objetivos pedagógicos adaptados a cada faixa etária e compreender que a sua mera aplicação não significa necessariamente que as crianças estão a construir conhecimento. Assim, os educadores devem estar preparados para reconstruir e refletir sobre a sua prática, articulando diferentes interesses e necessidades das crianças, contextos, realidades e a sua intencionalidade pedagógica (MONÇÃO, 2017). Como educadores, num sentido mais lato, devem estar atentos à direção dada às tarefas educacionais e às metas a alcançar.
Por forma a dar uma resposta adequada aos objetivos pedagógicos, consideramos que a proporção adultos/crianças em sala deveria ser revista no âmbito da legislação em vigor. Foi evidente o efeito do reforço emocional na relação entre crianças e adultos, já que a relação de maior proximidade se constituiu num aumento da percepção de autoeficácia das crianças. Por outro lado, um trabalho diferenciado em pequenos grupos parece permitir uma melhor monitorização por parte do adulto e a criação de mais oportunidades de regulação das tarefas pelas crianças. Compreendemos ainda a necessidade de formação contínua dos educadores de infância sobretudo na área da promoção de competências autorregulatórias. As participantes reconheceram nesta iniciativa uma oportunidade para serem acompanhadas na sua experiência profissional. Refletindo sobre as estratégias de ensino e aprendizagem, o seu percurso pessoal e as expectativas de futuro, receberam feedback sobre as suas percepções e práticas.
Assumimos algumas limitações que decorrem dos critérios definidos pelos investigadores neste estudo. Assim, ainda que se pudesse ponderar a inclusão de mais um observador ou a utilização de equipamentos vídeo e/ou áudio, não se pode desconsiderar o investigador como um elemento imbuído no contexto. Só através da familiaridade com a rotina dos grupos foi possível confirmar os dados e tornar esta metodologia transferível para outros contextos, na medida em que se procurou compreender as percepções e comportamentos dos participantes. Como sugestões de futuro, pode equacionar-se a formação de equipes de intervisão ou de articulação com outras entidades para promover a reflexão-ação sobre as práticas na educação pré-escolar.