No Brasil, conta-se com um aparato legal que assegura o direito à educação infantil como primeira etapa da Educação Básica, organizada em creches para as crianças de zero a três anos e em pré-escolas para as crianças com quatro e cinco anos. A Constituição Federal (CF) de 1988 ( BRASIL, 1988 ) prevê aos trabalhadores a assistência gratuita para seus filhos e dependentes, desde o nascimento até os seis anos em creches e pré-escolas (art. 7º, XXV) e o dever do Estado com a garantia de atendimento dessas crianças (art. 208, inciso IV), sendo competência dos municípios, em cooperação técnica e financeira com a União e os estados, a sua oferta (art. 29, IV). Desde então, tem-se a configuração de uma legislação que norteia e dá sustentação à formulação e à implantação de políticas públicas, destacando-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, LDBN nº 9.394/1996), os Planos Nacionais de Educação (BRASIL, Lei n° 10.172/ 2001 e Lei nº 13.005/ 2014), o Marco Legal da Primeira Infância (BRASIL, Lei nº 13.257/2016), dentre outras normatizações que estabelecem parâmetros que devem ser atendidos no que se refere à garantia de educação das crianças pequenas.
Com a CF/88 é reconhecido o dever do Estado de garantir o acesso à creche como direito da criança, etapa que passa a integrar a Educação Básica com a promulgação da LDBN nº 9.394/1996, deixando de estar vinculada à área de assistência social. Quanto à pré-escola, o atendimento é obrigatório e gratuito para todas as crianças de quatro e cinco anos, desde a aprovação da Emenda Constitucional nº 59/2009, conforme o artigo 208, inciso I, que prevê “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” ( BRASIL, 2009 ). Até 2005, essa etapa abrangia as crianças de seis anos de idade, as quais passaram a ser atendidas no ensino fundamental, conforme dispõem as leis n.º 11.114/2005 e n.º 11.274/2006 3 .
Em consonância com a legislação, o Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2014 a 2024, aprovado por meio da Lei 13.005, de 24 de junho de 2014, estabeleceu o ano de 2016 como prazo para cumprimento da universalização do atendimento na pré-escola para as crianças de quatro a cinco anos de idade e previu ampliar a oferta de educação infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até três anos até o final de sua vigência.
Estudos que se voltam a análises dos dados disponíveis quanto ao atendimento na educação infantil revelam que, apesar da tendência à expansão, há uma demanda não atendida, em especial em creches, e evidenciam, também, condições desiguais de acesso, seja em relação às regiões e aos estados brasileiros, seja em relação às características socioeconômicas, de raça e de gênero das crianças. ( PINTO, 2009 ; FERNANDES; DOMINGUES, 2017 ).
O cumprimento das metas estabelecidas no PNE e o enfrentamento das desigualdades no atendimento recaem preponderantemente sobre os municípios, a quem cabe prioritariamente a responsabilidade na oferta da educação infantil 4 , embora esses entes federados apresentem, em sua maioria, ausência de uma estrutura de gestão e planejamento, como indicam os dados analisados por Pinto (2014) .
São esses os entes federados que já assumem o maior número de matrículas, o que evidenciam os dados de sua distribuição, por dependência administrativa da escola. De acordo com o Censo Escolar 2016, em creche os municípios atendiam a 64,2% das matrículas, embora as instituições privadas tivessem uma participação de 41,0% no número de escolas. Na pré-escola, as redes municipais abrigavam 74,6% das matrículas e as instituições privadas, 24,3%. (INEP; Sinopse do Censo Escolar, 2016).
Universalizar o atendimento para quatro e cinco anos de idade é uma meta ainda não cumprida e a ampliação do atendimento das crianças de até três anos vem se dando em um ritmo que não permite supor a oferta de creches para no mínimo 50% da população dessa faixa etária até 2024.
Em 2015, tendo em conta os dados populacionais do IBGE/Pnad 5 e os dados de matrícula do Inep/Censo Escolar, no Brasil, o percentual de atendimento na pré-escola era de 93,93%, conforme dados da Tabela 1 , o que revela uma defasagem que girava em torno de 6% e que representava mais de 300 mil crianças não atendidas.
Faixa etária | Quantidade de crianças | Total de matrículas | % |
---|---|---|---|
04 anos | 2.620.426 | 4.923.158 | 93,93 |
05 anos | 2.620.988 | ||
Total | 5.241.414 |
Fontes: IBGE/Pnad, 2015; INEP/Censo Escolar, 2015.
