Introdução
O bullying é uma problemática mundial (CRAIG et al., 2009; OLWEUS, 2013), reconhecido como violência intencional e repetitiva, praticada por um ou mais educandos e destinada a outros, em uma relação de desigualdade de poder (OLWEUS, 2013; SMITH, 2014). É complexa a definição e os termos utilizados para descrever o fenômeno bullying em cada idioma (SMITH et al., 1999; SMORTI; MENESINI; SMITH, 2003), pois seu conceito deve contemplar três critérios fundamentais: repetição, intencionalidade e desigualdade de poder. Sob o ponto de vista jurídico brasileiro, na ementa da Lei n.º 13.185/2015 (BRASIL, 2015i), este fenômeno é denominado como intimidação sistemática, mas, preserva, entre parênteses, a palavra bullying.
Nos termos da lei nacional n.º 13.185/2015 (artigo 2º), o bullying é caracterizado pela violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação, alcançando, ataques físicos, insultos pessoais, comentários sistematizados e apelidos pejorativos, ameaças por quaisquer meios, grafites depreciativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado e pilhérias (BRASIL, 2015). No artigo 3º, o bullying é classificado como verbal (insultar, xingar e apelidar pejorativamente), moral (difamar, caluniar, disseminar rumores), sexual (assediar, induzir e\ou abusar), social (ignorar, isolar e excluir), psicológica (perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar), física (socar, chutar, bater), material (furtar, roubar, destruir pertences de outrem) e virtual (depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social) (BRASIL, 2015). O cyberbullying é uma das formas do bullying, sendo um agir agressivo desenvolvido dentro e fora do espaço geográfico da escola, de modo atemporal e em rápida propagação, por meio da internet (AZEVEDO; MIRANDA; SOUZA, 2012).
O bullying não pode ser compreendido na sua forma individual. Precisam ser considerados os valores e as crenças culturais da sociedade, permitindo uma visão articulada da problemática (FRANCISCO; COIMBRA, 2015). É necessária a análise das inter-relações entre as pessoas e o meio em que vivem (HONG; ESPELAGE, 2012), considerando características individuais (idade, gênero, etnia, orientação sexual, estado de saúde, depressão e ansiedade, dificuldades de aprendizado ou desenvolvimento, inteligência e nível socioeconômico); relacionamentos intrafamiliares (relacionamento entre pais e filhos, relacionamento entre os pais, conexão e envolvimento com a escola); relações entre os ambientes em que crianças e adolescentes vivem, como escola e família; exposição à violência na mídia e ambiente dos vizinhos; normas e crenças culturais e religião do lugar em que se vive; e mudanças das pessoas ao longo da história.
A escola assume importante papel nas dinâmicas de bullying, podendo ser percebida pelos alunos vítimas como rede de apoio ou como espaço de violação de direitos. A lei nacional n.º 13.185/2015 favorece que a instituição de ensino seja percebida como local de proteção, pois causa impacto profundo nas relações sociais e coloca os gestores de ensino no compromisso do enfrentamento e prevenção ao bullying (MESQUITA, 2017). A naturalização do bullying oferece a sensação de que nenhuma providência cabe frente aos atos agressivos (FRANCISCO; COIMBRA, 2015), circunstância que ocorre a partir do fato de muitos educadores desconhecerem o fenômeno, pois o assunto não é discutido no período de formação, o que dificulta a realização de intervenções adequadas (SILVA; ROSA, 2013). Logo, o combate ao bullying deve estar previsto nos programas de formação inicial e continuada dos profissionais da educação, e ser trabalhado nos cursos de licenciatura (TREVISOL; CAMPOS, 2016).
A Constituição Federal estabelece que o Estado, mediante políticas específicas, ao lado da família e da sociedade, deve colocar a salvo a criança e o adolescente de toda a forma de negligência, discriminação e opressão (CORREIO, 2013). Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, gozando de prioridade absoluta e fazendo jus à proteção integral.
