INTRODUÇÃO
Estudantes de medicina têm sido alvo de diversos estudos que avaliam sua saúde mental e qualidade de vida, devido às grandes pressões vivenciadas durante o curso1)-(5. Esses estudantes apresentam maior prevalência de transtornos tais como a síndrome de Burnout; a população geral6, e quando comparados a universitários de outras áreas, exibem maior prevalência de depressão7 e distúrbios do sono8. A qualidade de vida entre estudantes de medicina também é pior em relação a de indivíduos da mesma faixa etária9.
A partir de metanálise, a literatura nacional registrou prevalência agregada de 30,6% de sintomas depressivos, 31,5% de Transtornos Mentais Comuns, 13,1% de Síndrome de Burnout, 32,9% de ansiedade, 49,9% de estresse e 41,6% de sonolência diurna excessiva em estudantes de medicina. De modo similar, os estudos internacionais também apresentam índices expressivos de transtornos, com prevalência global de depressão de 28,0%4, ansiedade entre 7,7% e 65,5% e estresse psicológico variando de 12,2% a até 96,7% em estudantes de países de língua inglesa fora da América do Norte2.
Algumas queixas são comuns entre os estudantes, como a elevada carga horária de estudos, o cansaço físico, além do desgaste devido ao contato com pacientes terminais e com a morte: aspectos que podem influenciar no surgimento do estresse10. Devido à rotina de dormir tarde e levantar cedo, os estudantes de medicina acabam desenvolvendo problemas com sono, fator que também contribui para um prejuízo na saúde mental11. Os transtornos que afetam a saúde mental do estudante merecem especial atenção, tendo em vista que alguns deles estão associados a ideações suicidas12.
Apesar dos vários estudos sobre a prevalência de transtornos mentais entre estudantes de medicina, a literatura ainda carece de estudos longitudinais que permitam avaliar o comportamento desses transtornos ao longo do curso. É importante considerar ainda o contexto de abertura de várias escolas médicas no Brasil, nos últimos anos13. Adicionalmente, a influência da família e a crise econômica pela qual o país tem passado na última década também podem levar alguns acadêmicos a optarem por cursar uma graduação pela qual não têm vocação, com o propósito de garantir uma boa condição de vida no futuro, e as frustrações com o curso podem surgir diante da dificuldade em conciliar a ilusão construída com a realidade vivenciada10. Todos esses aspectos tornam os transtornos mentais dos estudantes de medicina uma questão extra de atenção à saúde no ambiente acadêmico. Este estudo teve o objetivo de comparar os escores dos sintomas de transtornos psiquiátricos em acadêmicos do curso médico ao longo de três anos da graduação, discutindo o contexto da saúde mental dos estudantes longitudinalmente durante o processo de formação.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo longitudinal observacional, prospectivo, iniciado em 2015, com estudantes que estavam frequentando o 1º e o 7º períodos de graduação das três escolas médicas do norte de Minas Gerais, que representavam - respectivamente - o período inicial e o intermediário do curso. As três escolas médicas ficam localizadas no município de Montes Claros, têm como metodologia de ensino a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). Uma instituição é pública e duas privadas.
Foram considerados elegíveis para o estudo todos os acadêmicos das turmas selecionadas, desde que regularmente matriculados. As turmas selecionadas foram acompanhadas anualmente em 2015, 2016 e 2017, sendo que a aplicação dos instrumentos de coleta de dados aconteceu no último bimestre de cada ano. As turmas iniciais foram avaliadas, portanto, quando estavam no 1º, 3º e 5º períodos, enquanto as demais foram avaliadas quando estavam no 7º, 9º e 11º períodos. Na primeira coleta de dados, não houve grande adesão dos estudantes tendo essa aumentado nas coletas seguintes. Tendo em vista que o estudo não corresponde a uma coorte de indivíduos e sim, de turmas, o número de participantes em cada ano variou. A taxa de participação dos estudantes para 2015, 2016 e 2017 foram - respectivamente - de 65,3%, 84,3% e 85,6%.
Os instrumentos de coleta de dados em todas as abordagens foram: Questionário de Saúde Geral (QSG-12)14, Maslach Burnout Inventory - Student Survey (MBI-SS)15, Inventário de Depressão de Beck (BDI)16, Escala de sonolência diurna de Epworth17, Questionário de avaliação da qualidade de vida Short Form 12 (SF-12)18, além de questionário de caracterização demográfica e social (sexo, idade, estado civil, instituição onde estuda, com quem reside, renda).
