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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub 19-Jan-2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.34212 

Artigos

Reflexões sobre modernidade, ciência, saúde mental e trabalho na universidade

Reflexiones sobre la modernidad, ciencia, salud mental y el trabajo en la universidad

Thoughts on modernity, science, mental health and work at the university

Gabriella Suzana Lorenzzon Maffioletti1 
http://orcid.org/0000-0001-9318-0941

Edival Sebastião Teixeira2 
http://orcid.org/0000-0002-0712-8109

Hieda Maria Pagliosa Corona3 
http://orcid.org/0000-0003-1790-5423

1Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Pato Branco (2014). Psicóloga do trabalho na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Campus Francisco Beltrão.

2Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) (2003). Professor titular da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Campus Pato Branco.

3Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2006). Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Campus Pato Branco.


Resumo

Este artigo traz reflexões sobre a modernidade que, como visão de mundo, influencia aspectos determinantes da sociedade atual, como são a ciência e o trabalho. São apresentados dados de afastamento do trabalho por doenças em servidores públicos de duas instituições de ensino federais, demonstrando como a organização moderna do trabalho tem interferido na saúde mental dos trabalhadores. Propõe repensarmos a ontologia dual, derivada do cartesianismo, a partir da ontologia da vida que, ampliando o olhar, faz com que os problemas vividos atualmente, como a doença mental no trabalho, possam ser interpretados segundo novos olhares.

Palavras-chave Modernidade; Ciência; Saúde mental e trabalho; Ontologia de vida

Resumen

Este artículo esboza reflexiones sobre la modernidad que, como cosmovisión, sigue incidiendo en aspectos determinantes de la sociedad actual, como la ciencia y el trabajo. Son presentados datos sobre el alejamiento laboral de servidores públicos de dos instituciones de educación federales, que demuestran cómo la organización moderna del trabajo ha afectado la salud mental de los trabajadores. Proponemos repensar la ontología dual, derivada del cartesianismo, a partir de la ontología de la vida, que ampliando la mirada, haz que los problemas que se viven actualmente, como la enfermedad mental, se pueden interpretar según nuevas perspectivas.

Palabras clave Modernidad; Ciencia; Salud mental y trabajo; Ontología de la vida

Abstract

This article outlines reflections on modernity that, as a worldview, continues to influence determining aspects of today's society, such as science and work. Data about the absence from work of public servants of two federal education institutions are presented, which demonstrate how the modern organization of work has affected the mental health of workers. We propose to rethink the dual ontology, derived from Cartesianism, from the ontology of life, which by broadening the view, makes the problems that are currently experienced, such as mental illness, can be interpreted according to new perspectives.

Keywords Modernity; Science; Mental health and work; Life ontology

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar alguns dos elementos constitutivos da ontologia e epistemologia modernas, baseadas na filosofia cartesiana, em relação com a análise de dados de afastamento por doença mental em servidores de duas instituições de ensino federais públicas situadas no Paraná. De certa maneira, entende-se que, ao lançar luz sobre o caminho que deu lugar às características do trabalho na modernidade, será possível olhar para o processo de adoecimento a partir de um ponto de vista mais amplo, que supere a dicotomia que insiste em “esbarrar na discussão que contrapõe o homem e o meio em que vive” (Santos & Galery, 2011, p. 38).

O artigo tem início com a revisão sobre o que é a modernidade e como a organização do trabalho atualmente tem suas raízes postas em cenários derivados desse período histórico. Na sequência, são apresentados os dados de afastamento do trabalho em função de doença em servidores públicos federais como meio de visualizar, especialmente, o quadro de doença mental entre os trabalhadores em questão. Segue-se a isso a problematização da ontologia e epistemologia modernas, contendo algumas considerações sobre o que tem sido pensado em termos de possibilidades para revisar a lógica dominante que funda a sociedade ocidental atual e que influencia nos processos de adoecimento que são foco desta pesquisa.

Para tanto, serão mobilizados recursos conceituais de Antony Giddens (1991), em especial na crítica que tece à modernidade. Além disso, são utilizadas análises de alguns autores, como Walter Mignolo (2017), Arturo Escobar (2007), Enrique Dussel (2005), Ramón Grosfoguel (2008; 2016), que dão uma visão latino-americana da história que se passa desde o século XV e dá lugar ao desponte da modernidade como visão de mundo supostamente única. Essa perspectiva decolonial colabora com o texto na medida em que apresenta algumas possibilidades fundadas na ontologia da vida que faz frente à ontologia dual, derivada do cartesianismo, e traz novas perspectivas de análise e propostas para um modelo de trabalho que seja mais saudável.

A modernidade e o trabalho

No livro “As consequências da modernidade”, Giddens (1991) evidencia como os sociólogos clássicos, embora tenham analisado o advento da sociedade industrial, inclusive criticando-o, não puderam prever as consequências ambientais do industrialismo nascente. Esse fator não constava em sua análise à época. Tampouco foi dada grande atenção à possibilidade de uma indústria de guerra, fato que surgiu com força ao longo da história dos últimos dois séculos, sendo até hoje uma fonte de ameaça à vida, especialmente a partir da criação das armas nucleares. Havia uma atmosfera de otimismo com relação à nova ordem, com sua promessa de mobilidade social, explicação racional e domínio da natureza, que fazia crê-la eminentemente pacífica.