Diante da complexidade da questão, gestores públicos passaram a se preocupar com a demanda e a reconhecer a importância de desenvolver políticas públicas que abordassem a temática. A legislação brasileira, nacional e estadual, passou a tratar desse assunto, propondo programas de combate ao bullying e medidas de conscientização e prevenção nas escolas.
As estratégias de enfrentamento ao bullying revelam que podem haver diferentes enfoques, desde o repressivo, econômico ou de implementação de uma cultura de paz (FEIZI, 2003), ou ainda, um enfoque informativo, punitivo ou preventivo. No entanto, a existência de uma legislação meramente informativa sobre bullying não basta para o impedir, pois a simples conceituação, exemplificação e classificação do bullying não é suficiente para modificar o comportamento humano. Uma legislação punitiva, por sua vez, também não tem o poder de modificar o cenário de violência, uma vez que ações com enfoque repressivo impõem medidas de força que favorecem a falsa impressão de solução do problema (FEIZI, 2003). A punição decorre de uma força política e revela um cenário de dominação entre os envolvidos, deixando de oferecer ao agente qualquer reflexão sobre o ato praticado (PEGORARO, 2010). Além disso, modelos punitivos não são alternativas eficazes para a prevenção do bullying (RIBEIRO, 2016) e ações como castigos, suspensões ou exclusões devem ser evitadas, pois marginalizam os agressores e não desenvolvem condutas sociais saudáveis (LOPES NETO, 2005).
A legislação preventiva mostra-se mais adequada para evitar o bullying e reduzir a violência social (LOPES NETO, 2005). As tentativas de reduzir o bullying escolar são multifacetadas: há ações preventivas baseadas nas relações interpessoais respeitosas; ações que englobam toda a escola; ações reativas, que ocorrem após as situações de bullying; ou ações relacionadas ao apoio entre pares, com aspectos reativos e proativos. Os diferentes tipos de intervenção podem ser complementares. Os programas podem melhorar o clima e a segurança escolar, direcionar as motivações e atentar para alunos que possam praticar bullying, auxiliar as vítimas com estratégias de enfrentamento ou encorajar os observadores a auxiliarem as vítimas (SMITH, 2011).
As ações interventivas podem se dar a partir da implementação de cultura de paz, propondo modificações que alcançam a estrutura social, econômica e jurídica e também valores pessoais e o modo de vida das pessoas. A promoção da cultura de paz, ao trabalhar questões relacionadas à afetividade e ao respeito à diversidade, contribui para o crescimento da pessoa e permite maior respeito em relação às diferenças (FEIZI, 2003).
Em razão da vulnerabilidade da criança e do adolescente, e da sua condição de pessoa em desenvolvimento, a prevenção deve ser ampla e abranger os direitos previstos nas leis. É classificada como geral e especial, sendo aquela observada em três aspectos: primária, que permite a garantia dos direitos fundamentais; secundária, que ocorre por meio de programas de apoio, auxílio e orientação ao jovem e à família, que se encontram em situação de risco; e terciária, quando a problemática já está instalada e identificada (FONSECA, 2012). A prevenção terciária promove o atendimento de reabilitação e realiza os encaminhamentos necessários por meio de equipes multidisciplinares (ASSIS; CONSTANTINO, 2005). A prevenção especial decorre do disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e em outras disposições legais, impondo à família, à comunidade, à sociedade e ao Estado a proteção integral da criança e do adolescente.
Ao considerar o papel da legislação enquanto prática institucional de estruturação das políticas públicas, é importante identificar a legislação existente no combate ao bullying, classificá-la de acordo com a sua natureza, permitindo reconhecer o modo como o poder público o compreende. Assim, justifica-se a proposta de um estudo documental, com base nas leis que dispõem sobre o fenômeno.
O objetivo desta pesquisa foi analisar a legislação brasileira no enfrentamento do bullying, identificar os estados que têm leis sobre o fenômeno e analisar a natureza das normas, a fim de constatar se a respectiva lei é punitiva, preventiva ou informativa.
