SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número1Bruxas nos currículos: ofensiva antigênero nos currículos da educação brasileiraO eixo Psicologia da Educação na ANPEd Sul: entre idas e vindas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.46 no.1 Porto Alegre jan./dez 2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2023.1.44387 

Outros Temas

Experiência estética e religação do conhecimento na educação: um ensaio a partir dos pressupostos teóricos do Pensamento Complexo

Aesthetic experience and the reconnection of knowledge in education: an essay from the theoretical assumptions of Complex Thought

La experiencia estética y la reconexión del conocimiento en educación: un ensayo a partir de los supuestos teóricos del Pensamiento Complejo

Flávia Diniz Roldão1 

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, PR, Brasil. Professora do UNIBRASIL Centro Universitário, em Curitiba, PR, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-1598-3989

Ricardo Antunes de Sá2 

Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em Campinas, SP, Brasil; com pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em Curitiba, PR, Brasil. Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, Paraná, Brasil.


http://orcid.org/0000-0001-5979-9265

1UniBrasil Centro Universitário, Curitiba, PR, Brasil; Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.

2Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.


Resumo:

O texto é um ensaio teórico-bibliográfico. Discute a ideia da religação dos conhecimentos e da experiência estética conforme expressa no Pensamento Complexo proposto por Edgar Morin. Busca sustentar a necessidade da religação dos diferentes conhecimentos, conforme preconizado pelo autor, e salienta a questão das experiências estéticas nos processos formativos educacionais escolares e universitários como dimensão humana fundamental. A reflexão teórico-bibliográfica aposta na possibilidade de uma formação complexa, pertinente e humanizadora dos estudantes, ressaltando a importância do acolhimento da dimensão estética na formação humana. Finalizamos o ensaio compartilhando com o leitor algumas indagações para reflexão.

Palavras-chave: experiência estética; educação estética; pensamento complexo; complexidade; conhecimento

Abstract:

The text is a theoretical-bibliographical essay. It discusses the idea of the reconnection of knowledge and aesthetic experience as expressed in Complex Thought proposed by Edgar Morin. It seeks to support the need for the reconnection of different types of knowledge, as advocated by the author, and emphasizes the issue of aesthetic experiences in school and university educational processes, as a fundamental human dimension. The theoretical and bibliographical reflection bets on the possibility of a complex, pertinent, and humanizing education for students, highlighting the importance of accepting the aesthetic dimension in human education.

Keywords: aesthetic experience; aesthetic education; complex thought; complexity; knowledge

Resumen:

El texto es un ensayo teórico y bibliográfico. Analiza la idea de la reconexión del conocimiento y la experiencia estética expresada en el Pensamiento Complejo propuesto por Edgar Morin. Pretende apoyar la necesidad de reconexión de los diferentes tipos de conocimiento, como defiende el autor, y destaca la cuestión de las experiencias estéticas en los procesos educativos escolares y universitarios, como dimensión humana fundamental. La reflexión teórica y bibliográfica apuesta por la posibilidad de una educación compleja, pertinente y humanizadora de los alumnos, destacando la importancia de aceptar la dimensión estética en la formación humana.

Palabras clave: experiencia estética; educación estética; pensamiento complejo; complejidad; conocimiento

A importância da fantasia e do imaginário no ser humano é inimaginável. (Morin, 2000, p. 21)

Este ensaio de caráter teórico-bibliográfico discute a religação dos conhecimentos e a experiência estética sob o ponto de vista do Pensamento Complexo. Buscamos entretecer uma narrativa que ressalte a importância desses fenômenos dentro dessa perspectiva teórica aplicada ao campo da educação.

