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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.46 no.1 Porto Alegre jan./dez 2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2023.1.44586 

Outros Temas

Possibilidades e desafios de pesquisar com crianças durante a pandemia

Possibilities and challenges of researching with children during the pandemic

Posibilidades y desafíos de la investigación con niños durante la pandemia

Cristiane Theiss Lopes1 

Doutora e mestre em Educação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), em Blumenau, SC, Brasil. Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil na rede municipal de Blumenau. Professora substituta na Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), em Blumenau, SC, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-6381-8868

Cassia Ferri1 

Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em São Paulo, SP, Brasil; mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, SC, Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), em Blumenau, SC, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-2774-9655

1Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, SC, Brasil.


Resumo:

O artigo apresenta um recorte de uma pesquisa de doutorado, descrevendo sua experiência metodológica na artesania de propor uma técnica inspirada na etnografia e na pesquisa participativa. Utilizaram-se como instrumento para a geração dos dados ferramentas de comunicação remota, pelo contexto pandêmico que se apresentava. Como contribuição para o campo de estudo das infâncias cabe destacar as relações de poder entre os adultos e as crianças na multiplicidade que é pesquisar suas realidades, respeitando e valorizando suas vozes e a efetiva participação delas no processo de geração e análise dos dados.

Palavras-chave: crianças; pesquisa em educação; pandemia; metodologia

Abstract:

The article presents an excerpt from a doctoral research project, describing its methodological experience in proposing a technique inspired by ethnography and participatory research. Remote communication tools were used to generate the data, given the context of the pandemic. As a contribution to the field of childhood studies, it is worth highlighting the power relations between adults and children in the multiplicity of researching their realities, respecting, and valuing their voices and their effective participation in the data generation and analysis process.

Keywords: child; research in education; pandemic; methodology

Resumen:

El artículo presenta un extracto de un proyecto de investigación doctoral, en el que se describe su experiencia metodológica al proponer una técnica inspirada en la etnografía y la investigación participativa. Se utilizaron herramientas de comunicación a distancia para generar los datos, dado el contexto de la pandemia. Como contribución al campo de los estudios sobre la infancia, cabe destacar las relaciones de poder entre adultos y niños en la multiplicidad de investigar sus realidades, respetando y valorando sus voces y su participación efectiva en el proceso de generación y análisis de datos.

Palabras clave: niño; investigación en educación; pandemia; metodología

Este artigo tem como o objetivo apresentar a metodologia utilizada em uma pesquisa de doutorado desenvolvida no programa de pós-graduação em Educação da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), intitulada Entre-lugares: dialogando com as crianças sobre a casa, a escola e a rua, que disserta sobre a presença e a participação das crianças no espaço público da cidade. O objetivo geral da pesquisa foi compreender, com as crianças, sua participação e importância no planejamento (político, cultural, ambiental, social, educacional) dos bairros em que viviam, para entender a vida da/na cidade a partir do ponto de vista delas.

A base teórica e epistemológica se situa nos Estudos da Criança, que constituem um campo interdisciplinar de investigação em pleno desenvolvimento (Sarmento, 2008). Por meio desta abordagem as crianças são compreendidas como atores sociais (Sirota, 2001; Corsaro, 2011), participantes do espaço público (Sarmento et al., 2007) e sujeitos de direitos, conforme a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, de 1989, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Nos últimos anos, se tornou visível o número de pesquisas cujo interesse é investigar a relação das crianças com os espaços públicos da cidade.

Para Sarmento (2018, p. 233), a investigação sociológica das crianças nos espaços urbanos é possível devido a três fatores: o desenvolvimento da Sociologia da infância e, com ela, "a compreensão da criança como ator nos mundos sociais de vida"; a "importância da cidade como topus investigativo nas Ciências Sociais, como a renovação a sociologia urbana"; e, por fim, o fato de a infância na cidade ser reveladora do social, isto é, "a possibilidade de ascender a um conhecimento único sobre a sociedade, a partir do estudo das crianças e da análise das suas percepções, representações e perspectivas sobre a vida comum".

Do mesmo modo, Araújo (2016), do ponto de vista da Geografia da Infância, argumenta que "a experiência da criança com o espaço pode ser considerada como fator fundamental para a sua constituição como sujeito e cidadão", pois as crianças transformam os espaços urbanos em "lugares", atribuindo-lhes significados por meio de suas experiências. Assim, "aponta para o sentido de pertencimento da criança ao espaço que, não somente a rodeia e contorna, mas passa a cumprir um importante papel na formação da sua identidade" (Araújo, 2016, p. 118).

Durante o desenvolvimento da pesquisa de doutorado, e com o advento da pandemia de COVID-19, se exigiu uma reformulação das estratégias metodológicas, pois se antes a intenção era conversar pessoalmente com as crianças nos espaços públicos, com o distanciamento social isso se tornou inviável. Se considerou, assim, para continuar a pesquisa com as crianças, conversar com elas por meio de recursos tecnológicos, sendo a ferramenta escolhida o telefone celular com o aplicativo WhatsApp, na qual criou-se um grupo com os contatos telefônicos dos participantes da pesquisa. A escolha deu-se por se tratar de uma das ferramentas que possibilitam uma comunicação rápida e de diversas formas, como mensagens escritas, áudios, vídeos e/ou imagens/fotos.