Com base nas mesmas fontes, IBGE/Pnad e Inep/Censo Escolar, em creches o percentual de atendimento no país, em 2015, era de 29,54%, como informam os dados da Tabela 2 , quantitativo que ilustra a dimensão do desafio que se tem para oferta desse segmento da educação infantil, mesmo que se considere que a demanda real por vagas seja menor do que a totalidade de crianças na faixa etária de 0 a 3 anos.
Faixa etária | Quantidade de crianças | Total de matrículas | % |
---|---|---|---|
Menos de 01 ano | 2.514.012 | 3.049.072 | 29,54 |
01 ano | 2.588.944 | ||
02 anos | 2.622.680 | ||
03 anos | 2.595.396 | ||
TOTAL | 10.321.032 |
Fontes: IBGE/Pnad, 2015; Inep/Censo Escolar, 2015.
No caso do estado de São Paulo, embora com uma situação superior à média nacional, essa configuração da oferta se repete. Considerando o atendimento nos 645 municípios do estado, em 2015, a porcentagem de crianças de 4 e 5 anos na escola era de 93,8% e na creche 43,5% (Fonte: IBGE/Pnad, 2015), “o que não significa um cenário positivo, dadas as disparidades regionais existentes”. ( FERNANDES; DOMINGUES, 2017 , p. 148).
Além de se considerar o número de crianças que não frequentam a escola, há que se ter em conta que parte do atendimento propiciado pelos municípios não vem se dando por meio de matrículas diretas na rede pública, mas sim por meio de convênios com instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, em especial nas creches, como revelam estudos que tratam de modalidades de atendimento da educação infantil por meio de parcerias e/ou convênios entre municípios e instituições externas ao aparelho estatal ( FLORES, 2007 ; SUSIN; PERONI, 2011 ; BORGHI; ADRIAO; GARCIA, 2011; CASAGRANDE, 2012 ; FLORES; SUSIN, 2013 ; SOARES; FLORES, 2014 ; ALMEIDA, 2014 ; FERNANDES; DOMINGUES, 2017 ).
Evidencia-se a preponderância de atendimento não público em creches quando se observam os dados de matrícula na educação infantil por dependência administrativa, no Brasil, em 2014 (Inep/Censo Escolar 6 ), conforme Gráfico 1 .
No caso do estado de São Paulo, Fernandes e Domingues (2017) , ao tratarem da expansão da educação infantil, apresentam dados do período 2007-2012, aqui reproduzidos:
Fonte: Fundação Seade (Ministério da Educação – MEC/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – Inep. Censo Escolar) – Elaboração Fernandes e Domingues (2017) .
Tendo em vista as metas do PNE, Tripodi (2016) analisa tendência de oferta da educação infantil pelo setor público não estatal, via convênios, sob a hipótese de:
[...] que os municípios tenderão a intensificar algumas formas de governança que já vêm se delineando e que privilegiam a forma de atuação dos governos em parceria com o setor público não estatal, nos termos definidos pelo Pdrae 7 (1995) para atendimento desse estrato da educação básica. Motivados estes, principalmente, por três fatores, a saber: i) presença de um federalismo de colaboração impreciso, em que as bases cooperativas da União para com os municípios não estão claramente definidas; ii) natureza arrojada das metas da educação infantil destinadas aos municípios, num contexto de recursos escassos e de menor capacidade institucional; iii) edição da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, publicada um mês após a Lei nº 13.005/2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros, entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público. ( TRIPODI, 2016 , p. 289).
Compartilhando dessa hipótese, há também que se considerar que o próprio PNE aventa possibilidades de parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, como, por exemplo, ao prever como uma das estratégias para consecução da meta de expansão do atendimento da educação infantil (Meta 1): “articular a oferta de matrículas gratuitas em creches certificadas como entidades beneficentes de assistência social na área de educação com a expansão da oferta na rede escolar pública” (BRASIL, PNE, 2014, p. 2).
Como observa Dourado (2016) , em estudo que analisa o PNE 2014-2024,
Várias estratégias traduzem o escopo do embate entre oferta pública e privada [...] como o delineamento de parcerias entre instituições públicas e instituições comunitárias, confessionais e filantrópicas, resultante dos grandes embates na tramitação do PNE. Como se efetivarão essas políticas? Não resta dúvida de que o financiamento e, por decorrência, o fundo público são um campo em disputa no cenário de materialização do Plano. ( DOURADO, 2016 , p. 29).
