INTRODUÇÃO
Nas culturas primitivas, o sacerdote e o curandeiro (o xamã) tinham a sua personalidade e a adequada capacitação pelos antecessores para lidar com as tribos, sua cultura e diferenças como um instrumento importante para ser escolhido para seu ofício1 .
O juramento hipocrático demonstra um compromisso com os médicos que se formam. Seu conteúdo revela uma preocupação com a pessoa doente e a interação com os pares num ambiente acadêmico similar ao familiar, com predominância harmônica. Esse elevado sentido moral demonstra um interesse por uma formação saudável do estudante de Medicina até se tornar um egresso2 .
A psicopatologia do estudante de Medicina começou a ser pesquisada e estruturada de forma sistemática a partir do século XX3 . O professor Gaudino Loreto, da Universidade Federal de Pernambuco, ofereceu assistência psiquiátrica a estudantes de Medicina em 1957. Ele publicou uma tese sobre a sua experiência. Outros centros nacionais tentaram criar esses serviços, mas as interferências da política universitária, a falta de um setting para o atendimento dos alunos e a carência de recursos enfraqueceram o processo3 .
Uma das contribuições marcantes para a reflexão sobre o tema foi o livro O Universo Psicológico do Futuro Médico 4 . Ele apresentou as complexidades do rito de passagem do estudante de Medicina desde o seu ingresso, vocação e trajetória do ciclo básico ao ciclo clínico até o internato. A configuração dos principais núcleos de apoio psicopedagógico nacional contribuiu para as pesquisas na informação e formação do contexto da educação médica4 .
“A Carta de Marília” foi um documento referendado no XI Fórum dos Serviços de Apoio ao estudante de Medicina, no 54º Congresso Paulista de Educação Médica, na cidade de Brasília (Forsa Cobem/13 de outubro de 2016). Ele declara que o cuidado da saúde emocional e psíquica do estudante deve ser considerado objetivo da formação médica, sendo responsabilidade da instituição a garantia de assistência à saúde mental do corpo discente5 , 6 .
Um estudo com a Plataforma Veras, em 22 escolas médicas, demonstrou que o ambiente de ensino numa faculdade de Medicina influencia o bem-estar e a qualidade de vida, principalmente em estudantes do sexo feminino e nos matriculados no final do curso7 .
Uma revisão sobre o conteúdo do tema “núcleos psicopedagógicos em medicina” revela que, no atendimento a esses estudantes, a prevalência é de transtornos psiquiátricos e psicológicos decorrentes de conflitos pessoais, pedagógicos e familiares. Os artigos destacam os transtornos de ansiedade, depressão e suicídio. Essa situação é correlacionada ao excesso de conteúdo a ser aprendido em pouco tempo, à cobrança familiar de que “eles, alunos já são capazes de atuarem como médicos” ou ainda à sensação de culpa pelo afastamento do núcleo familiar para dedicar-se aos estudos3 , 4 , 8 - 14 .
A socialização secundária (formação universitária) na sociedade contemporânea é imprescindível nas habilidades e competências do médico clínico geral e de família para um estado de saúde de completo bem-estar físico, mental e social4 , 11 , 15 - 17 .
As novas organizações familiares podem ser um fator determinante da má socialização primária e consequente adoecimento da criança, adolescente e jovem17 , 18 . A família é fonte de suporte, mas também pode ser geradora de estresse e está envolvida no processo saúde-doença19 . Ela “ensina a criança a aprender”18 , 19 .
O processo de socialização consiste em duas fases: a primária, fase que o indivíduo experimenta na infância e em virtude da qual se torna membro da sociedade. Isto acontece no seio familiar, em que a carga afetiva é importante, e nela se aprende a transmissão de conteúdo do mundo adulto; e a secundária, fase posterior, fase cognitiva que incorpora o indivíduo no mundo objetivo social19 .