Método
Procedimento
Para identificar a legislação brasileira de combate ao bullying, foi realizada pesquisa documental, entre julho de 2019 e outubro de 2020, junto aos sites do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais, utilizando as palavras-chave bullying, violência escolar e prevenção no campo de pesquisa. Também foi feita pesquisa junto ao Google, incluindo o nome do estado, acompanhado das palavras bullying e lei. Em alguns casos, a pesquisa remeteu a outros sites jurídicos (https://www.legisweb.com.br, https://conteudojuridico.com.br e https://www.normasbrasil.com.br/). As legislações estaduais foram selecionadas a partir da leitura das ementas e, quando constatada pluralidade de leis no mesmo estado, todas foram incluídas no levantamento.
Análise de dados
Após a identificação das respectivas legislações, passou-se à organização do material, codificação, análise e interpretação dos dados. Foi utilizada a análise de conteúdo, segundo a perspectiva de Bardin (2011), que consiste em um instrumental metodológico aplicado a discursos diversos e a todas as formas de comunicação. A utilização da análise de conteúdo prevê três fases fundamentais: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Na leitura flutuante dos documentos selecionados, na pré-análise, buscou-se a sistematização, a organização de ideias principais e os seus significados, assim como a identificação das unidades de análises (BARDIN, 2011). Posteriormente, as unidades de análise foram organizadas em categorias gerais pré-definidas, embasadas na literatura existente (CAMPOS, 2004).
As legislações foram identificadas de acordo com as categorias definidas a priori, como de natureza informativa, preventiva e/ou punitiva, algumas das quais podendo ter natureza dúplice ou tríplice, ou seja, as categorias não são excludentes. No que se refere às leis que dispõem sobre o bullying, classificaram-se como: a) natureza informativa, as que trazem em seu conteúdo informações conceituais, exemplificam atos de violência e os classificam, além de apresentarem informações sobre o bullying escolar por diferentes meios; b) natureza preventiva, aquelas que apresentam objetivos relacionados à prevenção e ao combate à prática do bullying, indicando, ou não, ações a serem desenvolvidas; e c) natureza punitiva, as que buscam a responsabilização do aluno pela violência praticada, assim como da escola, nos casos de não intervenção nas situações de bullying ou de ausência de ações de prevenção.
Resultados
No contexto nacional, identificaram-se três legislações referentes ao bullying escolar, sendo todas de natureza informativa, duas de natureza preventiva e nenhuma de natureza punitiva. A Lei n.º 13.185/2015 institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) e tem origem no Projeto de Lei n.º 5.369/2009. De natureza preventiva, nos seus objetivos, constam ações de intervenção e prevenção a todos os tipos de violência. A Lei n.º 13.277/2016 institui o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência na Escola. De natureza informativa, apresenta uma data de combate ao fenômeno. A Lei n.º 13.663/2018, de natureza preventiva, altera a Lei n.º 9.394/96 (LDBEN), incluindo nos deveres da escola, a promoção de medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência e a promoção da cultura de paz.
Nos estados, foram identificadas 43 legislações referentes ao bullying escolar, envolvendo 24 dos 27 entes estaduais, incluindo o Distrito Federal. Como evidenciado na Tabela 1, alguns estados têm mais de uma legislação sobre o tema e algumas leis apresentam características que as identificam em mais de uma categoria.