O Pensamento Complexo, construído por Edgar Morin (2000, 2003a, 2003b, 2005a, 2005b, 2010b, 2015a, 2020; Morin et al., 2003) ao longo de sua vida, visa à busca permanente pela religação dos saberes, à produção de um conhecimento pertinente, de um pensar bem e de um pensar-se bem; propõe que é preciso uma reforma do pensamento e das instituições que saia do círculo vicioso do paradigma da disjunção e da redução, restabelecendo o diálogo entre os conhecimentos e entre a cultura científica e a cultura humanística (Morin, 2015a). Aponta, ainda, a necessidade de superarmos a visão mutiladora que se apresenta incapaz de "conceber a complexidade da realidade antropossocial" (Morin, 2015a, p. 13) e aposta "… que um modo de pensar, capaz de unir e solidarizar conhecimentos separados, é capaz de se desdobrar em uma ética da união e da solidariedade entre humanos" (Morin, 2003, p. 97).

Por sua vez, a dimensão estética da existência é uma das multidimensionalidades que formam o humano, e o conhecimento estético é uma das dimensões possíveis do conhecimento. O livro de Morin Sobre a Estética, uma das principais fontes em que o autor trata ampla e diretamente sobre esse tema, nasce de conferências que foram proferidas em 2016 na Maison des Sciences de L’Homme e é apontado pelo autor como uma obra na qual ele reúne o essencial de seus trinta anos de estudos sobre o tema da estética. No prefácio do livro, ele confidencia-nos: "… venho acumulando notas sobre a estética, mas havia desistido de escrever `minha’ estética, que poderia ter sido o volume final de O Método", e declara: "É sempre bom falar daquilo que amamos" (Morin, 2017, p. 11). O amor de Morin pela cultura humanística, tão intensamente carregada da dimensão estética da existência, é algo que absolutamente salta aos olhos do leitor atento de seus livros, que estão recheados de depoimentos pessoais acerca de suas experiências de fruição da música, do cinema e de outros exemplos de fruição estética (Morin, 2010a, 2012, 2013, 2014a, 2014b, 2014c, 2015b).

A reflexão expressa nesse texto foi didaticamente organizada em dois momentos. No primeiro momento do texto, buscamos apresentar e discutir como as ideias da experiência estética e da religação dos conhecimentos aparecem na perspectiva teórica do Pensamento Complexo. No segundo momento, refletimos sobre o lugar da experiência estética na educação a partir da perspectiva da complexidade e sustentamos a possibilidade de uma formação mais completa, pertinente e humanizadora dos estudantes, por meio da atenção à dimensão estética na formação humana. Finalizamos o ensaio dividindo, com o leitor, algumas considerações para reflexão.

Experiência estética e aproximações com o Pensamento Complexo

Destacamos aqui a ideia de experiência estética ou emoção estética, conforme proposta por Edgar Morin (2017, p. 13):

… uma emoção que nos surge a partir de formas, de cores, de sons, mas também de narrativas, de espetáculos, de poemas, de ideias…. é um sentimento de prazer e de admiração que, quando é intenso, se transforma em maravilhamento, ou até mesmo em felicidade. Pode ser provocado por uma obra de arte, bem como por um espetáculo natural. Pode ser suscitado por objetos ou obras cuja destinação não era estética …

O autor assume que tal sentimento é "difícil de definir" (Morin, 2017, p. 13); também, que os seres humanos têm a capacidade de estetizar objetos e vivenciar experiências estéticas a partir de obras que não tinham inicialmente tal finalidade. Observamos que ele sustenta o valor central, não acessório ou secundário, da experiência estética na formação humana.

Morin propõe que "tudo o que é estético constitui um elemento integrado e integrante da parte poética da vida" (Morin, 2017, p. 14). Essa dimensão da existência está ligada a diferentes experiências, tais como a experiência com as artes e a natureza e a experiência de comunhão, de festa, de amor, do jogo. Na concepção moriniana, a dimensão estética concretiza uma relação de osmose e fluidez com as dimensões poética, mística e lúdica. Para o referido autor, o sentimento estético trata-se de uma experiência ou estado poético momentâneo, que favorece a transformação da pessoa e lhe proporciona energia para o enfrentamento dos estados prosaicos da vida3 e da crueldade do mundo. Ela favorece não apenas a descoberta das culturas e o conhecimento das sociedades, como, também, o conhecimento subjetivo e a humanização (Morin, 2017).