O conceito de família disfuncional baseia-se numa compreensão da psiquiatria psicodinâmica, dos aspectos vinculares e do diagnóstico situacional e tratamento subsequente. Os sintomas do indivíduo são analisados no contexto das relações com outras pessoas e grupos, e não como problemas individuais de causa e efeito. Esse termo indica a existência de famílias em que o relacionamento entre seus membros não é equilibrado. O resultado pode ser traduzido em problemas como introversão, transtornos psicológicos, psiquiátricos (depressão e transtorno de ansiedade generalizada) e problemas de baixa autoestima17 , 18 , 20 .
Emoções suprimidas, limites frágeis, relacionamento abusivo, problemas de comunicação com padrões de grande conflitualidade – desinteresse pelos assuntos do outro, ausência de diálogo, divergências de opiniões, compreensão e crenças –, regras rígidas e inconsistentes, restrição de sentimentos e autoexpressão, abuso de álcool, drogas e medicamentos e alienação parental são as categorias que a literatura revela como sendo as envolvidas nas disfunções familiares17 , 18 , 20 .
Uma família estruturada é imprescindível no momento em que qualquer estudante vivencia a trajetória de superação dos desafios da sua identidade profissional20 .
As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (2014) determinam a necessidade do egresso médico com uma identidade profissional, generalista, humanista, crítica, reflexiva e multicultural para atuação nas diversas áreas de atenção à saúde15 , 16 . Essas diretrizes encontram resistências para serem implantadas nas escolas médicas devido à diversidade docente, capacitada no modelo biomédico em detrimento do humanístico. A família acadêmica encontra-se em processo de transição, assim como a família nuclear dos seres humanos.
O objetivo desta pesquisa é verificar a relação entre o perfil sociodemográfico, psiquiátrico e familiar de um grupo de estudantes de Medicina de uma universidade federal no Rio de Janeiro e observar se os problemas psiquiátricos já atribuídos a essa população estariam correlacionados à presença de disfunções familiares8 - 10 , 17 , 18 , 20 , 22 .
MÉTODO
Foi realizado um estudo quali-quantitativo, com intervenção observacional (levantamento de características do campo da pesquisa), exploratória, transversal, descritiva e inferencial. A coleta de dados foi feita por meio de dois instrumentos: (1) um questionário construído para esta pesquisa, autoaplicável, com variáveis psicossociobiodemográficas, e as categorias familiares disfuncionais18 ; (2) o Mini International Neuropsychiatric Interview (Mini) , versão 5.0.0, validado por Patrícia Amorim/200023 , que consiste numa entrevista diagnóstica padronizada breve (15-30 minutos), compatível com os critérios do DSM-IV. O Mini é destinado à utilização na prática clínica, na pesquisa em atenção primária e em psiquiatria. Pode ser utilizado por clínicos após rápido treinamento (de uma a três horas).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Instituição. CAAE: 67590317.5.0000.5258, em 25/07/2017. Os voluntários eram convidados a participar da pesquisa após a sua divulgação em salas de aula e redes sociais. Os interessados, após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, respondiam aos questionários. As informações coletadas foram anônimas. Foi realizada estatística descritiva e análise exploratória dos dados. Elas foram organizadas em um banco de dados, em Excel. Para variáveis quantitativas foram analisadas medidas-resumo, como desvio padrão, média, mediana e moda. Para variáveis qualitativas foram feitas análises de frequência. A análise inferencial foi executada com auxílio do software R. Foram realizados os seguintes testes estatísticos: teste exato de Fisher, teste de Wilcoxon bilateral, teste Qui-Quadrado e teste de Shapiro-Wilk, de acordo com as variáveis analisadas e objetivos da análise.
