Introdução
Este artigo trata de alguns resultados obtidos em pesquisa finalizada em 2018 cujo objetivo foi construir referentes políticos-normativos (semelhantes a indicadores) para que servissem de subsídio às escolas, aos sistemas educacionais, ao Ministério Público e órgãos fiscalizadores para que pudessem ter um parâmetro ao avaliar a efetivação das normativas que exigem que a educação brasileira tenha um direcionamento para a promoção da igualdade racial. Nesse sentido, o foco principal na construção dos referentes foram as normativas pautadas na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008), no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Parecer n.04 de 2004 do Conselho Nacional de Educação - CNE e na Resolução n. 01 de 2004/CNE.
Em que pese na sociedade em geral estar presente o discurso de que a escola é um espaço de proteção e igualdade, ela é atingida pelo que chama Cavalleiro (2001) de desigualdade cotidiana, as relações são hierarquizadas. Com isso, a pesquisa visa contribuir com a luta pelo direito a uma educação antirracista, ou seja, compreendemos que “no cotidiano escolar, a educação antirracista visa à erradicação do preconceito, das discriminações e de tratamentos diferenciados” (CAVALLEIRO, 2001 p.150).
A raça, o racismo, o preconceito racial e as desigualdades oriundas desses processos devem ser expostas e problematizadas no ambiente escolar com a intermediação de professores qualificados, com auxílio da direção e da coordenação pedagógica e de forma contínua, já que a educação antirracista requer a mobilização dos sujeitos, sobretudo para os alunos negros para que percebam as relações de poder às quais sua raça está submetida. Por essas razões, a Lei 10.639 de 2003, representa o meio pelo qual poderia se operar tais mudanças.
Os artigos 26-A e 79-B da LDB, alterados em 2003 pela Lei 10.639, tornaram obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana na educação brasileira. Essa lei tem um amplo espectro, sendo para Gomes (2011) uma política de ação afirmativa, já que visa superar as desigualdades históricas que atingiram aos negros. É também, para Dias (2005), resultado do trabalho ostensivo do Movimento Negro que, além de sua luta histórica contra o racismo e discriminação na educação, articulou-se de forma estruturada para exigir do governo a participação direta do Movimento Negro na política educacional brasileira.
A importância dessa política afirmativa é, para Rocha; Silva (2013), Silveira; Teles, (2014) e Leite; Filho (2013), a possibilidade de valorização da diversidade cultural e étnico-racial no ambiente escolar, o que não deixa de ser um desafio, haja vista as dificuldades de sua implementação, como a omissão quanto ao nível superior, à formação de docentes, à restrição de matérias, entre outras as apontadas por Santos (2005).
A dificuldade de implementação das diretrizes oriundas dos arts. 26-A e 79-B da LDB demandaram do Ministério Público ações de fiscalização do cumprimento da lei, já que seu papel Constitucional garante a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, CF/88), esse papel dado a ele pela Constituição lhe conferiu muito prestígio, pois a sociedade passou a contar com essa instituição, pois diante das arbitrariedades contra os direitos de todos, criou-se uma instituição legítima e forte para proteger e punir tais violações, daí sua aproximação com os direitos sociais. É a partir deste novo paradigma que se torna factível entender a atuação do MP/PR na fiscalização da LDB (arts. 26-A e 79-B), pois vem atender ao interesse público, ajudando a construir nossa tão sonhada sociedade livre, justa e solidária.
Assim, com objetivo de orientar a fiscalização dessa instituição, a pesquisa se dedicou a elaboração dos referentes político - normativos para subsidiar a avaliação da LDB (arts.26-A e 79-B), bem como para contribuir com a elaboração de planos de aula, formações entre outros. Sobre o termo “referentes”, entende-se como possibilidades de referência ou critérios, não fechados e absolutos, mas que permitem nortear o profissional (professor, promotor, entre outros) quando da avaliação de cumprimento da política ou ainda para elaboração de pedagogias específicas com relação às Diretrizes Curriculares para História e Cultura Afro-Brasileira. Desse modo, o objetivo dessa análise em muito se assemelha ao trabalho já desenvolvido por Gatti Et al. (2016) quando da elaboração de referenciais para a ação docente, isto é, da elaboração de parâmetros do que seria ideal nas práticas do docente, a fim de instruir cursos de formações.
