Introdução
A presença mobilizada e conflitiva dos jovens na esfera pública brasileira, sobretudo a partir das jornadas de junho de 2013 e das ocupações secundaristas das escolas públicas no biênio 2015/2016, revitalizou os estudos desses segmentos como protagonistas de processos políticos recentes. É certo que nesse período predominassem desconfianças e ceticismo quanto à capacidade de ação política dos jovens, no entanto é preciso ressaltar que, desde os anos 1990, os estudos sobre as denominadas culturas juvenis que agregaram jovens de camadas populares em seus territórios de moradia às novas modalidades de luta, como as ocupações universitárias em 2008 (Bringel, 2009), documentam e analisam a diversidade de modos de intervenção juvenil na esfera pública.
Os últimos vinte anos anunciaram mudanças importantes nas formas da ação coletiva, dos protestos e do conflito político protagonizados por jovens em caráter global que agregam hoje o campo dos movimentos sociais (Pleyers, 2016). As mutações na “forma movimento” clássica para modelos de organização mais abertos e horizontais têm levado a transformações na autodefinição dos grupos (Bringel, 2018). Se até os anos 1990, no Brasil, os termos de autodefinição se resumiam a “associações”, “partidos”, “sindicatos”, “redes”, “movimento”, atualmente, há uma pluralidade maior, abrangendo também “coletivos”, “ocupas”, “frentes”, “levantes” etc. Estas transformações, no entanto, não significam que as formas “clássicas” desapareceram; elas permanecem e ainda atraem jovens, tendo em vista o engajamento em partidos políticos, sindicatos etc.
Uma série de relevantes e variados estudos abarcou a questão das motivações, condições, razões, disposições, competências, mecanismos e possibilidades de engajamentos em relação às trajetórias individuais (Sawicki & Siméant, 2011; Seidl, 2009; 2014; Fillieule, 2015; Silva & Ruskowski, 2016). Este artigo, especificamente, pretende oferecer algumas reflexões sobre o modo como os jovens dão significados à sua própria experiência de participação política na contemporaneidade, tendo como ponto de partida processos complexos e multifacetados que ainda suscitam a necessidade de novos estudos. Como suporte empírico dessas questões, o texto apresenta aspectos de três pesquisas realizadas com diferentes segmentos juvenis, que oferecem possibilidades de compreensão da diversidade de experiências e de significações atribuídas à ideia de participação política e dos engajamentos, tanto sob a forma da militância, como do ativismo.
O conjunto dessas diferentes investigações permite tecer algumas considerações que certamente merecem aprofundamentos a serem realizados mediante novas incursões focalizadas nos processos de mutação da ação política contemporânea que reverberaram especificamente na juventude. Assim, reconhecendo o caráter sempre provisório das análises, torna-se necessário optar pelo uso de “palavras de passagem”, expressão cunhada por Alberto Melucci (1994), tanto no tratamento analítico dos movimentos sociais observados a partir dos anos 1970, como nas formas que envolvem a construção das subjetividades, tendo por cenário os jovens os quais, além dos movimentos sociais, constituíram suas preocupações e estiveram presentes em suas investigações.
Participação política e engajamentos: mutações e permanências
Mutações sociais mais amplas, observadas nas sociedades ocidentais com o advento das políticas neoliberais, a acentuação das desigualdades, crises das democracias liberais e a constituição de modelos individualistas de sucesso e das subjetividades têm sido analisadas por diversos autores (Dardot & Laval, 2009; Brown, 2019). Ao mesmo tempo, diante desse quadro adverso, eclodem, desde o início do século XXI, novas formas de protesto social que também demandam outras possibilidades de análise sobre as subjetividades e formas de relação dos indivíduos com os agrupamentos da esfera pública.
Em grande parte dos estudos que examinam a participação política e os engajamentos, não obstante eventuais controvérsias entre os autores e suas diversas filiações teóricas e metodológicas (Pudal, 2011, Ion, 2001; Passy & Giugni, 2000), a noção de processo e a chave da mutação tornam-se predominantes, questionando-se assim a ideia de um simples declínio participativo, como apresentou Perrineau nos anos 1990 (Perrineau, 1994). Para Pudal (2011), os processos societais também se refletem na autodefinição daqueles envolvidos com a inserção no campo político que, ao não se encaixarem mais na concepção tradicional do “militante”, desejam envolver-se com a luta coletiva sem, no entanto, tornar o engajamento um compromisso de uma vida. Ion, por sua vez, considera que, para tentar fugir da estéril oposição entre “indivíduo” e “sociedade” na compreensão da pluralidade relacional entre atores, estruturas, formas de sociabilidade e de ação, “trata-se de destacar que a distinção entre vida privada e vida pública, muitas vezes lembrada quando se fala de engajamento, é impossível” (Ion, 2001, p. 19). Nas investigações sobre o engajamento, a dimensão da escolha individual em relação às diversas – e por vezes conflitantes – esferas de vida e aos diferentes momentos do ciclo de vida é uma relevante variável (Passy & Giugni, 2000), estimulando, como afirma Fillieule (2015), análises das condições objetivas e subjetivas de engajamento, militância, mas também do fenômeno do desengajamento e da defecção, considerando os sacrifícios e as retribuições em relação a processos sociais mais amplos ligados à ação público-política.