Tal conjuntura leva à suposição de que os municípios, para responderem às demandas por vagas na educação infantil, particularmente em creches, tenderão a manter ou, até mesmo, a intensificar, o acolhimento de alternativas de conveniamento com instituições privadas na formulação das políticas para oferta da etapa.
Nesse contexto é que identificamos a oportunidade de pesquisa que se alvitrou a analisar as proposições presentes nos Planos Municipais de Educação (PMEs) dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) 8 , no que se refere às metas de expansão da educação infantil e às modalidades de atendimento propostas para o cumprimento das metas, tal como estabelecida nos Planos.
O recorte geográfico deveu-se ao fato da RMSP concentrar o maior número de pessoas do estado e, consequentemente, ser o maior conglomerado populacional do país, composto por 39 municípios, quais sejam: Arujá, Barueri, Biritiba-Mirim, Caieiras, Cajamar, Carapicuíba, Cotia, Diadema, Embu das Artes, Embu-Guaçu, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Franco da Rocha, Guararema, Guarulhos, Itapecerica da Serra, Itapevi, Itaquaquecetuba, Jandira, Juquitiba, Mairiporã, Mauá, Mogi das Cruzes, Osasco, Pirapora do Bom Jesus, Poá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Salesópolis, Santa Isabel, Santana de Parnaíba, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, São Lourenço da Serra, São Paulo, Suzano, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista. Juntos, esses municípios totalizavam aproximadamente 22 milhões de habitantes em 2015, o que representa mais de 10% da população brasileira no referido ano. Além disso, proposições encaminhadas pelos grandes municípios tendem a ser tomadas como referência para o delineamento de políticas públicas, contemplando também as políticas educacionais, o que permite supor a tendência de que sejam replicadas alternativas adotadas no âmbito das redes de ensino dos municípios da RMSP, por outros municípios do estado.
No presente artigo é apresentado o mapeamento das metas de expansão e das estratégias estabelecidas nos planos desses municípios, identificando-se as expectativas de oferta explicitadas e as alternativas previstas para o cumprimento das metas de expansão. Essas informações são analisadas na interface com dados concernentes aos recursos financeiros de cada um deles, com o propósito de problematizar condições das municipalidades para implementação da meta referente à Educação Infantil, no que tange à expansão do atendimento. Para tanto foram coletados dados fiscais do ano de 2014. Por fim, são apresentadas considerações a respeito das tendências evidenciadas nos planos analisados.
Procedimento de estudo
Os PMEs constituíram-se a fonte de informações relativa ao planejamento da expansão da educação infantil nos municípios da RMSP, tendo sido coletados por meio de consulta ao portal PNE em Movimento, do Ministério da Educação 9 .
Para cumprir com o propósito anunciado neste artigo, coletamos inicialmente, nos Planos, informações concernentes às matrículas existentes para a creche e a pré-escola, em território municipal, com o intuito de identificar a responsabilidade da rede municipal de educação na cobertura, número de estabelecimentos que atendem à educação infantil e metas e estratégias relativas à expansão da oferta desta etapa educacional.
Os 39 municípios que compõem a RMSP têm algum documento disponível no referido portal, sendo que 30 deles disponibilizaram a Lei e o Anexo neste sítio, cinco somente a Lei e quatro apenas o Anexo, à época da consulta. Visando à obtenção dos Planos de todos os municípios que integram a Região, consultamos os sites das prefeituras, câmaras municipais e/ou secretarias de educação dos municípios, cujos documentos não foram encontrados no portal PNE em movimento. Essa consulta resultou na integração de mais dois Anexos no corpus do estudo.
O acesso aos Anexos constituiu-se procedimento fundamental, pois é esse documento que contém, em linhas gerais, o diagnóstico da educação municipal, as diretrizes municipais para a educação, bem como as metas e estratégias previstas para cada etapa da educação básica e para o ensino superior. Desse modo, são analisados neste artigo 36 planos cujos Anexos foram encontrados.
O acesso aos documentos revelou diversidade de informações disponíveis acerca do planejamento municipal para expansão do atendimento da educação infantil, com diferentes níveis de abrangência e detalhamento. Portanto, as apreciações apresentadas neste artigo revelam tendências cujo aprofundamento demanda estudos posteriores que contemplem ampliação de fontes de consulta.
Para a apresentação de um panorama do atendimento à educação infantil no país, apresentadas na introdução deste texto, foram utilizadas informações disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), além das constantes nos Planos Municipais de Educação dos municípios da RMSP.