Já a denominação “político-normativo”, alude ao posicionamento político adotado nas normativas antirracistas, notadamente na LDB arts. 26-A e 79-B, Parecer n.003/04 e na Resolução n. 001/04 - isto é, trata-se de um conjunto de intervenções empreendidas com vistas a assegurar o direito à educação de qualidade para e com a população negra. “Tais ações no campo da política, e, sobretudo, da política educacional, devem ser compreendidas como respostas do Estado às reivindicações do Movimento Negro”. (GOMES, 2011, p.144). A metodologia consistiu na seleção, análise e sistematização das normativas LDB em referentes com fases graduais de cumprimento.
Metodologia
A primeira atividade desenvolvida foi a seleção das normativas referentes à educação antirracista: LDB (arts. 26-A e 79-B), Resolução CNE/CP n.º. 001/2004, Parecer CNE/CP n.º. 003/2004, CF/88 e o ECA. Posto isso, foi fundamental uma análise mais detida desses textos, primeiro com a leitura, depois buscando extrair de tais documentos quais seriam os verbos núcleos, isto é, quais ações eram esperadas e quais determinações exigidas, desse modo, o que segue abaixo é a condensação de cada uma dessas normas.
LDB (arts. 26-A e 79-B).
Como já mencionado, tais artigos referem-se às alterações legislativas provocadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação promovidas pela Lei 10.639/03 e pela Lei 11.645/08. É certo que o parecer e a resolução indicam de forma muito mais ampla o disposto na lei, que se resume mais a informar sobre a obrigatoriedade.
O artigo 26-A, o qual efetivamente traz a normativa delineada pelas diretrizes, indica de forma bem concisa o lócus de aplicação da lei, que são os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, sendo que estabelecimentos públicos e particulares são o alvo da obrigatoriedade, e, traz os conteúdos a serem tratados, bem como com qual viés tais conteúdos devem ser trabalhados, mormente, matérias de Artes, Literatura e História.
O artigo 79-B trata do dia comemorativo em alusão à luta de Zumbi dos Palmares, é de suma importância que essa data conste nos calendários escolares, contudo, é necessário cuidar para que as determinações do artigo 26-A não se resumam a essa data. É certo que atividades na semana da Consciência Negra sozinhas não correspondem ao contido no artigo 26-A. Tendo em vista o cumprimento dessas disposições, o Conselho Nacional de Educação, por meio de seu Conselho Pleno - CNE/CP, aprovou as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais - ERER e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira - HiCAB e Ensino de História e Cultura Africana - HiCA.
Parecer CNE/CP n.º 003/2004
O Parecer3 CNE/CP n.º 003/2004 compõe as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais - ERER e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira - HiCAB e Ensino de História e Cultura Africana - HiCA e tem por objetivo regulamentar a LDB (arts. 26-A e 79-B) e demais legislações correlatas. As diretrizes4 servem para orientar a viabilização do contido nessas legislações acima descritas.
O parecer tem diversas frentes: valorização da diversidade cultural, sobretudo Africana e Afro-brasileira; desfazimento de mitos ligados à raça; estabelecimento de princípios para o atendimento de ERER, HiCAB e HICA; definição de conteúdos mínimos a serem trabalhados e ações sobre ERER, HiCAB e HICA.
Sobre a valorização da diversidade cultural, a meta é que a educação de qualidade seja direito de qualquer pessoa e que a população negra possa por meio da educação sentir-se orgulhosa por seu pertencimento racial, formar uma identidade que reflita sua origem étnico-racial, que a escola permita a autonomia e expressão de sua cultura e valores próprios, o que historicamente não lhes foi dado acesso. Para a realidade dessas transformações, são necessárias pedagogias capazes de atingir a brancos e a negros cada uma com uma função específica. É preciso que o alunado negro usufrua de seus direitos educacionais orgulhosos de seu pertencimento e de sua cultura, assim como aos brancos cabe reconhecer esse povo como influente construtor da sociedade e cultura brasileira, assim como o europeu ou asiático.
Muito importante a dedicação que o parecer dá com relação ao desfazimento de mitos e inverdades relacionados à raça negra e aos temas relacionados ao racismo. O termo raça nada tem de biológico, mas trata-se de um termo utilizado nas relações sociais brasileiras para identificar origem e características físicas dos indivíduos. O Movimento Negro ressignificou esse termo por meio de um sentido político e social com o intuito de valorizar o legado Africano.
