Introdução
A obesidade é considerada problema de saúde pública de grande repercussão pela Organização Mundial da Saúde. Obesidade é definida como anormal ou excessiva acumulação de gordura que apresenta risco para a saúde. Essa definição é baseada na métrica do Índice de Massa Corpórea (IMC), cuja relação entre peso e altura quando igual e acima do valor numérico 30 se considera obeso, enquanto o sobrepeso em valor igual ou superior a 25. Com isso, as estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que em 2016 havia no mundo 39% das mulheres e homens com sobrepeso. Em países como Nauru, 88,5% das pessoas estão com sobrepeso e obesidade, nos EUA, 67%, no Brasil 56% (WHO, 2016). Esses exemplos mostram que o “anormal” em torno do IMC se tornou majoritário.
Segundo essa concepção de natureza biomédica, a obesidade é uma doença que precisa ser controlada para evitar consequências danosas para a vida dos indivíduos (WHO, 1997; 2003; 2012). Apresenta-se como um desafio da contemporaneidade devido à sua complexidade, pois há uma multiplicidade de fatores que circundam sua ocorrência, dentre eles: sedentarismo, ingestão excessiva de alimentos processados e ultra processados associada à ingestão insuficiente de frutas, legumes e verduras, além da influência negativa ou positiva da renda e da escolaridade (Brasil, 2014; Maciel, 2012; Sant’Anna, 2016). Diante da grandeza epidemiológica sem precedentes que ultrapassa a condição de normalidade do corpo mensurável em alguns países, como visto acima, a concepção de doença engendrada pelos OMS e difundida mundialmente desconsidera as consequências da dimensão simbólica do significado da obesidade enquanto fenômeno social que caracteriza a sociedade moderna.
Neste contexto, o modo de vida das pessoas, a dinâmica cultural da percepção dos corpos nos seus espaços de convivência e o grupo social ao qual pertencem informam sobre escolhas - inclusive alimentares – de forma que conhecer os determinantes sociais da saúde pode dar pistas para a compreensão de obesidade dos sujeitos. Verifica-se, então, que existe a necessidade de estudos de natureza cultural que possam desvelar elementos constitutivos da dimensão simbólica do fenômeno obesidade no cotidiano das pessoas.
Ao lado dessa concepção biomédica em que obesidade é enfermidade, há outros segmentos que precisam ser revisitados, a exemplo das significações socioculturais que colocam o corpo obeso numa dimensão diferenciada no mercado consumidor. Também outra vertente é o preconceito, o estigma que circunda a vida das pessoas com obesidade. Nesse sentido, muitos não conseguem se colocar em determinados empregos que exigem corpos magros modulados pelo mercado.
Isso se intensifica como reflexo do fortalecimento do estigma social da obesidade provocado pela concepção biomédica de doença. E ao fazer referência aos determinantes sociais da saúde (DSS) - atividade física, tabagismo, etilismo, consumo alimentar, ocupação, renda, escolaridade e estado civil - assumimos o entendimento de que as condições de vida e trabalho influenciam a saúde e as doenças das pessoas (CNDSS, 2006).
O recurso ao conceito dos DSS contribui para auxiliar a compreensão desse fenômeno nomeado obesidade, ainda que estes não ofereçam profundidade para pensar obesidade enquanto uma questão do indivíduo e, sobretudo, da sociedade. Esta que tem se configurado como essencialmente obesogênica, como sintoma de uma sociedade que fomenta o consumo compulsivo do alimento, ao tempo em que fortalece modos de vida sedentários.
Os estudos mostram que nas mulheres há uma correlação entre baixo nível de escolaridade e baixa renda com o aumento da obesidade neste grupo social (Marinho, 2003; Ferreira & Magalhães, 2005; Goulart, 2005; Ferreira et al, 2010; Pinto & Bosi, 2010; Ferreira & Magalhães, 2011; Santos et al, 2015). Mas, na contramão do que se vê, o presente artigo apresenta a realidade de uma mulher obesa que tem nível superior de ensino e renda média. Esta situação econômica relativiza possibilidades de falta de acesso aos serviços de saúde, planejamento dietético e práticas de educação física, inscritos nos condicionantes sociais da obesidade.
O interesse por conhecer aspectos relacionados ao viver com obesidade levou a nos aproximar de Salete. Há um esforço para tentar compreender a obesidade tomando como ponto de partida o que emerge desta mulher sobre o tema. O que Salete revela, na sua vida obesa, em termos de experiências de aprendizado para reconstruir o cuidado de si, em uma sociedade obesogênica? O que ela nos permite ver? Este é um estudo fenomenológico e hermenêutico sobre o significado do corpo obeso para uma mulher trabalhadora da área da saúde. O fenômeno obesidade é o que se mostra nos sentidos e significados para Salete, analisados a seguir.