O diagnóstico que embasou o dimensionamento da meta de expansão
Ao considerar que uma das condições para que se tenham elementos para análise das proposições dos Planos é a presença de diagnóstico que permita o cotejamento entre a situação vigente à época de sua elaboração e as prospecções apresentadas, registra-se que essa apreciação fica prejudicada para a totalidade dos municípios estudados no presente estudo, na medida em que se dispõem de 36 Anexos dos 39 Planos dos municípios. Além disso, nem todos os documentos apresentam diagnóstico da situação educacional do município ou, ainda, disponibilizam-no de forma precária, como veremos a seguir.
No que tange às matrículas, dos 36 planos analisados, apenas 21 registram o número de crianças atendidas na creche e na pré-escola, sendo que quatro não indicam o ano ao qual o dado se refere (Biritiba-Mirim, Cajamar, Ferraz de Vasconcelos e Franco da Rocha), um apresenta dados de 2010 (Cotia), quatro de 2013 (Arujá, Barueri, Jandira e São Caetano do Sul), sete de 2014 (Itapecerica da Serra, Mairiporã, Mogi das Cruzes, Rio Grande da Serra, Salesópolis, Santa Isabel e São Lourenço da Serra) e cinco (Carapicuíba, Embu-Guaçu, Guararema, Santana de Parnaíba e Taboão da Serra), de 2015. As fontes utilizadas pelas municipalidades, para a coleta das informações referentes às matrículas, foram variadas: Inep/Censo Escolar; Fundação Seade; Portal de Gestão Dinâmica de Administração Escolar (GDAE), pertencente à Secretaria de Estado da Educação de São Paulo; e, ainda, informações organizadas pelo próprio município.
Em relação às matrículas é preciso registrar que 16 dos 21 municípios indicam o total de crianças atendidas por dependência administrativa e cinco informam apenas o total de matrículas existentes no município, sem mencionar o que cabe a cada dependência.
Dentre os 21 municípios, somente três indicam as matrículas existentes em instituições conveniadas com o poder público (Carapicuíba, Ferraz de Vasconcelos e Mogi das Cruzes). Possivelmente o número de matrículas conveniadas não expresse a real abrangência dessa prática, considerando que tem sido usual, por parte dos municípios, o registro de matrículas mantidas pelo poder público, em instituições privadas, como matrículas municipais.
Ainda em relação a esses municípios, apenas 13 informam o percentual ou o número de crianças atendidas na educação infantil, em relação ao total de crianças de zero a cinco anos existentes em seus territórios, sendo que 10 se referem à creche e à pré-escola, dois somente à creche e um não separa as duas etapas.
A creche é a modalidade mais prejudicada em relação à oferta e atendimento, sendo que somente três dos 13 municípios atendiam mais de 50% das crianças dessa faixa etária nos anos de 2013, 2014 e 2015, conforme dados constantes no diagnóstico apresentado pelos PMEs. Cabe destacar, também, que no caso das creches seria pertinente a consideração da demanda manifesta (cuja família procurou a vaga) e da demanda potencial (número de crianças existente no município), o que usualmente não foi especificado nos planos ou foi tratado de modo equivocado. Ilustra essa última constatação o caso de um município que estabelece como uma das estratégias para a expansão da oferta na pré-escola “garantir a continuidade de 100% da demanda manifesta dos alunos de 4 (quatro) e 5 (cinco) anos – Pré-escola” (PME/Barueri). Sendo a pré-escola obrigatória, é dever do Estado buscar todas as crianças desta faixa etária que estão fora dela, ou seja, atender apenas a demanda manifesta é o mesmo que não atender todas as crianças e, portanto, não cumprir com a universalização.
Essas constatações evidenciam que o documento de planejamento publicado e disponibilizado à sociedade carece, em vários municípios, de elementos que permitam aquilatar o esforço e empenho da gestão municipal, a ser despendido, para cumprimento do direito à educação desta etapa da Educação Básica, pois sequer constam dados que apoiem o exame da relação entre oferta, demanda e metas de expansão.
Em documento elaborado pelo Ministério da Educação/Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (MEC/SASE, 2015), com vistas a embasar o movimento de constituição do Sistema Nacional de Educação (SNE), há menção à necessária articulação entre os planos nacional, estaduais e municipais de educação para a efetivação do SNE. É ressaltado, no entanto, a importância de que os planos subnacionais contemplem proposições que tenham como referência os contextos locais, requisito fundamental para garantir realismo e viabilidade aos planos e, no limite, a concretização do direito à educação.