De acordo com Pires (2007), utilizar técnicas visuais operadas também pelas crianças é uma tentativa de distribuição do poder de decisão nas relações do trabalho de campo, possibilitando que as crianças participem igualmente da produção dos dados da pesquisa. Nesse mesmo sentido, podemos citar a pesquisa desenvolvida por Christensen et al. (2014), que também utilizou equipamentos tecnológicos em uma abordagem com métodos mistos para o estudo da mobilidade diária de um grupo de crianças em que seu estudo combinou pesquisa etnográfica com a tecnologia GPS (Global Positioning System), além de um questionário interativo que as crianças completaram via telefone celular.3 Cabe destacar que os dados gerados com as crianças foram a partir de análises feitas no grupo de Whatsapp sobre vídeos que registravam momentos em que algumas crianças ocupavam as ruas dos bairros da cidade. Esse vídeos, postados no grupo foram gravados pela pesquisadora antes da pandemia e serviram de apoio para pensar a proposta de pesquisa e depois se tornaram material de análise com a participação das crianças. Conforme Mills (2009), o cientista social, por ele chamado de "artesão", reconhece sua experiência de vida pessoal como parte do processo de pesquisa e obtém consciência da sua produção, em uma autorreflexão, ao observar cotidianamente suas ações e pensamentos.

Dessa forma, não se utiliza de metodologias prontas, ao contrário, cria seus próprios materiais, estabelecendo diferentes relações entre eles e realizando assim um "artesanato intelectual" (Mills, 2009). Esse material produzido pela pesquisadora foi analisado junto com as crianças que enviavam áudios expressando suas reflexões.

Portanto, esse artigo, sendo um recorte dessa pesquisa de doutorado, tem como objetivo geral apresentar como ela foi sendo desenvolvida e pensada ao longo do processo. Para isso, organizou como objetivo específicos apresentar primeiro as escolhas metodológicas tomadas na experiência da pesquisa e as relações éticas e políticas dessas decisões. Em seguida, apresentar um recorte dos dados gerados com a pesquisa, mais precisamente sobre a perspectiva dos responsáveis pelas crianças, refletindo sobre as relações de poder entre adultos e crianças no acesso e uso dos telefones celulares, instrumento pelo qual o grupo foi formado, bem como foi o impacto da pandemia na organização da rotina dessas famílias. Por fim, as considerações finais, têm a intenção de ampliar as discussões sobre o tema e indicar pontos de reflexão para aprofundar as experiências de pesquisa que envolvam as crianças e respeitem suas múltiplas realidades infantis.

Aspectos éticos e políticos da pesquisa: refletindo sobre uma experiência metodológica

Todo trabalho de campo demanda também discussão sobre ética na pesquisa, isto é, sobre as normas que asseguram o devido respeito e a proteção aos sujeitos participantes do processo. Conforme Bogdan e Biklen (1994, p. 75), tais normas tentam assegurar que "os sujeitos aderem voluntariamente aos projetos de investigação, cientes da natureza do estudo e dos perigos e obrigações nele envolvidos", bem como que não sejam "expostos a riscos superiores aos ganhos que possam advir". Mesmo sabendo que nas pesquisas na área da educação e suas metodologias é quase nula a possibilidade de os participantes serem prejudicados ou de alguma forma colocados em risco, os pesquisadores têm, mesmo assim, "… a responsabilidade de assegurar que eles não sejam submetidos a grandes tensões ou situações constrangedoras, seja no processo de investigação, seja como resultado das análises e sua disseminação social" (Gatti, 2019, p. 35).

Com a pandemia, a decisão de realizar a pesquisa de forma remota se justificou no sentido de ter a responsabilidade social com os participantes, assegurando que eles não sofram nenhum risco referente à sua saúde. O respeito e o cuidado com os sujeitos que participam da pesquisa é, portanto, um dos pontos centrais da investigação qualitativa (Bogdan & Biklen, 1994). Por isso, para Ferreira e Sarmento (2008, p. 81) há princípios metodológicos e éticos que devem ser levados em conta ao realizar uma investigação com crianças: "as opções metodológicas terão de estar em permanente diálogo com a diversidade das interações que se estabelecem, à medida que a investigação se vai desenvolvendo".

Foram escolhidos para a participação nesta pesquisa, crianças entre seis e doze anos, que frequentam ou residem nos três bairros na cidade em que se desenvolveu o estudo. Os contatos foram feitos inicialmente com adultos que tinham filhos nessa faixa etária por meio de mensagens enviadas pelo Messenger, aplicativo vinculado à plataforma do Facebook, no qual se expôs o objetivo da pesquisa e enviados todos os documentos necessários para a autorização da investigação. Os primeiros adultos escolhidos para iniciar a pesquisa tinham vínculo com a pesquisadora, adicionados anteriormente à iniciação da pesquisa, como conhecidos e amigos, pais e professores, colegas de trabalho. É importante frisar essas relações dos sujeitos com o pesquisador, afinal o fato de se fazer uma pesquisa não anula a inserção a um campo de relações sociais, culturais, econômicas e políticas. O pesquisador não é neutro, e toda sua vivência e experiência faz com que ele crie e tenha inspirações de como desenvolver a própria pesquisa. Como argumenta Sarmento (2011, p. 140), a pesquisa científica não é resultado do "solipsismo de um investigador isolado do mundo". Ela contempla a "produção discursiva a partir do (ou contra o) discurso científico pré-estabelecido".