Estado | Lei | Natureza das Leis | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
Informativa | Preventiva | Punitiva | ||
Acre | Lei n.º 2.436/2011 | x | x | x |
Alagoas | Lei n.º 7.512/2013 | x | x | |
Amazonas | Lei n.º 4.883/2019 | x | x | |
Amapá | x x x | x | x | |
Bahia | Lei n.º 13.822/2017 | x | x | |
Ceará | x x | x | x | |
Distrito Federal | x x x | x x | x | |
Espírito Santo | Lei n.º 9.653/2011 | x | ||
Goiás | Lei n.º 17.151/2010 | x | x | |
Maranhão | x x | x | ||
Minas Gerais | Lei n.º 22.789/2017 | x | ||
Mato Grosso do Sul | Lei n.º 3.887/2010 | x | x | x |
Mato Grosso | Lei n.º 9.724/2012 | x | x | |
Paraíba | x x x x x | x | x x x x | |
Pernambuco | x x | x x | ||
Piauí | Lei n.º 6.076/2011 | x | x | |
Paraná | x x x | x x x | ||
Rio de Janeiro | x x x x | x x | ||
Rio Grande do Norte | Lei n.º 10.418/2018 | x | x | |
Rio Grande do Sul | x x x | x x x | ||
Rondônia | x x | x | x | |
Roraima | Lei n.º 894/2013 | x | ||
Santa Catarina | Lei n.º 14.651/2009 | x | x | x |
Sergipe | Lei n.º 7.055/2010 | x | x |
Fonte: Autoria própria (2020).
Foram classificadas de natureza informativa as leis estaduais que apresentam os aspectos conceituais do bullying, exemplificam atos de violência e os classificam; que instituem dia/semana de combate ao bullying; que informam sobre serviços de denúncia/atendimento; e que determinam a afixação de placas informativas.
Dentre as legislações estaduais que definem o fenômeno, as dos estados do Ceará (Lei n.º 14.754/2010), Goiás (Lei n.º 17.151/2010), Maranhão (Lei n.º 9.297/2010), Paraíba (Lei n.º 8.538/2008), Paraná (Lei n.º 17.355/2012), Rio Grande do Sul (Lei n.º 13.474/2010), Santa Catarina (Lei n.º 14.651/2009) e Sergipe (Lei n.º 7.055/2010) apresentam conceito semelhante ao referido neste estudo. No caso, atitudes de violência física ou psicológica, intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente, praticadas por um indivíduo ou grupo de indivíduos contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. Acerca da classificação do bullying, cinco estados referiram o cyberbullying: Lei n.º 14.943/2011 (CE), Lei n.º 9.287/2010 (MA), Lei n.º 13.995/2009 (PE), Lei n.º 6.076/2011 (PI), Lei n.º 6.401/213 (RJ) e Lei n.º 10.418/2018 (RN).
Nas leis de natureza informativa foram identificadas 15 legislações que instituem dia/semana de combate ao bullying. Constataram-se, ainda, as leis n.º 14.943/2011 (CE), que institui o Disque-Denúncia de Combate ao Bullying, e n.º 2.232/2017 (AP), que dispõe sobre a obrigatoriedade de afixação de placas informativas sobre os perigos da prática de bullying.
As leis estaduais de natureza preventiva apresentam ações de intervenção e prevenção que, associadas ao contexto social e familiar, favorecem reflexões sobre o fenômeno e permitem que os envolvidos trabalhem valores pessoais. Oito estados brasileiros instituem Programa de Combate ao Bullying e seis estados instituem Medidas de Conscientização e Prevenção à Prática do Bullying. Nessas leis, prevalecem as ações: de capacitação dos docentes e da equipe pedagógica para implementação das ações de prevenção (14 legislações estaduais); e de orientação da família sobre como proceder diante da prática do bullying e o seu envolvimento no processo de soluções de conflito (08 estados). Outras ações aparecem em menor incidência, como a inclusão de normas de prevenção ao bullying no projeto político pedagógico (leis n.º 9.297/2010 - MA, 3.887/2010 - MS,9.724/2012 - MT,13.995/2009 - PE); no regimento escolar (leis n.º 14.754/2010 - CE, 9.297/2010 - MA, 3.887/2010 - MS e 10.943/2017 - PB; e a criação de uma unidade interdisciplinar para a promoção de atividades de orientação e prevenção (leis n.º 1.527/2011 - AP, 14.754/2010 - CE, 9.297/2010 - MA, 3.887/2010 - MS e 17.355/2012 - PR).