A linguagem revela
Ao recordar Gadamer:
Compreender o que alguém diz é, pôr-se de acordo sobre a coisa, não se deslocar para dentro do outro e reproduzir suas vivências. [...] a experiência de sentido ocorre desse modo na compreensão e encerra sempre o momento de aplicação [...] todo esse processo é um processo linguístico (1997, p. 559).
Analisamos fragmentos narrativos de uma trabalhadora da saúde, Salete, 49 anos, ensino superior, residente na cidade de Salvador, Bahia, casada, mãe de dois filhos. Considera-se sedentária e afirma alimentar-se de modo abundante e livre em calorias.
Este estudo no campo da fenomenologia e hermenêutica (conforme leituras da obra de Hans-Gadamer, 1997; e uma breve aproximação da obra Ser e Tempo de Heidegger, 2006), analisa em fragmentos linguísticos, biográficos de uma obesa, o estigma, o preconceito e o bullying como conflitos de sua corporeidade.
A experiência de ser obesa reúne a condição sujeito objeto sem dualidade cuja quebra dual se realiza na construção de pertencimento da experiência de si enquanto obesa a decifrar obesidade no contexto sociocultural em que vive.
O mundo da vida de Salete é circundado de valores de rejeição da obesidade que a fazem sofrer. A obesidade se constitui para ela como ser-obesa-sendo em sua cotidianidade.
Eu sentia discriminação dos colegas do trabalho. Sabia que eles falavam da minha obesidade. Na hora da imagem da empresa na mídia quem ia ser entrevistada era a colega magra, mas para resolver problemas técnicos, só confiavam em mim.
Era o olhar sobre o corpo, obesidade. Que será que dizem esses olhares? Esses olhares não são apenas um fenômeno biosensorial. A sociedade é panóptica, e representa uma construção histórica e social do olhar na sociedade para vigiar, disciplinar e punir o comportamento dos corpos (FOUCAULT, 1999). O panoptismo está reconfigurado na sociedade moderna com as revoluções tecnológicas que compartilham nas redes sociais uma infinidade de imagens de corpos. Imagens padronizadas hegemonicamente para corpos modelares anoréticos como padrão de beleza, punindo com forte estigma, corpos obesos. Soma-se a isso, o reducionismo biomédico da caracterização métrica da obesidade como doença, que espalha o diagnóstico por meio do Índice de Massa Corporal como de natureza patogênica, tornando esta doença como a mais visível e abundante de todas as doenças jamais vistas na história da humanidade. O sofrimento de Salete não é único e expressa o impacto de uma epidemia de estigma, invisível para quem ressente, de efeitos dramáticos na esfera psicodinâmica das pessoas obesas.
A transformação corporal que aconteceu com Salete após duas gestações modificou profundamente a sua relação com o corpo e seu espaço social. Com isso, altera-se a percepção de si no mundo doméstico e no mundo do trabalho experimentando sentidos antes jamais vividos. Nada acontece subitamente, mas no tempo vivenciado do corpo em obesidade. Nesse tempo nasce um sentido de desconfiança do outro que problematiza seu estar obesa. Salete se constrange ao expressar obesidade:
Meu filho mais velho, que era esportista, não dizia nada, mas eu sei que ele sentia vergonha de mim por eu ser obesa. Eu tive problema com meu marido por causa da obesidade. Ele não admitia que eu não me cuidava. Me dizia que tinha perdido a libido por mim. Foi muito difícil.
A possibilidade de ser erótica para o outro foi desfeita, pois não era mais capaz de despertar desejo no parceiro. A obesidade fragilizou seu casamento. Não há uma representação do desejo do marido e vice-versa, mesmo com as “luzes apagadas”. Tudo envolve corporeidade e rejeição. Também o marido era obeso, mas seu corpo não parecia rejeitado no trabalho e nem na família. Somente o corpo feminino parece incomodar como representação antagônica às exigências do mercado (que exige e controla medições corporais), e às requisições do afeto. Esse mal-estar se expressa como sofrimento decorrente do estigma construído socialmente. Segundo Dejours (1993), a noção de sofrimento é subjetiva, psíquica, psicanalítica e psiquiátrica, pois pode objetivar-se em insatisfação, ansiedade, depressão e até suicídio. Insatisfação e ansiedade são sentidos vivenciados por Salete durante 20 anos em que esteve fora dos padrões métricos do IMC mas, ainda hoje, com arquétipo normal, continua obesa em seu imaginário e a manter um retorno constante da ânsia de emagrecer.