Os primeiros adultos contatados pelo Facebook sugeriram outros participantes, ampliando assim a rede da pesquisa, totalizando, ao final, 20 contatos. Foi feito o pedido para adicionar seus contatos ao WhatsApp, plataforma escolhida para a realização da pesquisa. Porém, apenas 15 responderam mostrando interesse em participar do estudo, os quais foram incluídos no WhatsApp utilizando um número de identificação, protegendo assim o anonimato. Após esse contato com os adultos, foi exposto de maneira clara que, para além da autorização destes enquanto responsáveis, também as crianças deveriam decidir se queriam ou não participar da pesquisa. Assim, a intenção foi valorizar a voz e a ação das crianças sobre as quais teve base toda a investigação.

Nesse sentido, o objetivo era conseguir o consentimento informado das crianças, visto que "o consentimento informado é um dos momentos mais importantes [da pesquisa]. Considera-se aqui a informação dada à criança acerca da investigação em causa e o seu consentimento para participar da mesma" (Soares et al., 2005, p. 58; Ferreira & Sarmento, 2008, p. 82). Há, portanto, de acordo com Fernandes e Marchi (2010, p. 11), dimensões subjacentes mais densas, como de ordem ontológica e política, em toda relação de investigação e que devem ser "cuidadosamente mobilizadas e respeitadas".

Nesse sentido, a relação de pesquisa que se vai construindo entre adultos e crianças deve ser reveladora de relações de negociação e parceria, de tomada de decisão conjunta, devedoras de imagens bem definidas da criança como sujeito ativo e político, com um papel central na construção de todo o processo da pesquisa. (Fernandes & Marchi, 2020, p. 11)

Toda empreitada científica pressupõe, além de um posicionamento epistemológico e teórico, também uma tomada de decisão política. No caso da investigação situada nos pressupostos teóricos e metodológicos dos Estudos da Infância, essa posição é a de problematizar e desconstruir o adultocentrismo presente nas investigações de tipo tradicional. A motivação foi produzir em parceria os dados que igualmente foram analisados com a participação das crianças.

Conforme Fernandes e Marchi (2020), há níveis de participação que podem caracterizar as pesquisas com crianças como uma investigação participativa ou etnográfica, cabendo ao investigador ter clareza de suas intenções. No caso, o objetivo foi compreender com as crianças suas relações nos espaços públicos da cidade, considerando-as parceiras na reflexão analítica sobre os dados gerados. Assim, o diálogo com as crianças parte também do pressuposto da compreensão de que sua voz "não é apenas um recurso para a obtenção de testemunho das realidades infantis; é a condição da produção de informação relevante para o conhecimento das sociedades contemporâneas" (Ferreira & Sarmento, 2008, p. 86).

Dessa forma, o conhecimento é produzido com as crianças, ou seja, há uma participação delas, porém não se poderia ainda caracterizar como uma investigação participativa (Soares, 2006), visto que o material (vídeos) analisado pelas crianças já tinha sido produzido anteriormente à criação do grupo. Isso, portanto, impossibilitou que as crianças tivessem tomado alguma decisão sobre os critérios (por exemplo, quais bairros ou a forma de registro a ser feita). Do mesmo modo, a pesquisa não se caracteriza somente como etnográfica, por não ter sido possível observar e permanecer com as crianças nos espaços públicos como havia sido inicialmente idealizado. Tampouco se configura como uma netnografia (Kozinets, 2014), pois a plataforma do WhatsApp foi uma ferramenta para a comunicação e não o próprio campo de investigação.

De todo modo a pesquisa se apresenta como método qualitativo, pois oferece "a possibilidade de intensificar a credibilidade das conclusões de pesquisa…. os pesquisadores podem dizer aos participantes como estão interpretando suas respostas e perguntar-lhes se tal entendimento está correto" (Giddens & Sutton, 2017, p. 55), considerando assim, de fato, sua participação na construção das análises. Bem como, sendo de abordagem interpretativa, reconhece que qualquer versão teórica oferece um retrato interpretativo do mundo estudado, e não um quadro fiel.

Portanto, na seção a seguir, se faz necessário discorrer sobre as relações de poder presentes na pesquisa, tanto no que se refere aos adultos responsáveis pelas crianças e que socialmente exercem um poder sobre elas, como também na relação com a pesquisadora, para que deste modo seja exposto as dificuldades e possibilidades de realizar a pesquisa.

Relações entre adultos e crianças na pesquisa: algumas reflexões

A construção discursiva parte das experiências, ideias, angústias e (in)certezas dos sujeitos que falam. As falas das crianças ou a ausência dessas falas, como o próprio silêncio ou recusa em falar, podem ser compreendidos como uma possibilidade na análise sobre a sua participação. As análises das crianças mostram uma forma de ver o mundo, de se expressar, e marcam uma condição para que possam ser ouvidas em contextos sociais mais amplos. Ao encontro disso, Fernandes e Marchi (2020) defendem a participação das crianças nas pesquisas como método na produção de conhecimento com crianças, compreendendo essa ação também como uma ferramenta política no fortalecimento de uma escuta significativa de suas vozes.