Para o Pensamento Complexo,

… o ensino das humanidades [entendidas aqui como as artes] não é um luxo que deveria ser reduzido em prol dos ensinamentos utilitários. Mais que útil, o ensino das humanidades é indispensável e salutar para a vida de todos. Fornecem um viático para ajudar a viver, para viver melhor, para o bem viver, ou seja, para se viver lúcida e poeticamente. (Morin, 2017, p. 116-117)

Edgar Morin enfatizou a importância da religação dos diferentes saberes na formação humana. Estudando a sua vasta publicação, observamos que o autor foi um fruidor das diversas artes, especialmente da música e da literatura, tanto quanto o foi da filosofia. Em uma de suas obras, ele se descreve como um "… onívoro cultural no universo que se chamaria hoje multimídia" (Morin, 2013, p. 18); conta que seu pai lhe transmitiu "uma cultura de cançonetas, de café-concerto, de operetas" (Morin, 2013, p. 13). Com o primo Fredy, ele costumava frequentar os cinemas em Paris. Sobre o cinema, escreve: "… o cinema é muito mais belo, emocionante, extraordinário que qualquer outra representação" (Morin, 2014b, p. 10). Ainda, ele relata que, na literatura, em sua adolescência, encontrou livros que lhe mostrariam as suas próprias verdades através das verdades ali relatadas ou vivenciadas por diferentes personagens. Conta:

… Até uma certa idade, a literatura prepara-nos para a vida. Ela canaliza o movimento entre o real e o imaginário. Aleita nossos tropismos afetivos. No final da infância ela nos dota de uma alma… Ela propõe moldes sobre os quais se vestirão nossas tendências individuais, e este vestir, sejam roupas sob medida sejam de confecção, dará forma a nossa personalidade. Ela nos oferece antenas para entrar no mundo. Não quero dizer que ela nos adapta a este mundo [ênfase adicionada]: ao contrário, seus fermentos de rejeição e de inadequação, seu caráter profundamente adolescente, contradizem este mundo. Mas contradizem-no, dando-nos acesso a ele. Pelo romance e pelo livro cheguei ao mundo [ênfase adicionada]. (Morin, 2013, p. 20)

Nesse trecho, percebemos que, para Morin, a literatura abre possibilidades, funda espaço para a autorreflexão e é um canal de formação humana. Morin (2013) conta que, ao mesmo tempo em que ele formava seu repertório de cultura literária, formava também um repertório de cultura musical. Na referida obra, ele relata passagens de sua experiência estética com a música (por exemplo, fruindo Beethoven), e como nas apresentações em concertos que costumava frequentar nos finais de semana. Destaca ele: "A música entrou na minha vida e nunca deixou de me falar daquilo que mais me interessa e que as palavras são incapazes de dizer" (Morin, 2013, p. 24). Ele fala da música como: "O milagre da linguagem do amor" (Morin, 2010b, p. 39).

Quanto ao cinema, tal qual a literatura, ele diz ter se tornado com o tempo um fruidor que escolhe cuidadosamente ao que vai assistir, indo ativamente à procura dos filmes que deseja apreciar (Morin, 2010b, 2014b). Percebemos, por meio do estudo de sua biografia, que essas experiências de vida que ele teve, mergulhadas na cultura, como ele mesmo relatou, criaram para si "… uma cultura auto-exo-produtora e auto-exo-organizadora" (Morin, 2013, p. 46), a qual ele buscou integrar em sua vida, assim como a sua vida ao seu saber cultural. Isso aponta-nos uma religação da cultura com a vida concreta, bem como da vida com a cultura.

Morin conta, em uma entrevista (Morin, 2010b), que desde a infância ele lia sem cessar, inclusive o fazendo durante as refeições. Tornou-se fechado diante da morte de sua mãe e aproveitou-se da abertura que lhe era dada pelo pai para selecionar o que ele próprio desejava ler, sem sofrer restrições paternas. Tal contexto o marcou dolorosa e profundamente; além disso, percebemos que o dotou de uma grande capacidade exploratória do mundo através da cultura. Ele conta que se refugiou no imaginário. Relata, contudo, que não era apenas um fruidor da leitura, mas produziu também alguns pequenos romances; por exemplo, conforme citado por ele, um deles foi escrito no oitavo ano da escola e tinha apenas seis páginas.