Não obstante os entraves estruturais e as configurações subjetivas resistentes à adesão e inserção na esfera pública política no momento atual, indivíduos não apenas são conscientes de seus limites e dívidas para com os outros, como também podem desenvolver uma forma particular de solidariedade, ao mesmo tempo em que, mais profundamente, constroem um tipo específico de consciência de si (Martuccelli 2006). Apoiados nos estudos de Danilo Martuccelli (2010), consideramos relevante que as transformações nas configurações societais e no modo de fabricação de indivíduos - a individuação -, provocam o distanciamento da ideia de um personagem social que desempenha papéis previamente instituídos e prescritos pelas posições sociais. Os indivíduos estão mais afeitos à horizontalidade das relações, transformações que implicam também nas articulações com o próximo, o outro, o interesse geral e o comum. Passaram a ser atores no âmbito privado, não significando necessariamente maior valorização dessa esfera em relação à pública, e sim maior confiança nas próprias capacidades de ação do que naquelas advindas da eventual integração com outros, exigindo da investigação, por consequência, maior atenção ao conjunto dessas intervenções e às características individuais (Martuccelli, 2006).
Tendo em vista a miríade de significações de categorias derivadas da ideia da participação política, considera-se neste artigo que esta pode ser definida como o conjunto de atividades - individuais ou coletivas - suscetíveis de influenciar a esfera pública e o sistema político de governos (Braud, 2016). Desde a década de 1960, já era reconhecida a historicidade do conceito de participação política que, diante do início da crise e do distanciamento do sistema político tradicional e da emergência de novos conflitos e movimentos, acenava outras dimensões da atividade política, alargando a esfera do político na vida pública (Pizzorno, 2019). No mesmo período, a especificidade nacional também foi apontada como relevante para esta noção, como no contexto latino-americano de dominância das ditaduras militares com controle da política institucional. Essa “despolitização” da política e da sociedade civil foi revertida pelos incipientes e nascentes momentos de resistência e recriaram o fazer político e, consequentemente, as mais variadas formas de participação foram vividas como políticas (Lechner, 2007). Esses traços da cultura política latino-americana em grande parte permanecem nas mais variadas formas de ação protagonizadas por movimentos, coletivos, associações, entre outros.
Observa-se, também, um consenso na literatura em torno da ideia do engajamento militante, uma vez que este se daria pelo encontro entre um indivíduo, uma causa e uma organização hierarquicamente estruturada, cujas regras devem ser aprendidas, em um projeto de formação e desenvolvimento de seus afiliados. Há ganhos e perdas em tal tipo de participação. Como retribuição à militância, pode-se ter o sentimento de potência pela luta na transformação da realidade, a sensação de satisfação moral por agir de forma justa, a superioridade ética, autoestima pela admiração de outros, desenvolvimento de diferentes saberes, acesso a redes e espaços de integração, lazeres, sociabilidade, fraternidade. Entre os custos, além das questões materiais, tem-se o dispêndio de tempo, a disponibilidade, a abertura a outros, a adoção de certo estilo de vida heterônomo, riscos profissionais, renúncias pessoais, sobretudo àqueles que desenvolvem uma “carreira militante” (Becker, 2008; Fillieule, 2015).
Certo consenso na literatura em torno do engajamento contemporâneo sob a forma do ativismo, mais voltado para a adesão a uma causa, sem a necessária vinculação a uma configuração ideológica totalizante, ao lado da convivência com modos mais horizontais na definição das estratégias de ação e ausência de lideranças estáveis. O engajamento no atual contexto estaria menos ligado a causas utópicas de transformação, optando por ações pontuais ligadas a questões próximas da experiência vivida no presente (Pleyers, 2016).
A disponibilidade para agir em grupos menos centralizados e com menor incidência hierárquica de lideranças, com a manutenção da autonomia e marcados pela horizontalidade, pela fragmentação e fluidez tem reforçado os chamados coletivos jovens no Brasil, os grupos de ativistas de acordo com Gohn (2018). Esse ativismo investigado por André Sales e outros se configura também em torno de disputas por condições concretas e imediatas da vida cotidiana, valorizando a dimensão individual da ação coletiva, pela co-responsabilização, pela importância dada às necessidades singulares dos envolvidos nas ações e pela construção de compromisso com os objetivos da luta coletiva sem, contudo, “ignorar, ou minorar, as particularidades de cada um dos atores que compõem seus coletivos” (Sales & Fontes, 2020, p. 3).