Tal problematização sobre a participação das crianças nas pesquisas tem matizes e graus variados de aprofundamento, indo de um nível mais inicial (mas não menos complexo) de escuta de suas vozes, até um estágio mais avançado na direção da plena participação desses atores sociais no processo da pesquisa. Nesse último nível são levados ao limite os tradicionais papéis de sujeito e objeto (ou de investigador e investigado), rumo a uma horizontalização (relação sujeito-sujeito) das relações verticalizadas e assimétricas de poder comumente presentes no contexto das investigações. Portanto, é essencial

informar as crianças acerca dos objetivos e da dinâmica da investigação (se estes não foram definidos com elas) … Importa assumir que a sua participação é voluntária e que têm toda a liberdade para recusarem participar a qualquer momento do processo; significa, outrossim, discutir com as crianças quais as técnicas de pesquisa que consideram mais adequadas, ou aquelas com que se sentem mais confortáveis. (Ferreira & Sarmento, 2008, p. 82)

Assim, foi feito um vídeo, direcionado às crianças, de apresentação da pesquisa e seus objetivos, bem como o convite para participarem da investigação. Esse vídeo foi enviado para os 15 contatos (os responsáveis pelas crianças) e solicitou-se que o apresentassem às crianças para que elas pudessem confirmar ou não o interesse em participar da pesquisa. As respostas das crianças poderiam ser enviadas por áudio, nesse primeiro momento, e posteriormente impressas e assinadas pelas partes quando o encontro presencial pudesse acontecer. No vídeo direcionado às crianças foi frisado que, caso aceitassem participar, poderiam escolher um nome para sua identificação na pesquisa.

Após o envio do vídeo, dos 15 responsáveis que aceitaram participar apenas dez tiveram da criança o assentimento, ou seja, interesse em participar da pesquisa. As que quiseram participar enviaram áudios confirmando sua participação: "eu gostaria de participar desse seu projeto" (SR.VL, 10 anos). "Oi, sim, eu quero participar e o nome que eu queria né… é o meu segundo nome que é Carolina né, porque todo mundo me chama de Carol" (Carolina, 12 anos). "Eu quero me chamar agora de Sofia" (Sofia, oito anos).

Foi criado, então, o grupo da pesquisa no WhatsApp e adicionados os contatos dos responsáveis, que fariam a ponte entre a pesquisadora e as crianças, disponibilizando para elas o celular. Apenas uma das crianças participantes tinha celular próprio e seu número foi adicionado, sem necessidade da mediação do responsável. A partir de então a comunicação com as crianças foi por meio de vídeos e mensagens de áudios.

A possibilidade do vídeo e áudios facilitavam a comunicação, pois havia no grupo crianças ainda não alfabetizadas. Os vídeos também se tornaram uma forma aproximação da pesquisadora com as crianças. As crianças tinham a liberdade de responder da forma que se sentissem mais à vontade, como também não responder, caso não quisessem. Após assistirem aos vídeos enviados, a maioria respondeu por meio de gravação de áudios.

Além dos áudios das crianças, foram registrados, salvos e transcritos áudios e comentários dos responsáveis, que mantiveram contato por mensagens privadas no WhatsApp. Foi acordado, anteriormente à criação do grupo, que apenas as crianças responderiam no grupo da pesquisa criado e os adultos teriam total liberdade para se comunicar para esclarecimentos e sugestões por meio de mensagens à pesquisadora, no privado, também pelo WhatsApp.

O grupo de WhatsApp foi intitulado Grupo de Pesquisa, e os contatos das crianças adicionados com os nomes que haviam escolhido. Foi enviado um segundo vídeo com o questionamento sobre como elas estavam e se podiam e queriam falar um pouco como se sentiam nesse novo contexto de quarentena, por conta da pandemia, mas após a postagem deste vídeo apenas duas crianças responderam.

Então, após uma semana de espera, os responsáveis foram questionados, por meio de uma mensagem enviada no particular, sobre o motivo da não participação das crianças no grupo. Se a falta de respostas fosse escolha da própria criança, seria compreensível e aceito, assim como dificuldade de acesso ao celular. Após isso, todos os responsáveis responderam justificando a falta de tempo e o esquecimento, e confirmaram que as crianças não tiveram acesso ao celular. Cabe destacar que todos os responsáveis pelas crianças participantes da pesquisa são mulheres, mães das crianças, o que mostra a necessidade de se ter um olhar mais atento para as questões relativas ao gênero, nesse momento. Segue uma das respostas:

Oi, verdade, fui relaxada eu sei, pode brigar … [suspiro] é que é tanta coisa, eles têm aula o tempo inteiro, o tempo inteiro, vou te mandar uma foto daqui da minha mesa pra ti ter ideia, e eu voltei a trabalhar, não presencial, mas online, e ai estou com as minhas coisas e as coisas dela e tal, e eu deletei isso, desculpa, eu prometo que eu vou lá ouvir e fazer [risos] Não é nem ela, mais sou eu que as vezes e falo "ah depois quando der tempo eu vou botar para ela ouvir o que tu falou para ela gravar", ela gosta, ela é faladeira, e daí dá que é dez horas da noite que a gente sai daqui da frente do computador, só toma banho e vai dormir, e de manhã acorda e já vai para as aulas de novo, e a gente tá nessa… nesse feriado eterno só fazendo isso, computador, ela, mas esses dias até ela a noite estava chorando, um tempo atrás, ai, "que a gente só faz isso que a gente não faz mais nada, eu já estou cansada, a gente só fica no computador" [falou como se fosse a criança com voz de choro] sabe? Essa vida se resume a isso nesse momento, mas eu vou tentar ouvir, tá bom? Prometo! (Mãe da Ali)

Percebe-se na justificativa da mãe da Ali que a casa, considerada um espaço privado da família, tornou-se um espaço híbrido em que ocorria, nas palavras dela, "aula o tempo inteiro". Isso porque ela é professora e estava ministrando aulas online, o que acaba por mesclar os dois lugares: casa e local de trabalho. Interessa ressaltar que ela se refere a esse momento da pandemia, de forma irônica, como um "feriado eterno", já que o feriado é compreendido como um dia para descanso, ou seja, de ficar em casa sem a obrigação de ir trabalhar, mas, com a nova realidade estabelecida pela pandemia, as fronteiras de tempo e espaço foram borradas ou reconfiguradas. Assim, estar sempre em casa deixa de ser sinônimo de descanso e passa a significar trabalho intenso.