Hoje sabemos que mais conhecimento sobre a vida social não significa mais controle sobre ela. Isso pode ser válido para as ciências naturais, mas inaplicável às ciências sociais. O mundo social não é estável e o conhecimento que vai sendo produzido sobre essa realidade a desestabiliza, na medida que promove nela constantes interferências. Segundo Giddens (1991, p. 20), a relação entre a sociologia e seu objeto, que são as ações dos seres humanos no contexto da modernidade, deve ser entendida em termos de "hermenêutica dupla", ou seja, deve-se saber que “o conhecimento sociológico espirala dentro e fora do universo da vida social, reconstituindo tanto este universo como a si mesmo como uma parte integral deste processo”.

A vida social escapou, então, do que Giddens (1991, p. 43) chamou de “impacto totalizador que a herança do pensamento Iluminista estabelece como meta”. Embora tenha promovido muitos avanços, a ciência não dá conta de explicar todos os mistérios da vida, nem de resolver todos seus problemas; a natureza não pôde ser completamente dominada e a ascensão social não se efetivou de maneira a acalmar a desigualdade social do mundo. A julgar pelos dados de saúde mental mundiais evidenciados pela Organização Mundial da Saúde, tampouco se pode dizer que o ser humano está feliz ou realizado (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2019).

Miriam Lang chama a atenção aos mal-estares que existem nas sociedades do norte mundial e que são invisibilizados. São dados importantes que acabam sendo ocultados quando se tomam essas sociedades como exemplos de desenvolvimento. A autora cita a solidão, a angústia existencial, a depressão, o estresse, as relações humanas instrumentais, a falta de tempo para compartilhar e desfrutar das coisas que são compradas, como exemplos. Diz ela que “já desde os anos 1970 está comprovado que a partir de certo nível de vida não há correlação entre o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e o bem-estar ou a felicidade de sua população” (Lang, 2016, p. 29).

Diz Giddens (1991) que modernidade é uma faca de dois gumes, tem um caráter bifronte, como expressa Florit (1998), e que apresenta inúmeras boas oportunidades coladas a um lado sombrio que foi e está sendo desvelado com o tempo. Para conceituar, tem-se que, para Giddens (1991, p. 8):

Modernidade refere-se ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta.

A caixa preta tem se aberto ao longo dos anos. O crescimento do poder totalitário, o colapso do sistema econômico, os riscos ambientais e desastres ecológicos, somados aos conflitos bélicos e às ameaças nucleares são alguns dos dados que essa caixa preta tem revelado, assim como as doenças mentais. Vivemos um momento em que as consequências secundárias do industrialismo já são primárias e as perguntas e incertezas retornam com toda a força. A modernidade surgiu como possibilidade de produzir respostas para toda pergunta, mas o conhecimento que foi sendo alcançado demonstra que a validade das respostas é limitada. Para Giddens (1991), o surgimento de um mundo de incerteza fabricada é o resultado do desenvolvimento da ordem industrial a longo prazo.

Analisando a organização do trabalho atual, é possível identificar traços que parecem sair dessa caixa preta da modernidade. O sofrimento psíquico se “esconde” nas atividades humanas geradoras de significados. Uma dessas atividades é o trabalho. Sendo fonte de significados, o trabalho gera possíveis “outros” da ação humana, e buscar estes outros é tarefa do investigador da psicologia. Assim, a atividade do psicólogo e do sociólogo se aproxima quando fala-se sobre o trabalho, já que qualquer área fundante da identidade do sujeito contém muitos “outros” (Codo, 2002). Finalmente se chega à constatação de que “é preciso investigar muito e muitas coisas distintas, porque o significado do trabalho se esconde em todas elas” (Codo, 2002, p. 174).

O trabalho é um campo complexo e dinâmico da vida do ser humano e não se restringe ao trabalho profissional. Representa uma relação de transformação dupla entre o homem e a natureza que oferece como resultado a construção de significado (Codo, 2002; Foster, 2005), embora “durante muito tempo não foi pensado como parte de um conjunto de aspectos significativos da vida das pessoas” (Borsoi, 2007, p. 104). Essa incompreensão tem uma de suas raízes na separação (mais suposta do que real) entre o sujeito e o meio em que vive, fazendo com que o problema da doença mental seja ora localizado no contexto, caso em que o indivíduo não é visto como capaz de fazer frente à materialidade da vida e dos fatos, ou seja, é vítima de seu ambiente; ora no indivíduo, caso em que a vida social não teria nenhuma relação com os problemas pessoais, ou seja, só adoece quem não é bom o suficiente.