Uma abundante literatura busca relacionar o ativismo à adoção de novas TICs, mobilizando conceitos diversos (ciberativismo, clickativismo, hackativismo, slackativismo, e-participação etc.) como se fossem sinônimos, produzindo uma polifonia que pouco contribui para o diálogo entre as pesquisas (Ruskowski et al., 2020). Por outro lado, verifica-se não só a adesão às TICs nos agrupamentos mais tradicionais e institucionalizados, como um conjunto de críticas às imagens das ações “somente digitais”, sem reverberação no “mundo real”, no “offline” de práticas que podem ser feitas do “conforto do próprio sofá de casa”, o pejorativamente denominado slackativism. Manifestações recentes geraram o interesse por entender as relações entre o “online” e o “offline”, como ruas e redes dialogam, podendo resultar em fertilizações recíprocas entre a vida cotidiana e a política, entre o mundo da internet e o das praças públicas, entre as redes sociais e o convívio dos espaços militantes (Reguillo, 2017).
É preciso considerar também que se tornam mais visíveis, a partir de 2013 no Brasil, orientações diversas que disputam entre si a partir de um campo político mais amplo e antagônico, traduzido na diversidade de repertórios, como afirmam Angela Alonso e Ann Mische (2017). Desafios significativos para os estudos sobre juventude estão sendo gradativamente enfrentados mediante o desenvolvimento de investigações de novas formas de agrupamento, desde aqueles configurados pela denominada ação direta, como os Black Blocks (Solano et al., 2014) ou o espectro que inclui os movimentos liberais e conservadores, culminando com a adesão de segmentos juvenis a orientações de extrema-direita, sobretudo os adeptos do bolsonarismo em 2018 (Pinheiro-Machado, 2019; Weller & Bassalo, 2020).
Em síntese, as inflexões na ideia do militante tradicional e a constituição dos novos ativistas a partir de quadros diversificados de orientação não podem ser consideradas como tipos estanques e opostos de engajamento. Nem mesmo poderiam ser atribuídos valores positivos ao ativismo em detrimento do militantismo tradicional, sem a devida atenção às análises para as interrelações, confluências e tensões entre modalidades de engajamento (Sales, 2019).
Modos de compreensão da experiência da participação e dos engajamentos
Para evitar um árido procedimento classificatório descolado das práticas, optamos por trazer os próprios jovens para o centro das narrativas e, a partir de sua experiência, compreender os significados atribuídos à ideia de participação política e às diversas formas de engajamento. De um lado, a ideia de experiência social na acepção de Thompson (1981) significa considerar ação e pensamento, ou seja, a vida em relação a determinadas condições materiais e históricas, assim como a autoconsciência dessa experiência, em diálogo entre o ser social e a consciência social. Em decorrência, se faz necessário voltar a atenção às categorias nativas por eles enunciadas, uma vez que as perspectivas teóricas dos pesquisadores, sem prejuízo do rigor, podem dialogar com o sentido que os atores agregam a suas próprias ações, ou a definição que dão para suas próprias situações (Cefaï, 2009).
Diante da problemática enunciada, o material empírico a ser apresentado de modo sucinto decorre de três investigações diferentes, percorrendo os diversos momentos que constituem o percurso de vida denominado juventude. Além de reconhecermos as desigualdades e diferenças que atravessam a vida dos jovens na sociedade brasileira, optamos por apresentar as diferentes experiências e os seus campos de significado em momentos diversos da vida juvenil, ou seja, considerar as temporalidades distintas que a percorrem.
A apresentação dos contextos e participantes das pesquisas se dá aqui por meio das situações nas quais agiam e criavam diferentes relações com os grupos, atores e formas de mobilização. Tal noção dialoga com a proposta sartreana de pensar os indivíduos como “sujeitos em situação”, com uma singularidade que não é inata, natural ou essencial, nem provém meramente das tradições e influências sócio-históricas: o uso da liberdade e as escolhas feitas diante das situações são atos individuais que singularizam os indivíduos. Por isso, compreender o indivíduo, é compreender a situação em que ele está e na qual ele se faz (Sartre, 1968).