Por meio dos relatos dos adultos (no caso, as mães das crianças), é possível perceber a sobrecarga de trabalho (dupla jornada) a que as mulheres ainda estão submetidas e que, com a pandemia, foi aguçada, pois, além da realização do trabalho doméstico (e do cuidado e responsabilidade pelas crianças) e do trabalho em home office, têm ainda o trabalho pedagógico, ou seja, precisam ser as professoras de seus próprios filhos. No caso da mãe da Ali, que já exerce a profissão de professora, há o conhecimento e a experiência pedagógicos, mas essa não é a realidade de todas as mães.

Diante dessa sobrecarga de trabalho, foi acordado com as responsáveis um dia e horário fixo para as postagens, facilitando assim sua organização. Foi decidido por uma postagem semanal, toda quarta-feira, entre 8h e 18h. Foi explicado que essa data facilitaria a organização familiar, mas as crianças poderiam também responder e interagir no grupo qualquer dia e hora, desde que se sentissem à vontade para isso. Após esse acordo, todas as crianças responderam, contando sobre o que sentiam falta e como estavam lidando com a quarentena.

O passo seguinte foi apresentar às crianças, no grupo de WhatsApp, as observações do diário de campo, por meio dos vídeos produzidos anteriormente ao grupo. Os vídeos, assim, se tornaram material de análise do grupo. Cada semana foi postado um vídeo e as crianças participavam falando sobre suas impressões e analisando o contexto em que ele foi elaborado. Foi por meio desses diálogos, postados em formato de áudios no grupo da pesquisa, que se deu início à primeira geração de dados de forma coletiva.

Ao analisarem os vídeos do diário de campo, produzidos pela pesquisadora, as crianças também produziram reflexões sobre os vídeos. Com isso, a partir de suas falas se torna possível construir outras representações, ou seja, categorias de pensamento que expressam, explicam, justificam ou questionam a realidade (Minayo, 1995). Se tem claro que não se pode negar a relação de poder que os adultos socialmente exercem sobre as crianças, essa relação com o "outro", que pode ser a pesquisadora, ou os adultos responsáveis por elas, que participam da pesquisa de forma indireta atuando sobre elas, deve ser levada em conta durante a pesquisa.

Das dez crianças participantes do grupo da pesquisa, apenas seis participaram ativamente. Das quatro restantes, duas participaram em dois momentos, e uma apenas uma vez enquanto outra não se pronunciou, mesmo tendo acesso e visualizando tudo que fora postado no grupo. Percebe-se que, mesmo dialogando com outras crianças no grupo, houve momentos em que elas se sentiam tímidas, como justificou a mãe da Isa: "Oi, minha filha não enviou mensagem, pois é muito tímida em questão de falar em áudio, mas aos poucos convenço ela, beleza? Beijos".

De fato, se os celulares na maioria das vezes pertenciam aos adultos, ou seja, às mães, e se eram elas que possibilitavam o acesso das crianças ao grupo da pesquisa, não se pode negar que havia a possibilidade de direcionarem ou atuarem também sobre as respostas das crianças, não com o objetivo de impedir a originalidade ou negar uma ética, mas no sentido do senso comum de que há "respostas certas". Assim, os discursos dos adultos têm um peso social diferente do das crianças, justificado pela lógica adultocêntrica que dificulta o reconhecimento das crianças como participantes ativos no processo de produção cultural.

Esta experiência, ao mesmo tempo que questionou as práticas sociais estabelecidas culturalmente, propôs uma metodologia que possibilitou a transformação dessas práticas. Pretendeu-se afirmar a escuta das crianças e criar espaço para sua participação na produção de conhecimento, mas é assim também que se tornou possível revelar as contradições e dificuldades de se propor isso. Não se pode garantir que de fato as crianças tenham participado ativamente da pesquisa, embora este fosse um objetivo. Ainda assim, sempre se poderá contribuir, com seu artesanato metodológico, para que essa participação venha a acontecer cada vez mais de forma qualificada em pesquisas futuras.

… nenhum método de investigação é intrinsecamente participativo (Boyden & Ennew, 1997), sendo a natureza da investigação não uma questão de técnicas de recolha ou tratamento de informação, mas algo que se centra na orientação estratégica da pesquisa, isto é, algo que se relaciona com as concepções epistemológicas, políticas e éticas, com implicações técnicas. É de poderes – mais do que de "modus faciendi" – que se trata. (Ferreira & Sarmento, 2008, p. 81)

Ao encontro disso, Fernandes e Marchi (2020, p. 12), ao apresentarem as aproximações e diferenças entre a investigação participativa e a etnografia, destacam que não se trata de atribuir superioridade, seja metodológica ou ética, a este ou àquele método, "mas mobilizar, de modo crítico e reflexivo, o conceito de participação nas pesquisas realizadas com crianças, apresentando e interrogando os modos e os significados que esse conceito pode assumir nos processos de investigação". Um exemplo dessa reflexão gerada a partir da prática de escuta das crianças é o que uma das mães das crianças participantes me enviou, no privado, por mensagem escrita: "Ela gostou muito de discutir os assuntos propostos, eu como mãe também gostei de ver a opinião dela acerca de assuntos que geralmente não abordamos". (Mãe da Sol)

As observações empíricas registradas em vídeos e feitas antes da participação das crianças na pesquisa, quando socializadas no grupo, se tornaram observações compartilhadas em que se coloca como central "a questão do sentido do que se observa. A devolução das notas de observação às crianças permite confrontar pontos de vista e construir um conhecimento participado" (Ferreira & Sarmento, 2008, p. 82).

