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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.50  São Paulo  2024  Epub 06-Maio-2024

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202450269252por 

ARTIGOS

O coordenador pedagógico e a formação continuada de professores dos anos iniciais

Renata Lívia Soares Perini1 

Renata Lívia Soares Perini é doutoranda e mestre em educação pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), graduada em pedagogia pela Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) e Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Atua como Supervisora Escolar na Rede Municipal de Ensino de São Paulo.


http://orcid.org/0000-0001-7175-5644

Elba Siqueira de Sá Barretto2 

Elba Siqueira de Sá Barretto é professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP), instituição em que também se formou em pedagogia e doutorou-se em sociologia. É pesquisadora sênior da Fundação Carlos Chagas.


http://orcid.org/0000-0001-9972-118X

1-Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.

2-Universidade de São Paulo; Fundação Carlos Chagas, São Paulo, SP, Brasil.


Resumo

O artigo discute a atuação dos coordenadores pedagógicos de escolas municipais na cidade de São Paulo diante de dois modelos de formação continuada: o Projeto Especial de Ação (PEA), próprio da rede municipal paulistana, e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), proposta federal adotada como política no município entre 2013 e 2016 e desenvolvida diretamente com professores por agentes externos. Ambos os modelos ocorreram concomitantemente nas escolas paulistanas durante o período pesquisado, o que levou ao questionamento sobre como se deu a articulação dos coordenadores pedagógicos junto aos docentes que atuavam com turmas do ciclo de alfabetização (1º ao 3º ano). A pesquisa é qualitativa, sendo a metodologia composta por levantamento bibliográfico sobre formação docente e coordenação pedagógica, por estudos documentais e entrevistas semiestruturadas com docentes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, coordenadoras pedagógicas e formadoras de duas Diretorias Regionais de Ensino do sistema municipal. Os resultados evidenciam que a coordenação pedagógica constitui importante elo entre as políticas de formação continuada e as práticas escolares, sejam elas locais ou federais, de modo que ela precisa estar envolvida em sua implementação. Considera-se que os dois modelos possuem potencial transformador, desde que dialoguem com as práticas que se efetivam em sala de aula, oferecendo oportunidade de incorporação aos saberes dos professores e que recebam, para tanto, apoio regular e sistemático dos órgãos gestores para a resolução de impasses, supressão de carências e sustentação dos avanços obtidos.

Palavras-chave Coordenação pedagógica; Alfabetização; Formação docente

Abstract

This article discusses the work of pedagogical coordinators at public schools in the city of São Paulo facing two models of continued teaching training: the Special Action Project (Projeto Especial de Ação (PEA)), designed by the local school system itself, and the National Pact for Literacy at the Right Age (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC)), a federal program adopted as a public local policy from 2013 through 2016 and directly implemented for teachers by external agents. Both models took place concomitantly in the city´s public schools along the mentioned period, which led to a questioning about how pedagogical coordinators dealt with teachers working with literacy cycle (1st to 3rd grade). The research is qualitative and the methodology consists of a bibliographical review on teacher´s basic training and educational counseling, of documental studies, and semi-structured interviews with initial grades teachers in Elementary School, pedagogical coordinators and formative professionals from two Regional Instruction Departments in the city´s school system. The results reveal that educational counseling represents an important link between the public policies for continued teacher training and their school practices, either on local or federal level, so that pedagogical coordinators must be involved in their implementation. It is considered that the two models are potentially transforming, provided that they engage the practices that are conducted in the classrooms, offering an opportunity to be absorbed together with the teachers´ knowledge, and provided that they get, for such, constant and systematic support from the managing bodies when resolving impasses, overcoming shortages, and sustaining the advancements achieved.

Keywords Pedagogical Coordination; Literacy; Teacher training

Introdução

Em 2020 é publicada a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP) nº 1, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (Brasil, 2020 ), o que demonstra o grau de relevância desse tema para o debate educacional. No caso da formação continuada de professores dos anos iniciais, um ponto de destaque é a alfabetização das crianças, uma vez que a aquisição da leitura e da escrita constitui importante via para a construção de inúmeros outros saberes e para o exercício pleno da cidadania.

As pesquisas educacionais demonstram que os três primeiros anos do Ensino Fundamental são muito relevantes para a alfabetização das crianças. Esse é um desafio que mobiliza as diferentes gestões de governo, tanto no âmbito federal quanto nos sistemas de ensino estaduais e municipais. Dentre as abordagens utilizadas nas mais diversas propostas, a formação continuada docente desponta como um horizonte comum.

Na cidade de São Paulo e também neste estado, a preocupação não tem sido diferente. Programas que incluíam a formação continuada docente já haviam se tornado a forma predominante de atuação nas políticas voltadas para os anos iniciais do Ensino Fundamental desde a primeira década dos anos 2000.

Em 2012, o governo federal instituiu o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), em nova tentativa de trazer para o centro do debate essa questão, tão mal resolvida no país. Seu objetivo: garantir a alfabetização das crianças até os 8 anos de idade, em consonância com a meta 5 do Plano Nacional de Educação (Brasil, 2014 ). Houve grande adesão de estados e municípios ao pacto.

Não obstante, em 2015, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) mostrou resultados alarmantes sobre a alfabetização (Brasil, 2015a ). Por meio de testes de lápis e papel aplicados aos alunos do 3º ano do Ensino Fundamental das escolas brasileiras em 2013, os resultados demonstraram que 24% deles apresentavam baixa proficiência em leitura. Em 2014, esse índice caiu para 22%, porém, ainda foi considerado expressivo. Apenas 10% das crianças avaliadas em 2013 e 11% em 2014 demonstraram proficiência adequada, o que significa que um grande contingente delas permanecia no entremeio quanto ao domínio de instrumentos básicos de leitura. Em relação à escrita, avaliada somente em 2014, os resultados apontaram que 56% dos alunos dominavam razoavelmente instrumentos de escrita, enquanto apenas 10% produziam textos adequadamente. Ainda, 15% das crianças avaliadas escreviam apenas palavras e cerca de 12% não escreviam.