A primeira situação aqui relatada incide sobre estudantes do ensino médio público e sua experiência diante dos dilemas da participação política no âmbito escolar e seu entorno. A segunda traz as narrativas de jovens que foram participantes do movimento de ocupação de escolas públicas em São Paulo no ano de 2015, reconstituindo, a partir dessa intensa adesão, o modo como, na vida atual, concebem os sentidos da participação política e dos engajamentos. A terceira, reúne um grupo de 4 estudantes universitários de camadas populares e médias, acompanhados por volta de seis anos (2015-2021) em sua trajetória no ensino superior e inserção na vida profissional. Desse modo, foi intenção dos autores apontar as peculiaridades que decorrem da vida adolescente – primeira situação -, dos jovens propriamente ditos – 18 – 24 anos – sobretudo na segunda situação - e, finalmente - a terceira situação - nos momentos mais intensos de transição para a vida adulta durante o ciclo universitário, sua eventual conclusão e a concomitante inserção profissional.
Participação política de adolescentes do ensino médio
Nesta seção, parte-se da análise de falas de adolescentes integrantes de estudo internacional para refletir acerca dos modos de participação política no interior das escolas e em seu entorno.
A pesquisa qualitativa desenvolvida de modo colaborativo por pesquisadores de universidades de Argentina, Brasil, Espanha e México, entre os anos 2017 e 2018, envolveu mais de 250 estudantes de ensino médio, em grupos de discussão realizados nas próprias escolas. O principal objetivo da investigação era compreender a “lacuna existente entre a experiência cívica dos jovens em espaços de educação formal e sua vida no entorno cidadão”. Os integrantes eram em sua maioria estudantes de escolas públicas, com idades entre 15 a 19 anos e residentes do entorno das cidades de Madrid, Barcelona, Cidade do México, Oaxaca, Buenos Aires e São Paulo.
Em São Paulo, os grupos de discussão ocorreram em instituições públicas de ensino de cinco diferentes municípios e contaram com a colaboração voluntária de 58 alunos do 3º ano do EM de escolas da capital, Santo André, Sorocaba e Ribeirão Preto. Nessas ocasiões, a participação foi discutida em relação às instituições educativas e ao entorno social, considerando os usos das redes sociais e dos canais tecnológicos.
Das falas dos jovens, emergiu um sentido mais amplo para a noção de participação do que aquele subjacente à discussão acadêmica: para além da concepção público-política do termo, na acepção de fazer parte de ação coletiva ou colegiados e instâncias de representação, entre os estudantes pode-se perceber o sentido de engajamento na vida cotidiana como ato de emissão de opinião, ponto de vista, em debates e outras situações vivenciadas em salas de aula.
Com exceção de um jovem que já estava envolvido com o segundo partido político e de uma participante de coletivo feminista externos à escola, esses estudantes sem histórico de militância, caracterizavam-se por baixo grau de vinculação prévia a entidades e associações, partidos ou coletivos e demonstraram se relacionar ou se apropriar dos mecanismos de participação nas escolas (grêmios estudantis, representação nos conselhos, entre outras formas de relação com as autoridades escolares) de modo desconfiado, com reservas e questionamentos em relação à efetividade da representação estudantil (Martuccelli, 2015).
Tal postura se mostrou condizente com a atuação fora da escola por parte deste grupo de estudantes: ao mesmo tempo em que criticavam a esfera político-partidária e seus atores, não demonstraram alheamento ou recusavam os mecanismos institucionais, pois demonstraram grande interesse pelo debate político em curso durante a disputa eleitoral de 2018 e manifestaram desejo de votar.
No que diz respeito à participação no interior da escola, além da própria crise dos mecanismos de representação das entidades estudantis, indicada pelo distanciamento, desconfiança e indiferença expressos com frequência pelos jovens, a intermitência e possibilidade de desativação dessas associações diante do breve ciclo do Ensino Médio foi um fator que se revelou com destaque no estudo, uma vez que uma cultura política não chegou a se efetivar de fato entre os jovens que permaneceram nas instituições, após a conclusão do curso e saída dos que outrora se mobilizaram.
Ainda que fossem escolas com recente histórico de mobilizações estudantis (ocupações de secundaristas em 2015 e 2016, reivindicações de contratações de professores, melhorias estruturais, alimentação etc.), de acordo com as falas dos jovens paulistas, as atuações fortes dos grêmios estariam voltadas à resolução de aspectos concretos da experiência escolar e relacionadas à valorização do espaço, como: mutirões de limpeza, jardinagem, pequenas reformas ou intervenções artísticas, debates e consultas realizadas durante os finais de semana, entre outras formas de abertura da escola à presença e possibilidade de fala dos alunos em situações públicas.
Essas iniciativas se assemelham a ações estudantis marcantes durante as “tomas” argentinas, ou nas ocupações estudantis brasileiras, quando as demandas fortemente conflitivas em relação às políticas educacionais se aliaram a uma série de iniciativas no interior das escolas, seja em realização de tarefas de manutenção da própria ação, como segurança, limpeza e alimentação, por exemplo, ou realização de intervenções no espaço físico escolar. A busca por zelar e melhorar o espaço de vivência comum na escola, tornando os ambientes de convívio mais acolhedores, se dá em um processo de apropriação e pertencimento, indicando que a condição estudantil experenciada ali não se configurava apenas pelo distanciamento e apatia.