O parecer se destina, ainda, a indicar um conjunto de princípios que devem orientar o sistema de ensino quando da elaboração de conteúdos e atividades para cumprimento da LDB (arts. 26-A e 79-B), bem como relaciona conteúdos mínimos de modo a balizar a aplicação das diretrizes, vejamos alguns:
Consciência política e histórica da diversidade | Fortalecimento de identidade e de direitos | Ações educativas de combate ao racismo e a discriminações |
---|---|---|
Igualdade da pessoa como sujeito de direitos. | Desencadear processo de afirmação de identidades. | Conectar objetivos e estratégias de vida com experiências de vida de alunos e professores valorizando as relações raciais variadas. |
Compreensão da sociedade étnico-racial, com história e cultura próprias que constituem a nação brasileira igualmente valiosa. | Romper com imagens negativas dos meios de comunicação contra os negros e os indígenas. | Criticar materiais didáticos e providenciar sua correção. |
A superação da indiferença, injustiça e desqualificação com que os negros e classes populares iguais aos negros são tratados. | Ampliar o acesso à informação sobre diversidade da nação e recriação de novas identidades baseadas em relações Étnico-raciais. | Valorizar a oralidade, a corporeidade, a arte e a cultura de raiz africana em conjunto com a escrita e a leitura. |
Fonte: A autora a partir do Parecer n. 04/2003, (2017).
O parecer indica de forma bastante contundente o que faz parte dos conteúdos de HiCAB e HiCA, bem como da inter-relação de ambos indicando as seguintes determinações:
O quê | Como | Para | |
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H I C A E H I C A B |
Articular passado, presente e futuro no âmbito de experiências, construções e pensamentos produzidos em diferentes circunstâncias do povo negro.Explicitar, buscar compreender, interpretar diferentes formas de expressão, de raciocínio e pensamento a partir da raiz da cultura Africana.Promover diálogos. | Por meio da experiência.Se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não. | Reconhecer e valorizar: identidade, história e cultura afro-brasileira, raízes africanas, indígenas, europeias e asiáticas; garantir: direitos. |
HiCAB | História afro-brasileira, das organizações negras, dos quilombos a começar pelo de palmares e dos remanescentes entre outros conteúdos e iniciativas. Datas significativas respeitadas as regionalidades, com destaque para: 13 de maio Dia Nacional de Denúncia ao Racismo; Dia 20 de Novembro Dia Nacional da Consciência Negra; Dia 21 de março Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.Destacará o jeito próprio de ser, viver e pensar manifestado tanto no dia a dia como em celebrações (congadas, rodas de samba, ensaios, Moçambiques e maracatus). | Se fará por diferentes meios, a partir de projetos de diferentes naturezas. | Para estudar e divulgar a participação dos africanos e seus descendentes na história do Brasil, nas áreas social, econômica e cultural, destacando as áreas de conhecimento de atuação profissional, criação tecnológica, artística e luta social ( tais como: Zumbi, Luiza Nahim, Aleijadinho, Teodoro Sampaio, Solano trindade, Alzira Rufino, André Rebouças, Luiz Gama, Cruz e Souza, Tereza Santos, Emmanuel Araújo, Abdias do Nascimento, Henrique Antunes Cunha, Cuti, Edison Carneiro, José Correia Leite, Beatriz Nascimento Guerreiro Ramos e outros. |
HiCA |
História da África, dos afrodescendentes no Brasil, papel dos anciãos, griots como guardião da memória, história da ancestralidade e religiosidade africana, civilizações como os núbios e os egípcios que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da humanidade, civilizações e organizações políticas pré-coloniais (Mali, Congo, Zimbabwe), escravidão sob ponto de vista dos escravizados, às lutas pela independência política dos países africanos, relação entre as culturas e história dos povos do continente Africano e da diáspora, formação compulsória e diversidade da diáspora, acordos políticos entre África e Brasil. |
Por meio de uma perspectiva positiva.Far-se-á por diversos meios, a partir de projetos de diferentes naturezas. | Divulgar e estudar a participação dos africanos e de seus descendentes na diáspora, em episódios da história mundial, na construção econômica, social e cultural das nações do continente africano e da diáspora. |
Fonte: A autora a partir do Parecer n. 04/2003, (2017).
Após votação no Conselho Pleno, o parecer resultou na Resolução n.º. 1, de junho de 20045, analisada a seguir.