As legislações de natureza punitiva são as que abordam o bullying repressivamente, impondo medidas de força que demonstram uma relação de dominação e poder. Incluem as que apresentam caráter fiscalizador e revelam prática de autoridade, como a Lei n.º 894/2013 (RR), que prevê a instalação de câmeras de monitoramento nas escolas. Ações como encaminhamento dos casos de violência aos serviços de assistência jurídica, envio de relatórios das ocorrências ao sistema de justiça (Ministério Público), comunicação dos casos ao Conselho Tutelar e à autoridade policial e a suspensão do estudante das atividades escolares evidenciam que a motivação é a punição do aluno.
O caráter punitivo das leis destina-se, também, às escolas, como visto na Lei n.º 10.943/2017 (PB), que prevê de aplicação de multa e, em casos de reincidência, de encerramento das atividades para as escolas que não adotarem ações de prevenção e repressão por meio de campanhas de conscientização. Na Lei n.º 2.621/2011 (RO), está prevista, expressamente, a responsabilização da escola quando não for realizada intervenção nas situações de bullying.
Discussão
Os resultados encontrados serão discutidos a partir da relação entre as leis nacionais e estaduais, ressaltando as de natureza preventiva e punitiva e destacando os aspectos comuns e as diferenças existentes entre elas.
A Lei Nacional n.º 13.185/20015 (que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática - Bullying) tem origem no Projeto de Lei n.º 5.369/2009. Na justificativa do referido projeto de lei, a proposta era a de criar mecanismos de combate ao bullying, por meio de uma legislação nacional, com caráter preventivo, tendo em vista a existência de diversas legislações municipais e estaduais nesse sentido. O fato de a lei nacional ter sido publicada em 2015 remete à falsa conclusão de ser tardia em comparação com as datas das publicações das primeiras legislações estaduais. Contudo, tal compreensão é equivocada, pois o tempo decorrido até a publicação da lei é característico do processo legislativo. Algumas legislações, independentemente de sua natureza, embora de estados brasileiros distintos e publicadas em diferentes espaços de tempo, têm aspectos comuns; outras apresentam significativas diferenças.
Sobre os aspectos comuns, observa-se que as legislações informativas n.º 13.995/2009 (PE), 2.621/2011 (RO) e 9.724/2012 (MT) apresentam o mesmo conceito de bullying. As legislações preventivas n.º 8.538/2008 (PB), 14.651/2009 (SC) e 14.754/2010 (CE) têm os mesmos objetivos. A reprodução fiel de algumas redações pode ser compreendida como conveniência. Por outro lado, considerando os constantes estudos sobre o fenômeno ao longo do tempo, as redações poderiam ter sido atualizadas, para que contemplem os três critérios que definem bullying: intencionalidade, repetição e desigualdade de poder. Acerca das diferenças entre as legislações, apontam-se algumas leis estaduais que classificam o bullying de forma variável. A Lei n.º 8.538/2008 (PB) classifica o fenômeno de modo restrito e apresenta a violência apenas nas formas sexual, de exclusão social e psicológica. Por sua vez, a Lei n.º 17.355/2012 (PR) classifica o fenômeno de modo amplo, incluindo ações verbais, morais, materiais, físicas e virtuais. A diferença na classificação deve ser compreendida como resultado positivo decorrente dos estudos realizados sobre o assunto ao longo do tempo, que contribuíram para uma maior compreensão do fenômeno.
Comparando a Lei Nacional n.º 13.185/2015 com a primeira lei estadual (n.º 8.538/2008 - PB), observou-se considerável semelhança na estrutura e no conteúdo das normas. Na estrutura, ambas conceituam o bullying, exemplificam os atos de violência, tecem a classificação das ações e apresentam os seus objetivos. No conteúdo, trazem o mesmo conceito do fenômeno e exemplos de violência. Assim, tendo em vista que o Projeto de Lei n.º 5.369, que originou a Lei 13.185/15, é do ano de 2009, pode-se afirmar que a lei do estado da Paraíba e outras legislações municipais (que não foram objeto deste estudo) se constituíram em diretrizes para a esfera federal.