De certa forma, ao analisar a modernidade, Giddens (1991) não supera essa separação entre o indivíduo e o meio e segue considerando que, embora em relação de mútua imbricação, a estrutura tem papel determinante na ação dos agentes.

Segundo Heidemann (2009), a noção de progresso deriva da modernidade, atingindo seu ápice no século XIX. Acreditava-se, na época, que pessoas comuns poderiam superar a danação social e ascender socialmente por meio de uma lógica de desenvolvimento econômico. Desenvolver um país era sinônimo de implantar uma economia de mercado e inserir todos os cidadãos nessa economia. Países avançados tornaram-se, então, modelos a serem seguidos.

A forma como se estruturou a organização do trabalho tal como a vemos hoje deriva dessa ideia de desenvolvimento e progresso, que é limitada. Não dá conta de contemplar a dimensão humana do trabalho, entendendo-o como um dos meios de realização da vida dos sujeitos que trabalham.

Conforme já expresso anteriormente, hoje já se sabe que motivações econômicas têm menos influência sobre a capacidade produtiva de trabalhadores do que condições ambientais que favoreçam a saúde mental. Giddens (1991, p. 147) afirma que há provas de que muitas pessoas nos estados desenvolvidos (que mais coerentemente poderiam ser chamados de economicamente avançados) vivenciam a “‘fadiga do desenvolvimento’ e também de uma consciência geral de que o crescimento econômico continuado não vale a pena, a menos que melhore ativamente a qualidade de vida da maioria”.

De certa forma, pode-se dizer que este é o quadro geral da situação do trabalho na modernidade. Nesse sentido, cabe considerar que a mentalidade atual, que é eminentemente moderna, tem suas origem e base postas na filosofia cartesiana. A organização do trabalho moderna se baseia na divisão entre o pensar e o fazer, que por sua vez deriva do industrialismo moderno e tem por objetivo o desenvolvimento econômico. Ao olhar para as doenças mentais produzidas no ambiente de trabalho, é preciso ver além do contexto atual e entender como chegamos até aqui, e especialmente pensar em como se construíram os conceitos que hoje formam parte da nossa sociedade, cultura e de nossa própria subjetividade. Para explicar o fenômeno da doença mental derivada do trabalho, é necessário pensar em como se compôs a narrativa da modernidade e qual influência tem sobre a saúde mental dos trabalhadores.

O que dizem os dados

Considerando o quadro que vem sendo desenhado, chama a atenção a necessidade de que seja estudada a saúde mental em relação com o trabalho de uma maneira ampla. Nos dados apresentados neste tópico, nos ateremos ao trabalho nas universidades. Chama a atenção que esse processo de adoecimento é recente, porém intenso e de amplo alcance, o que ressalta a necessidade de que seja estudado.

Essa pesquisa se qualifica, nesses termos, como um meio de ampliar o espaço de debate com respeito aos rumos que o trabalho na universidade tem tomado e ainda com relação aos impactos, cabendo destacar Freud (1996, p. 73) ao afirmar que:

Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização.

Assim, reafirma-se o propósito de analisar o trabalho para ampliar a visão sobre ele sem que a crítica implícita na própria apresentação dos dados seja erroneamente compreendida como qualquer tipo de rebeldia que não aquela de superar o atual estado de coisas, especialmente nos pontos em que, como sujeitos, vemos como mais contundentes.

Os dados utilizados correspondem aos afastamentos do trabalho por motivo de doença de servidores públicos de duas instituições de ensino federais multicampi, um instituto e uma universidade, ambos situados no estado do Paraná. A coleta dos dados ocorreu através do acesso aos registros feitos no Subsistema de atenção à saúde do servidor público - SIASS, em que são registrados os afastamentos dos servidores de ambas as instituições. Foram então organizados em ordem decrescente a partir do número de afastamentos registrados por cada doença. Estão sendo utilizados neste momento as 15 maiores causas de afastamento do trabalho em função de doença, entre 01 de janeiro de 2018 e 01 de janeiro de 2020.

De acordo com o quadro de pessoal disponível no site da instituição, em novembro de 2019 o Instituto contava com 2341 servidores divididos em 26 campi. Já a universidade, em consulta aos dados de gestão de pessoas disponíveis nos sistemas corporativos internos, chegou-se ao número de 3659 servidores, divididos em 13 campi. Deste modo, no total, o público é de 6 mil servidores.

As informações contidas no SIASS não contemplam características do ambiente de trabalho, apenas são registrados os códigos dos diagnósticos nos prontuários. Não há, tampouco, descrição da gravidade dos transtornos. Por esse motivo, vale ressaltar que os dados aqui apresentados não representam todas as doenças mentais presentes nos servidores dessas instituições, mas sim, somente os registros de afastamento do trabalho por esse motivo. Eles são usados por serem o único registro formal do problema aqui descrito, além dos prontuários individuais, cujo registro não é centralizado e o acesso é restrito pelo sigilo médico que deve imperar em sua utilização e no arquivamento.