RESULTADOS
Dados sociodemográficos
Participaram da pesquisa 129 alunos do primeiro ao 12º período, 49% do sexo feminino e 51% do sexo masculino, com idades entre 18 e 32 anos. Oitenta e sete por cento dos alunos eram naturais do Rio de Janeiro ( Tabela 1 ); 48,06% dos alunos pertenciam ao ciclo básico do curso (primeiro ao quarto período), 34,89% ao ciclo clínico (quinto ao oitavo período) e 17,05% ao internato (nono ao 12º período); 36,43% eram católicos, 0,78% umbanda, 3,88% espíritas, 22% protestantes, 0,78% judeu, 41,09% ateus ou sem religião; 51,94% dos entrevistados estavam namorando, 2,33% eram casados e 45,74% solteiros; 66,77% dos alunos referiam que os pais eram casados, 20,93% que os pais eram divorciados, 6,20% deles moravam juntos, mas não eram casados, 2,33% com pai ou mãe viúvos e 3,10% desses pais não possuíam relacionamento afetivo; 57,30% dos entrevistados habitavam com os pais atualmente, sendo que 19,38% viviam com a mãe, 6,20% com outros parentes, 5% com o parceiro ou marido, 3,10% moravam sozinhos e 8,53% com outras pessoas, que não eram da família; 31,01% dos estudantes relataram ter mudado de residência após a entrada no curso de Medicina e, assim, deixaram de morar com pessoas da família, sendo que 85% referiam impactos negativos em suas vidas com essa mudança; 76,74% dos estudantes possuíam irmãos; 55,04% dos entrevistados referiram ter escolhido a graduação em Medicina por vocação, 9,30% por influência familiar, 33,33% por status profissional e financeiro e 2,33% por outros motivos; 25,58% dos estudantes disseram desejar cursar Medicina desde crianças, 52,71% optaram por Medicina quando adolescentes e 21,71% quando adultos; 58,91% dos acadêmicos tentaram vestibular para Medicina mais de uma vez; 37,98% ingressaram na universidade pelo sistema de cotas; 10,85% dos voluntários possuíam formação superior prévia à Medicina; 65,89% (85 alunos) referiram ter sofrido bullying em algum momento de suas vidas, 82,35% revelaram ter sido na família e 97,65% na escola; 8,24% dos 85 alunos narraram a continuidade do sofrimento de bullying na faculdade; 28,68% (37 alunos) apresentaram alguma queixa relacionada à família, como desinteresse pelos assuntos dos outros membros da família; 35,66% relataram ter família rígida e 85,16% possuíam boa relação familiar; 13,28% sofriam com problemas de vício na família (principalmente etilismo); 8,59% possuíam algum membro familiar violento; 34,37% possuíam história familiar positiva para doença psiquiátrica, como depressão, transtorno bipolar, transtorno de pânico e transtorno de ansiedade generalizada; 47,29% referiram ter problemas de comunicação, como ausência de diálogo.
Variável | N | % |
---|---|---|
Faixa etária (anos) | ||
18 a 23 | 76 | 58,92 |
24 a 29 | 49 | 37,98 |
30 ou mais | 4 | 3,10 |
Sexo | ||
Feminino | 64 | 49,61 |
Masculino | 65 | 50,39 |
Período | ||
1 a 4 (ciclo básico) | 62 | 48,06 |
5 a 8 (ciclo clínico) | 45 | 34,88 |
9 a 12 (internato) | 22 | 17,05 |
Relacionamento | ||
Solteiro | 59 | 45,74 |
Namorando | 67 | 51,94 |
Casado | 3 | 2,33 |
Naturalidade | ||
RJ | 113 | 87,60 |
Outras | 16 | 12,40 |
Com quem mora | ||
Sozinho | 4 | 3,10 |
Pais | 74 | 57,36 |
Mãe | 25 | 19,38 |
Outros parentes | 10 | 7,75 |
Parceiro | 5 | 3,88 |
Outras pessoas | 11 | 8,53 |
Mudou de residência ao entrar no curso | ||
Sim | 40 | 31,01 |
Não | 89 | 68,99 |
Impacto da mudança | ||
Positivo | 4 | 10,00 |
Negativo | 34 | 85,00 |
