Introdução
A dança está presente na vida do ser humano desde os primórdios de maneira intrínseca. De acordo com Nanni (1998), a dança pode ser entendida como uma das mais antigas manifestações corporais do ser humano, principalmente como forma de expressão e de comunicação de sentimentos, impulsos e crenças. Para Silva et al. (2000), a comunicação não-verbal está inserida na humanidade desde a antiguidade, pois está presente em todas as manifestações de comportamento não expressas por palavras. Desse modo, os gestos, as expressões faciais, as orientações do corpo, as posturas, a relação de distância entre os indivíduos e, ainda, a organização dos objetos no espaço fazem parte da comunicação não-verbal e estão inseridas na educação.
A educação faz parte da vida de todo ser humano, seja durante o período escolar, seja pelos conhecimentos obtidos em casa e/ou com sua participação na sociedade. É a forma que os diferentes povos encontraram para significar o seu mundo, entendê-lo e adaptar-se a ele ou então transformá-lo (AHLERT, 2011). O ser humano não é automaticamente um ser social, é preciso desenvolver essa capacidade e a educação tem um papel primordial nesse sentido. De acordo com Belloni (2007), a criança é o sujeito dos processos de educação e de comunicação e interage com outros seres que a cercam e fazem parte de seu universo de socialização.
Ao falar sobre corpo no contexto da educação, a escola, por ser uma instituição de ensino, deve oportunizar essa prática motora, visto que é entendida como essencial e determinante no processo de desenvolvimento geral da criança, fazendo parte do patrimônio cultural que todo aprendente tem direito de conhecer (MANOEL, 1994).
Para Carbonera e Carbonera (2008), toda criança precisa de experiências de comunicação criativa e interpretativa por meio de movimentos. A experiência da dança integrada à experiência de aprendizagem da criança oferecerá opções para esse tipo de expressão. Dançar envolve processos como observar, percepcionar, memorizar, executar, interpretar; daí a necessidade de entender como o pensamento (cognição), o raciocínio (percepção) e a aprendizagem (ação) (SCHUTZ-BOSBACH; PRINZ, 2007 apudESTEVES, 2013) são processados e executados. Há, assim, uma análise da inter-relação entre postura e movimentos corporais (controle motor) com o processamento de percepção mental e o planeamento de ações (cognição).
Por tratar-se de uma prática corporal, é muito comum que a dança seja associada a uma atividade motora bastante rica, o que realmente é. Contudo, é possível identificar também a parte cognitiva envolvida no movimento. Logo, o desenvolvimento de conhecimento é gerado por meio e a partir do ato de dançar (MENEZES, 2014). Assim sendo, a dança na escola pode ser uma importante ferramenta para auxiliar o processo de aquisição de habilidades cognitivas no processo de ensino-aprendizagem. Por meio da dança, a criança não terá apenas o desenvolvimento do corpo no ato de se expressar, mas, sim, quando feito de maneira consciente, acarretará também o desenvolvimento de conhecimento.
Em seus estudos, Diaz, Gurgel e Reppold (2015) constataram que a dança pode ser uma prática com grande potencial de intervenção, visto que acarreta melhorias na saúde geral, inclusive na memória. Entretanto, o conhecimento difundido sobre a relação entre a dança e a memória é disperso e heterogêneo em aspectos como idade dos participantes de pesquisas sobre o tema, condição de saúde e populações participantes.
É comum que os estudos busquem entender como as práticas podem auxiliar na memória de indivíduos com déficits cognitivos, principalmente em idosos, mas não é frequente a apresentação de resultados em abordagens com pessoas saudáveis. Para Almeida, Pereira e Safons (2009), as alterações neuropsicológicas como aprendizagem e memória constituem um dos principais focos de pesquisa sobre o envelhecimento, já que essas alterações podem interferir diretamente na qualidade de vida. Ademais, estudos com prática de dança costumam apresentar abordagens qualitativas para a análise dos dados. No entanto, entender como relações observadas quantitativamente se manifestam pode auxiliar na análise e na discussão do estado da arte sobre o objeto de estudo.
No contexto das danças urbanas, Antunes (2020) aponta que a inserção dessa temática no ambiente escolar promove a ruptura de conteúdos hegemônicos nas aulas de Educação Física e proporciona aos alunos novos olhares sobre diferentes realidades socioculturais. Dessa forma, estudar esse tema e analisar de que maneira ele pode ser inserido na escola favorece não só o aluno na possibilidade de adquirir esse conhecimento, mas também orienta o professor, contribuindo para a sua prática pedagógica.