O Quadro 1, apresentado na sequência, contém as 15 principais causas de afastamento do trabalho em função de doenças entre os servidores das duas instituições em questão, já descritas anteriormente. Os dados se referem a todos sem distinção entre cargo, carreira ou função. Apresentam-se em negrito as doenças mentais que compõem o quadro, conforme segue:

Fonte: Elaborado pelos autores.

Quadro 1 Principais causas de afastamento do trabalho por doença em duas instituições federais de ensino no período de 01/01/2018 a 01/01/2020 

Os dados mostram que, dentre as principais causas dos afastamentos entre os servidores das duas instituições, doze de quinze são doenças mentais. As três que não pertencem ao rol dos transtornos psicológicos são afastamentos genéricos, como se pode ver: convalescença pós-cirúrgica, que se aplica a todos os casos de cirurgia; exame médico e consulta com finalidade administrativa, que também se aplica a todos os casos e não a uma doença específica e, por último, supervisão de gravidez normal que, tal como as anteriores, não diz respeito a uma situação específica de doença. Assim, tem-se que todas as doenças (com conjuntos específicos de sintomas) que formam o rol das quinze primeiras causas de afastamento do trabalho são transtornos mentais.

Comparados com o total geral, o número dos relacionados aos transtornos mentais está em 60% dos afastamentos, 64% do número de dias de afastamento e 59% do número de servidores afastados. Dentre os transtornos mentais, a maioria é da família dos transtornos de humor, seguidos pela família dos transtornos de ansiedade e estresse. Todos com características que, embora possam ser ligados a condições individuais, têm relação direta com os ambientes em que vivem os trabalhadores, sendo um deles o laboral.

A condição do contexto sócio-histórico atual produz a forma como se faz a prática universitária, seja em seus desdobramentos institucionais quanto nos individuais. A redução de financiamento, as medidas de restrição do quadro docente, o congelamento salarial, a sobrecarga de trabalho, as pressões por aumento da produção científica trazem impactos que serão vividos de maneira diferente por cada universidade, visto que há particularidades históricas que determinam a forma como as mudanças são sentidas. Cada trabalhador usará seus recursos para fazer frente ou não, com maior ou menor intensidade, às pressões que vêm surgindo em seu contexto de trabalho (Sguissardi & Silva Júnior, 2009).

Mancebo et al. (2006, p. 47), sobre este aspecto, afirmam que as mudanças e consequências são múltiplas, destacando nesse contexto, “a submissão a rigorosos e múltiplos sistemas avaliativos onde a eficiência do professor e sua produtividade são objetivadas em índices”.

Há pesquisas que tratam do problema da doença mental em trabalhadores das universidades sendo conduzidas em todo o mundo. Um dos temas recorrentes é a ocorrência de assédio e bullying no ambiente de trabalho, o que está vinculado ao aumento tanto das doenças mentais quanto do consumo de álcool e drogas, sendo o público de mulheres o mais afetado (Shannon et al., 2009; Niedhammer et al., 2006; Rojas-Solís et al., 2019). O excesso de documentação, a falta de mão-de-obra e a desvalorização também são apontados como causadores dos desgastes psicológicos que podem levar à doença mental (Ahsan et al., 2009; Sargent & Terry, 1998).

Em contextos de intensificação da pressão por resultados, somados a cortes de financiamentos em pesquisa e suporte interpessoal reduzido, sobrecarga de trabalho, gestão inadequada, recompensa insuficiente e ausência de controle sobre o trabalho, tendem a produzir o ambiente adequado para o sofrimento mental do trabalhador. Winefield et al. (2003) consideram que a soma desses fatores causa o estresse ocupacional nas universidades de todo mundo. A estabilidade, nesse ínterim, é o meio pelo qual se mantém a liberdade e a autonomia para falar e publicar, ainda que o ponto de vista seja impopular (Winefield & Jarrett, 2001; Winefield et al., 2003).

Por outro lado, se tomarmos a crítica de Boaventura de Souza Santos (2005) à universidade, temos que a produção do conhecimento científico, ou seja, o ethos universitário, especialmente ao longo do século XX, tem se baseado no conhecimento disciplinar, organizado hierarquicamente segundo objetivos de produção do conhecimento que não necessariamente estão vinculados aos problemas sociais cotidianos. Com base nisso, Santos (2005) afirma que a distinção entre ciência e sociedade é absoluta e isso obviamente tem impacto no ambiente laboral universitário, assim como nos trabalhadores que ali se constituem.

A narrativa moderna

A narrativa moderna, abordada no tópico a seguir, vem justamente com a intenção de descrever o processo que deu lugar à formação desse ethos universitário, cujos impactos podem ser analisados em várias frentes, como é a da ampliação das doenças mentais entre os trabalhadores da universidade. O foco está especialmente voltado à ontologia dualista em contraposição à ontologia de vida como meio de repensarmos a vinculação dos servidores ao trabalho, visando a produzir contextos mais saudáveis, conforme já foi expresso anteriormente.