Como já afirmamos em texto anterior (Roldão et al., 2019), entendemos que, na obra de um determinado autor, encontra-se ali, também, a marca da sua vida, entrelaçada em sua composição narrativa. Esse enlace pode se dar pela via de uma produção que traz os ecos e/ou resquícios da experiência de vida do seu autor, não separável de sua produção intelectual, ou pela via da mescla da relação subjetiva que ocorre entre o consciente e o inconsciente, e das fronteiras abertas e fluidas entre o real e o imaginário, que se imbricam na produção textual, formando uma obra híbrida. Isso acontece principalmente quando se trata de uma obra artística: uma poesia, um conto. Mas também pode acontecer nas produções científicas, ainda que em escala menor e em uma intensidade e forma diferente das produções artísticas.

Somos habitados por nossas ideias. Ou, como aponta Morin (2000), por vezes somos "possuídos" por nossas convicções. Elas misturam mimese e criatividade, realidade e imaginação. A nosso ver, a imaginação é uma dimensão ontológica do humano; ela faz parte do trabalho criativo, com maior ou menor intensidade. Na produção teórico-acadêmica e científica, não é incomum que a vida inspire a teoria, bem como que a teoria inspire a vida dos intelectuais.

A experiência de vida de Morin influenciou a abertura que ele teve para dar importância à cultura no processo de formação humana. Nesse sentido, defende a importância de "… integrar [na educação] a contribuição inestimável das humanidades, não somente a filosofia e a história, mas também a literatura, a poesia, as artes …" (Morin, 2000, p. 48). No Pensamento Complexo, a busca por religar os saberes aponta para um anseio por religar também a própria compreensão do ser humano em sua totalidade, como um ser integrado em suas diferentes dimensões e ao mundo em que vive e do qual faz parte. Nesse sentido, aponta Morin:

… podemos buscar na literatura romanesca e no cinema a consciência de que não se deve reduzir o ser à menor parte dele próprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto, na vida comum, nos apressamos em encerrar na noção de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos de sua vida e de sua pessoa a este traço único, descobrimos em seus múltiplos aspectos os reis gângsters de Shakespeare e os gângsters reais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode se transformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov. (Morin, 2000, p. 101)

Ou seja, por meio da proposição da religação dos saberes e das diferentes dimensões dos seres humanos, podemos encontrar, na proposição do Pensamento Complexo, a visão do ser humano como um ser multidimensional que encarna em si possibilidades múltiplas — algumas delas, complementares; outras, antagônicas e contraditórias. Todas elas, porém, são parte desse mesmo humano que cada um de nós é. Ao propor a religação dos diferentes saberes, a nosso ver, Morin não está propondo apenas a ampliação da cultura na formação humana, mas a ampliação da compreensão do ser humano como um ser contraditório, que apresenta, em si, na concretude de sua personalidade e suas ações, tanto aspectos complementares como antagônicos. Traduzido em outras palavras, isso significa que não somos seres constituídos apenas de aspectos agradáveis e com os quais nos identificamos; também somos ontologicamente atravessados e constituídos por aspectos que antagônicos entre si ou em relação à visão que nós temos (ou que os outros têm) de nós mesmos. Somos constituídos por um misto de aspectos diferentes, por vezes mais explícitos e expressos, noutras, menos perceptíveis. Somos potencialmente essa complexidade, um misto de diferentes aspectos, mesmo que por vezes não expressos ou pouco evidenciados na vida.

Religar os diferentes saberes no processo educativo e, dentre eles, a dimensão estética do humano e do conhecimento humano, é também religar a compreensão do ser humano como um ser multidimensional, que vive inserido dialogicamente em um determinado contexto sócio-histórico e cultural. É, como propõe uma metáfora trazida por Morin (Almeida, 2012), "abraçar a complexidade".