Souza, Berleze e Valentini (2008) apontam para a relevância de desenvolver estudos de intervenção com crianças, já que os benefícios proporcionados pelas oportunidades concretas e efetivas de incorporar novas habilidades, sendo fundamental, principalmente, na infância. Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi verificar se aspectos de memorização e atenção diferem entre crianças submetidas a uma intervenção com prática de danças urbanas, comparadas a um grupo controle não participante de intervenção.
Metodologia da pesquisa
Esta pesquisa teve enfoque quantitativo, que, para Richardson (1999), é quando há características de quantificação, tanto na coleta de informações quanto no tratamento dos dados de maneira estatística. Assim, utiliza intensivamente a estatística, cujos resultados obtidos são expressos em números, pois seu objeto de estudo pode ser quantificado (NEVES; DOMINGUES, 2007). E, ainda, no entendimento de Thomas, Nelson e Silverman (2007), é quantitativa, pois enfatiza a análise (ou seja, separar e examinar os componentes de um fenômeno) utilizando medidas de laboratório e/ou outros instrumentos objetivos para realizar a coleta de dados no ambiente natural do grupo pesquisado, chegando a resultados por meio das análises dos dados resultantes de fórmulas estatísticas.
Também é considerada experimental, que, para Marconi e Lakatos (2003), consiste em investigações de pesquisa empírica, cujo objetivo principal é o teste de hipóteses que dizem respeito a relações de tipo causa-efeito. Já o corte é caracterizado como longitudinal, pois coletam-se informações mais de uma vez, sobre os mesmos sujeitos, ao longo do tempo (THOMAS; NELSON; SILVERMAN, 2007).
Além de aprovado pelo Comitê de Ética1, houve a permissão dos responsáveis por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participação dos discentes na pesquisa. As crianças também, após explicação da pesquisa, assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE). Houve também, o aceite da instituição coparticipante por meio de autorização concedida pela direção. A pesquisa foi realizada em um colégio de grande porte da rede particular de ensino da cidade de Curitiba, Paraná, que atende escolares desde a Educação Infantil até o Ensino Médio em turno matutino, vespertino e integral. A sede escolhida faz parte de um grupo composto por 15 unidades no Sul do país, sendo sete na capital paranaense. Com pouco mais de 2.000 alunos, a unidade específica está localizada no bairro Alto da XV, próximo à região central da cidade.
A amostra foi composta por 65 crianças de 7 e 8 anos de idade, praticantes apenas das atividades físicas previstas no currículo, tais como dança, psicomotricidade, iniciação esportiva e educação física, sendo divididas em grupo experimental (praticantes) e grupo controle (não praticantes).
Aqueles que optaram por não participar do estudo ou foram excluídos por não atender algum critério de inclusão2 realizaram normalmente as atividades, visto que, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2018), a dança é uma das unidades temáticas pertencentes à área de linguagem da Educação Física e compõe o plano pedagógico da instituição de ensino. Ressalva-se que, apesar de participar das atividades, os estudantes não foram submetidos aos testes cognitivos, nem mesmo ao preenchimento dos questionários.
Como o estudo teve caráter longitudinal, a amostra foi submetida aos instrumentos de avaliação cognitiva duas vezes, no pré e no pós-teste. O intervalo de aplicação dos testes foi de seis semanas. O grupo experimental participou de duas aulas de danças urbanas semanais, com 45 minutos cada; e o grupo controle participou de duas aulas semanais, com 45 minutos cada, cujo conteúdo não foi nenhum tipo de atividade ritma ou técnica de dança. Por ser componente curricular obrigatório, o grupo controle vivenciou as mesmas atividades em outro momento, sem perda de conteúdo, podendo ser alcançados pelos possíveis benefícios da mesma maneira, apenas realizando as aulas em outro período temporal.
Durante as aulas em que as intervenções foram realizadas, os escolares foram submetidos a diferentes estratégias de ensino. Ademais, as aulas foram divididas em aquecimento (dez minutos), parte principal (20 minutos) e volta à calma (cinco minutos), considerando que a aula tem duração de 45 minutos. Entretanto, foi necessário descontar o tempo de deslocamento inicial (cinco minutos) e final (cinco minutos).