Chama atenção o filho que era atleta e tinha vergonha do corpo da mãe. Não podia convidá-la para o ambiente escolar, pois o corpo gordo de Salete era incoerente para o lugar, não poderia fazer parte do espetáculo. Parecia um descolamento da condição materna que se expressava no conflito da imagem da mãe obesa para o filho atleta – como duas realidades separadas: obesidade e sociedade.
Modificam-se as relações interpessoais às quais a aparência corporal é parte da estrutura social. Assim, Salete se sente rejeitada, estigmatizada, colocada à margem das experiências de vida que são importantes para os seus afetos. Às vezes, Salete se percebia completamente paralisada em seu próprio mundo porque não havia uma interação e aceitação de si em seu cotidiano. São os olhares que emanam sem palavras e se constituem como textos de vigilância panóptica da sociedade como leitura que sanciona, julga e fere.
Para ela, “obesidade é uma doença que interfere na vida de qualquer pessoa independente da profissão. É ruim pra todo mundo.” Relata que percebeu o quanto a obesidade pode trazer complicações como o diabetes: a doença de sua mãe. Queria cuidá-la, mas “ela dizia que não confiava em mim porque eu era gorda e não cuidava nem de mim mesma.”
A ideia de cuidado está relacionada à aparência de obesidade da filha que não cuida de si. Como poderia cuidar da mãe? É criada uma tensão sentida por Salete como fracasso e desconforto na cena familiar. A relação da obesa com sua obesidade reconcilia o sujeito objeto sem cisão e o enunciado sobre a rejeição da mãe sobre seu corpo e a linguagem dos olhares se somam para significar a falta de “cuidado de si”. Buscou a terapia para desconstruir o fenômeno obesidade e reconstruir o cuidado em conformidade (Heidegger, 2006).
Para Goffman (1988), o ofensivo pode se constituir como modelo em que o estigma corporal destrói a identidade social. O estigma está no olhar do outro. Salete percebe que sua imagem corporal está dissociada do que a família, os amigos e o trabalho lhe exigem. Mas, mesmo obesa, ela persiste nas interações cotidianas de modo positivo, com simpatia. Diz que vivia sua corporeidade ao mesmo tempo em que temia o risco de enfermar-se, influenciada por estudos de saúde que tratam de possíveis enfermidades associadas à obesidade. Salete experimenta sentimentos de ansiedade e angústia agravados pelos olhares de outros. Portanto, no contexto do fenômeno da obesidade há, em construção concomitante, uma epidemia subjetiva de natureza psicogênica do estigma da obesidade, como efeito perverso da hegemonia do discurso biomédico do fenômeno.
Os fragmentos da história de vida de Salete revelam seu corpo obeso e a coexistência em que o estigma e a rejeição do outro sobre a obesidade, antes velados, passam a ser sentidos como um problema para ela. O atravessamento do olhar em juízo do outro faz instalar a culpa de estar gorda, ou disforme dos padrões.
A partir de sua narrativa vários significados da obesidade vêm à tona. O olhar do outro lhe causou espanto tantas vezes e fez surgir uma estranheza ao estar diante de si. Durante 25 anos com obesidade acostumou-se a sua imagem, vestuário, comida, mundo circundante. A morte da mãe por consequência da diabetes e o aumento de sua glicemia foram os elementos que a fizeram abrir-se para a necessidade de mudança. O corpo antes para ela confortável passa a ser angústia, sofrimento e medo da perda. Na dimensão simbólica trata-se da perda de sua mãe, do lugar de mulher e do materno.
Em sua narrativa, diz que obesidade se tornou insuportável com a morte da mãe por diabetes. Seria a próxima a falecer? E ainda jovem! Soma-se ao medo de adoecer de enfermidades associadas à obesidade, o assédio estigmatizante permanente do outro próximo e afetivo, lançando-a em um abismo de melancolia. Aparentemente não esperava nada do outro que a observava, mas ressentia. Normal e patológico se confundem para velar ou desvelar obesidade enquanto sintoma social e afetivo. Da estranheza de sua obesidade passou a pensar um novo projeto de corpo.