Nenhum ou não respondeu | 2 | 5,00 |
Motivo da escolha do curso | ||
Status financeiro ou profissional | 43 | 33,33 |
Influência familiar | 12 | 9,30 |
Vocação | 71 | 55,04 |
Outros | 3 | 2,33 |
Momento da escolha do curso | ||
Infância | 33 | 25,58 |
Adolescência | 68 | 52,71 |
Adultecer | 28 | 21,71 |
Sofreu bullying | ||
Sim | 85 | 65,89 |
Na famíla | 70 | 82,35 |
Na escola | 83 | 97,65 |
Não | 44 | 34,11 |
Ingressou por cotas | ||
Sim | 49 | 37,98 |
Não | 80 | 62,02 |
Religião | ||
Católica | 47 | 36,43 |
Evangélica | 22 | 17,05 |
Ateu ou sem religião | 53 | 41,09 |
Outras | 7 | 5,43 |
Transtornos psiquiátricos
Sofriam de depressão (atual ou recorrente) 32,56% dos estudantes; 39,53% sofriam com transtorno de ansiedade generalizada; 28,68% apresentavam risco de suicídio (alto, médio ou baixo); 3,10% possuíam transtorno distímico atual; 0,78% apresentaram episódio hipomaníaco atual; 2,33% apresentaram episódio maníaco atual; 2,33% apresentaram episódio maníaco passado; 17,05% dos entrevistados manifestaram transtorno de pânico na vida inteira; 0,78%, transtorno de pânico atual; 2,33% apresentaram agorafobia; 4,65%, fobia social; 3,88%, transtorno obsessivo compulsivo; 1,55% possuíam compulsões; 1,55% sofriam com transtorno de estresse pós-traumático; 0,78% apresentaram bulimia nervosa. Nessa amostra, não foi encontrada anorexia nervosa, síndrome psicótica, transtorno de personalidade antissocial, dependência ou abuso de álcool e outras drogas ( Tabela 2 ) .
Variável | N | % |
---|---|---|
Queixa na família | ||
Sim | 37 | 28,68 |
Não | 92 | 71,32 |
Relacionamento dos pais | ||
Casados | 87 | 67,44 |
Divorciados | 27 | 20,93 |
Pai ou mãe viúvos | 3 | 2,33 |
Outro | 12 | 9,30 |
Família funcional | ||
Sim | 112 | 87,50 |
Não | 16 | 12,50 |
Problemas de comunicação | ||
Sim | 61 | 47,29 |
Não | 68 | 52,71 |
Membro violento | ||
Sim | 11 | 8,59 |
Não | 117 | 91,41 |
Membro com vícios | ||
Sim | 17 | 13,28 |
Não | 111 | 86,72 |
História de doença psiquiátrica | ||
Sim | 44 | 34,37 |
Não | 84 | 65,63 |
Família rígida | ||
Sim | 46 | 35,66 |
Não | 83 | 64,34 |
Boa relação familiar | ||
Sim | 109 | 85,16 |
Não | 19 | 14,84 |
Variáveis | p-valor | Teste | Conclusões |
---|---|---|---|
Risco de suicídio | |||
Bullying | 0,02101 | Qui-quadrado | Há mais alunos com risco de suicídio e que sofreram bullying |
Depressão | 0,0396 | Há mais alunos com risco de suicídio e depressão | |
Período | 0,005798 | Há mais alunos com risco de suicídio no ciclo básico | |
Problemas de comunicação na família | 0,000913 | Há mais alunos com risco de suicídio e com problemas de comunicação na família | |
Transtorno do pânico | 4,903e-5 | Há mais alunos com risco de suicídio e com transtorno do pânico | |
Quantas vezes tentou o vestibular | 0,02814 | Wilcoxon bilateral | Após Wilcoxon unilateral, concluiu-se que alunos com risco de suicídio tentam menos vezes passar para medicina |
Religião | 0,006405 | Teste exato de Fisher | Há mais alunos com risco de suicídio e com religião |
Histórico familiar de doença psiquiátrica | |||
Depressão | 7,639e-8 | Qui quadrado | Há mais alunos com histórico familiar e com depressão |
Transtorno de ansiedade generalizada | 0,000457 | Há menos alunos com histórico familiar e com transtorno | |
Transtorno de ansiedade generalizada | |||
Bullying | 0,004967 | Qui quadrado | Há mais alunos com o transtorno e que sofreram bullying |
Depressão | 0,000223 | Há menos alunos com o transtorno e que sofrem de depressão | |