A capacitação dos docentes, prevista em muitas legislações, permite que o relacionamento interpessoal dentro da escola seja mais bem observado, favorecendo a identificação de ações e a adoção de ações preventivas (OLIVEIRA; GOMES, 2012). Contribui para a preparação dos professores, pois, durante o curso de formação, poucas informações sobre o tema são prestadas sobre como enfrentar o fenômeno (SILVA; ROSA, 2013). A capacitação também envolve a qualificação da equipe multidisciplinar. É essencial que o espaço escolar conte com profissional de psicologia, para que sejam identificados comportamentos violentos e desenvolvidas estratégias de prevenção e intervenção (FREIRE; AIRES, 2012).
Nos objetivos da lei nacional não há previsão acerca da necessidade de inclusão, no regimento escolar e/ou no projeto político pedagógico da escola, de regras normativas sobre o bullying, como constam em algumas legislações estaduais (leis n.º 10.943/2017 - PB e 9.724/2012 - MS). A ausência da previsão chama a atenção, uma vez que o projeto político pedagógico e o regimento escolar são instrumentos importantes à gestão democrática do ensino e devem ser elaborados de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). Nos termos do artigo 14 da LDBEN, a gestão democrática do ensino público ocorre por meio da participação dos profissionais de educação na elaboração do projeto pedagógico da escola, que tem função pedagógica e deve considerar o contexto social e econômico. O regimento escolar é um documento legal no qual devem estar previstas as normas pedagógicas e de convivência social. Deve ser elaborado de modo democrático, com a participação da comunidade escolar, trazendo previsão dos direitos e deveres dos estudantes (ROMANOWSKI, 2015).
Acerca dos papéis do bullying, os observadores não são mencionados com essa designação nas leis. No entanto, na análise dos objetivos das leis n.º 17.15/2010 - GO, 6.076/2011 - PI, n.º 9.724/2012 - MT e n.º 13.822/2017 - BA, observou-se haver previsão de orientação dos “envolvidos em situação de bullying” para recuperação da autoestima, do desenvolvimento psicossocial e da convivência harmônica no ambiente escolar e social, do que se entende, nesta nomenclatura, estejam incluídos. Estudos destacam que os observadores devem receber atenção, seja no desenvolvimento de programas ou na assistência por parte da escola. Ao vivenciar as situações de bullying, eles podem ter problemas no seu desenvolvimento escolar e em suas relações de amizade (PEARCE; THOMPSON, 1998; SMITH et al., 2018). Eles têm um papel importante e podem ser aliados das vítimas; por isso, são necessárias atividades que os estimulem, capacitem e os encorajem a prevenir as agressões (COWIE, 2014).
Do caráter punitivo e preventivo das leis
O modelo punitivo não prevalece nas legislações identificadas. A Lei Nacional n.º 13.185/2015 privilegia mecanismos e instrumentos alternativos para promoção da responsabilização e da mudança de comportamento hostil, em detrimento das medidas punitivas. Nas legislações estaduais, apenas 28% delas incluem aspectos punitivos.
De fato, modelos punitivos ou fiscalizadores não têm sido apontados nos estudos científicos como alternativas eficazes para a prevenção do bullying (LOPES NETO, 2005; MIDDELTON-MOZ; ZAWADSKI, 2007; RIBEIRO, 2016) e podem levar à marginalização dos agressores, sendo ineficazes. Atos punitivos interferem no processo de aprendizagem e impedem o acesso e a permanência na escola, mostrando-se contraditórios quanto ao papel que deve ser desenvolvido pela escola (MORRONE, 2019). As ações punitivas não favorecem a tomada de consciência sobre as regras de convivência ou que o aluno aprenda sobre valores como respeito e autonomia (TOGNETTA; VINHA, 2010).