Arturo Escobar (2007, p. 45), tratando sobre o tema do pós-desenvolvimento, dá atenção à ideia de como se compõe uma narrativa. Cita Donna Haraway (1995) que, analisando narrações na área da biologia, afirma que “la narrativa no es ficción ni se opone a los ‘hechos’. La narrativa constituye, de hecho, la urdimbre histórica compuesta de hecho y de ficción”.

A narrativa seria então um "entortamento" histórico, composto tanto por fatos como por ficções, e que dificulta enormemente o desenvolvimento de um trabalho analítico porque faz parecer que há apenas uma forma de pensar e fazer as coisas. Por exemplo, para descobrir a verdade, está a ciência. Seu método neutro e objetivo nos levaria a desvendar todo o mundo a despeito de outras formas de conhecimento. O entortamento, neste caso, está no fato de que a ciência moderna não é neutra, apesar de ter-se atribuído esse lugar de olho de Deus. Sobre isso, diz Escobar (2007, p. 46):

Aun los campos científicos más neutrales son en este sentido narraciones. Tratar la ciencia como narración no es demeritarla. Por el contrario, es tratarla con la mayor seriedad, sin sucumbir a su mistificación como la única “verdad”... Los discursos de la ciencia y de los expertos, tales como el discurso del desarrollo, producen verdades poderosas, maneras de crear el mundo y de intervenir en él, incluyéndonos también a nosotros.

O século XVII e subsequentes provocaram profundas mudanças sociais que repercutiram em toda a humanidade. Eles são, porém, frutos de séculos anteriores. Ou seja, a narrativa moderna surge de um contexto europeu, dominado já por padrões de hierarquia racial, sexual e territorial que se estabeleceram a partir da colonização, imposta pela Europa, para o restante do mundo.

Ramón Grosfoguel (2016), discutindo a epistemologia moderna, determina que esta se constrói baseada numa ontologia dual. Essa concepção ontológica pode surgir em função de uma série de eventos históricos que precederam ao aparecimento do cartesianismo e que foram necessários para que deste pudesse surgir uma epistemologia em que está baseada a Ciência (com maiúscula, como propõe Isabel Stengers, 2015) e a ideia do que sejam conhecimento e verdade na modernidade.

Grosfoguel (2016) esclarece a relação entre ambas as coisas ao afirmar que somente uma ontologia que concebe a separação completa entre corpo e mente pode sustentar uma epistemologia que pretenda ser neutra, objetiva e puramente racional. Ao contrário, se mente e corpo não são vistos como partes separadas, mas sim em entrelaçamento permanente, todo o conhecimento produzido por quem quer que seja estará condicionado ao contexto histórico/material em que este sujeito está inserido.

A ontologia dualista é fundante da epistemologia cartesiana. Concebe o desenvolvimento da mente como um processo que ocorre de maneira totalmente separada do corpo. A mente teria em si a possibilidade de explicar aquilo que ocorre no mundo, podendo inclusive explicar o próprio mundo e a si mesma. Nesses termos, as condições materiais têm menos importância que o metafísico, único meio pelo qual seria possível conhecer a verdade. Sobre este ponto, cabe destacar as asseverações de Descartes, em O Discurso do Método, que formam a ideia da nova forma de construir conhecimento que estava dando a conhecer naquele momento. O autor afirma que:

[...]examinando atentamente o que eu era e vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo e que não havia nenhum mundo, nem lugar algum onde eu existisse, mas que nem por isso podia fingir que não existia; e que, pelo contrário, pelo próprio fato de eu pensar em duvidar da verdade das coisas, decorria muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que, se apenas eu parasse de pensar, ainda que tudo o mais que imaginara fosse verdadeiro, não teria razão alguma de acreditar que eu existisse; por isso reconheci que eu era uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De sorte que este eu, isto é, a alma pelo qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele, e, mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é. (Descartes, 2001, p. 38)

Descartes (2001), determinando a separação entre mente e corpo, hierarquiza-os, e dá à primeira completa vantagem em relação ao segundo. Essa estrutura é a base da Ciência moderna e do que conhecemos hoje como fato cientificamente comprovado.

Ao determinar a ruptura mente/corpo, a localização dos corpos na construção do conhecimento - localização que é política, histórica, marcada por raça, classe, gênero - é ignorada. Para o cartesianismo, não importa mais o corpo, como não importa o local de onde esse corpo fala. Foi precisamente essa supressão, nas palavras de Mignolo (2017, p. 17), “o que tornou possível que a teo-política e a geopolítica do conhecimento fossem proclamadas universais”. A concepção ontológica do cartesianismo é, então, a chave para que se possa entender sua pretensa e amplamente aceita condição de universalidade.

O eu da filosofia cartesiana surge como substituição ao deus cristão que, durante a Idade Média, na Europa, concentrava a condição de onipresença, onisciência e onipotência, fonte, portanto, das explicações a respeito do mundo. O novo eu substitui Deus por sua atemporalidade, neutralidade e universalidade. Haraway (1995, p. 23), analisando as características do objetivismo científico, afirma ser esse não deus, mas um truque de deus que, “prometendo, igualmente e inteiramente, visão de toda parte e de nenhum lugar, são mitos comuns na retórica em torno da Ciência”.