Essa forma de presença coletiva diferente daquelas previstas pela rotina escolar cotidiana também se afasta do discurso institucional da participação; festas, atividades de pintura ou limpeza das escolas, ou ainda, atos performáticos manifestados corporalmente, pelo uso de determinados tipos de vestimentas, adereços, roupas curtas ou rejeição ao uso de uniformes, como relatados por jovens na pesquisa, podem ser indicadores de formação de novas sociabilidades coletivas e constituição de atores público-políticos.
Nas unidades escolares com tradição de organização de colegiados e com certo grau de abertura e de confiança em interações mais democráticas com professores e gestores, verificou-se a maior presença de mecanismos participativos dos estudantes. Em experiências de inovação por parte dos jovens, como em configurações mais horizontais das entidades estudantis, os conflitos surgidos nas reuniões eram mediados por um professor, a partir da demanda dos próprios estudantes, pois era tido como capaz de assegurar o caráter democrático do debate. Esses exemplos indicam que, mesmo nas iniciativas propostas e dirigidas pelos estudantes, as relações que adolescentes e jovens estabelecem com os adultos no interior da escola, com todos os conflitos e tensões que possam existir, ainda são muito importantes para as gerações mais novas (Sposito et al., 2020).
Nos grupos, houve ainda manifestações relevantes sobre outro tipo de participação desconfiada: aquela do mundo virtual. Diferentemente do auxílio e suporte existente no interior da escola, o reconhecimento de maior liberdade de expressão de opiniões nas redes sociais se deu conjuntamente a críticas em relação à circulação de notícias falsas e a manifestações de ódio e intolerância. Do mesmo modo como lidam com as instâncias de ação e representação estudantis, cuidadosamente, com receios, compreendendo os obstáculos e limites colocados, mas sem recusá-los e jogando com eles: veem a Internet mais como um espaço de expressão de opiniões do que de ação política e de obtenção de conhecimentos.
De modo geral, percebe-se uma reiteração das definições mais tradicionais da participação política, definida pelo sistema político e institucional, ao lado de um alargamento das possibilidades de formas de participação em esferas públicas – sobretudo a escolar – vistas como não políticas e caracterizadas pelo agir em conjunto diante de alguma iniciativa concreta, pela possibilidade da manifestação das ideias e o desenvolvimento da capacidade de escuta entre os pares. Contudo, a desconfiança aparece como uma atitude presente na experiência de interação com os grupos.
Jovens que ocuparam escolas em São Paulo (2015): aspectos das trajetórias pós-ocupações
A segunda situação busca apresentar algumas pistas traçadas por meio de depoimentos de jovens que participaram das ocupações de escolas públicas nos anos 2015 ou 2016, no interior de São Paulo e na capital.
Foram entrevistados, durante 2020, quatorze jovens oriundos de camadas populares – oito moças e seis rapazes, com idades entre 20 e 23 anos, compreendendo inserções e trajetórias diversas em relação aos marcadores sociais da diferença e aos percursos educacionais, laborais e de engajamento. A maioria dos jovens situa-se no aspecto político progressista e, independentemente da vinculação ou não a grupos, coletivos e partidos, seus discursos foram marcados pela defesa dos direitos humanos, a favor da educação pública, gratuita e laica e pelo combate às desigualdades sociais.
Conquanto não tenham sido diretamente indagados a respeito dos significados que atribuem às noções de militância e ativismo, é possível apreender, mediante a forma pela qual esses conceitos são mobilizados em seus relatos, não somente o que entendem, mas como atuam na esfera pública no atual contexto social.
O ativismo foi evocado por apenas uma jovem negra, que o relacionou à atuação na universidade por meio da participação na construção de eventos sobre temas ligados a questões étnico-raciais, de gênero, sexualidade, indicando uma inserção pontual em torno de temas específicos. A jovem designa sua atual participação em grupos de estudo sobre questões étnico-raciais e no coletivo de feminismo negro da universidade como “ativismo acadêmico”, em contraste à atuação no movimento secundarista, compreendida por ela como militância. A categoria militante foi mobilizada por todos os entrevistados, configurando-se como eixo central do engajamento. À militância são atribuídos significados distintos de acordo com a trajetória dos jovens. Para aqueles que estão ou estiveram filiados a alguma organização política, a militância está relacionada a um vínculo político-partidário de caráter mais duradouro, mesmo que ocasionalmente ocorra a mudança de filiação às organizações. Já para os jovens que se consideram “independentes”, isto é, os não filiados a um partido, a militância possui um significado mais abrangente, sendo compreendida como toda forma de atuação - direta ou indireta - no espaço público na luta por uma causa.