No entanto, a análise dos PMEs no que se refere ao planejamento da expansão da educação infantil evidenciou ter sido dominante a postura de reproduzir as metas do PNE 2014-2024, apesar de alguns apresentarem pequenas diferenças em relação ao documento nacional.
Além da tendência de não indicação de metas próprias de expansão, em especial no que se refere às creches, em que se tem dados que indicam uma grande demanda não atendida ( FERNANDES; DOMINGUES, 2017 ), os Planos não contemplam, na meta referente à etapa, iniciativas diferenciadas tendo em conta desigualdades locais de acesso das crianças à educação infantil, seja em decorrência de seu nível socioeconômico ou de raça e gênero, à exceção do PME do município de Cotia que trata da diversidade étnico-racial e da garantia da construção de prédios específicos para essa etapa educacional, respeitando a diversidade e o contexto local. Em outros 24 PMEs há estratégias distribuídas em outras metas dos Planos, voltadas especialmente para as questões étnico-raciais e para a educação do campo, em sua maioria, relacionadas com a construção do currículo para a educação básica como um todo e com a aquisição de materiais didático-pedagógicos.
Estratégias previstas para expansão da oferta da educação infantil
Quanto à expansão da oferta, 30 municípios apresentam em seus Planos estratégias gerais para a educação infantil como um todo e/ou específicas para a creche e/ou pré-escola. A análise dos Planos desses 30 municípios revelou que 24 deles preveem estratégias específicas para a creche, o que sugere uma atenção dos municípios em esclarecer as medidas que pretendem tomar para dar conta da expansão desse segmento. Em outros seis registram-se estratégias específicas para a pré-escola. Destaque-se que cinco municípios apresentaram apenas estratégias gerais que envolvem a etapa como um todo. ( Tabela 3 )
Estratégias de expansão da Lei | Municípios |
---|---|
Estratégias gerais para EI | 5 |
Estratégias gerais para EI e específicas para creche | 18 |
Estratégias gerais para EI e específicas para pré-escola | 1 |
Estratégias gerais para EI e específicas para creche e pré-escola | 3 |
Estratégias específicas para creche e pré-escola | 2 |
Estratégias somente para creche | 1 |
Total de Municípios | 30 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
As estratégias que receberam o maior número de indicações nos Planos, independentemente se as mesmas foram definidas especificamente para a creche ou pré-escola, ou, ainda, se não houve menção explícita para qual segmento estavam sendo pensadas foram: i) ampliação da rede física por meio de regime colaborativo com a União e o Estado/ Participação em programas do governo federal e/ou estadual e ii) ampliação de vagas por meio da articulação de matrículas na rede direta e em instituições conveniadas. A estratégia de construção e/ou ampliação das unidades por meio do uso de recursos próprios dos municípios foi indicada poucas vezes, tendo sido apresentada de forma articulada com outras estratégias em alguns municípios, o que parece evidenciar as dificuldades das municipalidades em investir de forma financeiramente autônoma na expansão da etapa. Alguns Planos mencionam, ainda, o uso de recursos privados para construir e/ou ampliar as unidades educacionais. Na Tabela 4 , registramos a quantidade de indicações dessas e de outras estratégias relativas à expansão da oferta de educação infantil nos Planos analisados.
Estratégias | Indicações | |||
---|---|---|---|---|
somente para creche | somente para pré-escola | que não especificam o segmento | total por tipo de estratégia | |
Ampliação da rede física por meio de regime colaborativo com a União e o Estado/Participação em programas do governo federal e/ou estadual | 8 | 3 | 19 | 30 |
Ampliação por meio da articulação de matrículas na rede direta e em instituições conveniadas | 17 | 0 | 2 | 19 |
Construir e/ou ampliar unidades, mas não informa com quais recursos | 3 | 2 | 3 | 8 |
Construir e/ou ampliar com recursos próprios | 3 | 2 | 1 | 6 |
Construir e/ou ampliar com recursos da iniciativa privada | 1 | - | 2 | 3 |
Construir e/ou ampliar com recursos públicos, mas não informa a fonte | - | - | 1 | 1 |
Ampliar o atendimento com matrículas em creches no período noturno | 1 | - | - | 1 |
Ampliar o número de vagas em creches públicas da rede direta | 1 | - | - | 1 |
Priorizar o atendimento na pré-escola | - | 1 | - | 1 |
Redução de jornada da EI para ampliar número de vagas | - | - | 1 | 1 |
Total de indicações | 34 | 8 | 29 | 71 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Como se pode notar, a necessidade de colaboração dos estados e da União com os municípios para que eles consigam cumprir com as metas de expansão é indicada em boa parte dos Planos municipais. A análise desses documentos não nos permitiu precisar qual o montante de recursos financeiros previsto pelos municípios para dar conta da meta e respectivas estratégias, o que seria indispensável para aquilatar em que medida as municipalidades têm, de fato, condições de levá-las a cabo.