Uma abertura de mundo
Ao conhecer a história de Salete, sabe-se do seu incômodo devido aos episódios de compulsão alimentar experimentados num passado recente. “Minha relação com alimento foi e ainda é marcada pela compulsão. Não sei se o termo da área da psicologia está bem colocado, mas do que já vi e vivi, eu acho que eu posso dizer que é compulsão alimentar”. Ela conta sobre o descontrole que resultava em ingestão alimentar excessiva, mesmo estando sem fome.
Se eu estivesse triste, nervosa, comia tudo que eu via pela frente. Não importava se tinha gosto bom ou ruim. Eu comia. Comia gelado. Comia tudo. Ficava puxando os pedaços das comidas em pé na frente da geladeira.
Esta cena aparentemente grotesca ou primitiva, de acordo com a leitura de Norberto Elias (1994), revela uma relação solitária de desobediência com a estética social e as normas alimentares. Salete narra recordar sentimentos e emoções originárias da compulsão. Sentia-se culpada, ansiosa, angustiada, triste e envergonhada de si mesma.
Ao lembrar leituras de Bertaux (2010) e Souza (2006), recorremos à memória como capacidade de existir, tal como a personagem Salete deste estudo ao narrar sua alimentação na infância. A memória ressurge como linguagem que expressa a experiência da menina que conheceu o comer como sinônimo de satisfação pela abundância.
Aprendi a comer assim. Desde criança eu como assim. E não adianta me dizer que só posso comer duas colheres de arroz porque comer pouco para mim não serve. Eu quero muito! A mesma coisa é o bolo, só servia comer um bolo inteiro. Do mesmo modo era com pães, oito ao dia.
A falta de controle diante da comida parece ter sido fundante na construção do corpo obeso de Salete. Ao contar sobre sua relação com a comida em abundância, esta mulher informa a disposição que origina obesidade, rejeição e angústia. A narrativa de Salete permite compreender os sentidos atribuídos à experiência de engordar-se. Ainda que a força do sentir seja impenetrável, é possível estabelecer uma interação com significados e emoções reveladas. Ao narrar, ela representa estar no mundo em sua experiência e alcança o outro (o investigador) a tecerem horizontes de compreensão.
Nessa abertura, em que reflete e enuncia significados relacionados à necessidade de uma ação, ela busca o cuidado nomeado emagrecimento saudável e duradouro. Ela tenta superar o problema da compulsão alimentar, o qual julga como fio condutor de obesidade.
Em seu contexto particular estabelece como prioridade a aprendizagem do comer. O desejo é reaprender a comer como uma pedagogia terapêutica e superar culpas, medos do julgamento social de obesidade, do sofrimento pelo estigma socialmente construído. Na sua trajetória, Salete assume o suporte terapêutico especializado como meio para reconstruir sua relação com a comida e as emoções (afeto e erotismo). “Lá onde eu me trato há quase dois anos, tem uma equipe integrada, para olhar a pessoa por inteiro. O suporte terapêutico é muito importante.” O olhar é também juízo. Salete precisou recorrer a uma abertura de mundo para desvelar novos sentidos para seu corpo e a sexualidade. Surge então a possibilidade de fazer dieta, atividade física, psicoterapia. O fenômeno obesidade se desvela em outros significados.
Considerações finais
A obesidade se apresenta como um sintoma social e biológico. Não há como dissociar essas concepções. Ela é concebida hegemonicamente como anormalidade na esfera biomédica e repercute na sociedade como uma construção panóptica que julga impiedosamente as pessoas obesas, inscrevendo-as em uma experiência de sofrimento que se soma como efeito perverso dessa abordagem. No caso de Salete, a obesidade percebida pelo olhar estigmatizante do outro convida-a a romper a impessoalidade e a voltar-se para si. Dessa experiência biográfica, pode-se apreender que uma estratégia psíquica e pedagógica centrada na pessoa e na sua singularidade sociocultural contribuiu decisivamente para redimensionar a problemática da obesidade na vida de Salete, que elucida novos caminhos para compreender o fenômeno da obesidade na sociedade moderna.
Ao especular sobre si, observa que durante muitos anos não havia um reflexo nítido de seu corpo, havia uma permanência de obesidade, por isso manteve-se despreocupada ou descuidada consigo mesma. Mas, alguns eventos originaram conflitos que se misturaram com sentidos de rejeição e angústia provocando uma abertura de mundo para o cuidado de si.
Os olhares que a rejeitaram foram os mesmos que distanciaram e julgaram obesidade. Assim, a obesa desconstrói sua percepção sobre obesidade e experimenta uma nova aprendizagem de representações de seu corpo.