Estética e religação de saberes na educação

A cultura humanística é uma cultura genérica, que, pela via da filosofia, do ensaio, do romance, alimenta a inteligência geral, enfrenta as grandes interrogações humanas, estimula a reflexão sobre o saber e favorece a integração pessoal dos conhecimentos. (Morin, 2003, p. 17)

Sustentados na concepção de religação dos saberes preconizada pelo Pensamento Complexo e nas proposições acerca da estética conforme trabalhada por Morin (2017), refletimos agora sobre o lugar da experiência estética na educação, a partir da perspectiva da complexidade.

Indagamos as diferentes formas que os professores podem usar em suas aulas nas escolas e universidades e as diferentes atividades extensionistas e de pesquisa oferecidas pela universidade (no caso da educação universitária) no cultivo ao belo, ao maravilhamento e à dimensão poética da vida dos estudantes em seu processo de formação. Questionamo-nos: no contexto atual, estariam, de maneira geral, os docentes atentos a essa dimensão da formação humana em seus preparos dos planos de aula a cada ano ou semestre letivo? Como cada professor poderia ser estimulado a se atentar a essa dimensão humana ao preparar as suas atividades escolares ou acadêmicas? As escolas e as universidades estão abrindo espaço para integrar, em suas propostas curriculares, uma formação que abarque a dimensão poética da existência?

Ao refletirmos sobre as questões anteriormente levantadas, vem à nossa mente a ideia da resistência à dimensão prosaica da vida que, por vezes, ganha corpo e acaba exercendo um certo domínio sobre as práticas docentes em uma sociedade amplamente voltada à produtividade e à testagem de capacidades e competências. A dimensão poética da vida não está diretamente preocupada com questões como produtividade, mas antes, com a alegria, a satisfação, o encantamento.

Contudo, entendemos que, na complexidade da existência, uma dimensão não elimina o cuidado com as demais dimensões, também importantes, na formação humana para a vida social — seja mesmo por impossibilidade concreta dessa eliminação, seja pela multidimensionalidade da vida. Não se trata de sustentarmos, a partir de agora, que se renegue o cuidado com outras dimensões da formação no processo educativo, sucumbindo a uma visão unideterminada da vida (o que é inviável, e mesmo, impossível, além de ser uma contradição, se estamos propondo um modo complexo de pensar). Trata-se, sim, de buscarmos ampliar nossa capacidade inventiva e imaginativa para integrar as dimensões prosaicas com as dimensões poéticas da vida: integrar o prazer e a alegria de estudar, de conhecer e fazer, juntamente com as dimensões da necessidade do que precisa ser atenciosamente estudado. Trata de que cada docente possa sentir-se desafiado a trazer ambas as dimensões na organização de suas atividades acadêmicas — a prosaica (necessária), e a poética (que sirva para arejar e enriquecer as práticas) —, ampliando o seu campo de atenção e cuidado sensível da dimensão estética na formação do estudante, em quaisquer níveis de ensino.

O próprio Morin apontou: "A poesia implica adesão à beleza do mundo, da vida, do humano, e, simultaneamente, à crueldade do mundo, da vida do humano" (Morin, 2017, p. 119). De fato, é na arena da barbárie ou da mera prosa cotidiana que as sementes da poesia são, mais que tudo, necessárias. A consciência dos paradoxos – que fazem parte da humanidade – integra parte da visão complexa da existência e da assunção de sua beleza e de suas incertezas constitutivas. O fundamental está em tentarmos favorecer a complexidade da formação humana e em resgatarmos a dimensão estética — que tem, na maioria das vezes, ficado de fora de nossas preocupações na formação escolar e universitária. Isso não significa desconsiderarmos dimensões outras, mas sim recuperarmos a dimensão estética, poética e imaginativa dos processos formativos na educação escolar e universitária.

Nesse sentido, todos os que fazem o cotidiano da vida escolar e universitária no miúdo do cotidiano podem colaborar para esse resgate da dimensão estética nesses espaços de formação humana. Esse é um trabalho colaborativo, que envolve desde gestores até os estudantes — e, por que não, a comunidade. Apenas para citar um pequeno exemplo no que tange à universidade, é importante a compreensão de que, quando um docente solicita a um estudante que leia um livro de literatura, assista a um filme ou aprecie a uma exposição artística, ou quando ele trabalha com uma música em sala de aula ou com uma poesia, ele não está "matando" aula ou "passando" o tempo: está investindo na dimensão estética e humana da formação acadêmica.