Na cidade de São Paulo, com população estimada de 12,3 milhões de habitantes em 2020 e uma distribuição de renda muito desigual, os desafios são amplificados. Entre eles está o de garantir o direito à educação de qualidade aos cidadãos, o que pressupõe a alfabetização de todos. Nesse sentido, a experiência das escolas mantidas pelo município de São Paulo pode trazer um contributo à questão, considerando que a rede municipal possui rico histórico em ações para os anos iniciais, além de uma estrutura que possibilita que a questão seja abordada, entre outras formas, pela via da formação continuada, que há décadas faz parte do cotidiano de seus professores. Ademais, é uma rede que possui, desde 1985, o cargo de coordenador pedagógico, cujas funções englobam, principalmente, a organização e o desenvolvimento da formação continuada aos docentes nas unidades educacionais, a ser realizada dentro da jornada de trabalho dos professores.

Nesse sentido, este artigo apresenta síntese de estudo de mestrado (Perini, 2018 ) que versa sobre a atuação dos coordenadores pedagógicos do ciclo de alfabetização da rede municipal de São Paulo, focando em seu papel de formadores, ao contrapor sua atuação em dois modelos de formação vigentes entre 2013 e 2016. O primeiro, Projeto Especial de Ação (PEA), próprio da rede municipal de ensino paulistana, é realizado na unidade escolar a partir das demandas formativas internas e tem o coordenador pedagógico como principal articulador. O segundo, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), formulado pelo governo federal para todas as redes do país, é posto em ação por agentes externos à escola, que trabalham diretamente com os professores. Apesar de se tratar de dois programas de diferentes portes, busca-se analisar pontos em comum entre eles: a formação continuada docente e o fato de eles terem sido ofertados concomitantemente nas escolas paulistanas no período analisado.

Metodologia

A pesquisa, de natureza qualitativa, fundamentou-se em referências teóricas e empíricas provenientes de: análise bibliográfica sobre formação continuada docente, políticas de formação na Educação Básica e coordenação pedagógica; estudo documental, em que se recorreu a documentos oficiais e à legislação da rede escolar paulistana; bem como entrevistas semiestruturadas com educadores.

Dentre os principais autores selecionados na bibliografia, destacamos como referência teórica o trabalho de Imbernón ( 2010 ), que engrossa a fileira dos estudiosos para quem a formação continuada deve ser capaz de promover a autonomia na identificação e busca por soluções aos problemas que os professores vivenciam em seu dia a dia. As situações problemáticas, para o autor, contrapõem-se a modelos de formação que tratam de questões genéricas, de cunho tecnicista, que pouco ou nada dialogam com as reais necessidades dos professores. Além disso, Imbernón evoca o aspecto coletivo da docência, em especial, nas ações formativas que ocorrem na mudança e para a mudança, reforçando a urgência da construção de capacidades reflexivas em grupo. Assim, o formador assume o papel de colaborador prático nos momentos de reflexão, em oposição a um modelo de formação no qual um transmite conhecimento ao outro.

Bolívar ( 2016 ) reafirma a importância do trabalho cooperativo e defende que as propostas tomem a escola como uma organização para a aprendizagem, ou seja, que tenham a escola como unidade básica e não sejam pautadas em fragmentos individuais. Essa perspectiva possibilita a existência de comunidades de prática nos contextos de trabalho, que buscam nas ações docentes os elementos necessários para estudos e proposições de melhoria, partindo de uma autorrevisão de cada professor e sendo acompanhadas por uma ação do estabelecimento educacional como um todo e do sistema em que ele se insere. Daí resulta uma responsabilidade compartilhada em direção ao objetivo último da escola, que é a garantia das aprendizagens de todos os estudantes.

Nessa mesma linha, Nóvoa ( 2019 ) valoriza o diálogo entre a prática docente e saberes científicos, defendendo o envolvimento dos professores na construção de sua formação, pois acredita que é “[...] na complexidade de uma formação que se alarga a partir das experiências e das culturas profissionais que poderemos encontrar uma saída para os dilemas dos professores” (p. 11).

Buscamos ainda a perspectiva de Paulo Freire ( 2010 ), que trabalha com a ideia de inacabamento dos sujeitos, o que os submete à necessidade de constante aprendizagem, uma vez que apenas entre homens e mulheres “[...] o inacabamento se tornou consciente” (p. 50). Daí a necessidade de estar em constante processo de formação.

Em relação à alfabetização, o referencial teórico advém daqueles que embasam o PNAIC e igualmente se encontram presentes nos materiais curriculares da rede municipal de ensino paulistana. À luz de teorias construtivistas e interacionistas de ensino, a alfabetização é entendida como uma prática social que engloba a aquisição do Sistema de Escrita Alfabética (Ferreiro; Teberosky, 1984 ) e o reconhecimento e uso das práticas de leitura e escrita, denominadas por Magda Soares ( 1998 ) como letramento. Essa perspectiva coloca o estudante no centro do processo, uma vez que, por meio da reflexão, irá construir hipóteses de escrita, que irão avançando até alcançar a base alfabética. Concomitantemente, o estudante participará de contextos de leitura e escrita que lhe possibilitarão vivenciar a cultura letrada, o que requer esforço de formação continuada dos docentes que, porventura, persistam em práticas de alfabetização descontextualizadas.

Com extenso trabalho sobre a coordenação pedagógica no Brasil, mereceu especial atenção o estudo de Placco, Souza e Almeida ( 2011 ) para melhor situar o objeto desta pesquisa e proporcionar parâmetros empíricos e de reflexão para a análise que se empreendeu na rede paulistana. Os textos analisados, bem como o de Domingues ( 2014 ), evidenciam que a formação continuada docente é a principal atribuição do profissional que, em São Paulo, é chamado coordenador pedagógico (CP) e que ela pode ocorrer em diversas circunstâncias: no acompanhamento aos professores e alunos, nas avaliações, nas interações e nos momentos de estudo.