Resolução CNE/CP n. 001/2004
A resolução é fruto da homologação do Parecer CNE/CP n.º 003/2004 e institui as Diretrizes Curriculares para a ERER, o HiCAB e o HiCA. Dedica-se a indicar o destinatário da resolução: instituições de ensino, mas também em instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada aos professores albergando todos os níveis de ensino, inclusive, o superior. O artigo segundo revela a importância dessas diretrizes, pois, constituem-se como orientações, princípios e fundamentos para planejar, executar e avaliar a educação com ênfase nas relações raciais.
O artigo terceiro informa que os conteúdos de ERER, de HiCAB e de HiCA serão de responsabilidade das coordenações pedagógicas cuja função será a de promover o aprofundamento dos estudos dos professores para que concebam e desenvolvam estudos, programas e projetos. Especifica que o ensino de HiCAB e de HiCA nos termos da LDB (arts. 26-A e 79-B) refere-se, em especial, à Educação Artística, à Literatura e à História do Brasil. Entende-se que a referência é um rol mínimo e não taxativo, isto é, tais conteúdos podem e devem fazer parte de todas as disciplinas.
Traz a importância de estabelecer canais de comunicação com variados grupos do Movimento Negro para troca de saberes contribui e muito para a capacitação dos professores, para a criação de pedagogias, para a oxigenação de ideias e para a criação de projetos. A escola pode buscar conhecimentos para instituir suas práticas já que não pode se petrificar, do mesmo modo esses grupos variados veem na escola um lugar para expor seus trabalhos, interagir e transmitir conhecimentos.
No artigo quinto, o que entra em questão são os direitos dos alunos negros, os sistemas de ensino têm que garantir a essa população estabelecimentos de qualidade, com instalações e equipamentos sólidos e atualizados, ter acesso a professores competentes e que dominem os conteúdos e, sobretudo, proativos para educar posturas discriminatórias que se apresentem no ambiente escolar.
Outra questão apontada é o tratamento dos casos de racismo, conforme o artigo 5º, inciso XLII da Constituição Federal de 1988, do artigo 140, §3º do Código Penal e da Lei 7.716 de 1989 - Lei Antirracismo, racismo é um crime imprescritível e inafiançável, deve, portanto, ser tratado como tal. As normas acima condensadas representam verdadeiro combate ao racismo na educação, uma vez que problematizam questões até então silenciadas, bem como exigem novas posturas, currículo, práticas no ambiente escolar. Contudo, a própria Constituição de 1988 e o ECA já determinavam uma educação para a igualdade racial.
Normas pré - diretrizes (CF/88 e ECA)
Muito antes da edição da Lei 10.639, de 2003, o sistema jurídico de ensino já contava com outras normas que fundamentam uma educação antirracista. A própria Constituição de 1988 traz princípios e objetivos de formação de uma nação multiétnica, que tem como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade justa e igualitária promovendo o bem de todos sem discriminação ou preconceitos de qualquer natureza, razão pela qual a educação igualitária não é aquela massificada que homogeniza os alunos, mas que traz à tona a diferença e identidade dos diversos e a partir daí trabalha os direitos iguais entre todos (diferentes) e estabelece padrões de conduta não discriminatórios.
O artigo 5º, inciso I, traz o princípio da igualdade, ou seja, partindo desse fundamento, uma educação para a igualdade é aquela que consegue compor um currículo que atenda à diversidade étnica e racial, a partir dessa determinação já é possível uma educação antirracista e igualitária. Aproximando-se das diretrizes educacionais, o artigo 206 traz uma base principiológica para a educação, ou seja, são valores mínimos que devem ser observados. A Constituição de 88 reconhece a formação do povo brasileiro (art. 242) e valoriza as diversas culturas (arts. 215, 216), pois, fazem referência ao que somos. Assim, a Constituição por si só justifica e fundamenta uma educação antirracista.
Com base nesse arcabouço principiológico Constitucional, a LDB informa em seu artigo 3º que a educação será ministrada com base em uma série de princípios como o pluralismo de ideias, igualdade de condições para acesso e permanência e no inciso XII a consideração da diversidade étnico-racial, isto é, trata-se de um valor que deve reger a educação. Já no artigo 26 prega que o currículo deve atender a base nacional comum, mas levar em conta os aspectos regionais, culturais e econômicos e ainda especifica no parágrafo quarto que o ensino de história deve levar em conta as contribuições das diferentes culturas, especialmente as de matrizes africana, indígena e europeia.