Mudança de residência | 0,0236 | Há menos alunos com o transtorno e que mudaram de residência | |
Período | 0,01052 | Há mais alunos com o transtorno no internato | |
Problemas de comunicação na família | 0,02738 | Há menos alunos com o transtorno e que têm problema de comunicação na família | |
Quando decidiu fazer medicina | 0,02692 | Mais alunos com o transtorno decidiram na adolescência | |
Depressão | |||
Problemas de comunicação na família | 1,248e-9 | Qui quadrado | Há mais alunos com depressão e que têm problemas de comunicação com a família |
Relacionamento dos pais | 0,01588 | Teste exato de Fisher | Há menos alunos com depressão cujos pais são casados |
Transtorno do pânico | |||
Bullying | 0,01604 | Teste exato de Fisher | Há mais alunos que sofreram bullying e têm o transtorno do que o esperado |
Quando decidiu fazer medicina | 1,332e-6 | Há menos alunos com T. pânico que decidiram quando crianças | |
Relacionamento dos pais | 0,009363 | Há mais alunos com T. pânico cujos pais são casados. Há menos cujos pais são divorciados | |
Quantas vezes tentaram o vestibular | 0,0201 | Wilcoxon bilateral | Após Wilcoxon unilateral, concluiu-se que alunos com o transtorno tentam menos vezes passar para medicina |
Queixa na família | 5,105e-6 | Qui quadrado | Há mais alunos com queixa na família e transtorno do pânico |
Sexo | 0,00583 | Há mais mulheres com o transtorno | |
Problemas de comunicação na família | 0,01044 | Há mais alunos com problema de comunicação e transtorno | |
Fobia social | |||
Bullying | 0,01747 | Teste exato de Fisher | Há menos alunos que sofreram bullying e que têm fobia social |
Família rígida | 0,02165 | Há mais alunos com família rígida e que têm fobia social. | |
Ingresso por cotas | 0,02928 | Há mais alunos que ingressaram por cota e têm fobia social | |
Relacionamento dos pais | |||
Bullying | 2,872e-05 | Teste exato de Fisher | Há menos alunos que sofreram bullying e cujos pais são divorciados Há mais alunos que sofreram bullying e cujos pais são casados |
Membro com vício na família | 0,006502 | Há menos alunos com membros com vício na família cujos pais são casados. Há mais alunos com membros com vício na família cujo relacionamento dos pais é “outro” | |
Família rígida | 0,01274 | Há mais alunos cujos pais são casados e que consideram a família rígida Há menos alunos cujo relacionamento dos pais é “outro” e que consideram a família rígida |
DISCUSSÃO
Corroborando a literatura, foi observada nesta pesquisa a prevalência de transtornos psiquiátricos entre os estudantes de Medicina, principalmente transtornos de ansiedade, depressivos e risco de suicídio. Essas investigações apontam as mulheres como aquelas com mais transtornos psiquiátricos diagnosticados24 . Em nossa pesquisa, o transtorno de pânico foi mais encontrado no sexo feminino, mas isto não aconteceu nos demais transtornos estudados. A história familiar de doença psiquiátrica vem sendo considerada fator de risco para transtornos mentais18 , 20 . Esta situação foi observada em nossa indagação ao estabelecermos relação entre a depressão e a história familiar de algum transtorno. No rito de passagem para a academia, os estudantes sentem medo, excesso de cobrança, são frágeis e com despreparo emocional. Logo, a alta prevalência de transtornos de ansiedade generalizada, depressão e transtorno de pânico pode estar relacionada a isto. A ocorrência de mais de um transtorno no mesmo indivíduo foi incomum.