As referências normativas sobre a formação docente para os anos iniciais da escolaridade no que diz respeito à aprendizagem da leitura e escrita das crianças têm suporte legal nas políticas da Educação Básica no âmbito federal e possuem também larga trajetória nos estados e municípios, responsáveis diretos por esse tipo de atendimento. As determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, as metas do Plano Nacional de Educação e os programas nacionais de alfabetização e letramento se entrelaçam com as disposições normativas e as políticas próprias do município e do estado, ou com elas se entrecortam.

Com o intuito de levantar indícios sobre como as ações formativas vinham se desenvolvendo nas unidades escolares, o próximo passo da pesquisa foi a realização de entrevistas com 17 profissionais da educação de duas Diretorias Regionais de Educação (DREs). Foram abordadas cinco coordenadoras pedagógicas, nove professoras alfabetizadoras e três formadoras das próprias DREs, por meio das quais buscou-se apreender os significados dos dois modelos formativos e como se deu a atuação dos CPs em ambos. As entrevistas, realizadas entre dezembro de 2016 e outubro de 2017, focalizaram a ação dos coordenadores pedagógicos, que se esforçavam por construir o espaço da formação continuada no cotidiano da escola.

Todos os sujeitos selecionados para a pesquisa estavam diretamente envolvidos com os processos que se buscava apreender; eram do sexo feminino e habilitados para o exercício dos cargos que ocupavam; possuíam entre 5 e 20 anos de atuação na rede (apenas uma tinha mais de 20 anos de experiência). Uma vez esclarecidos os objetivos da investigação e assinados os respectivos termos de consentimento, as entrevistas, realizadas nas unidades educacionais, foram gravadas e, posteriormente, transcritas e analisadas.

A abordagem aproximou-se dos preceitos da entrevista reflexiva, defendidos por Szymanski, Almeida e Prandini ( 2002 ). Estes buscam realizar um movimento de retorno ao entrevistado, que consiste em expressar a ele a compreensão que está sendo construída acerca de suas respostas, de modo que o sujeito possa reformular, discordar ou concordar com a narrativa apresentada. Assim, é possível estabelecer um diálogo horizontal que busca minimizar as relações de poder entre os sujeitos presentes no processo interativo da entrevista. Esse retorno constitui, acima de tudo, um compromisso ético. O objetivo é que a autoria da entrevista seja de ambos os participantes, entrevistador e entrevistado.

As entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo, realizada a partir da proposta metodológica de Franco ( 2003 ), inspirada em Bardin. Categorias de análise emergiram da leitura preliminar do material coletado, de modo a contribuir com a busca de respostas para as perguntas que a pesquisa se propôs.

Verificou-se que o estado da arte sobre o PEA e o PNAIC é extenso, com diversos trabalhos de análises individuais de cada um dos programas. Porém, à época da pesquisa, não foram localizados trabalhos que realizassem paralelo entre ambos.

A formação de professores no contexto da cidade de São Paulo

A história da rede municipal de ensino paulistana data de longos anos. Em 1935, a cidade criava os primeiros Parques Infantis e tinha o escritor modernista Mario de Andrade como um de seus responsáveis. O ensino municipal foi instituído por força de lei na década de 1950 e, de lá para cá, uma diversidade de fatores culminaram no que é hoje a maior rede municipal de ensino do país, com mais de um milhão de matrículas.

A formação continuada na rede constitui-se ao longo do tempo, mas houve um fator determinante para que ela adquirisse os contornos que tem hoje. Em 1992, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, foi criado o primeiro Estatuto do Magistério Municipal que, entre outras coisas, regulamentou as jornadas de trabalho docente. Uma delas, a Jornada de Tempo Integral (JTI), concedia aos professores espaço e tempo remunerado para atividades pedagógicas extraclasse, como a organização de materiais pedagógicos, a realização de planejamentos, a correção de atividades, a realização de estudos e pesquisas, o trabalho coletivo da equipe escolar, incluindo grupos de formação permanente (São Paulo, 1992 ).

Na gestão seguinte (prefeito Paulo Maluf), os tempos e espaços extraclasse foram dedicados especificamente à formação continuada. A princípio, foi criado o Projeto Estratégico de Ação, cujo objetivo era utilizar a ampliação de tempo na jornada de trabalho docente para que as equipes identificassem problemas em suas escolas e apontassem soluções, informando os órgãos regionais sobre as estratégias selecionadas e os resultados alcançados. Tais órgãos, por sua vez, identificaram que a formação continuada docente foi a estratégia prevalecente nas escolas, havendo mudança do nome Projeto Estratégico de Ação para Projeto Especial de Ação, mantendo-se a sigla PEA. Desde então, o PEA faz parte da jornada de trabalho dos professores, acontece dentro das próprias escolas e é coordenado pelo coordenador pedagógico das unidades.

O Projeto Especial de Ação (PEA)

Institucionalizado por meio de legislação própria, o PEA representa importante conquista na profissionalização docente e na melhoria dos processos pedagógicos. A cada ano, os coletivos de docentes e a coordenação pedagógica de cada escola municipal da rede elaboram um projeto com base em suas demandas formativas e nas avaliações dos projetos de anos anteriores, considerando as políticas do município e as especificidades da escola e da comunidade. O texto do projeto é enviado para apreciação da supervisão escolar e homologado pelo Diretor Regional de Educação de cada território. Depois, ele retorna à escola e passa a ser desenvolvido durante o ano, de acordo com a legislação que o regulamenta, a qual, na ocasião da pesquisa, era a Portaria SME nº 901, de 2014 (São Paulo, 2014a ).