São esses conhecimentos possibilitados pelos áudios no grupo, em que cada um pode se ouvir e ouvir o que os outros dizem, que, contextualizados conceitualmente em discussões teóricas, constituíram o trabalho. As múltiplas formas de compreender e produzir os conceitos sobre o que é ser criança e a infância, na sociologia, partem das perspectivas teóricas interpretativas e construtivistas (Connell, 1987; Corsaro, 1992; James et al., 1998).

Isso significa que a infância e todos os objetos sociais (incluindo aspectos como classe, gênero, raça e etnia) são vistos como sendo interpretados, debatidos e definidos nos processos de ação social. Em suma, são vistos como produtos ou construções sociais. Quando aplicados à sociologia da infância, as perspectivas interpretativas e construtivistas argumentam que as crianças, assim como os adultos, são participantes ativos na construção social da infância e reprodução interpretativa de sua cultura compartilhada.

Em contraste, as teorias tradicionais veem as crianças como "consumidores" da cultura estabelecida por adultos (Corsaro, 2011, p. 19). A análise das culturas da infância é uma possibilidade de "fazer a desconstrução epistemológica dos processos de apropriação da realidade pelas crianças" (Sarmento, 2005, p. 26). É no paradigma interpretativo, que surgiu como crítica ao positivismo (Sarmento, 2011), que o trabalho de interpretação, possível pela interação entre os atores sociais e o investigador, pode reconstruir a complexidade tanto das ações como da representação das ações. "Este trabalho relacional é a condição da interpretação científica. Ora, toda a interação é já uma forma de ação. Assim, o ato de conhecer, ainda que seja autónomo, não é independente da ação social" (Sarmento, 2011, p. 6).

Outro paradigma que possibilita a interpretação dos dados é o crítico, que "procura articular a interpretação empírica dos dados sociais com os contextos políticos e ideológicos em que se geram as condições da ação social" (Sarmento, 2011, p. 7).

Com forte inspiração teórica na teoria marxista, na teoria crítica de Frankfurt, na teoria de resistência ou no feminismo crítico, os investigadores críticos assinalam a centralidade do poder nas relações sociais, sugerindo na investigação dos fenômenos simbólicos e culturais que a cultura é uma forma de luta política acerca do significado dado às ações das pessoas situadas dentro de relações assimétricas de poder ilimitadas. As investigações realizadas dentro dessa perspectiva tendem a ser consideradas como momentos praxeológicos, dimensões empíricas de um projeto político emancipatório. (2011, p. 7)

Compreendendo esses dois paradigmas, interpretativo e crítico, é possível, ao se estudar as crianças e as infâncias, entrelaçar as análises tanto reconhecendo as crianças como agentes sociais quanto tornando visíveis as estruturas de poder que agem sobre elas, admitindo, assim, um "interpretativismo crítico" (Sarmento, 2011). Dessa forma, nesse quadro epistêmico do interpretativismo crítico deve-se considerar (de modo objetivo e subjetivo) as relações de poder e com isso o reconhecimento da linguagem como uma forma de poder, ou seja, "o poder da linguagem envolve também a linguagem do poder" (Sarmento, 2011, p. 13). Assim, conforme Bourdieu (1989, p. 1), as relações não se limitam apenas à linguagem, pois

contra todas as formas do erro "interaccionista", o qual consiste em reduzir as relações de força a relações de comunicação, não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir acumular poder simbólico. É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os "sistemas simbólicos" cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a "domesticação dos dominados".

Ter a consciência do poder da linguagem nas relações sociais faz com que, na condição de pesquisadora, seja realizada constantemente uma reflexão sobre a metodologia, tanto teórica como na prática da pesquisa, para não reproduzir nenhum tipo de violência, pois "só a reflexividade, que é sinônimo de método, mas uma reflexividade reflexa, baseada num `trabalho’, num `olho’ sociológico, permite perceber e controlar no campo, … os efeitos da estrutura social na qual ela se realiza" (Bourdieu, 1983, p. 694).

O ganho dessa consciência exprime-se, no trabalho de investigação, no princípio da reflexividade. Este é um dos pressupostos epistemológicos do interpretativismo crítico…. dado que esse princípio é a principal barreira que pode impedir a transposição não vigiada dos enviesamentos e preconceitos ideológicos do investigador sobre a sua observação e as suas interpretações. (Sarmento, 2011, p. 14)

Assim, é considerado o modo como os participantes, no caso as crianças, apresentam suas ideias, seus costumes e relatos tanto no que diz respeito à cultura geral quanto em relação à cultura local da qual fazem parte. Portanto, há de se ter em mente a possibilidade de que elas não apenas se apropriem dessas culturas ou as reproduzam, mas, ainda, façam inovações para que sirvam a seus objetivos imediatos. Do mesmo modo, os dados nunca serão "puros", pois a utilização da linguagem está relacionada à forma como cada um constrói sua interpretação do mundo.