Isso faz ainda mais sentido quando pensamos na formação universitária de um estudante que está fazendo um curso na área das ciências humanas, sociais ou da saúde. Com Roldão (2022a) e Roldão et al. (2022b), fazemos eco mais uma vez acerca da importância de abrirmos espaço para o cultivo da imaginação na formação universitária. Morin (2017, p. 116) aponta que: "… seria necessário mostrar como romance, teatro, cinema, poesia são meios de conhecer tudo o que é humano em sua complexidade una e diversa". E, ainda, destaca: "Romance, cinema, teatro, música nos propiciam não apenas um sentimento estético, mas também o conhecimento" (Morin, 2017, p. 102). Morin relata que António Damásio, também alerta: "… que qualquer cognição comporta uma emoção. Reciprocamente qualquer emoção estética pode comportar uma cognição" (p. 102). Com base no que tem sido até aqui exposto, apontamos que religar saberes, a nosso ver, é conferir espaço de coabitação conjunta para a imaginação, a emoção e a cognição na educação.

No caso do ensino superior, sustentar a bandeira de que uma boa formação técnica não basta para a formação de um bom profissional pede a compreensão não apenas dos docentes, mas também dos gestores. A instituição como um todo, nas suas várias dimensões, pode ser desafiada a se envolver na promoção da formação estética e humana do estudante, conjuntamente com todas as preocupações com a sua formação escolar, acadêmica, técnica e profissional.

Apostamos em uma educação estética que possa favorecer a religação da dimensão poética na dimensão prosaica da vida, que favoreça o reconhecimento de que, como destaca Morin (2005), o gênero homo é sapiens — ou seja, racional, sábio —, mas é também constituído por sua dimensão demens — afetiva, colérica, imaginativa, delirante, poética. Integrar a dimensão estética na formação humana é favorecer a integração desses outros aspectos esquecidos na formação escolar e acadêmica, com vistas a uma educação mais ampla e uma formação mais integral.

Considerações para reflexão

Buscamos neste ensaio convocar o leitor a pensar na importância da religação dos diferentes conhecimentos, conforme preconizado pelo Pensamento Complexo, salientando o lugar fundamental da experiência estética na formação humana por meio da educação. Não intencionamos trazer respostas conclusivas, mas sim colocar apontamentos, levantar questões e gerar reflexões, a fim de compartilharmos algumas indagações que têm nos habitado enquanto educadores. Buscamos, ainda, dividir com o leitor a nossa busca atual de caminhos para transformarmos a nossa própria prática docente, dando à experiência estética um lugar de atenção e um sentido. Apostamos na possibilidade de uma formação mais completa, pertinente e humanizadora dos estudantes, por meio da atenção à dimensão estética na formação humana.

Cabe perguntar, então: como as instituições educativas como um todo podem inspirar o cultivo da beleza e da poesia em suas várias dimensões? Como elas podem favorecer a fruição da arte em suas diferentes manifestações ou a experiência estética a partir de vivências na natureza? Como podemos concretamente trazer a música, a poesia, o cinema e a literatura para dentro de nossas salas de aula, integrando-os aos conteúdos que precisam ser trabalhados junto aos estudantes? Como podemos trazer a dimensão poética da vida para as relações que estabelecemos com eles? Como trazer a experiência estética nas construções das formas de avaliação dos processos de aprendizagem, tornando-os mais leves e menos punitivos e fadigosos? Tais perguntas desafiam cada educador a encontrar caminhos imaginativos em seu peculiar contexto docente a cada semestre letivo. É um trabalho construtivo que advém da aposta da importância da dimensão estética como fundamental na religação de múltiplos saberes, emoções e fazeres na formação do humano nos diferentes níveis da educação formal.