Para uma consideração exploratória dessa questão, buscamos inferir a capacidade financeira dos municípios para concretizar as metas de expansão da educação infantil, com base nos dados fiscais do ano de 2014, nos quais se supõe que as Secretarias tenham se baseado para a elaboração de suas estratégias educacionais, dado que a maioria dos Planos iniciou sua vigência em 2015, atentando-se para o fato de que a receita dos municípios destina-se a diferentes áreas da gestão pública, dentre elas a educação.
Os dados fiscais foram coletados no Portal meumunicipio.org.br e se referem à: Receita Tributária (que diz respeito aos valores arrecadados pelo próprio município); Receitas Intergovernamentais (concernentes aos repasses realizados pelo estado e pela União); e o Indicador Resultado Fiscal (que “mede o percentual que a prefeitura conseguiu economizar ou que gastou a mais frente a receita total” 10 ). Na Tabela 5 , estão listadas essas informações para cada município, com exceção de quatro deles, para os quais não estava disponibilizada a informação para o ano de 2014, ano anterior à aprovação dos PMEs, quais sejam: Biritiba-Mirim, Itapevi, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista. 11
Municípios | Receita tributária | Receita de transferências intergovernamentais | Resultado Fiscal do Município |
---|---|---|---|
Salesópolis | 6,57% | 89,10% | -12,40% |
Francisco Morato | 9,49% | 78,86% | -5,85% |
Rio Grande da Serra | 10,99% | 79,21% | -70,10% |
Ferraz de Vasconcelos | 11,50% | 78,00% | -6,38% |
Embu-Guaçu | 12,09% | 80,87% | -6,81% |
Pirapora do Bom Jesus | 12,44% | 80,62% | -2,45% |
Juquitiba | 12,68% | 70,32% | -6,24% |
Embu das Artes | 13,49% | 63,84% | 2,70% |
Guararema | 13,85% | 80,53% | 1,39% |
Franco da Rocha | 13,96% | 72,10% | 3,11% |
Itapecerica da Serra | 14,44% | 73,99% | 0,57% |
Santa Isabel | 14,89% | 73,98% | -2,16% |
Mauá | 16,67% | 60,81% | -0,87% |
Jandira | 17,25% | 63,23% | 10,62% |
São Lourenço da Serra | 18,38% | 71,14% | -5,43% |
Suzano | 20,14% | 66,68% | 5,07% |
Mairiporã | 20,75% | 62,65% | 0,55% |
Ribeirão Pires | 21,40% | 64,90% | -6,53% |
Diadema | 23,32% | 58,97% | -3,80% |
Carapicuíba | 23,62% | 65,74% | -0,36% |
Caieiras | 24,37% | 63,79% | 1,52% |
Guarulhos | 25,01% | 57,55% | -4,66% |
Mogi das Cruzes | 25,11% | 64,18% | 10,78% |
Arujá | 25,76% | 65,64% | 0,14% |
Cotia | 25,87% | 56,44% | 19,18% |
Cajamar | 26,41% | 62,50% | 5,53% |
São Bernardo do Campo | 27,50% | 57,60% | -2,34% |
Itaquaquecetuba | 29,66% | 59,48% | 19,44% |
São Caetano do Sul | 31,55% | 49,43% | -1,18% |
Santo André | 32,26% | 41,99% | -5,30% |
Santana de Parnaíba | 35,27% | 52,10% | 12,83% |
Osasco | 36,88% | 49,34% | -6,25% |
Barueri | 42,11% | 52,75% | 3,96% |
São Paulo | 50,51% | 33,33% | -4,18% |
Poá | 51,79% | 42,63% | 1,97% |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Dos 35 municípios, cujos dados fiscais de 2014 estavam disponíveis à época da consulta, 33 (94,28%) tinham um percentual de arrecadação própria menor que o percentual recebido do estado e da União, o que indica sua fragilidade financeira para dar conta das obrigações nas diversas áreas. Apenas São Paulo e Poá tiveram uma arrecadação própria maior que os repasses efetuados pelos demais entes federados. Ainda assim, o primeiro gastou além de sua Receita Total, como podemos observar no Indicador Resultado Fiscal que, no caso desse município, ficou negativo.