O risco de suicídio tem se tornado um importante item em discussão nos estudos em transtornos psiquiátricos em estudantes de Medicina. A indagação de seus possíveis gatilhos é motivo de tensão para ações de promoção à saúde. O bullying, a religião e os fatores protetores, como apoio familiar, são considerados8 - 10 , 22 . Observamos, contudo, maior taxa de risco de suicídio nos estudantes com alguma religião, diferentemente do esperado. Foi estabelecida uma relação direta entre bullying , problemas de comunicação na família (críticas, acusações, silêncios, duplas mensagens, dificuldade em colocar-se no lugar do outro e rigidez em tentar novas formas de resolver problemas), transtornos depressivos e de pânico com o risco de suicídio. O risco de suicídio foi mais observado entre os estudantes dos primeiros períodos e entre os alunos com menos tentativas de ingresso à universidade.
Esses resultados evidenciam que muitos desses jovens são ainda adolescentes, e até mesmo os alunos com outra formação universitária são recém-saídos de um modelo escolar extremamente competitivo, voltado para o vestibular. Eles necessitam de um acolhimento diferenciado, principalmente no ciclo básico. A graduação em Medicina representa uma nova rotina de estudos, também competitiva e repleta de horas de dedicação e desafios, como o de conviver com o adoecer humano para atingir uma meta, um diploma de nível superior em saúde. Tais fatos, associados à redução do convívio familiar ou à cobrança imputada aos acadêmicos de serem excelentes, já são compreendidos como causa de sofrimento psíquico13 , 14 , 22 - 28 .
Nesse cenário, é cabível abordar a correlação entre a mudança de moradia gerada pelo principal modelo de vestibular atual, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que permite grande mobilidade de estudantes para outras cidades e estados, e o transtorno de ansiedade generalizada. No entanto, eles estão inversamente relacionados. Levantamos a hipótese de que a interrupção do convívio familiar, embora tenha impacto negativo para a maioria, não representa um fator estressor tão relevante nesse grupo estudado. Para os demais transtornos psiquiátricos com alta prevalência – depressão, transtorno de pânico e risco de suicídio –, a mudança do local de residência não teve representação estatisticamente significativa.
O transtorno de ansiedade generalizada é maior nos últimos períodos da faculdade (internato), ou seja, nos anos de total imersão na prática médica e aumento das responsabilidades. Isto gera instabilidade psicológica. Esse é o momento do contato contínuo com as enfermidades de pacientes, com a reafirmação de limitações e frustrações, entre elas a de “curar”. O modelo do cuidar ainda está no esboço do ensino, nas novas propostas de formação acadêmica16 .
Foi possível observar um impacto considerável entre relacionamento dos pais e transtornos mentais dos filhos. A relação entre pais casados e transtorno de pânico foi evidenciada. Isto foi associado com a presença de famílias rígidas e com presença de alguma queixa de desconforto com a família. A relação entre depressão, pais divorciados, viúvos (mãe ou pai falecido do estudante) ou pais sem relacionamento demonstrou o impacto de um ambiente familiar segregado (convívio com mau relacionamento com os pais). Não podemos esquecer que o impacto da morte de um dos pais sobre a psicodinâmica de um jovem adulto é relevante. E que, muitas vezes, esse é um momento no ciclo vital desses jovens, a perda dos avós.
A fobia social, diferentemente do esperado, demonstrou menor associação com a presença de famílias rígidas, contudo mostrou relação com o bullying (na família ou na escola). Ela foi relacionada, por meio de ações afirmativas, ao ingresso na universidade. A hipótese é a de que os dois últimos gerariam baixa autoestima e, assim, o receio de estabelecer relacionamentos sociais. O ingresso por meio de cotas raciais ou de renda pode gerar desconforto e discriminação no ambiente da faculdade. Os estudantes cotistas são, muitas vezes, apreciados como não merecedores da vaga na universidade. Assim, uma ação que seria favorável à estruturação de um indivíduo torna-se desqualificada.