De acordo com o Manual de Prevenção à Violência Juvenil elaborado pela Organização Mundial de Saúde em 2015 (OMS, 2016), crianças e jovens manifestam melhor aceitação por programas de natureza preventiva. Ações preventivas devem ser priorizadas, pois permitem novas possibilidades aos alunos, que têm potencial significativo para mudanças e reconstruções (LOPES NETO, 2005). Elas devem ser adotadas continuamente (BANDEIRA; HUTZ, 2012) e ser dirigidas à comunidade escolar (MARTINS, 2005). Para a Organização Mundial da Saúde - OMS (2016), programas de prevenção ao bullying incluem capacitação para toda a equipe escolar dos professores para gerenciar relacionamentos e comportamentos dentro da sala de aula. Professores aprendem a instruir os alunos em relação ao que é bullying, como reconhecê-lo e o que fazer nesses casos. A falta de ações preventivas permite a exposição de alunos aos prejuízos dessa violência (LOPES NETO, 2005).
Valorizar a relação positiva entre pares é aspecto a ser considerado por gestores públicos, embora não seja contemplado pela maioria das legislações estaduais. A Lei Nacional n.º 13.185/2015 e nove legislações estaduais trazem em seu objetivo a promoção da cultura de paz, a importância de se estimular a amizade, a solidariedade, a cooperação e o companheirismo entre pares no ambiente escolar. O combate e a prevenção ao bullying contribuem para o desenvolvimento saudável dos estudantes e torna a escola espaço de proteção (POLETTO; KOLLER, 2008; TREVISOL; CAMPOS, 2016).
O caráter preventivo das legislações analisadas prepondera no conjunto das leis examinadas, pois as palavras prevenção, conscientização e combate aparecem na redação de maior parte delas. Contudo, chama a atenção que algumas leis, apesar de sua natureza preventiva, apresentam particularidades que restringem seu alcance, como as leis dos estados do Ceará e da Bahia. Tanto a Lei n.º 14.75/2010 (Ceará), que institui o programa de prevenção e combate ao bullying, quanto a Lei n.º 13.822/2017 (Bahia), que dispõe sobre medidas de conscientização, prevenção e combate ao assédio escolar, fazem constar nas respectivas ementas que se destinam apenas às escolas públicas do estado. Logo, conclui-se que o ordenamento não se aplica às escolas privadas, o que prejudica, de modo significativo, o combate ao bullying escolar, pois os programas de prevenção devem ocorrer em todas as escolas, independentemente da natureza pública ou privada, inclusive em razão do comando legal imposto por meio da Lei n.º 13.185/2015.
Por fim, em que pese o presente estudo apresentar uma análise documental, é importante destacar que o tema nos convida a refletir acerca da relação existente entre a legislação e a efetiva implementação de programas de prevenção e intervenção relacionados ao bullying. Novos estudos que investiguem se e como as normativas estão sendo aplicadas nos espaços escolares, além de problematizar os desafios e os limites entre os saberes e os fazeres, são necessários, a fim de permitir a incursão em dados da realidade.
Considerações finais
A questão da prevenção da violência é tema pertinente ao mundo contemporâneo, que deve mobilizar profissionais e a comunidade educativa. A convivência social positiva, o exercício da cidadania e o bem-estar coletivo justificam plenamente a preocupação com esta temática (MARTINS, 2017).
O estudo documental realizado revelou que, no âmbito nacional, há três legislações específicas que dispõem sobre o enfrentamento do bullying escolar (Lei n.º 13.185/2015, Lei n.º 13.277/2016 e Lei n.º 13.663/2018) e, na esfera estadual, foram identificadas 43 legislações estaduais referentes ao bullying escolar, envolvendo 24 dos 27 estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal. Os resultados indicaram que todas as leis têm caráter informativo, a maioria delas tem natureza preventiva e 28% apresentam aspectos punitivos. O caráter preventivo das legislações analisadas preponderou na análise das leis examinadas, prevalecendo, na redação, as palavras prevenção, conscientização e combate.