O PEA é voltado à implementação das políticas educacionais do município, mas abre espaço para que as escolas tragam suas demandas formativas, desde que em consonância com as concepções de gestão da rede. Os primeiros artigos das portarias apontam as temáticas prioritárias a serem discutidas nos projetos. Ademais, o projeto deve possuir uma série de características: carga horária mínima de 144 horas anuais no Ensino Fundamental, distribuídas em oito meses ao longo do ano; instrumentos de acompanhamento e avaliação do projeto, de modo que o grupo de participantes, junto ao Conselho de Escola, delibere após o primeiro semestre quanto a sua manutenção, seu redimensionamento ou sua extinção no semestre vindouro. Ao final do projeto, são conferidos atestados aos docentes que atendam aos critérios de participação e frequência, o que lhes permite solicitar evolução funcional. Somados a outros cursos e ao tempo de serviço, os atestados contribuem para o desenvolvimento profissional e para o aumento de vencimentos.

Há, contudo, variações nas jornadas docentes que limitam a participação de todo o coletivo de professores. A jornada ampliada, atualmente denominada Jornada Especial Integral de Formação (JEIF), é uma opção do professor, condicionada a uma carga de aulas completa. Docentes em Módulo, ou seja, sem aulas atribuídas, que atuam na substituição a faltas de outros professores ou no apoio aos docentes com regência, não estão incluídos nessa jornada, podendo participar do PEA voluntariamente, mas sem a remuneração referente à jornada. Há ainda professores que optam pela chamada Jornada Básica Docente (JBD), muitas vezes com vistas a trabalhar em uma segunda escola, e não possuem o mesmo número de horas para trabalhos extraclasse assegurado na JEIF.

O coordenador pedagógico na rede paulistana

Uma figura importante na formação continuada paulistana é o coordenador pedagógico, cujo cargo é de livre provimento por meio de concurso público de acesso, ou seja, destinado a profissionais do magistério em cargo docente com habilitação em nível de graduação em Pedagogia ou especialização em nível de pós-graduação, e que já façam parte do quadro docente da rede. Na ausência de um coordenador pedagógico concursado, a unidade pode contar com um CP designado que seja habilitado e eleito pelo Conselho de Escola.

As atribuições do CP são definidas pelo Decreto Municipal nº 54.453, de 10 de outubro de 2013, assim como as dos demais integrantes da carreira docente. Nesse decreto, o CP é imbuído de mais atribuições que o próprio diretor de escola: enquanto há 19 atribuições aos CPs, ao diretor de escola cabem 17. Certamente, ambos os cargos possuem particularidades e complexidades próprias, mas, em termos quantitativos, são esses os números.

O CP integra a equipe gestora da unidade escolar, junto com o diretor de escola, o assistente de diretor e o supervisor escolar. Apesar do foco de seu trabalho recair oficialmente sobre as ações formativas, a análise da legislação municipal demonstrou que esses profissionais possuem um extensíssimo leque de atribuições diversas que não dialogam necessariamente com a formação continuada docente, tais como ações de acompanhamento de frequência de alunos, participação na decisão de destinação de verbas, acompanhamento de estagiários e de outros profissionais de apoio. O desafio dos CPs consiste, pois, na tentativa de não permitir que o aspecto formativo concernente a seu fazer seja deixado à margem diante de tantas frentes em que é chamado a atuar.

Nos marcos legais que regulamentam a atuação dos CPs na rede paulistana não há diferenciação do trabalho em relação às etapas de escolarização: eles podem atuar em unidades escolares que possuem desde a Educação Infantil até a EJA. Nas escolas de Ensino Fundamental, é comum que haja dois coordenadores pedagógicos, a depender do número de classes que a unidade comporta, e eles podem se dividir por turno de atendimento (manhã, tarde, noite) ou por ciclo de aprendizagem.

Os CPs que atuam no ciclo de alfabetização (1º ao 3º ano) devem contribuir para promover a alfabetização das crianças sem deixar de lado as questões afetas à infância, como a ludicidade, a brincadeira, o cuidado. Há documentos importantes que visam chamar a atenção para essas questões, como o Currículo Integrador da Infância Paulistana (São Paulo, 2015 ). Esses textos foram produzidos especialmente depois da promulgação das leis que anteciparam para seis anos de idade a entrada das crianças no primeiro ano do Ensino Fundamental ( Lei Federal nº 11.114/2005 ) e ampliaram o Ensino Fundamental para nove anos ( Lei Federal nº 11.274/2006 ). Em documentos orientadores do MEC, tais decisões consideram que “[...] a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos de duração significa o ingresso mais cedo à cultura letrada, o que poderá se reverter em um melhor desempenho dos alunos no que diz respeito à alfabetização e ao letramento” (Brasil, 2009 , p. 26).

Em relação à formação docente para a alfabetização, a rede municipal paulistana tem, ao longo de muitos anos, desenvolvido um percurso formativo consistente, tendo passado por programas de grande porte, como o PROFA (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores) e o Ler e Escrever, também adotado pelas escolas estaduais. Além disso, contou com projetos voltados especificamente à alfabetização nos anos iniciais, como o Toda Força ao Primeiro Ano (TOF) e o Projeto Intensivo no Ciclo I (PIC), durante as gestões José Serra/Gilberto Kassab (2005-2012). Diante desse cenário, a chegada do PNAIC, em 2013, não constituiu surpresa para docentes e gestores.

O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa na cidade de São Paulo

O Plano Nacional de Educação ( 2014 ) define metas a serem alcançadas pelo país na área da educação nos próximos dez anos. Das 20 metas estabelecidas, é a meta 5 que indica, claramente, o objetivo de alfabetizar todas as crianças brasileiras até os 8 anos de idade. Para tanto, sete estratégias são traçadas, dentre as quais se destaca a formação inicial e continuada de professores alfabetizadores.