No grupo dos que se designam “militantes independentes”, há certas nuanças a serem consideradas: há um conjunto de jovens que atua em grupos organizados (como cursinhos populares, centros acadêmicos, associações de bairros, coletivos de permacultura etc.) e aqueles cuja atuação apresenta caráter mais individual, manifestando-se pela participação eventual em protestos, pela expressão estética – por meio do uso de certas roupas, maquiagens, cortes de cabelo etc. -, bem como pelo conteúdo compartilhado em suas redes sociais. Tanto os jovens filiados a partidos quanto os independentes associaram a militância à formação teórica, que seria propiciada pela leitura de obras sobre marxismo, questões étnico-raciais, de gênero, sexualidade etc. Para eles, essa formação permitiria a autonomia de pensamento e um olhar crítico para o modo pelo qual certos grupos se organizam. Há uma crítica aguda às hierarquias e à falta de abertura ao dissenso, em especial no discurso dos independentes – mas não somente –, dirigida a algumas organizações partidárias, uma vez que, ao não fornecerem formação teórica, promoveriam a defesa acrítica de certas bandeiras e a mera repetição de jargões.
Além do conhecimento teórico, há uma valorização das formas de atuação em torno de práticas, em especial no território de origem, com destaque a participação em cursinhos populares, compreendida como um compromisso ético, tendo em vista retribuir, ao território de origem, arremetendo à ideia da dádiva (Mauss, 2007) recebida pelo acesso à educação, sobretudo à educação crítica, concebida como um aprendizado decorrente das ocupações (Groppo & Silva, 2020).
A literatura sobre o movimento secundarista nos anos 2015/2016 apontou a importância da autonomia e da horizontalidade das formas de ação e sua potencialidade para a inovação das formas do fazer político e do conflito social, empreendida por jovens (Gohn, 2018; Groppo & Silva, 2020). No entanto, a falta de apoios no interior das escolas, e mesmo de outros atores externos, que aderissem a esse ideário ou ao menos oferecessem suportes (Martuccelli, 2002), evidencia que a busca por autonomia como significado da militância atual não significa, assim, recusa ou isolamento, mas uma troca capaz de respeitar o pluralismo.
Em síntese, a diferença de significado entre ativismo e militância apareceu em um único depoimento e se manifestou frente aos objetivos do engajamento, nesse caso o “ativismo acadêmico” - conforme denominado pela jovem -, confirmando aquilo que a literatura tem apontado sobre o ativismo, que focalizaria metas mais específicas. A militância, por sua vez, para a maioria dos jovens entrevistados, é narrada como uma dedicação mais contínua e totalizadora, uma vez que exige um quadro de orientações político-ideológicas mais abrangente. A adesão envolve, de um lado, a importância do conhecimento teórico de modo a situar o jovem no mundo em que ele age, seja pelo estudo mais detido de clássicos consagrados no campo do marxismo, ou pelas leituras a respeito dos demais temas pelos quais se engajam, como feminismo, antirracismo, questões LGBTQI+ etc. Mas de outro, a importância do conhecimento a ser conquistado reside na busca de autonomia e, portanto, na possibilidade de firmar convicções pessoais que podem confrontar as intenções da própria organização ou agrupamento responsável pelas práticas de formação.
Dessa forma, independentemente de como atuam e como concebem essa atuação, os depoimentos dos jovens apontam algumas características comuns na sua ação política, em especial a valorização da autonomia de pensamento e da adesão como uma escolha individual.
Jovens universitários e universitárias engajamentos em transição
Na busca de compreensão dos modos como são vividos e experimentados o mundo universitário e suas possibilidades de inserção na vida coletiva, são relatados alguns aspectos de um conjunto de entrevistas realizadas com quatro estudantes de 2014 (quando tinham em torno de 20 anos) a 2021 (com 26 anos, aproximadamente), a respeito dos desafios deste momento do percurso de vida e da transição para a vida adulta [1] .
Na ocasião das primeiras entrevistas, frequentavam universidades públicas de São Paulo, três na área de Ciências Humanas e uma jovem na área de Artes. São perfis diferenciados, mas caracterizados por uma postura progressista e de muita vinculação com movimentos variados das esquerdas e dos coletivos de feitio identitário. Três jovens da capital participaram da investigação: um branco e uma negra oriundos de camadas populares de bairros periféricos, além de uma jovem branca de camada média. Além deles, foi entrevistado também outro jovem branco morador do interior, que assumiu a identidade transexual e viveu essa transição no período da pesquisa. Com exceção deste último, que interrompeu os estudos e apenas trabalha, as jovens concluíram a graduação e frequentam outros cursos universitários, enquanto o rapaz da capital cursa o Mestrado.