Já o Estatuto da Criança e do Adolescente reforça os direitos das crianças de acesso a uma educação de qualidade própria para sua idade que respeite seus valores culturais, linguísticos, sua raça e cor, sua condição, origem, religião ou condição física. Num ambiente diverso, deve se preconizar um revezamento na promoção das culturas e saberes diversos, bem como a doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente prevê que as violações decorrentes de racismo sejam levadas aos responsáveis, como o Conselho Tutelar.
Após essa condensação das normativas e após um aprofundamento teórico sobre referentes, indicadores e avaliações foi possível a formulação dos referentes.
Referentes político-normativos
A elaboração dos referentes político-normativos não se trata de uma tarefa fácil, até porque as diretrizes são um ponto de partida, sendo que o que se apresenta é uma proposta para o cumprimento das diretrizes no ambiente escolar. O parecer pode ser considerado como um mandamento de otimização farto de verbos e ações que direcionam a execução da lei, pois contêm o “agir” para a consecução do ensino da ERER, de HiCAB e de HiCA de modo que tanto o parecer como a resolução ditam o fazer, motivo pelo qual, num primeiro momento, demarcamos nessas legislações quais eram estes verbos, o que nos indicou qual seria a ação esperada pela lei (reconhecer, valorizar, registrar, articular entre outras). Desta forma, com o intuito de facilitar a abordagem, resolvemos segmentar o parecer a fim de compreender suas exigências.
Observamos que o parecer dedica uma introdução para situar o leitor e destinatário da norma sobre seu conteúdo, quais os conceitos e os objetivos, sendo isso importante, haja vista que a maioria das pessoas que terão contato com a lei não está ambientada com a questão racial e tendem a ter dificuldades para adentrar já que para muitos trata-se de um assunto tabu.
Passado esse momento de conhecimento do que se trata o parecer, seus objetivos e definições, o documento se dedica, em um segundo momento, a sedimentação dos conteúdos específicos da ERER, de HiCAB e de HiCA a serem efetivamente trabalhados no ambiente escolar. E, por fim, o terceiro momento decorre, pois, da consecução da primeira e segunda fases. Uma vez que a escola está ambientada nas relações raciais, utiliza pedagogias específicas com os conteúdos explicitados acima, poderá, num terceiro momento, de resultados - efetivar mudanças, alterações e boas práticas relacionadas ao efetivo cumprimento das normativas em geral.
Entendemos que esse encadeamento possui uma lógica, pois trabalhar com relações raciais na escola exige a compreensão de que não se pode esperar resultados e melhoria nas práticas escolares quando não foram criadas condições concretas e abstratas para os sujeitos desconstituírem preconceitos e ideias sobre a população e a cultura negra no contexto brasileiro. Assim, com esse entendimento, a elaboração dos referentes se pautou nesta estruturação, isto é, referentes introdutórios, de sedimentação e de resultados, ou seja, um ciclo para facilitar a aprendizagem dos conteúdos das Diretrizes Curriculares para História e Cultura Afro-Brasileira no interior das escolas.
Definidas as fases, a atividade se pautou em verificar no parecer o que era de fato necessário em cada um desses momentos. Verificamos que a introdução compreende que as normativas sejam entendidas e efetivadas pelo sistema de ensino como sendo: Uma política de ação afirmativa (políticas de reparação) que visa uma resposta na área da educação, à demanda da população afrodescendente e que se trata de uma política curricular fundada em dimensões históricas, sociais e antropológicas e visa também combater o racismo e as discriminações. É importante reafirmar que a LDB (arts. 26 - A e 79-B) e o próprio parecer são um dever de reparação do Estado e da sociedade para com o povo negro, isto é, que a Lei 10.639/03 é uma intervenção do Estado a fim de reparar décadas de descaso que o próprio Estado promoveu contra a população negra, inclusive, de políticas eugenistas de branqueamento da população negra e que por pressão internacional foram assumidos tais compromissos6.