Instrumentos de coleta e análise dos dados
Inicialmente, a amostra foi caracterizada por um questionário socioeconômico desenvolvido pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), denominado “Critério Brasil” (ABEP, 2020), com a finalidade de obter, por meio de pontos, um panorama social e econômico da amostra. Ele é composto por três seções divididas em itens de conforto, grau de instrução do chefe da família e acesso a serviços públicos. Utilizando a tabela normativa, cada resposta equivale a uma pontuação, e o somatório final enquadra-se em um estrato socioeconômico. Esse instrumento é importante, principalmente por tratar-se de um colégio particular em uma capital. Dessa forma, pôde-se estabelecer relações dos fatores sociodemográficos com as habilidades cognitivas e as oportunidades de prática da atividade física.
Também foi aplicada a versão brasileira do questionário Physical Activity Checklist Interview (PACI), validado por Cruciani et al. (2011), com o objetivo de aferir o nível de atividade física da criança bem como a prática habitual de outras atividades. O questionário é composto pela seção A (dados iniciais), pela seção B (lista de atividades) e pela seção C (avaliação da entrevista). A parte principal, com a lista, possui 21 atividades nas quais a criança deve relatar se faz nunca, às vezes ou a maior parte do tempo, sendo antes, durante e depois da escola. Ainda compõe também a seção B o tempo que a criança gasta, antes e depois da escola, assistindo à televisão/a vídeos e se fica no computador e em jogos.
Com os dados gerados após a aplicação do PACI, utilizou-se o Guia de Atividade Física para a População Brasileira (BRASIL, 2021), em especial o Capítulo 3, voltado a indivíduos com idade entre 6 e 17 anos, que quantifica o tempo de atividade física que deve ser feito, a fim de categorizar as crianças em ativas ou insuficientemente ativas.
Para mensurar as habilidades cognitivas, utilizou-se o teste informatizado para avaliação das funções executivas - Jogo das Cartas Mágicas (JCM) - versão 2.0 (PIRES, 2014). Esse teste foi adaptado da tarefa Dimensional Change Card Sort (DCCS). De acordo com Pires (2014), é um instrumento informatizado construído para avaliação das funções executivas (controle inibitório, memória de trabalho e flexibilidade cognitiva). A tarefa DCCS é uma das mais utilizadas em crianças pré-escolares e possui diversas adaptações para escolares. Nesse teste, é dito às crianças exatamente o que fazer em cada tentativa. Em linhas gerais, é solicitado à criança a classificação das cartas de acordo com uma regra pré-estipulada. Na etapa seguinte, a regra é modificada, sendo necessária a classificação das cartas de outra forma.
O JCM é construído com design baseado na temática circense e assemelha-se a um jogo, o que facilita sua aplicação, despertando interesse na criança para realizá-lo. Ele é constituído por três fases (COR - 12 jogadas/itens; FORMA - 12 jogadas/itens; e COR e FORMA - 24 jogadas/itens), cujos escores são registrados em uma planilha que serve como banco de dados, podendo-se computar: acertos e erros em todas as tentativas; percentual total de acertos e erros; tempo de reação em milissegundos em cada tentativa; tempo médio total nas tentativas e tempo médio de duração do teste.
Além do JCM, também foi aplicado o Teste de Stroop informatizado - versão 1.0 - desenvolvido pelo Programa de Educação Tutorial (PET) da Universidade Federal do Paraná - UFPR (2019), adaptado da versão original desenvolvida por Stroop em 1935. O software consiste na coleta e na análise de dados relacionados à atenção de indivíduos por meio de uma bateria de perguntas, que se baseia em relacionar e identificar a cor com a qual uma palavra está escrita, como, por exemplo, se a palavra verde está escrita na cor verde ou na cor vermelha.
As perguntas podem ser do tipo congruente ou incongruente, respectivamente. Perguntas congruentes são aquelas nas quais as cores das palavras consistem com seu significado léxico, e incongruentes quando o contrário é verdadeiro. Para esse teste, foi considerado o tempo de resposta em segundos para cada pergunta (UFPR, 2019).