Dizer que o eu cartesiano substitui o deus medieval significa que, segundo essa concepção, a mente, formada de substância diferente do corpo, funcionaria à parte das condições materiais, não estando determinada por “particularidade alguma, está além de qualquer condição de existência” (Grosfoguel, 2016, p. 29). Funciona, então, como a visão do olho de deus, que vendo tudo, não está em lugar algum. Assim, pouco importa quem é o ser que pensa, em que local do mundo se situa e qual contexto o influencia. A produção do conhecimento é, segundo essa concepção, individualizada, como demonstra a famosa asseveração: “penso, logo existo”.

Considerando a mente como corporificada, cai por terra o truque de deus, ou seja, a suposição de que é possível estar em tudo e em nada ao mesmo tempo - tudo vendo, mas permanecendo em neutralidade imaculada. Sem o dualismo ontológico do cartesianismo, afirma Grosfoguel (2016, p. 29), “a mente estaria localizada num corpo, poderia ser similar em substância ao corpo e, então, ser condicionada pelo corpo”. Assim, o conhecimento, ao invés de ser filho do nada, é produzido a partir de um lugar, um espaço no mundo, ou seja, reflete uma produção que é situada.

Donna Haraway (1995, p. 41) afirma que a corporificação do conhecimento “não diz respeito a des-engajamento, trata de um estruturar mútuo e comumente desigual, trata-se de assumir riscos num mundo no qual ‘nós’ somos permanentemente mortais, isto é, não detemos o controle ‘final’”. Traz em sua fala um convite, em oposição à ideia da suposição de neutralidade, a identificar nossas parcialidades ou assumir a própria posição no mundo que nada têm a ver com considerá-la uma posição ideal, única ou universal. É assumindo-a que se diminuem os riscos de universalizá-la.

Apesar do reconhecimento dessa realidade, os critérios para validação do conhecimento e organização das disciplinas nas universidades seguem sendo determinados por uma divisão entre sujeito e objeto como meio para alcançar a “neutralidade” indispensável ao conhecimento - universal, não corporizado, não localizado e ausente de relações sociais, supostamente (Grosfoguel, 2016).

Fato é que os conceitos expressos nos séculos XVII e XVIII são regionais e marcados pela história vivida pela Europa em relação ao mundo de até então. Não são conceitos universais e nem mesmo globais, embora sejam reitores do pensamento científico, das universidades, do trabalho e de boa parte da sociedade atualmente.

Segundo Mignolo (2017, p. 24), esses conceitos, sendo criados em um local determinado, têm, por esta razão, o mesmo valor que outros conhecimentos, criados em outras localidades. A principal diferença entre estes e os demais consiste na transformação dos conceitos europeus em projetos globais, criados com o propósito de dar sentido a “desejos particulares e exigências institucionais”.

Conforme descrito acima, alguns eventos históricos concorreram para tornar possível a expansão, imposição e sustentação dessa mentalidade até os dias de hoje. Grosfoguel (2016, p. 32) discute sobre essa pretensa centralidade europeia a partir de Dussel (2005), que considera que “a arrogante e idólatra pretensão de divindade da filosofia cartesiana vem da perspectiva de alguém que se pensa como centro do mundo porque já conquistou o mundo”.

Nas palavras de Dussel (2005, p. 30), a modernidade, como “novo ‘paradigma’ da vida cotidiana, de compreensão da história, da ciência, da religião, surge ao final do século XV e com a conquista do Atlântico. O século XVII já é fruto do século XVI”. Com isso, o autor quer expressar que o ego-cogito de Descartes é filho do que ele chamou de ego-conquiro. Os europeus viram-se como centro do mundo porque já haviam conquistado e explorado esse mundo. Eram incapazes de ver em si mesmos as marcas dessa pretensa superioridade ao impor uma forma de construir o conhecimento como se fosse universal.

A narrativa moderna se apoia na visão de ponto zero, que tal como expressa Grosfoguel (2008, p. 120), é o ponto de vista que se esconde e se coloca para lá de qualquer ponto de vista, “ou seja, é o ponto de vista que se representa como não tendo um ponto de vista. É esta visão através do olhar de deus que esconde sempre a sua perspectiva” e somente por isso é vendida como universal.

Sobre este tópico, Boaventura de Souza Santos (2006, p. 138) assim considera:

O que distingue o debate moderno sobre o conhecimento dos debates anteriores é o fato de a ciência moderna ter assumido sua inserção no mundo mais profundamente do que qualquer outra forma de conhecimento anterior ou contemporânea: propôs-se não apenas compreender o mundo ou explicá-lo, mas também transformá-lo. Contudo, paradoxalmente, para maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune às transformações do mundo.

Grosfoguel (2016) trata dos genocídios/epistemicídios que abriram caminho para que a ciência moderna pudesse supor-se universal, a partir do século XVII, considerando-os como as condições sócio-históricas de transformação do ego-conquiro em ego-cogito.