Os resultados encontrados demonstraram que a legislação nacional e estaduais são direcionadas predominantemente ao desenvolvimento de estratégias de prevenção, o que vai ao encontro dos interesses de crianças e adolescentes e favorece o pleno desenvolvimento do estudante, estimulando novas competências individuais e coletivas (FERNANDES et al., 2015). As ações punitivas são contraditórias com o papel da escola, interferem no processo de aprendizagem e impedem o direito à educação (MORRONE, 2019), não favorecendo a reflexão sobre os atos praticados (TOGNETTA; VINHA, 2010). Assim, este estudo demonstrou como o Estado compreende o bullying escolar, destacou que o agir preventivo deve ser priorizado em detrimento do punitivo e que o enfrentamento dessa violência, pela gestão escolar, não é mera faculdade, mas uma obrigação imposta por lei (Lei n.º 13.185/2020).
Este estudo identificou a existência de legislações que fomentam a construção de uma educação baseada nas reflexões de valores e na formação da cidadania, sem tornar imperativas ações repressivas que, além de criarem a falsa impressão de solução dos problemas, mascaram a evidência de que a violência parte do contexto social. Demonstrou que, para o efetivo combate ao bullying, as legislações devem fazer previsão sobre a obrigatoriedade da capacitação da equipe docente para a implementação de ações de prevenção e discussão da violência e do envolvimento da família no processo de fortalecimento de valores interpessoais e compreensão sobre os prejuízos causados pelas agressões. A análise evidenciou a importância de serem incluídas no regimento escolar e/ou no projeto político pedagógico da escola regras normativas sobre o bullying, pois estas são instrumentos importantes à gestão democrática do ensino e reforçam a legitimidade da escola na tomada de decisões sobre como conduzir os episódios de violência escolar. Assim, embora alguns estados não incluam esses aspectos nas suas legislações, pode-se apontar a importância de que novas legislações, ou suas reformulações, possam incluir, além de aspectos informativos, premissas relacionadas ao modo de efetivação de ações educativas/preventivas junto às famílias, capacitação de professores e equipe escolar, além de considerar todos os atores envolvidos nesse fenômeno.
Como limitação de estudo, destaca-se a dificuldade em identificar a existência de eventuais leis de combate ao bullying nos estados do Pará, Tocantins e São Paulo, mesmo após consulta por correspondência eletrônica aos Presidentes das Comissões de Educação das Assembleias Legislativas dos respectivos estados. Outra limitação inerente ao estudo está relacionada ao seu caráter metodológico, tendo em vista que se trata de um estudo documental, que busca fazer inferências a partir das informações dos documentos analisados. O percurso metodológico adotado não permitiu uma incursão em dados da realidade, que permitam verificar se a legislação identificada está de fato sendo implementada e quais são seus resultados. Novos estudos, que possam investigar como as normativas estão sendo aplicadas nos espaços escolares, suas dificuldades, avanços e desafios, são necessários.
Observou-se que a complexidade do fenômeno e a amplitude do tema convidam à continuidade da discussão e da busca de vencer o desafio de tornar efetiva a proteção de crianças e adolescentes. Inclusive, para constatar se as leis que instituem os Programas de Combate ao bullying escolar estão sendo efetivamente aplicadas e se os resultados obtidos atendem ao que foi conversado com a literatura. Tendo em vista que a Lei Nacional n.º 13.185/2015 determina que estados e municípios devem produzir relatórios bimestrais sobre as ocorrências de intimidação sistemática para o fomento do planejamento de ações, é importante que esses dados possam ser compilados, buscando identificar se, a partir deles, novas políticas públicas foram desenvolvidas.
Considerando o papel da legislação enquanto prática institucional de estruturação das políticas públicas, concluiu-se que as leis referentes ao bullying buscam efetivar a proteção integral de crianças e adolescentes prevista no ECA. O combate ao bullying, com base em ações de prevenção, pode contribuir para efetivar a garantia de acesso e permanência na escola e o direito à educação.