Os dados foram tabulados e analisados por meio do Jamovi, 3ª geração. A análise descritiva de dados contínuos foi realizada por meio de medidas de tendência central e dispersão, sendo a média e desvio padrão em caso de variáveis paramétricas ou mediana, e intervalo interquartílico, em caso de variáveis não paramétricas. Já para os dados categóricos, a descrição foi realizada por distribuição de frequência absoluta e relativa. Para verificar-se a possível relação de fatores sociodemográficos, de medida numérica, com as habilidades cognitivas, utilizou-se do coeficiente de correlação de Pearson ou Spearman (a depender da normalidade dos dados) e, em caso de dados categóricos, foi verificado pelo teste do Qui-quadrado. A comparação entre grupos, pré e pós-intervenção foi realizada por meio de Análise de Variância - ANOVA, onde foi assumida significância estatística para valor de p<0,05.
Resultados
A amostra final do estudo foi composta por 65 estudantes, do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental - anos iniciais, sendo divididos em Grupo Controle (0) e Grupo Intervenção (1).
A partir do preenchimento e da análise do questionário socioeconômico (ABEP), os participantes apresentaram scores, sendo classificados quanto ao extrato socioeconômico correspondente. Já por meio do questionário de Nível de Atividade Física (PACI), foi possível quantificar o tempo que o estudante gastou em seu dia com atividades físicas e, seguindo as orientações do Guia de Atividade Física para População Brasileira (BRASIL, 2021), foi possível dividir em indivíduos ativos ou insuficientemente ativos.
Ao comparar as proporções de participantes entre os grupos, no que diz respeito a sexo, nível socioeconômico e nível de atividade física, constatou-se que não se difere entre os grupos, considerando que são similares e, desse modo, não foi necessário controle nas análises principais. Já na variável contínua de idade, ao comparar a amostra por grupo, o teste apresentou distribuição não-paramétrica dos dados e foi necessário realizar a análise de dados não paramétricos para grupos independentes por meio do Teste U Mann-Whitney que apresentou p<0.001.
As análises principais envolvem os testes cognitivos realizados para aferição da memória e atenção. O primeiro teste, denominado JCM, possui três variáveis contínuas e uma variável categórica. As contínuas são as três fases que compõem o teste e a categórica é o estado de atenção durante a realização do teste.
Na Tabela 1, é possível observar a análise descritiva das variáveis contínuas da Fase 1, Fase 2 e Fase 3, no pré e pós-teste.
Grupo | JCM Fase 1 pré nº de acertos | JCM Fase 1 pós nº de acertos | JCM Fase 2 pré nº de acertos | JCM Fase 2 pós nº de acertos | JCM Fase 3 pré nº de acertos | JCM Fase 3 pós nº de acertos | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | Controle | 25 | 25 | 25 | 25 | 25 | 25 | ||||||||
Intervenção | 40 | 40 | 40 | 40 | 40 | 40 | |||||||||
Média | Controle | 11.9 | 11.9 | 11.5 | 11.7 | 19.9 | 19.2 | ||||||||
Intervenção | 11.9 | 11.9 | 11.4 | 11.6 | 19.4 | 21.5 | |||||||||
Mediana | Controle | 12 | 12 | 12 | 12 | 20 | 19 | ||||||||
Intervenção | 12.0 | 12.0 | 12.0 | 12.0 | 19.5 | 22.0 | |||||||||
DP | Controle | 0.277 | 0.400 | 0.770 | 0.690 | 1.98 | 2.33 | ||||||||
Intervenção | 0.221 | 0.335 | 0.925 | 0.714 | 2.47 | 2.50 | |||||||||
Mínimo | Controle | 11 | 10 | 9 | 9 | 16 | 15 | ||||||||
Intervenção | 11 | 11 | 9 | 10 | 12 | 12 | |||||||||
Máximo | Controle | 12 | 12 | 12 | 12 | 23 | 24 | ||||||||
Intervenção | 12 | 12 | 12 | 12 | 24 | 24 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Legenda: DP: Desvio Padrão; JCM: Jogo das Cartas Mágicas.
A comparação do número de acertos em cada etapa do teste entre grupos mostra o aumento significativo na pontuação da Fase 3 (p>0.001), quando comparados o pré e pós-teste. Na comparação da variável categórica entre grupos, que se refere à percepção do avaliador em relação ao estado de atenção do avaliado, percebe-se um aumento significativo no número de avaliados classificados como atentos na Tabela 2 em comparação ao pré e pós-teste.