O estudo já considerou que a configuração da dinâmica familiar está relacionada à formação da saúde mental dos membros dela17 , 18 , 20 e a predisposição a transtornos psiquiátricos, nessa falta. Problemas de comunicação na família, depressão e risco de suicídio colaboram para elucidar essa questão. Em nosso estudo, entretanto, certas variáveis condizentes com disfunções familiares, como ter parente violento ou com vício, não tiveram relação estatística significativa com os transtornos aqui pesquisados, mas podemos inferir que tal resultado se deva ao número reduzido de voluntários com esse perfil familiar.
Reiterando o que já demonstramos de outra maneira, a ansiedade foi menor para os estudantes de Medicina com problemas no relacionamento com a família. Assim, tal como foi observado na mudança de residência (moradia), o transtorno de ansiedade generalizada parece estar mais relacionado à própria formação médica e a suas dificuldades do que às dinâmicas familiares.
É possível inferir a importância do relacionamento familiar como futuro alicerce para as demais relações sociais a serem estabelecidas na vida dos jovens. Um ambiente familiar disfuncional poderia criar dificuldade na construção de novos relacionamentos, entre eles o de ser um bom comunicador com a família do paciente e um bom médico de família17 , 18 , 20 , 21 .
Os resultados desta pesquisa têm como meta a cooperação para se pensar, segundo as novas diretrizes curriculares dos cursos de saúde, como se encontra a saúde mental dos estudantes numa instituição federal brasileira e se as novas configurações familiares contribuem para o adoecimento psíquico desses adultos jovens.
CONCLUSÕES
Os dados colhidos demonstraram correlações entre disfunções familiares e transtornos psiquiátricos, como depressão, risco de suicídio, transtorno de pânico e transtorno de ansiedade generalizada. A formação médica, a da saúde, é um processo repleto de desafios intelectuais, éticos, emocionais ou pessoais, além do conteúdo biomédico, pois tanto o profissional como o estudante, ao entrarem em contato com seu paciente, família e suas próprias limitações, se deparam com sua própria vida, suas frustrações, seus conflitos pessoais e familiares.
As socializações primárias em ambiente familiar disfuncional revelam transtornos mentais/suicídio durante a socialização secundária (o curso de Medicina). Com base em nosso estudo, verificamos que são necessários dispositivos para capacitar o grupo da “família acadêmica” para que os alunos questionem a dinâmica da família original e o ambiente escolar seja um novo objeto de identificação. Tornam-se importantes as relações dialógicas entre tutores, mentores, preceptores, docentes, residentes e discentes, no espaço transicional e potencial do ambiente de ensino-aprendizagem, com espaços e cenários em que educadores médicos identifiquem precocemente o sofrimento psíquico do futuro médico.
A área das Humanidades em Medicina favoreceria em muito o desenvolvimento psicoemocional desses jovens estudantes, pois ela é responsável por apresentar situações cotidianas, que extrapolam a esfera da biomedicina. Entretanto, ainda é um núcleo em desenvolvimento, pois a mudança do modelo flexneriano para o da integralidade encontra resistências. A medicina ainda não é vista como uma ciência humana, estando o futuro médico submetido a uma antiga ideologia, que valoriza o campo biomédico.
Essa situação encontra-se em desacordo com a literatura sobre o tema. A formação médica segue fragmentada. Ao longo do curso, o aluno aprende processos psicofisiopatológicos de doença, sinais e sintomas, síndromes, formas de tratamento, mas não aprende a reabilitar indivíduos após o adoecimento. Logo, ao não ser capacitado para lidar com o seu paciente como um “ser” dotado de sentimentos, anseios e frustrações, com problemas sociais e familiares inerentes, ele não aprende a se conhecer e a procurar ajuda no caso de uma situação de identificação no campo da prática. Ou seja, a cuidar de si e das necessidades da população. E, ao não encontrar um ambiente que compreenda as questões aqui apresentadas, poderá desenvolver outros transtornos, como estresse, somatização e burnout (CID -10).