Na conquista de Al-Andalus, a colonização se deu sobre mouriscos e marranos. Não se colocava em jogo a humanidade das vítimas, mas sim suas escolhas teológicas, o que faz esse conflito ser considerado como religioso, embora não racista.

Tais métodos de colonização foram transportados para as Américas. O genocídio dos povos originais foi acompanhado de um epistemicídio, ou seja, todo o conhecimento sistematizado pelos povos das Américas foi destruído. Cabe ressaltar que este conhecimento estava muito presente em seus corpos, ou seja, matar os povos das Américas era também matar seu conhecimento, ou a possibilidade de supervivência do conhecimento acumulado por esses povos. A aniquilação da espiritualidade também estava no “pacote colonial”. A evangelização impediu que as concepções de espiritualidade dos povos americanos colonizados permanecessem.

O fato de os indígenas não cultivarem a espiritualidade a partir dos moldes cristãos foi motivo para que sua condição de humanos fosse questionada. Nesse sentido, diz Grosfoguel (2016, p. 36) que, no “imaginário cristão da época, não ter uma religião equivalia a não ter uma alma, isto é, ser expulso da esfera do humano”, podendo então ser escravizado, submetido, civilizado. O “racismo religioso” foi o primeiro elemento racista do “sistema-mundo patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista”.

Nesse sentido, Grosfoguel (2016, p. 36), quando afirma que “esta lógica institucional racista de “não ter uma alma” no século XVI ou de “não ter uma biologia humana” no século XIX tornou-se o princípio organizador da divisão internacional do trabalho que culminou na acumulação capitalista em escala mundial”. Considerando a posterior organização do trabalho, chamada por Antunes (2019) de Taylorista-Fordista, tem-se que a determinação de quem são os trabalhadores que devem executar e a quem cabe o pensar e gerir o trabalho, é uma consequência dessa divisão anterior entre humanos e não humanos, animados e inanimados que foi sendo historicamente constituída. Por outra parte, esse modelo também tem suas consequências macro, acentuando a divisão entre centro e periferia e primeiro e terceiro mundo, por exemplo.

Ambos, negros e indígenas, passam a ser considerados inferiores epistemicamente e não civilizados, o que mais tarde foi entendido como sinônimo de ausência de inteligência. A ideia racista da falta de humanidade e espiritualidade dos negros e índios é o berço das ideias do século XX de que os negros têm menores coeficientes de inteligência (Grosfoguel, 2016).

Ao tratar sobre as formas de exploração que constituem a formação econômica do Brasil, Celso Furtado (1971, p. 67) afirma que os jesuítas desenvolveram “técnicas bem mais racionais de incorporação das populações indígenas à economia da colônia”, o que constitui fator decisivo para seu êxito na penetração econômica da bacia amazônica”. Incorporar as populações à economia da colônia significa colonizar, explorar, usurpar. Neste caso, pelas técnicas de colonização utilizadas, não apenas corpos foram escravizados, mas sim todo um sistema de conhecimento geográfico, inclusive. Chama a atenção que esse tipo de colonização, que Furtado chamou de “não coercitiva”, tinha o poder de estender-se indefinidamente. Assim, permanecem na colônia as marcas subjetivas da colonização, que foram de corpo e também de alma.

Outro movimento epistemicida/genocida descrito por Grosfoguel (2016) foi visto na caça às bruxas. As mulheres resguardavam conhecimentos ancestrais, assim como estabeleciam as formas comunais de organização da política e da economia. Queimar os corpos dessas mulheres significava queimar uma estrutura social e o conhecimento que a sustentava. Nessa condição é que se estabeleceu o patriarcado centrado na cristandade. Os reflexos desse evento histórico tão marcante para a vida das mulheres também podem ser vistos no lugar hoje ocupado pelas mulheres na divisão internacional do trabalho.

Diante disso, tem-se que é preciso descolonizar a epistemologia tornando-a plural. Descolonizar ainda a subjetividade a partir da percepção da possibilidade de outros fazeres e outros pensares que, embora partindo de pontos diferentes, podem formar conhecimento válido e formas de ação coerentes do ponto de vista da relação do homem com a natureza, com seu trabalho, com a sociedade.

Diz Ballestrin (2013, p. 108) que é necessário “Desprendimento, abertura, de-linking, desobediência, vigilância e suspeição epistêmicas” para que se promova a decolonização epistêmica.

Isso não quer dizer que se queira taxar como equivocados todos os frutos do ego-cogito. A ideia é promover outros lugares de fala que permitam que outros mundos apareçam, para além daquele criado a partir do paradoxo moderno/colonial. Porto-Gonçalves (2006, p. 38) chama esse movimento de mundializar o mundo. Isso se faz a partir de uma multiplicidade epistêmica. É preciso promover a “desprovincianização e o reconhecimento de novos lugares de enunciação, trazer o espaço para dentro da história e deixá-lo falar”.