No espaço de discussão do Grupo de Pesquisa, quando foram apresentados os vídeos das observações registradas no diário de campo, houve questionamentos sobre termos utilizados, como: "Oi, para todos, tudo bem gente? Então, eu queria fazer uma pergunta … o que significa um vídeo de campo?" (Ali, oito anos). Esse questionamento, além de aproximar as crianças de conceitos acadêmicos específicos, possibilitou a troca de saberes e a participação delas nas discussões, com permanente diálogo em relação às questões metodológicas.

Assim, as categorias analíticas foram extraídas dos relatos (transcrições) gerados no grupo de WhatsApp. A partir disso, conforme novos dados iam sendo gerados com participação das crianças, as categorias eram verificadas e reafirmadas. Dessa forma, cada categoria é uma reflexão dela própria (Charmaz, 2009). É nesse movimento de discussão, sistematização, reflexão e nova discussão que a compreensão vai ganhando forma e conclui ao atingir a máxima da reflexividade metodológica.

O conceito de reflexividade metodológica tem, ademais, o interesse de lembrar que todo o trabalho investigativo é uma construção com implicação do investigador (Atkinson, 1990, p.7). Não se trata de uma transposição imediata e linear da realidade: sobre esta foram feitos cortes, seleções, nela há pontos de luz particularmente pregnantes para a atenção do investigador e há também pontos de cegueira. A reflexividade metodológica é então esse momento em que se interroga o sentido do que se vê e porque se vê e se acrescenta o escopo do campo de visão a um olhar-outro, coexistente no investigador. Isto não significa, no entanto, que a reflexividade metodológica seja um mero esforço de autoanálise, um exame de consciência investigativa gerado no espontaneísmo de uma vontade formada no desejo da verdade. Há certamente aqui uma ética, mas é sobretudo das dimensões epistemológicas que a reflexividade metodológica trata. A reflexividade metodológica não pode ser senão ela própria submetida a um esforço metodológico de autodelimitação que a esclareça e fundamente as condições da sua própria eficácia. Uma "reflexividade reflexa", dirá Bourdieu (1993, p. 904). Reflexividade que assenta no quadro conceptual em que se gera todo o trabalho e que reconhece as condições ideológicas de que se parte para que, com base na consciência dessas bases, vigie todas as interpretações do investigador-intérprete, para, finalmente, a elas regressar, para vislumbrar o horizonte desejado: as concepções de onde partiu refeitas ou confirmadas e o campo do seu próprio saber reconstruído, podendo assim ser reatualizadas as condições da sua práxis investigativa e social. (Sarmento, 2011, p. 16)

Na possibilidade de desenvolver essa constante reflexividade, debruçamo-nos sobre os dados várias vezes, de modo que as análises fossem constantes desde o início da geração de dados. Assim, esses registros foram feitos por meio de anotações no diário de campo, em que foram colocadas todas as ideias iniciais relacionadas à pesquisa. Em seguida, a cada nova informação, a partir de conversas e/ou observações com as crianças, dialogou-se por escrito com aquelas informações, dados e ideias, em um comparativo constante.

Todo esse material foi apresentado e discutido com as crianças participantes da pesquisa por meio de uma videoarte, facilitando assim a visualização e a escuta do que havia sido produzido. A ideia de criar uma videoarte com o registro das falas das crianças participantes da pesquisa surgiu da necessidade de propor uma interdisciplinaridade, relacionando a escrita (diário de campo), às artes visuais (por meio das imagens criadas), o áudio (gravações do grupo) e o vídeo (vídeos dos diários de campo).

Foi realizada uma chamada de vídeo pela ferramenta Meet, pertencente à plataforma Google, e dela participaram apenas cinco das dez crianças que fizeram parte da pesquisa. A ausência das crianças foi questionada por mensagem privada às suas responsáveis, e duas justificaram pelo atraso ao chegar em casa, o que impossibilitou o acesso das crianças aos celulares. Outra mãe justificou pelo fato de a criança estar doente e não poder mais participar da pesquisa, saindo assim definitivamente do grupo. Por fim, as outras duas não responderam ao questionamento, apenas saíram do grupo em definitivo.

O fato de não ter um retorno das crianças e de a comunicação com suas responsáveis ter sido breve não permite concluir o real motivo do desligamento da pesquisa. Apenas importa destacar que foi feita mais de uma tentativa de agendamento de uma nova chamada de vídeo, que proporcionasse a participação de todas as crianças, o que por fim não foi possível. Mesmo assim, foi encaminhada a videoarte para que essas crianças que não compareceram ao encontro coletivo pudessem assistir individualmente, no entanto não houve retorno.

As crianças que participaram da chamada coletiva de vídeo permaneceram em silêncio após assistirem à videoarte. Foi proposto um diálogo sobre suas percepções, porém todas continuaram em silêncio. Dessa forma, as técnicas de pesquisa devem sempre considerar a multiplicidade de formas com que as crianças se expressam, considerando a "simetria ética entre adultos e crianças" em todo o processo da investigação (Soares, 2006, p. 31). Portanto, exige-se do investigador uma atitude de equidade, implicando estar atento à questão do poder que envolve toda e qualquer situação de pesquisa e, notadamente, a que está presente nas relações intergeracionais.