Além de São Paulo, outros 18 municípios também ficaram negativados ao final de 2014, sendo que Salesópolis registrou o maior percentual de gasto além do que realmente tinha. Observe-se que esse município é o que registrou o menor percentual de recursos próprios, tendo sua Receita Total composta por, praticamente, 90% de recursos do estado e da União.
Cabe destacar que o Fundeb compõe a chamada Receita de Transferências Intergovernamentais. Esse Fundo, destinado apenas à educação básica, tem como objetivo complementar os recursos financeiros municipais para atender às demandas relacionadas à educação. No entanto, ao que parece, os valores ainda estão longe de dar conta desse propósito. No que tange aos municípios analisados, dois não receberam repasse do Fundo em 2014. Em um deles, o Fundeb representa menos de 10% da receita supracitada. Em nove municípios o percentual vai de 11% a 20%. Em 17, o percentual varia de pouco mais de 20% a 25% e, nos cinco restantes, de 30% a 39%.
Os dados fiscais apresentados revelam a necessidade do fortalecimento do regime de colaboração entre municípios, estados e União para o cumprimento das metas estabelecidas nos PMEs, o que explica a menção, nos Planos, de ações de ampliação da rede física por meio de regime colaborativo com os demais entes federados e a participação em programas do governo federal e/ou estadual. Entretanto, a referência de forma genérica sugere a fragilidade das estratégias previstas para cumprimento das metas de expansão da educação infantil, na medida em que não há mecanismos estáveis de encaminhamentos de ações conjuntas e colaborativas entre os entes federados, embora haja indicações nesse sentido na Lei nº 13.005/2014.
Essa Lei, ao prever a atuação em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, visando ao alcance das metas e à implementação das estratégias do PNE, prescreve em seu Artigo 7 º, que trata do regime de colaboração, algumas iniciativas que se constituem em condição para que se efetive essa perspectiva. Vale destacar o que prevê alguns dos parágrafos do referido Artigo:
§ 5º Será criada uma instância permanente de negociação e cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
No mesmo artigo da citada Lei afirma-se serem necessárias iniciativas locais nessa direção:
§ 6º As estratégias definidas no Anexo desta Lei não elidem a adoção de medidas adicionais em âmbito local ou de instrumentos jurídicos que formalizem a cooperação entre os entes federados, podendo ser complementadas por mecanismos nacionais e locais de coordenação e colaboração recíproca. (BRASIL, Lei 13.005/2014, Artigo 7º).
Retomando as estratégias indicadas pelos municípios para dar conta da expansão da educação infantil, cabe ainda destacar, que o estabelecimento de convênios com instituições privadas filantrópicas, confessionais e /ou comunitárias foi a estratégia indicada para cumprir a meta de expansão da oferta e do atendimento da etapa que recebeu o segundo maior número de indicações: 17 direcionadas especificamente para a creche, duas para a pré-escola e duas para a educação infantil como um todo.
Essa forma de encaminhamento pode resultar na ampliação de vagas com foco na quantidade e não na qualidade do atendimento às crianças pequenas. Ao tratarem do impacto dessa opção política por parte dos gestores municipais, Flores e Susin (2013) destacam que esse tipo de alternativa precisa ser adequadamente analisado, pois, em caso do não atendimento aos preceitos constitucionais de gratuidade, laicidade e qualidade por parte das instituições conveniadas, não estaria ocorrendo, de fato, uma democratização do direito à educação infantil.
Pesquisas têm evidenciado que, usualmente, os indicadores de atendimento das instituições conveniadas são piores do que as do setor público, como já referenciado neste artigo. Ilustram essa constatação os resultados de auditoria do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, que comparou condições das creches conveniadas com as unidades geridas diretamente pela secretaria de educação, cujos resultados foram divulgados no Relatório de Auditoria do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (PROCESSO Nº: 72.006.390.16-71, de 2017), que realça a precariedade que tem marcado esse tipo de atendimento. 12 A auditoria teve “por objeto avaliar como se desenvolve a operacionalização da Educação Infantil, visando a qualidade educacional, com foco na Rede Conveniada.” ( SÃO PAULO, 2017 , p. 3).