O PNAIC foi organizado sob quatro eixos: I – formação continuada de professores alfabetizadores; II – materiais didáticos, literatura e tecnologias educacionais; III – avaliação; IV – gestão, controle e mobilização social (Brasil, 2012a ). Os documentos orientadores, no entanto, apontam que a formação continuada docente foi o eixo privilegiado (Brasil, 2012b , p. 5), motivo que gerou o interesse de pesquisa.

Os encontros formativos do PNAIC dirigiram-se diretamente aos professores em locais e horários externos aos das aulas nas escolas, ministrados por formadores também de fora da rede, com concessão de bolsa de estudos aos professores e formadores. Em 2013, o foco da formação recaiu sobre a alfabetização e o letramento; em 2014, o tema foi a alfabetização matemática; já em 2015, o número de encontros reduziu-se e as temáticas estudadas versaram sobre artes, ciências humanas e da natureza; em 2016, com nova redução dos encontros, a temática de estudo foi a avaliação. Observe-se que o conceito de alfabetização no projeto é amplo: ele inclui a iniciação a todos os conteúdos curriculares das diferentes áreas de conhecimento e não apenas à leitura e escrita da língua, tal como já havia enfatizado programa nacional anteriormente vigente, o Pró-Letramento.

O PNAIC previa a distribuição às escolas de materiais de literatura infantil e juvenil e caixa de jogos para a alfabetização, produzida pelo Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), além de materiais de apoio aos professores. As formações abordavam pontos de interesse como a consciência fonológica para a alfabetização, a importância do letramento e a valorização da infância, da brincadeira, da leitura deleite e da ludicidade nas práticas pedagógicas. Além disso, o programa trouxe à discussão a noção de direitos de aprendizagem, ressaltando ser responsabilidade da escola “[...] garantir o direito que todas as crianças têm de aprender a ler e escrever, com autonomia, até os oito anos de idade” (Brasil, 2015b , p. 46), sem deixar de lado outro direito fundamental, o direito à infância.

A implementação do PNAIC na rede paulistana ocorreu a partir do final de 2012. Ele foi incorporado como política de formação para a alfabetização, concomitantemente aos projetos de formação continuada do PEA.

A organização das ações do pacto nas escolas paulistanas foi complexa devido ao número de participantes. Em 2013, a rede contava com aproximadamente 5.016 professores atuando em classes de alfabetização, do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental (São Paulo, 2014b ). A formação, entretanto, era opcional para os docentes e ocorreu fora do horário de trabalho (em muitos casos, aos sábados). Além da bolsa de estudos oferecida pelo MEC, que à época era de R$200,00, igualmente estendida aos Orientadores de Estudos, os professores recebiam atestado para evolução funcional, caso concluíssem os ciclos de formação. A Secretaria Municipal de Educação utilizou o apoio das DREs para realizar o acompanhamento das ações do programa, além de prestar suporte em questões técnicas, como o cadastramento dos Orientadores e Professores alfabetizadores no sistema do MEC; acompanhamento de frequência aos encontros; pagamento das bolsas e certificação dos participantes (São Paulo, 2014b ).

Os coordenadores pedagógicos não foram convocados a participar das formações, de modo que, em um primeiro momento, somente os professores tiveram acesso aos materiais e discussões do PNAIC. As Diretorias Regionais de Educação buscaram suprir essa lacuna oferecendo formações paralelas aos CPs que sentiam necessidade de apoiar os professores alfabetizadores diante das demandas do pacto, uma vez que, além de participar dos encontros, estes traziam tarefas para realizar em suas respectivas salas de aula e deveriam levar registros e devolutivas aos encontros seguintes. Posteriormente, os CPs foram incluídos como público-alvo das formações.

Com a palavra, as educadoras da rede

O próximo passo da pesquisa foi a realização de entrevistas com o objetivo de apreender os significados atribuídos aos dois modelos de formação. As entrevistas com professoras alfabetizadoras tiveram como objetivo compreender o funcionamento dos momentos de formação continuada dos quais participavam e como as CPs realizavam as articulações e acompanhamentos. Em suas falas, apreende-se que o PEA possui grande potencial formativo e apresenta características que facilitam a adesão dos educadores ao projeto, bem como o seu desenvolvimento profissional. Ele ocorre no mesmo espaço em que se encontram os docentes, no período pré ou pós aula, e dentro do horário de trabalho. Além disso, possibilita que as equipes direcionem os temas da formação para questões que necessitem de maior aporte formativo, o que dialoga com os pressupostos defendidos por Imbernón. Ou seja, possibilita a abordagem de questões específicas dentro de cada contexto educacional e em cada escola, em oposição a propostas formativas genéricas que se distanciam das reais necessidades dos educadores. Assim, o espaço do PEA se configura como uma oportunidade não só de trazer à tona as dificuldades encontradas no fazer docente, mas também de compartilhamento de boas práticas, troca de informações entre os professores e planejamento conjunto das ações direcionadas a cada turma/estudante.

As professoras da pesquisa apontaram que os coordenadores pedagógicos conhecem o cotidiano da sala de aula e, por esse motivo, encontram-se em melhores condições de problematizar as práticas pedagógicas, demandando dos docentes alfabetizadores somente o que estes têm condições de atender. Na fala de uma das entrevistadas: “[...] o PEA, você está ali com o seu coordenador, que conhece o seu aluno, a família, a realidade da escola, o que a escola pode oferecer. Não vai te pedir nada além do que você possa dar” (Professora alfabetizadora 1). O relato traz indícios de que a relação entre professora e CP é próxima, o que faz com que as expectativas de ambas estejam alinhadas. No entanto, essa fala pode dar ensejo a uma apreensão conservadora do ambiente escolar, na qual acordos tácitos entre os profissionais envolvidos na tarefa educativa são mais inclinados a justificar o trabalho que eles realizam pelas limitações que encontram, sendo pouco estimulados a enfrentar com maior clareza e por meio de esforço compartilhado o encaminhamento mais adequado para superar as dificuldades dos alunos e os resultados pouco satisfatórios na aprendizagem.