Desta forma, entende-se que o destinatário direto beneficiado por essa política são os negros, já que ela se anuncia como um direito dos negros, assim como, de forma indireta, a todos os cidadãos brasileiros. E esse direito anunciado se compõe, sobretudo, de reconhecimento. De se reconhecerem pertencentes à cultura nacional; expressarem visões de mundo próprias; manifestação de pensamento; de usufruírem de professores qualificados e com formação para lidar com as tensas relações raciais e conduzir a reeducação entre os grupos étnicos diversos, escolas bem equipadas, acesso a todos os níveis de ensino. Segundo o parecer, as condições materiais da escola e da formação dos professores são indispensáveis para a educação de qualidade.
Tais políticas de ações afirmativas dependem da reeducação das relações étnico-raciais, isto é, do reassentamento das relações entre brancos e negros, de modo que um trabalho conjunto e articulado intra e extramuros escolares, além disso políticas públicas e movimentos sociais, são cruciais para o sucesso desta política.
Têm se, portanto, os primeiros itens a serem incluídos como necessários para a concretização de uma educação antirracista de qualidade que devem compor a fase introdutória: (i) a percepção que as pessoas têm do que seja a LDB (arts. 26-A e 79-B) e o Parecer CNE/CP n.º 003/2004, quem é seu destinatário e qual sua função; (ii) das condições físicas e materiais da escola e qualificação e formação de professores necessários para o empreendimento da lei, e, (iii) articulação dos saberes e descentralização dos processos.
Também participa de um processo introdutório à desconstrução de alguns mitos e conceitos arraigados na sociedade brasileira que contribuem para a perpetuação do racismo e da desigualdade social e educacional. Nesse sentido, o conceito de raça tem sido entendido como uma construção social e política, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no século XVIII, mas que demonstra as tensas relações raciais num país que embora sustente 53% da população autodeclarada como negra7, busca representar uma nação que privilegia a brancura e as raízes europeias. Portanto, é crucial o entendimento de que estes temas - racismo, teorias de branqueamento e o mito da democracia racial - possam ser discutidos por todos, com objetivo de problematizar e desconstruir esses conceitos expondo que a sua utilização se dá para a hierarquização de uma raça em detrimento de outra, geradora dos problemas sociais e raciais existentes.
Assim, outro ponto que pode compor uma educação antirracista de qualidade é a necessidade de uma (iv) introdução aos temas e conceitos que envolvem as relações étnico-raciais, sobretudo desconstruindo conceitos e saberes racistas arraigados na sociedade brasileira. Em vista disso, foi possível listar os referentes necessários para uma educação antirracista que compõe uma primeira fase ou uma iniciação nesses conteúdos.
FASE | REFERENTES | CONTEÚDOS |
---|---|---|
(i) percepção da lei. | Conteúdo LDB (arts. 26-A e 79-B) e o Parecer CNE/CP n.º 003/2004, destinatários, função da lei. | |
(ii) condições de aplicação da lei. | Condições físicas e materiais do sistema de ensino e de formação e qualificação dos professores. | |
INTRODUTÓRIA | (iii) saber descentralizado. | Articulação de saberes, programas e projetos, enquanto uma política de ação afirmativa extramuros escolar. |
(iv) desmitificar conceitos e lançar novos saberes. | Desconstrução da teoria da democracia racial e branqueamento termos como negro, raça e racismo, lançar estes conceitos de forma ressignificara, utilizando os conceitos do Movimento Negro e da vasta bibliografia já existente. |
Fonte: A autora a partir do Parecer n. CNE/CP n.º 003/2004
Essa fase introdutória pode ser entendida como uma preparação para recepcionar os conteúdos da ERER, de HiCAB e de HiCA que virão num segundo momento. Trata-se no nosso entendimento de uma fase complexa, pois é o primeiro contato com as diretrizes e quando serão desconstruídos mitos e falsas ideias e serão realizadas as primeiras mobilizações com relação a esses conteúdos, mas também é uma etapa especial porque é simbólica, pois visa à quebra de padrões e à reconstrução identitária dos sujeitos.
Após essa fase introdutória é necessário sedimentar os conteúdos de ERER, de HiCAB e de HiCA, que tais legislações exigem que façam parte do currículo e do cotidiano escolar. Deste modo, a segunda fase pretende mapear e sistematizar os conteúdos que se espera que façam parte dos currículos. Com reforço, os conteúdos destacados são uma proposta que seguem o que preconiza o parecer, no entanto, podem ser multiplicadas, a exemplo do rol de matérias. Muito embora a LDB (arts. 26-A e 79-B) informe a obrigatoriedade de algumas disciplinas (Artes, Literatura e História), o parecer indica que tais conteúdos podem fazer parte de qualquer uma, inclusive, estudar as contribuições africanas na disciplina de matemática.