Percepção | Grupos | |||
---|---|---|---|---|
Controle Pré | Controle Pós | Intervenção Pré | Intervenção Pós | |
Atento | 15 (50%) | 10 (26,3%) | 15 (50%) | 28 (73,7%) |
Desatento | 10 (28,6%) | 15 (55,6%) | 25 (71,4%) | 12 (44,4%) |
Total | 25 (38,5%) | 25 (38,5%) | 40 (61,5%) | 40 (61,5%) |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Ainda tratando das análises principais, tem-se a análise comparativa entre os grupos das variáveis contínuas do Teste de Stroop (Tabela 3). O instrumento é composto por duas etapas, caracterizadas como congruente e incongruente, e utiliza como recurso de avaliação as cores, tanto a grafia quanto o visual. O teste avalia o tempo que o avaliado demora para responder em cada fase.
Grupo | Stroop Congruente pré (segundos) | Stroop Congruente pós (segundos) | Stroop Incongruente pré (segundos | Stroop Incongruente pós (segundos) | |
---|---|---|---|---|---|
N | Controle | 25 | 25 | 25 | 25 |
Intervenção | 40 | 40 | 40 | 40 | |
Média | Controle | 3.87 | 3.89 | 4.16 | 4.20 |
Intervenção | 3.55 | 3.46 | 4.20 | 4.00 | |
Mediana | Controle | 3.90 | 3.90 | 4.10 | 4.10 |
Intervenção | 3.55 | 3.30 | 4.20 | 4.00 | |
DP | Controle | 0.295 | 0.326 | 0.328 | 0.375 |
Intervenção | 0.413 | 0.274 | 0.300 | 0.218 | |
Mínimo | Controle | 3.10 | 3.20 | 3.70 | 3.40 |
Intervenção | 3.10 | 3.20 | 3.70 | 3.60 | |
Máximo | Controle | 4.50 | 4.40 | 5.10 | 4.90 |
Intervenção | 4.30 | 4.10 | 4.70 | 4.50 | |
P | 0,001 | <0,001 | 0,581 | 0.008 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
DP = Desvio padrão; Significância estatística para p<0,05.
Os resultados demonstram uma significativa diferença no tempo de resposta dos avaliados nas duas fases e, principalmente, na fase incongruente. Na fase congruente, o nível de atenção exigida do avaliado não é elevado, visto que só é necessário corresponder a cor. Já na segunda fase, chamada incongruente, o nível de atenção precisa ser mais elevado, pois o aluno precisa diferenciar a escrita do estímulo visual, e esta, com base no teste estatístico, foi a que teve maior significância entre o pós-teste.
As análises principais intragrupos foram realizadas com o objetivo de comparar o pré e o pós-teste entre os participantes da intervenção separados do grupo controle, possibilitando que seja possível mensurar as alterações.
O grupo controle permaneceu estável entre o período em que foi realizado o pré e pós-teste, correspondente a seis semanas. Já para os alunos que participaram da intervenção, constatou-se melhora significativa na Fase 3 do JCM, considerada a fase de maior dificuldade no teste, e em ambas as etapas do Teste de Stroop, tanto congruente quanto incongruente, conforme mostra a Tabela 4.
Controle | Intervenção | |||
---|---|---|---|---|
t | p | t | p | |
JCM 1 pré/pós | 0,000 | 1.000 | 1.14 | 0,262 |
JCM 2 pré/pós | -0,778 | 0,444 | -1,02 | 0,313 |
JCM 3 pré/pós | 1,880 | 0.072 | -4,05 | <0,001 |
Stroop Congruente pré/pós | -0,375 | 0,748 | 2,54 | 0,015 |
Stroop Incongruente pré/pós | -0,676 | 0,505 | 6,13 | <0,001 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
JCM = Jogo das Cartas Mágicas; Significância estatística para p<0,05.
Foi demonstrado então que, ao comparar o grupo intervenção com o grupo controle, os discentes que participaram durante as seis semanas das aulas de danças urbanas tiveram significativas alterações, tanto na memória quanto na atenção, com base nos resultados coletados por meio do pré e pós-teste.