O fato de nem todos os professores optarem pela jornada de trabalho integral, que inclui o espaço da formação, dificulta muito uma atuação verdadeiramente coletiva e que abarque o conjunto dos docentes. Isso impõe aos coordenadores pedagógicos o desafio de encontrar outros meios de acessar toda a equipe.

Quem está na JEIF, a gente ainda consegue ter um diálogo maior; agora, quem não faz parte da JEIF, eu tenho que ir na porta, acabar interrompendo, ou senão pedir uns 10 minutinhos na hora do café, pedir para a inspetora segurar as crianças.

(Coordenadora pedagógica 1).

Há ainda outros elementos dificultadores do projeto. Os temas elencados para a formação no PEA correm o risco de constituir temas isolados, para os quais nem sempre o coordenador pedagógico possui formação adequada. Embora o projeto seja formulado a partir de demandas formativas das próprias escolas, uma vez processadas essas demandas pelos órgãos regionais, elas acabam por se transformar em um planejamento específico com temáticas pré-orientadas, incluindo fases, etapas e bibliografia previamente estipulada. Mesmo que possibilite adequações de percurso durante o desenvolvimento, sua construção é prévia às questões que possam se apresentar no decorrer do ano, o que aproxima o projeto de um planejamento de curso comum.

As indicações fornecidas pelo PEA nem sempre são suficientes para esclarecer o próprio CP, como, por exemplo, quando se trata do complexo tema da atenção aos estudantes com deficiência, sobre o qual há incessantes demandas da rede, ou quando há questões relacionadas a abordagens específicas requeridas pelos componentes curriculares. Recorde-se que o CP tem, em princípio, formação de pedagogo generalista ou formação em uma disciplina específica, seguida de especialização na área educacional. Assim, ele muitas vezes se torna refém das buscas por materiais de estudo na internet para alimentar as discussões com os docentes, o que não conduz necessariamente a resultados inovadores em relação às práticas.

Além disso, as coordenadoras pedagógicas da pesquisa apontam a necessidade de buscar metodologias para o desenvolvimento dos PEAs que efetivamente contribuam para a transformação do fazer docente. Segundo o conjunto das entrevistadas, a predominância é de metodologias passivas nos tempos de formação, como leituras, exibição de vídeos, discussões sobre práticas docentes.

Por ser muito grande, eu acho que se a gente leva um livro e começa a ler, cada um, um pedaço; 15 minutos depois metade do grupo está dormindo. É uma coisa que me incomoda. Não é uma coisa que você começa a ler e aí você para e as pessoas discutem. Não é. Eles não são participativos a esse ponto. Como a gente já sentiu isso, a gente fez isso poucas vezes, de trazer um livro. A gente já meio que abortou essa técnica.

(Coordenadora pedagógica 2).

A revisão da bibliografia sobre as políticas de formação ressalta o efeito inócuo desse tipo de abordagem, em que há pouca ou nenhuma intervenção docente (Gatti; Barretto, 2009 ). O desenvolvimento do profissional requer estratégias mais complexas, que se apoiem em esforços mais consistentes de busca de novos caminhos para superar as dificuldades dos alunos e melhorar a qualidade do ensino. Implica a discussão dos erros e acertos em confronto com o que aportam os estudos, com as orientações das secretarias e com as consequências observadas na prática. Esse processo de busca não se reduz ao ponto de vista estritamente metodológico. Abarca uma perspectiva mais ampla das abordagens culturais que levam em conta as múltiplas dimensões do desenvolvimento dos alunos, valendo-se da contribuição dos diferentes campos do saber e do apoio da gestão. Tais caminhos têm de ser experimentados, testados e revistos pelas escolas, o que passa longe das meras sessões de leitura e comentários de textos aleatórios durante as horas de trabalho pedagógico coletivo.

Isso não é uma quimera, e por vezes já vem acontecendo em algumas escolas. Uma professora entrevistada apontou para a participação ativa da equipe docente na construção e no desenvolvimento do PEA:

Eu fazia pela manhã e agora estou fazendo à noite. Eu já tive a experiência do PEA com vários CPs diferentes. Cada um tem o seu jeito. Todos acrescentaram muito. Mas tem bastante leitura. Os vídeos, com o passar dos anos que eu fui fazendo, foram aumentando. [...] E as duas coisas são boas, tudo contribui. E a mudança radical que eu percebi, vindo para a noite, foi com relação a uma coisa mais democrática, que os professores conseguem participar um pouco mais, inclusive da construção mesmo do projeto, de reorganização do projeto. Como agora: nós fizemos uma avaliação no final, e percebemos que algumas coisas não estavam como a gente imaginava que deveria ser. Então, o grupo conseguiu reorganizar isso junto. Não foi uma coisa que ficou só para a CP fazer. Foi uma coisa bem democrática. Foi bem legal, foi uma experiência rica.

(Professora alfabetizadora 2).

O relato traz indícios de que a participação docente ativa e interessada por meio do trabalho colaborativo se reflete em aprimoramento da proposta, responsabilidade compartilhada e compromisso com os encaminhamentos tomados a partir da avaliação do grupo.

Apesar do espaço privilegiado para a reflexão com o grupo docente – uma estratégia de alto valor formativo –, Rego e Mello ( apud Gatti; Barretto, 2009 ) alertam para os riscos da formação que se restringe ao espaço escolar. Tratando-se desse modelo, a limitação a uma unidade escolar “[...] não responde às necessidades sistêmicas de indução de mudanças com certa urgência social e amplitude para atingir o corpo docente em seu conjunto, cuja dimensão quantitativa é de elevada monta” (Gatti; Barretto, 2009 , p. 203). Estudiosos defendem ainda que os processos formativos devem vir acompanhados de condições institucionais e estruturais propícias para que ocorram transformações, o que pode se traduzir em ambientes que estimulem o trabalho coletivo, numa gestão compartilhada e democrática, bem como em condições materiais de trabalho adequadas.