Arturo Argueta (2015, p. 154), tratando do Diálogo de saberes e do “Buén Vivir”, os conceitua como “antiguas porque ambas están basadas en la vida cotidiana de los pueblos y nuevas porque han recobrado un inusitado vigor dentro de los proyectos etnopolíticos de los pueblos originarios”. Nesse sentido é que se pode afirmar que aquilo que chegamos a conceber agora como um real desenvolvimento - em contraponto com a busca pelo desenvolvimento econômico como único objetivo, já era a base fundante da estrutura vital dos povos originários da América Latina.

Assim, pensar os problemas que surgem da caixa preta da modernidade requer reconhecer que há formas múltiplas de pensar e viver e que algumas dessas alternativas são prévias à colonização. Há também múltiplos objetivos de vida que tomam por base a ideia da comunidade. Não se trata de um apelo pela volta de antigos sistemas de vida, até porque seria impossível esquecer o que está marcado pela história. Trata-se de identificar que, para além das formas de vida e de saber que imperam atualmente, há alternativas que podem ser mais saudáveis e sustentáveis, fontes de um desenvolvimento verdadeiramente humano.

O que se quer aqui é colaborar para abrir oportunidades no sentido de buscar rever aqueles problemas que já são reconhecidos como tais atualmente, mas que ainda se apresentam sem uma solução plausível. Trata-se também de olhar para o problema identificando causas que podem ficar ocultas. Olhar para o contexto sócio-histórico e colonial de que somos filhos é poder começar a pensar de outra maneira os problemas que enquanto sociedade enfrentamos. E isso se alcança pensando junto. Decolonizando colonizados e colonizadores. Não se trata de uma disputa, mas de um reconhecimento da necessidade de aprender a andar junto, em comunidade.

Vandana Shiva (2003, p. 15), na introdução de seu livro Monoculturas da Mente, afirma que:

As monoculturas da mente fazem a diversidade desaparecer e, consequentemente, do mundo. O desaparecimento da diversidade corresponde ao desaparecimento das alternativas - e leva à síndrome FAIAL (falta de alternativas)... As alternativas existem sim, mas foram excluídas. Sua inclusão requer um contexto de diversidade. Adotar a diversidade como uma forma de pensar, como um contexto de ação, permite o surgimento de muitas opções.

Aos decoloniais, como Walter Mignolo e Arturo Escobar, a ideia da diversidade é muito cara, e nela apoiam a construção das possibilidades englobadas pelo que chamam de ontologia da vida, uma contraposição à ideia de ontologia dualista, derivada das compreensões cartesianas de mundo a partir da ciência moderna. Nesse sentido, Mignolo (2017) chama à ação quando afirma ser necessário sermos epistemologicamente desobedientes. A rebeldia contra uma episteme circundada pela ideia de que estão a Europa e as sociedades do norte no centro do mundo é nos colocar não como centro, mas como criadores também de nossa história.

A descolonização proposta por Giddens, não como uma terceira via, mas como a criação do que Mignolo (2017) chama de pensamento fronteiriço, passa por nos desprendermos das principais narrativas ocidentais. A conquista de bens materiais como meio para alcançar a felicidade é posta, então, em cheque. Se é necessário conquistar uma condição material decente de vida, a partir de um certo ponto já não dá conta de preencher o vazio que se sente. Que ponto é esse? E que vazio é esse? São duas questões ligadas diretamente à compreensão do trabalho humano em sentido amplo. E à superação do atual estado de coisas que vivemos na famigerada modernidade.

Considerações Finais

As alternativas de adaptação do indivíduo a contextos de trabalho potencialmente causadores de doenças mentais, a medicalização do sofrimento, o reconhecimento de que o estresse é parte natural da vida profissional e a naturalização do sofrimento em massa são produtos da síndrome FAIAL, conforme assinalou Shiva (2003). Reconhecer a existência de outras possibilidades, identificar alternativas são necessários para pensar e repensar a questão da saúde mental e do trabalho de forma mais ampla e efetiva.

Se por um lado temos a ontologia moderna dual a moldar as formas de organização do trabalho e da ciência, temos também algumas comprovações de que é preciso ir além, para nos tornarmos capazes de construir condições melhores de vida para cada ser humano e para todos em conjunto.

Como se diz comumente, é preciso pensar “fora da caixa”. Assim, não basta pensarmos sobre o trabalho, mas precisamos fazê-lo “fora da caixa”, da caixa preta da modernidade, para utilizar a analogia de Giddens (1991). Este ensaio é um convite despretensioso para que, de forma integrada, possamos ir abrindo essa caixa para tornar possível a criação de novas formas de vida. Isso se faz em conjunto.

Assim, mais do que dar respostas, ficam perguntas, inquietações para repensarmos tanto a ciência como o trabalho, para repensar a colonialidade subjetiva à que fomos submetidos e que nos impede, muitas vezes, de enxergar, rever e refazer, em conjunto.

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Recebido: 18 de Setembro de 2020; Aceito: 06 de Janeiro de 2021

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