Que o diálogo aberto possa nos mobilizar a novas reflexões e construções de caminhos acolhedores das experiências estéticas em nossas práticas profissionais. Da mesma maneira, que possamos sempre lembrar que o investimento em abrir um espaço para a formação estética vale o esforço dessa atenção, quando consideramos que, em dias tão caóticos e incertos como os atuais que vivemos, a experiência estética

… nos introduz nos contentamentos da existência, ajuda-nos a suportar o insuportável excesso de realidade; os maravilhamentos provocados por ela, com os quais nos banqueteamos, nos fornecem energias para afrontar a crueldade do mundo. (Morin, 2017, p. 100)

A experiência estética emociona, educa, nos desorganiza e nos reorganiza ao mesmo tempo, nos traz autoconhecimento e nos humaniza, tornando-nos seres mais complexos e, ao mesmo tempo, subjetivamente mais organizados.

3Os estados prosaicos da vida referem-se àquelas coisas que realizamos na vida por obrigação, dever ou necessidade, e não por desejo ou prazer.

Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

Referências

Almeida, M. C. (2012). Mapa inacabado da complexidade: vôo incerto da borboleta. In M. C. Almeida, Ciências da Complexidade e Educação: razão apaixonada e politização do pensamento (pp. 41-75). EDUFRN. [ Links ]

Araujo, M. T. M. de, Santos, T. W., Sá, R. A. de, & Vosgerau, D. S. R. (2020). Revisão sistemática da literatura: estudos sobre o pensamento complexo na educação. Brazilian Journal of Development, 6(7), 47247–47259. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-384Links ]

Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro (2. ed.). Cortez. [ Links ]

Morin, E. (2003a). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (8. ed.). Bertrand Brasil. [ Links ]

Morin, E., Ciurana, E-R., & Motta, R. D. (2003b). Educar na Era Planetária: o Pensamento Complexo como Método de aprendizagem no erro e na incerteza humana. Cortez. [ Links ]

Morin, E. (2005a). Introdução ao Pensamento Complexo. Sulina. [ Links ]

Morin, E. (2005b). Ciência com consciência (8. ed.). Bertrand Brasil. [ Links ]

Morin, E. (2010a). Meu caminho: entrevistas com Djénane Kareh Tager. Bertrand Brasil. [ Links ]

Morin, E. (2010b). O desafio da complexidade. In E. Morin, A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Bertrand Brasil. [ Links ]

Morin, E. (2012). Edwige, a inseparável. Bertrand Brasil. [ Links ]

Morin, E. (2013). Meus demônios (6. ed). Bertrand Brasil. [ Links ]

Morin, E. (2014a). Meus filósofos (2. ed). Sulina. [ Links ]

Morin, E. (2014b). O cinema ou o homem imaginário: ensaio de Antropologia Sociológica. É Realizações Editora. [ Links ]

Morin, E. (2014c). Os livros que fizeram a diferença. In Pena-Vega, A., Wolton, D. Edgar Morin: um pensamento livre para o século 21 (pp. 285-294). Garamond. [ Links ]

Morin, E. (2015a). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Sulina. [ Links ]

Morin, E. (2015b). Minha Paris: minha memória. Bertrand Brasil. [ Links ]

Morin, E. (2017). Sobre a estética. Pró-Saber. [ Links ]

Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. Bertrand Brasil. [ Links ]

Roldão, F. D. (2022a). Diálogos com Morin e Vigotski: contribuição para estratégias imaginativas na universidade. [Tese de doutorado, Universidade Federal do Paraná]. [ Links ]

Roldão, F. D., Vitorino, A. F., & Sá, R. A. de. (2022b). Narrar histórias sob o pensar complexo: compreender o humano, incluir e religar saberes. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, 31(68), 20-33. https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p20-33Links ]

Recebido: 12 de Fevereiro de 2023; Aceito: 19 de Setembro de 2023; Publicado: 24 de Novembro de 2023

Endereço para correspondência Ricardo Antunes de Sá Universidade Federal do Paraná Rua XV de Novembro, 1299 Centro, 80060-000 Curitiba, PR, Brasil flaviaroldao@gmail.com

antunesdesa@gmail.com

Creative Commons License This is an article published in open access under a Creative Commons license