Discussão
A aplicação da pesquisa ocorreu de acordo com o preconizado pela BNCC. Nesta, há, dentro da área da Educação Física escolar nos anos iniciais do Ensino Fundamental, o desenvolvimento das unidades temáticas de jogos e brincadeiras, danças, ginásticas, esportes e lutas, entre as quais, a dança se desenvolve em codificações particulares, historicamente constituídas, que permite identificar movimentos e ritmos musicais peculiares associados a cada uma delas (BRASIL, 2018).
Como se tinha a hipótese de um possível benefício da prática de dança em aulas de Educação Física, no que diz respeito a aspectos cognitivos de estudantes do Ensino Fundamental, o presente estudo se propôs a verificar possíveis alterações na memória e atenção de escolares de 7 e 8 anos de idade, por meio da prática das danças urbanas como conteúdo curricular. Resultados significativos foram alcançados ao comparar a memória e a atenção no pré e pós-teste, tanto de maneira intragrupos quanto intergrupos. Para melhor organização e discussão desses resultados, optou-se pela organização por tópicos.
Características da amostra
A amostra final foi composta por 65 escolares, divididos em grupo controle (N=25) e grupo intervenção (N=40), com características similares relacionadas ao nível socioeconômico, ao nível de atividade física, ao sexo e à classificação da atenção estabelecida pelo avaliador no momento da coleta do pré-teste. Os participantes tinham idade entre 7 e 8 anos. Mesmo sendo uma faixa etária restrita, a distribuição entre os grupos teve uma leve discrepância e foi considerada não paramétrica, em que o grupo intervenção teve uma média de idade de 7,4 anos (DP = 0,496), e o grupo controle, 7,8 anos (DP = 0,408), apresentando p>0,001.
A coleta de dados foi realizada entre o período de setembro e novembro de 2021, período em que o ensino remoto e híbrido ainda estava permitido no Brasil, por meio da homologação do Parecer no 19, de 8 de dezembro de 2020, do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do Ministério da Educação (MEC), devido à pandemia da covid-19 (BRASIL, 2020), e, por isso, o número de alunos no ensino presencial não correspondia à totalidade de possíveis participantes da escola.
No Paraná, a Secretaria Estadual de Educação (SEED), com a Secretaria Estadual de Saúde (SESA) autorizou que o retorno presencial nas escolas particulares fosse realizado a partir da data de 1 de fevereiro, no ano de 2021. Dentre as medidas de combate à covid-19 dispostas na Resolução no 0098/2021, estão a manutenção da opção de estudo remoto emergencial (PARANÁ, 2021); desse modo, os responsáveis possuíam a opção de manter o estudante no ensino remoto ou liberar para retornar ao presencial, ficando a seu critério a escolha do modelo de ensino. Ademais, no ensino presencial, devia ser respeitado o distanciamento mínimo de 1,5 metros de distância entre os estudantes. Todas essas medidas reduziram o número de alunos por sala.
Isso impactou também o número de turmas ofertadas de 1º a 3º ano do Ensino Fundamental, faixa escolar que esta pesquisa abrange. Dessa maneira, a amostra final foi reduzida e o número de participantes nos grupos não foi homogêneo. É possível reconhecer essa interferência ao testar a normalidade dos dados referentes à idade dos alunos.
Análise inter e intragrupos
Os resultados demonstraram que as danças urbanas podem trazer benefícios na memória e na atenção dos estudantes praticantes. Com relação ao número de acertos obtidos entre as fases do Jogo das Cartas Mágicas, na comparação do pré e pós-teste, percebeu-se um aumento significativo na pontuação do grupo que realizou a prática, principalmente na última fase. Para Pires (2014), as Fases 1 (COR) e 2 (FORMA) possuem requisitos semelhantes. Apesar de a criança classificar as cartas por meio de dimensões distintas (Cor ≠ Forma), a demanda exigida é a mesma e, possivelmente por isso, não alcança diferenças significativas. Na Fase 3, etapa de maior dificuldade do teste, o grupo controle atingiu no pré e pós-teste, respectivamente, uma média de 19,9 (DP = 1,98) e 19,2 (DP = 2,33), em que é possível perceber, apesar de não significativa, uma diminuição no score. Já o grupo intervenção apresentou, respectivamente, o resultado de 19,4 (DP = 2,47) e 21,5 (DP = 2,50).