Dentre os diversos aspectos que constituíram as experiências e os desafios vividos, ressalta-se a diversidade de formas de engajamento que atravessaram neste percurso: Movimento punk, Movimento Passe Livre (MPL), Movimento Estudantil (secundário e universitário), grupos de jovens com atuação no território de moradia, além do pertencimento aos coletivos LGBTQI+ e movimento negro no interior da universidade.
São claras para alguns as diferenças entre os ativistas e os militantes: enquanto estes últimos se caracterizariam pela necessária adesão a uma totalidade de orientações políticas e ideológicas, fortemente presentes em alguns dos agrupamentos, o ativismo, ao contrário, se imporia por aspectos mais pontuais, não envolvendo a totalidade de um projeto político abrangente.
Tanto o envolvimento com o MPL, caracterizado pela horizontalidade e recusa de lideranças e hierarquias, é significado como militância, como a adesão ao movimento estudantil secundarista ou universitário. Para esses jovens, o militantismo recobre duas características: intensa dedicação às práticas e compartilhamento das orientações ideológico-políticas.
Em várias investigações realizadas com participantes do MPL aparece a crítica à ideia de militância e a opção pela designação ativismo, a partir da adesão às práticas e táticas de ação horizontais e preservadoras da autonomia (Gohn, 2018; Sales & Fontes 2020). Mas o uso da categoria militância também se observa em estudos do MPL em outras cidades que também enunciam as tensões e ambiguidades presentes no desejo de ruptura com as práticas tradicionais (Pantoja, 2017; Seidl, 2021). A adesão à totalidade das principais orientações e a dimensão da intensidade no envolvimento com as práticas ao longo das narrativas foram submetidas a um escrutínio crítico e sofreram modulações à medida que transitam pelos diversos momentos no curso de vida. Dificuldades advindas da necessidade de sustento e da apropriação do conhecimento acadêmico estabelecem desafios ao difícil equilíbrio entre a militância e a permanência na universidade.
A relação com o ambiente universitário não é simples, não só sob o ponto de vista da formação, mas, também, pelo modo como ocorre a sociabilidade quando estudantes de meio popular e mulheres negras têm acesso a esse nível de ensino. Constrangimentos impeditivos de uma adesão total às inumeráveis reuniões e a eventos do Movimento Estudantil, por exemplo, foram citados. A disponibilidade estaria propiciada por uma condição favorecida de classe. A exigência de uma atividade laboral ou o acesso a bolsas oferecidas pela universidade, tanto para aqueles que vieram de camadas populares, como os de classes médias foram contemplados nas narrativas (Corrochano & Abramo, 2017). Sempre fizeram referência aos desafios relativos à convivência marcada por estereótipos entre os pares ou com professores em relação à condição social, ao pertencimento étnico, às tensões nas configurações da identidade sexual ou de gênero e à origem social, presentes nas várias modalidades da sociabilidade. Nem sempre diante dessas vicissitudes apontadas encontraram nos grupos aos quais estavam filiados suportes (Martuccelli, 2002) ou apoio para enfrentar os desafios.
Após experiências diversas de engajamento militante em grupos de jovens com ação nos territórios da moradia, no movimento estudantil e coletivo de estudantes negros durante o ensino superior, uma jovem negra encontrou alternativas no que designa como “ativismo social”: o trabalho com a economia solidária, forma de engajamento que permite a articulação com outras dimensões da vida pessoal relacionadas ao sustento pessoal e à preservação de si mesma diante das dificuldades de aceitação entre os pares no movimento estudantil, diante de sua origem étnica e social e nos coletivos identitários por seu pertencimento anterior ao movimento estudantil. Nesse caso, o ativismo social é visto como uma opção voltada para uma atuação de apoio para aqueles que resolvem empreender, contrastando com os requisitos da militância, ou seja, totalidade e intensidade.
Se, de um lado, os constrangimentos delimitam as margens da ação, eles se somam às críticas endereçadas aos agrupamentos e o decorrente afastamento. A recusa ou o cansaço das discussões intermináveis sobre os grandes problemas políticos sem espaço para o cotidiano vivido por eles, demandando ações concretas, mesmo que pontuais, perfilavam a crítica ao significado do militantismo.
Os vínculos com espaços tradicionais da ação política - como o movimento estudantil ou partidos – ou com coletivos identitários, não impediram o exercício da crítica no interior dos grupos e as inevitáveis tensões em busca de maior autonomia pessoal.