Assim, no que se refere à ética na pesquisa com crianças e a sua participação como parceiras, é necessário o ato de negociar, o que implica "colocar-se do lado delas, quer dizer, respeitar a espontaneidade de cada uma delas, sem tolhê-las ou ofender as suas liberdades, mesmo quando suas falas desejam se calar e os nossos ouvidos só querem ouvir". (Carvalho & Müller, 2010, p. 77)

Desse modo, reconheceu-se as expressões faciais como uma forma de resposta, como a risada ao ouvir sua própria voz, na exibição da videoarte, ou mesmo o sinal de positivo feito com o dedo polegar quando se perguntou se gostaram da apresentação. Afinal, se a proposta é desconstruir o papel adultocêntrico da produção da ciência, é necessário o adulto reconhecer e respeitar a "alteridade das crianças" (Soares, 2006, p. 32). Nesse sentido, deve-se tomar cuidado com a tentativa de "adequar a realidade ao que a visão intenta projetar … Na delicada arte da conversa e da escuta com as crianças envolvidas na pesquisa, devemos nos precaver acerca dos atos de projeção" (Carvalho & Müller, 2010, p. 77).

Respeitando-se esse momento, em que as crianças não mostraram desejo de se pronunciar, foi encerrada a chamada e disponibilizada no grupo a videoarte para que pudessem assistir novamente, caso houvesse interesse. Elas foram avisadas também da possibilidade de continuar o diálogo por meio de áudios no grupo de WhatsApp, caso se sentissem mais à vontade, porém apenas uma se pronunciou no grupo, após o encontro coletivo, escrevendo: "Beijos! Ficou muito legal o vídeo, parabéns pela dedicação!".

Após a apresentação do resultado dos dados às crianças deu-se início à escrita analítica deles. Nessa escrita destaca-se a possibilidade metodológica, teórica e política de dar visibilidade científica à participação das crianças nas pesquisas acadêmicas.

Algumas considerações…

Sabe-se que a metodologia é o aspecto central da pesquisa, visto que determina não só os caminhos como as perspectivas teóricas e políticas da investigação. Desta forma, ampliar as possibilidades e criar outras formas de pensar a pesquisa com crianças implica responsabilidade e coerência nos procedimentos de geração e análise dos dados.

A experiência de pesquisa apresentada neste artigo ilustra a possibilidade de começar com metodologias já consolidadas no campo, como a etnografia e a pesquisa participativa, sem se limitar a elas como se fossem fórmulas prontas. Ambas podem ser utilizadas com rigor na produção de conhecimento com crianças. No entanto, ao fazer essa escolha, é importante refletir sobre seus limites e determinar se sua aplicação é viável na realidade pesquisada.

No entanto, a presente experiência de pesquisa não pode ser totalmente definida por nenhuma dessas duas abordagens metodológicas (investigação participativa, etnografia). Nesse sentido, considera-se ou reivindica-se o fato de que, tal qual em uma obra artesanal, em que não existem pacotes ou prontas receitas, a metodologia deste estudo foi sendo construída peça por peça à medida que os fatos e as circunstâncias externas (e, também. extremas, como é o caso da decretação do isolamento social e o fechamento das escolas e a livre circulação em locais públicos) foram se configurando e impondo a tomada de decisões referentes ao método. Essa imposição, no entanto, não deu forma ao método, mas possibilitou sua artesania e, por sua singularidade, este não pode ser reduzido a uma ou outra forma definida. Isso nos requisita, portanto, descrever os passos metodológicos dados e as circunstâncias ou condições que ajudaram a desenhar e redesenhar constantemente a rota do estudo.

O objetivo desse artigo, além de descrever o percurso metodológico foi, também, refletir sobre os desafios, como propor outras práticas e, ainda, reconhecer algumas contradições inerentes ao campo e às perspectivas teóricas da área dos estudos da criança e da infância. Entre eles, podemos citar o de que sempre um discurso acadêmico parte de um adulto para outros e, nesse sentido, o pesquisador ter consciência do seu lugar tanto geracional como social, aprimorando o olhar sensível e a atitude de dialogar e dar um retorno dessas discussões para as crianças e comunidade em geral, visto que o discurso acadêmico só tem sentido ao propor uma reflexão, e porque não uma transformação, da realidade.

Cabe destacar, que as crianças participantes desta pesquisa não tinham a intenção nem pretensão de fazer de seu discurso um saber científico, traduzido em uma tese. É necessário marcar as relações de poder existentes no processo e as intenções que esses escritos têm no contexto estrutural. Ao mesmo tempo que as crianças compartilham suas ideias e opiniões, revelando o que teoricamente o campo dos estudos das infâncias defende (a escuta das crianças e seu reconhecimento como sujeitos competentes), não se pode com isso, invisibilizar seu direito à proteção. No entanto, colocam-se em evidência as contradições e desafios de se propor uma participação efetiva das crianças na produção de saber sobre as infâncias sem colocar em risco seus direitos.

Diante disso que foi apresentado, podemos pensar a participação das crianças como uma oportunidade de ouvir e entender como se sentem e como pensam a respeito da sua condição geracional e do seu próprio tempo, a infância. Cabe também ressaltar que as experiências de infância são inúmeras e não se limitam a um recorte de uma pesquisa.

3Para saber mais ver Christensen et al. (2014).

Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

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Recebido: 11 de Abril de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023; Publicado: 24 de Novembro de 2023

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