Ainda no mesmo teste, com relação ao estado de atenção do avaliado no momento da avaliação, percebeu-se que, no pré-teste, o grupo controle (N=25) estava dividido em 15 atentos (60%) e 10 (40%) desatentos; e o grupo intervenção (N=40), em 15 atentos (37,5%) e 25 (62,5%) desatentos. Já no pós-teste, a divisão era, no grupo controle, 10 (40%) atentos e 15 (60%) desatentos; e, no grupo intervenção, de 28 (70%) atentos e 12 (30%) desatentos. Os resultados demonstram no pós-teste um aumento de desatentos no grupo controle e um aumento de atentos no grupo intervenção.
Já no Teste de Stroop, na fase congruente, o grupo controle atingiu uma média de 3,87 segundos (DP = 0,295) no pré-teste e 3,89 segundos (DP = 0,326) no pós-teste. Seguindo para a fase incongruente, os resultados foram de 4,16 segundos (DP = 0,328) e 4,20 segundos (DP = 0,375). Já o grupo intervenção apresentou uma média na primeira fase de 3,55 segundos (DP = 0,413) e 3,46 segundos (DP = 0,274) e, na segunda fase, de 4,20 segundos (DP = 0,300) e 4,00 segundos (DP = 0,218), apresentando significativa redução do tempo de resposta em ambas as fases do teste.
Tanto a atenção quanto a memória estão inerentes na prática da dança, seja na apresentação de uma coreografia completa ou em exercícios possíveis dentro de uma aula. Prestar atenção em um movimento para compreendê-lo antes de executá-lo é fundamental, antes ainda que seja memorizado, para poder ser repetido em sequência. Essa aprendizagem pode ser utilizada por meio de imagens visuais, mentais e motoras, por exemplo. Algumas estratégias podem ser utilizadas nesse sentido, como, por exemplo, a demonstração, que fornece informação visual por meio da aprendizagem observacional; dicas verbais, que guiam a performance por meio de informações verbais curtas; e imagem mental, que permite o ensaio mental do movimento (SPESSATO; VALENTINI, 2013).
Para Esteves (2013), ao contrário do que se passa na aprendizagem dos números (matemática) ou das letras (línguas), os movimentos estendem-se por alguns segundos e as sequências coreográficas são desenvolvidas por ainda mais tempo; no processo ensino-aprendizagem na dança, uma das estratégias para a memorização é precisamente recorrer a uma subdivisão do material coreográfico (por frases musicais ou por blocos). Por isso, essas funções cognitivas são tão requisitadas na prática da dança; nesse sentido, os resultados obtidos nesta pesquisa foram importantes, pois apontam significativas melhoras na memória e na atenção dos escolares que realizaram as aulas de dança.
Em pesquisa similar realizada por Skiba et al. (2018), ao comparar a atenção de crianças praticantes e não praticantes de dança, concluiu-se que a prática contribuía para a melhora da atenção dos bailarinos. O referido estudo também utilizou o Teste de Stroop para verificação da atenção e avaliou crianças de 9 a 11 anos de idade, por meio da prática do balé clássico.
Para Siqueira e Gurgel-Gianetti (2011), a atenção e a memória têm papel essencial na aquisição de novas habilidades, ou seja, na aprendizagem. Tanto a atenção quanto a memória compõem uma rede que se estabelece no momento da aprendizagem, são, portanto, pontos importantes a serem considerados quando há o intuito de melhorar o nível de aprendizagem do aluno (CARDEAL et al., 2013).
Mori et al. (2017) enfatizam que a memória e a atenção são habilidades requeridas para a apropriação e o desenvolvimento da leitura e da escrita, e a Educação Física pode trabalhar em conjunto com as demais disciplinas na formação do sujeito alfabetizado e letrado. Para Dias e Seabra (2013), por sua vez, as crianças mais hábeis em focalizar a atenção, inibir impulsos, em fazer planos e em regular seu comportamento podem utilizar dessas habilidades na aprendizagem, explicando os ganhos em áreas não diretamente endereçadas. Ademais, o ambiente escolar deve oferecer atividades e possibilitar uma rica experiência nas diversificadas áreas, linguagem, cálculos, ciências, artes, jogos e esporte (SIMÕES NETO et al., 2018).