Na rede municipal paulistana a dimensão de sistema é contemplada no PEA. Como já se disse, ele possibilita a formação centrada nas questões de cada escola, ao mesmo tempo em que se presta à implementação das políticas da rede. No entanto, seus modos rotineiros de operar têm dificultado o surgimento de novas práticas que reverberem em melhores condições de aprendizagem para os estudantes. A reflexão em grupos relativamente pequenos na escola não é garantia de interlocução profícua com as práticas docentes; corre-se o risco de perder o foco na garantia de aprendizagem a todos e diluir um pouco os compromissos básicos da agenda educativa, independentemente do tema elencado para o projeto. Outra fragilidade é que a ação formativa necessita de outros aportes para que se consolide em melhoria das práticas. Além disso, assoberbado, dificilmente o CP tem condições de acompanhar a contento o trabalho pedagógico dos professores e de encontrar espaço para realizar intervenções importantes.

Quanto ao PNAIC, praticamente se reduziu à formação do professor por profissional com preparo específico para tanto, tendo como aporte materiais de estudo, leituras e materiais lúdicos direcionados aos estudantes. A avaliação de larga escala, destinada especialmente às crianças de 3º ano (Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA), foi concebida visando justamente a monitorar os resultados de aprendizagem nessa etapa, como contraface dos insumos representados pelos programas voltados à alfabetização.

As entrevistas mostraram que um aspecto significativo do trabalho do PNAIC foi o resgate da brincadeira e da ludicidade na alfabetização, considerando as maneiras de ser da criança nessa etapa da escolaridade. Embora haja indícios de que o pacto não foi compreendido como inovação das práticas docentes e que não dialogou com o contexto da rede, um ponto destacado nas entrevistas é que ele, em certa medida, contribuiu para a consolidação de conhecimentos construídos nos programas pregressos de alfabetização. Professoras dizem mesclar as formações prévias com a do PNAIC, aproveitando o que cada uma tem de mais significativo, independentemente das formulações teóricas que embasam os diversos programas e que, por vezes, divergem sobre alguns aspectos ou ênfases.

Eu fiz uma parte da formação do PROFA, e acho que ajudou bastante também a gente a ter um olhar mais amplo na alfabetização. E eu continuo, eu acho que a gente mistura muito. Eu falo que mesclar, você vai tentando. Porque a sala, como ela é muito heterogênea, você tenta. Você trabalha de um jeito com um, você tenta trabalhar de um jeito com outro, para ver se você consegue que ele avance.

(Professora alfabetizadora 2).

O relato evidencia que a ação de mesclar os conteúdos de diferentes formações atende ao critério de praticidade, ou seja, à busca por encaminhamentos que deem resultados positivos junto aos estudantes, o que acontece de forma eclética. A professora recorre à experiência prévia que possui e procura integrá-la com aquelas apresentadas na nova formação, registrando algumas práticas que produzem avanços e, por esse motivo, fornecem mais condições para a realização de seu trabalho. Por sua vez, esse quadro evidencia que há falta de clareza quanto aos fundamentos que embasam a alfabetização e que podem culminar em processos erráticos de ensaio e erro, o que se diferencia de abordagens cujo intento é reconhecer as individualidades de percursos e estratégias adequadas a cada estudante.

Gatti e Barretto ( 2009 , p. 216) constataram que:

Com o passar do tempo, sob o teste da utilidade prática e das condições de trabalho, foi possível reconhecer que algumas alterações propostas permanecem, outras se modificam incorporadas aos saberes que os professores construíram ao longo de sua trajetória profissional, e outras desaparecem.

Finalmente, um ponto de extrema relevância em relação a programas de formação continuada é a necessidade de políticas de sustentação à sua implementação e continuidade. No caso do PNAIC, e considerando que a alfabetização é uma demanda nacional, justifica-se a criação de programas de formação docente nas diversas esferas administrativas com o propósito de atender a essa necessidade, visto que estados e municípios têm capacidade técnica e propostas educativas imensamente variadas e inúmeras vezes se ressentem, inclusive, da falta delas. Ainda assim, e por mais que os programas sejam bem elaborados, é no momento de sua implementação que surgem os desafios, as especificidades dos territórios, os embates com projetos locais e programas pregressos. O que as pesquisas vêm demonstrando é que mais importantes do que a origem do programa – se federal, regional ou local – são as políticas de suporte à sua implementação e a articulação realizada nas unidades educacionais que asseguram não só o bom aproveitamento das propostas, mas sua efetiva realização e manutenção. Evidências apontam também para um gradual distanciamento da influência dessas intervenções à medida que o tempo passa ou outras políticas e programas são implementados em substituição.

Na maioria dos casos, há evidências de que as práticas pedagógicas do professor apresentam algumas das transformações pretendidas durante o processo de formação. Entretanto, findo este, a tendência é a de uma permanência reduzida das novas práticas, ou mesmo de uma apropriação de tal ordem que elas não são mais reconhecidas.

(Gatti; Barretto, 2009 , p. 209).

Uma fragilidade comum aos programas, e que se aplica aos casos aqui analisados, é sua descontinuidade decorrente de trocas políticas nas diferentes gestões, o que ocasiona sensação de descrédito nos docentes que já vivenciaram situações semelhantes. No caso do PEA, por mais que o projeto venha se mantendo desde a sua criação, verifica-se que, na mudança de seus marcos regulatórios (portarias e instruções normativas), explicitam-se as marcas da gestão política atual.

Em educação qualquer mudança ou intervenção não traz resultados imediatos. A temporalidade para se obter resultados em uma direção pretendida precisa ser considerada. Por isso é nociva a descontinuidade de políticas e ações que interrompem processos que começam a tomar sentido e a se consolidar para as pessoas envolvidas com a educação escolar.