De toda forma, o quadro abaixo representa um conteúdo mínimo que deve ser buscado e incorporado no currículo como um todo e nas práticas cotidianas, no âmbito da segunda etapa da construção dos referentes.
CONTEÚDOS |
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ERER, HiCAB e HiCA em todas as disciplinas, mas, sobretudo, em Educação Artística, Literatura e História do Brasil e em projetos, programas, atividades curriculares. |
História dos Quilombos, sobretudo, Palmares; organizações e ou associações negras valorizando as oriundas de cada localidade ou região. |
Datas comemorativas e seus significados: 13 de maio reflexão e denúncia; 21 de março Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial; 20 de novembro dia da Consciência Negra. |
História da África em uma perspectiva positiva, história dos africanos e afrodescendentes no Brasil, anciãos e griots, memória histórica, ancestralidade, religiosidade africana; civilizações africanas que contribuíram para a humanidade (egípcios, núbios), reinos do Congo, Mali e Zimbabwe. Trafico e escravidão sob o ponto de vista dos escravizados, responsabilização pela escravidão, União Africana, relações Brasil / África. Diáspora, formação, diversidade da diáspora. |
Jeito de ser e pensar dos afrodescendentes brasileiros, festas e comemorações como congadas. |
Contribuições africanas para as ciências, filosofia, artes, política, tecnologias, agricultura. |
Participação dos africanos na história do Brasil, economia, cultura e ciências nas mais diversas áreas do passado e da atualidade. |
Fonte: A autora a partir do Parecer n. CNE/CP n.º 003/2004 (2017).
A sedimentação dos conteúdos será traduzida pela existência e utilização de materiais didáticos de ERER, de HiCAB e de HiCA, pela inserção desses conteúdos nos planos pedagógicos, bem como pelos trabalhos e estudos desenvolvidos no interior da escola. Trata-se de uma fase de aprendizagem e de fixação desses conteúdos que permitirão na última fase, a colheita dos frutos do trabalho até aqui desenvolvido.
Deste modo, a terceira fase visa saber quais os resultados obtidos após a aplicação das fases I e II, isto é, se a escola está ambientada com as diretrizes e sedimentou os conteúdos resultando em mudanças de postura, pesquisas e estudos, e se houve divulgação e registro desses resultados.
Projetos executados | Divulgação | Resultados |
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(i) Elaborar projetos, feiras e trabalhos sobre os conteúdos de ERER, da HiCAB e da HiCA. | (i) Registrar projetos realizados. (ii) Divulgar projetos, trabalhos e pesquisas com vias de contribuir e incentivar para o incremento de materiais sobre a ERER, a HiCA e a HiCAB. (iii) Fazer o intercâmbio de projetos, pesquisas e trabalhos com entidades da sociedade civil, sobretudo o Movimento Negro. |
(i) Tomar nota dos resultados, registrar e expor à comunidade escolar e aos órgãos públicos. (ii) Novas práticas e posturas estabelecidas. |
Fonte: A autora a partir do Parecer n. CNE/CP n.º 003/2004 (2017).
Verifica-se que os referentes da fase 3 indicam resultados esperados oriundos da ambientação e sedimentação dos conteúdos de ERER, de HiCA e de HiCAB, ou seja, quais projetos foram executados, se houve o registro e divulgação, bem como o que tais projetos resultaram de eficaz e positivo no ambiente escolar contra o racismo e preconceito racial e em favor da aplicação das diretrizes. Com esse cenário, as fases e seus referentes ficaram da seguinte forma:
Entende-se que o trabalho com os conteúdos de ERER, de HiCAB e de HiCA são contínuos, isto é, não se delimitam temporalmente, contudo, a partir desses referentes, a escola pode ter um espelho para a aplicação da LDB (arts. 26-A e 79-B) e, também, para verificação de que fase a escola se encontra ou se nem iniciou o cumprimento das normativas auxiliando o trabalho de órgãos fiscalizadores como o MP.
Conclusão
Os referentes político-normativos decorrem da própria legislação, são uma possibilidade para execução, bem como para avaliação de pedagogias antirracistas e objetivam assegurar o direito a educação de qualidade para e com a população negra brasileira. Trata-se de um instrumento que visa contribuir com a promoção da igualdade racial no ambiente escolar.