Por meio dessas afirmações, percebe-se a importância de incluir atividades que proporcionem o desenvolvimento dessas capacidades cognitivas e de maneira sistematizada no ambiente escolar. Por exemplo, o estudo de Cardeal et al. (2013) utilizou várias práticas corporais na escola para avaliar as funções executivas, o que foi chamado de “Programa Escolar de Estimulação Motora”. Os autores avaliaram 80 crianças, de 6 a 10 anos, divididas em grupo controle e intervenção, durante sete meses, com duas aulas por semana. O estudo encontrou diferenças significativas no grupo intervenção após a realização das atividades físicas, principalmente no que se refere à função executiva e atenção.
Para realização do presente estudo, elencou-se, dentre os objetivos específicos, a verificação de fatores socioeconômicos e do nível de atividade física dos participantes, pois poderiam interferir no desempenho das variáveis dependentes e, por isso, o nível de atividade física, sexo e nível socioeconômico foram considerados como variáveis de controle.
O exercício físico é uma alternativa bastante relevante para melhora das funções cognitivas e pode ser um importante elo para processos de otimização da performance (ANTUNES et al., 2006). Já o nível socioeconômico, segundo Jacobsen et al. (2013), pode interferir na inteligência, possivelmente pela estimulação cognitiva oferecida às crianças pelos seus cuidadores parentais, a qual pode apresentar diferenças de acordo com a escolaridade e a renda da família. Dessa forma, foi considerado importante controlar essas variáveis, mesmo que nesta pesquisa não tenha ocorrido diferença no desempenho de memória e atenção entre as categorias de cada variável selecionada como controle.
Acerca das possíveis limitações deste estudo, vale ressaltar que, apesar de ser um estudo longitudinal, o tempo de intervenção foi curto, e resultados mais satisfatórios podem ser encontrados ao testar as variáveis com um tempo maior de intervenção ou, uma outra possibilidade, é realizar uma terceira avaliação para verificação da manutenção das alterações. Outra limitação a ser considerada ainda é o tamanho da amostra final, que, além de apresentar leve discrepância no número de participantes entre os grupos, não é tão expressiva.
Cabe lembrar que, diferentemente de algumas referências citadas, este estudo foi desenvolvido em contexto de aulas de Educação Física, não em projetos de contraturno ou escolas profissionais de dança. Portanto, o tamanho da amostra em cada grupo corresponde à quantidade aproximada de estudantes que compõem uma turma na respectiva fase de ensino. Nesse sentido, este estudo avança na aproximação da realidade do professor de Educação Física e de sua atuação escolar; demonstra, ainda, a possibilidade de um trabalho sistematizado e efetivo, no que diz respeito aos benefícios cognitivos de estudantes a partir do conteúdo de Dança.
Apesar das limitações elencadas, foi possível identificar melhoras relevantes na memória e na atenção do grupo que recebeu a intervenção durante a realização da pesquisa. Ademais, ampliou as discussões acerca das contribuições da dança no ambiente escolar e no desenvolvimento cognitivo.
Considerações finais
No decorrer deste estudo, falou-se sobre dança, educação, cognição e criança. Por muitas vezes, foi necessário encontrar caminhos que levassem a cada um desses assuntos, para, depois, tentar costurá-los, principalmente pela escassez de estudos envolvendo essa teia.
Com isso, resultados importantes foram encontrados com a comparação da memória e atenção em participantes e não participantes da intervenção e na comparação do pré e pós-teste dos praticantes. Após a intervenção de 12 aulas, os alunos participantes da intervenção apresentaram melhoras significativas na memória e na atenção.
O objetivo desta pesquisa não foi impor ou estipular uma metodologia a ser replicada, mas, sim, promover o incentivo e a reflexão de como as danças urbanas podem ser um recurso e uma ferramenta do professor de Educação Física, auxiliando no processo de ensino-aprendizagem de aquisição de novas habilidades e no desenvolvimento das funções cognitivas, não só por ser um conteúdo obrigatório, mas, sim, por serem comprovados, cientificamente, os benefícios que a prática acarreta.
Nesse sentido, espera-se que esta pesquisa possa despertar o interesse de pesquisadores em ampliarem os estudos nessa temática e, para isso, seria interessante propor variações, aumentar o tempo de intervenção, testar outras idades e até mesmo levar a outros contextos como a escola pública. Espera-se, também, despertar a vontade dos professores do ensino básico a conhecerem e propiciarem a prática das danças urbanas dentro das escolas para seus alunos.