(Gatti; Barretto, 2009 , p. 234).

As entrevistas com as coordenadoras pedagógicas revelaram grande preocupação com a formação continuada; porém, advêm desse segmento os maiores desafios. As CPs demonstraram preocupação em motivar a equipe docente para os momentos de formação; implementar metodologias de trabalho que tragam contribuições às práticas docentes; problematizar as avaliações internas e externas; e, por fim, oportunizar momentos para o acompanhamento individualizado das turmas, de modo a conhecer de perto quais são os alunos que necessitam de maior aporte para o alcance dos direitos de aprendizagem propostos. Nesse aspecto, ressaltaram a relevância dos registros docentes como instrumento de acompanhamento da coordenação pedagógica.

As entrevistas com as formadoras dos órgãos regionais revelaram que elas compreendem a formação continuada como um processo no qual há uma acumulação de saberes advindos dos programas e das práticas pedagógicas. Demonstraram preocupação em municiar os coordenadores pedagógicos para uma atuação mais efetiva na formação docente e reconheceram que essa é a função primordial deles. Ademais, admitiram que o PEA era o espaço para a implementação das políticas adotadas pela rede, as quais, nos anos pesquisados e em relação à alfabetização, foram o PNAIC e, em termos mais gerais, o Programa Mais Educação São Paulo (instituído pelo Decreto Municipal nº 54.452, de 2013 ).

É estabelecer, sim, uma discussão e uma apropriação das diretrizes da Secretaria Municipal de Educação, e quando eu falo isso, não é questão de concordar com tudo, mas é discutir, é ver o que é importante, é ver o que é significativo, e também se apropriar. O coordenador ter elementos para ele também discutir lá na sua unidade com os professores, com os funcionários o que fazer então para que esses princípios sejam garantidos.

(Formadora de órgão regional).

Ao cotejar as entrevistas realizadas com as discussões advindas do levantamento bibliográfico e documental, observa-se que os CPs, a despeito das dificuldades enfrentadas, desempenham papel central na realização das políticas de formação nas escolas, sejam elas federais ou locais. Sua atuação junto ao grupo docente propicia que a formação continuada se constitua em ferramenta importante para os professores, que buscam aprimorar suas práticas com vistas à melhoria da qualidade da educação, considerando as especificidades de cada contexto educacional, de modo que, “[...] partindo das complexas situações problemáticas educacionais, ajude a criar alternativas de mudanças no contexto em que se produz a educação” (Imbernón, 2010 , p. 55).

Em síntese

O estudo destaca as potencialidades da atuação dos coordenadores pedagógicos junto aos professores alfabetizadores e coloca em questão as políticas formativas que se apresentam aos docentes, seja em âmbito federal ou local. Aponta para a existência de limitações ao trabalho dos CPs, como o extenso e variado rol de atribuições do cargo; as situações emergenciais que são chamados a resolver nas escolas; o escasso tempo disponível para o acompanhamento das turmas.

Apesar dos desafios, o PEA apresenta-se como espaço privilegiado para formação continuada docente, o que não é assegurado na mesma amplitude em outras redes de ensino. Por esse motivo, deve ser valorizado e aperfeiçoado, mantendo as suas dimensões sistêmicas de discussão e apropriação das diretrizes da rede de ensino, ao mesmo tempo em que contempla as demandas formativas de cada escola. Suas limitações passam por não incluir todos os docentes, o que tem impacto no trabalho da coordenação pedagógica; pela sua estrutura e condução, que não garantem prioridade aos direitos de aprendizagem de todos, independentemente dos temas abordados; pelas formas de trabalho adotadas, que não levam necessariamente à problematização das práticas e ao protagonismo coletivo dos docentes.

Quanto ao PNAIC na rede municipal de São Paulo, a pesquisa sinaliza que, apesar de se tratar de um pacto que envolvia inúmeras ações conjuntas, o que prevaleceu foi quase exclusivamente a formação em serviço. Não há indícios de que o PNAIC tenha causado mudanças expressivas no fazer docente, considerando a dificuldade de disseminação do aprendido por professores voluntários para o conjunto dos docentes de suas escolas, bem como a falta de diálogo com um percurso formativo consistente para a alfabetização na rede e com os saberes acumulados pelos docentes. O fato de ter sido facultativo aos professores, desenvolvido fora do ambiente escolar e de não ter incluído, desde o princípio, o coordenador pedagógico pode também ter sido um elemento dificultador da sua apropriação na rede. Embora o pacto tenha sido oficialmente incorporado como política de formação para a alfabetização, a pesquisa trouxe indícios de que não houve uma interlocução mais próxima com os PEAs, os quais seguiram seus cursos rotineiros e paralelos ao desenvolvimento do PNAIC. Contudo, os PEAs parecem ter contribuído, de alguma maneira, para a divulgação das ações do pacto trazidas pelas professoras cursistas.

Considera-se, portanto, que os dois modelos de formação possuem potencial transformador do fazer docente, desde que dialoguem com as práticas que se efetivam em sala de aula e que recebam apoio regular e sistemático dos órgãos gestores, resolvendo impasses, suprindo carências e sustentando avanços. Considera-se, ainda, a importância de conduzir os docentes à construção compartilhada da própria formação no trabalho, entendida como parte de seu ofício de professor, do qual são sujeitos e não meros objetos.

Ainda assim, a plena alfabetização das crianças não é uma questão de fácil resolução apenas pela via da formação continuada, pois demanda um conjunto de ações articuladas e esforço coletivo na superação de barreiras à aprendizagem, entre elas a recuperação paralela aos estudantes que necessitem desse aporte.

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Recebido: 03 de Novembro de 2022; Aceito: 25 de Setembro de 2023; Revisado: 08 de Agosto de 2023

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Editora: Profa Dra. Renata Marcílio Cândido

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