Com base em evidências coletadas, o Relatório registra que, em média, há piores condições de oferta da educação em creches conveniadas do que as disponíveis nos estabelecimentos da rede direta, indicando, dentre outras dimensões: proporção inadequada de alunos por professor, maior número de professores com formação inadequada, menores salários, maior rotatividade de pessoal e precariedade de infraestrutura dos prédios escolares. Em conclusão, há o seguinte registro:
Diante desse contexto, concluímos que a educação infantil no município de São Paulo apresenta anomalias no desenvolvimento das ações do processo educativo, com diferenças na operacionalização entre as redes direta e conveniada. (SÃO PAULO, 2017, p. 68).
A situação constatada no município de São Paulo possivelmente não é peculiar do que tendencialmente resulta da opção em ofertar educação infantil, em especial creches, por meio da privatização de sua oferta. Daí ser preocupante a proposição dessa alternativa de atendimento da população infantil em muitos dos Planos municipais, apontando como perspectiva a permanência e a ampliação dessa prática no âmbito da educação pública.
Indicações finais
As informações trazidas neste artigo, relativas às proposições presentes nos Planos Municipais de Educação dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo, permitem traçar um panorama de como vem se projetando a expansão do atendimento a educação infantil nestas localidades.
Com base nos elementos coletados nos Planos, é possível afirmar que, em geral, esses carecem de informações que os apoiem e deem evidências de articulação entre o diagnóstico do contexto, as metas de expansão estabelecidas e as respectivas estratégias a serem mobilizados para sua consecução.
Quanto às metas de expansão estabelecidas nos Planos, foi possível evidenciar convergência na reprodução do que está previsto no PNE, não se dispondo de elementos suficientes que permitam estimar o que o seu alcance representará em termos de garantia do direito à educação das crianças residentes nos municípios. Nota-se tendência a registros incompletos e/ou imprecisos das demandas municipais e precariedade de referências aos contextos locais, incluindo-se, nessa lacuna, a ausência de informações quanto às condições desiguais de acesso, seja em relação à distribuição geográfica, seja em relação às características socioeconômicas, de raça e de gênero das crianças.
As estratégias elencadas para alcance das metas estabelecidas reiteram a percepção de fragilidade das proposições delineadas para cumprimento da expansão do atendimento dessa etapa da Educação Básica. As indicações, de modo dominante, referem-se à construção de novas unidades de ensino e/ou reforma das já existentes, todavia, o principal – quando não o único – caminho apontado para essa realização é a participação em programas do governo federal e/ou estadual, sob o regime de colaboração entre os entes federados. Ainda que tenhamos constatado, por meio dos dados fiscais dos municípios, a dependência financeira em relação ao estado e à União, o Brasil ainda não tem clareza quanto às responsabilidades e aos limites de cada ente federado na garantia do direito à educação, o que significa tornar realidade a construção do Sistema Nacional de Educação que, embora a Lei nº. 13.005/2014 tenha estabelecido a sua instituição, em seu artigo 13, como instância responsável pela articulação entre os sistemas de ensino, em regime de colaboração, para efetivação das metas e estratégias do PNE, este ainda não se concretizou.
A outra estratégia presente nos Planos é a manutenção ou ampliação dos convênios com instituições privadas, em especial quando se referem à expansão das matrículas em creches, opção essa que encontra respaldo na legislação vigente, tendo sido destacada neste artigo a Lei nº 13.019/2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias voluntárias, entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, bem como a Estratégia 1.7 do PNE, que prediz a oferta de matrículas gratuitas em creches certificadas como entidades beneficentes de assistência social para a expansão da oferta. No entanto, contribuições de estudos e pesquisas já divulgadas no Brasil, alguns deles mencionados neste texto, têm revelado que esse caminho acaba por reiterar desigualdades sociais.
Em linhas gerais, as trilhas previstas nos planos municipais de educação analisados neste artigo parecem colocar em risco a garantia do direito de todas as crianças à educação infantil, podendo ser interpretada como uma evidência da insuficiente capacidade de planejamento e de financiamento de grande parte dos municípios brasileiros ( PINTO, 2014 ) e da necessidade de regulamentação do regime de colaboração entre os entes federados, conforme prevê a Constituição Federal de 1988. Superar a defasagem de atendimento público das crianças na educação infantil supõe, necessariamente, a cooperação e o planejamento conjunto entre os níveis de governo federal, estadual e municipal.