Para alguns, sobretudo para um jovem que aderiu à causa LGBTQI+, diante de seus desafios para assumir uma transição difícil e sofrida, havia a convicção da necessária articulação entre a adesão a um grupo e o estilo de vida, muitas vezes não observada dentre os pares. A transformação deveria ser total não apenas na comunhão de ideias, mas nas relações pessoais, na alimentação, no vestuário etc., o que condiz com características do alter-ativismo (Pleyers, 2016).
As jovens e os jovens, nesses anos de vida universitária, construíram caminhos próprios para assegurar o engajamento com a vida público-política mesmo não se considerando militantes ou ativistas, preservando a autonomia pessoal. Alguns optaram pela inserção em atividades relacionadas à profissão: professor de cursinho popular, artista no campo da música, apoio à economia solidária, interações pontuais com os movimentos LGBTQI+ e ambientalistas, entre outros.Em todas as narrativas, verifica-se a permanência de um compromisso social e político de natureza pessoal que induz a uma busca de inserção que pode estar mesclada à atividade de trabalho ou paralela à vida laboral, buscando modalidades novas de ações voltadas para o coletivo. Sem atribuir a elas a ideia de militância ou ativismo, sentem-se moralmente envolvidos e lutam por manter compromissos políticos, diversificando os espaços de atuação, sem necessariamente derivar para o isolamento ou à imersão da vida privada.
Como elemento transversal aos depoimentos, além dos aprendizados muitas vezes decorrentes da experiência e das críticas que apontam aos diversos grupos, - sobretudo dos requisitos daquilo que reconhecem como militantismo, aparece a necessidade de preservação e proteção da própria subjetividade. As experiências vividas foram importantes e ainda afetam os valores e a visão de mundo incorporados, além da construção de um modo mais cauteloso nas interações sociais. Na atualidade, consideram-se menos ingênuos, sobretudo quando relatam a “cultura do cancelamento” e o sofrimento pessoal de alguns companheiros. Essas questões podem ser analisadas à luz da ideia do .cuidado de si.. Tal diagnóstico do presente não indica, entretanto, uma prática de cunho individualista, mas uma estética da existência como um exercício de autoelaboração, de transformação de si mesmo, pelo qual o indivíduo se produz na relação consigo mesmo, com os outros e o com o mundo que o cerca, constituindo, assim, a própria subjetividade (Foucault, 1985).
Conclusões
Dentre os aspectos já anunciados nos estudos sobre engajamentos políticos, destaca-se o elemento transitório das escolhas (Ion, 2001; Fillieule, 2015) que caracterizam os percursos e a análise dos desengajamentos na sociedade atual.
Ao apresentarmos um breve quadro dos jovens e seus desafios diante da experiência público-política e da ação coletiva, privilegiando as diversas temporalidades recobertas nas situações apresentadas, pode-se compreender modulações nas experiências e nos sentidos atribuídos à participação política e aos engajamentos. Mudanças societárias, constrangimentos e as modalidades dos processos de individuação na sociedade contemporânea acenam para uma permanente transitoriedade nas definições da relação dos indivíduos – de diferentes momentos do curso de vida – com os movimentos, grupos e coletivos. A transitoriedade não seria uma característica restrita à juventude, mas aspecto da vida social em outros momentos do percurso de vida. Os jovens, ao viver esse momento em busca da autonomia, da independência e do reconhecimento, são apenas a ponta do iceberg de processos estruturais que afetam a experiência individual na contemporaneidade (Melucci, 1997). A historicidade da ideia de participação aferida pelas significações dos adolescentes do ensino médio, as modulações no interior de cada tipo de engajamento, a militância tradicional (Perrineau, 1994; Ion et al., 2005), o ativismo contemporâneo (Pleyers, 2016; Gohn, 2018; Sales & Fontes, 2020) e os desengajamentos (Fillieule, 2015) configuram novos desafios para a pesquisa. Os sentidos atribuídos por jovens às categorias da participação e envolvimento político atravessam configurações diversas. Se considerarmos que mudanças societárias na produção das individualidades jovens, compreendendo identidades e subjetividades, atravessam as relações sociais contemporâneas em seus aspectos diversos, seria incoerente supor que os formatos considerados novos ou aqueles mais tradicionais da participação ou do engajamento político, como partidos, sindicatos ou associações, também não seriam afetados. As formas diversas de associativismo, organizações e atores políticos são porosas e são impelidas a buscar alternativas que acenem inflexões nas orientações, mesmo nas instituições mais tradicionais, como partidos (Coton, 2011).
As situações aqui retratadas demandam aprofundamento, mas tiveram o intuito de estimular outras possibilidades de investigação, constituir novas hipóteses e categorias por meio do exercício permanente da escuta e do estímulo à reflexividade daqueles que vivem os vários momentos e contextos que constituem a condição juvenil na contemporaneidade.