O QSG-12 tem o objetivo de identificar a presença de Transtornos Mentais Comuns. É composto por 12 questões, que incluem problemas com sono e apetite, experiências subjetivas de estresse, tensão ou tristeza, domínio de problemas diários, tomada de decisão, e autoestima, sendo seis questões positivas e seis negativas, com quatro opções de resposta que variam de “absolutamente não” a “muito mais do que de costume”. As questões positivas foram invertidas; para cada uma foi usado o escore 0-0-1-1, de forma que o instrumento possui escore total de 0 a 12 pontos19. A presença de Transtornos Mentais Comuns está relacionada a escores mais altos no QSG-12. O instrumento foi validado no Brasil, e sua estrutura unifatorial apresenta adequada consistência14.
O MBI-SS é um questionário, destinado a avaliar a Síndrome de Burnout em estudantes, com três dimensões: exaustão emocional (5 questões), descrença (4 questões) e eficácia profissional (6 questões). Cada questão possui uma escala de 7 pontos que varia de 0 - nunca a 6 - todos os dias. Altos escores em exaustão emocional e descrença e baixos escores em eficácia profissional constituem a Síndrome de Burnout15. O instrumento pode ser utilizado com abordagem bi ou tridimensional, mas não possui padronização quanto aos pontos de corte para cada dimensão. No presente estudo, cada uma das dimensões foi avaliada como variável contínua.
O Inventário de Depressão de Beck é uma escala autoaplicada, validada por Gorenstein e Andrade16, composta por 21 itens que avaliam os sintomas depressivos presentes na última semana. Cada item possui quatro opções de resposta, que varia de zero a três pontos, podendo obter uma pontuação máxima de 63 pontos. Os escores podem ser classificados em: ausência ou depressão mínima (0 a 9), depressão leve (10 a 18), depressão moderada (18 a 29), e depressão grave (30 a 63). No presente estudo, essa variável foi avaliada de forma numérica.
A escala de sonolência diurna de Epworth tem o propósito de investigar a probabilidade que o indivíduo tem de cochilar em oito situações do dia. Cada questão possui quatro opções de resposta em que zero significa nenhuma chance de cochilar e três significa alta chance de cochilar. A escala atinge valor máximo de 24 pontos. Escores entre 11 e 15 indicam níveis patológicos de sonolência diurna e escores acima de 15 correspondem a níveis muito patológicos17.
Para avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde, foi aplicado o instrumento SF-12, que contém 12 perguntas, e é dividido em dois domínios: componente físico e componente mental. Cada domínio é transformado em uma escala de 0 a 100 pontos, sendo que os maiores escores indicam melhor qualidade de vida18.
A coleta de dados foi realizada na faculdade de origem de cada estudante, no intervalo de suas atividades. Aqueles que aceitaram participar do estudo, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, preencheram os questionários de forma autoaplicável. Foram consideradas perdas os estudantes que se recusaram a participação no estudo e os que não foram localizados em suas instituições após três tentativas, em dias e horários diferentes.
Os dados foram tabulados e analisados por meio de programa IBM SPSS, versão 19.0. Foram utilizados cálculos de frequência absoluta e relativa, média e desvio-padrão para descrição dos participantes em cada ano do estudo. Para comparar os escores em cada instrumento relacionado à saúde mental dos estudantes entre as três avaliações da graduação foi utilizado o teste não paramétrico de Kruskal Wallis, adotando nível de 5% de significância. A escolha do teste não-paramétrico se deu após identificação de que as variáveis não seguiam distribuição normal, avaliadas pelo teste Kolmogorov-Smirnov. Também foram feitos diagramas de dispersão entre as médias dos escores de todas as variáveis investigadas e os períodos do curso, e a partir da relação observada foram conduzidas análises de tendência, com seus respectivos coeficientes de determinação.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma das instituições participantes, sob o parecer nº 1.196.370. Todos os estudantes que consentiram participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Dos 248 acadêmicos matriculados nos períodos selecionados nas três escolas médicas, participaram 162 em 2015, 209 em 2016 e 221 em 2017. A média de idade dos estudantes em 2015 foi de 21,3 (±3,7) anos, em 2016, de 22,5 (±4,3) anos, e em 2017 foi de 23,9 (±3,9) anos. A maioria dos estudantes era do sexo feminino e solteira. As características sociodemográficas dos respondentes para os três anos do estudo estão disponíveis na Tabela 1.
Variáveis | 2015 | 2016 | 2017 | p-valor | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | (%) | N | (%) | N | (%) | ||
Sexo | 0,637 | ||||||
Masculino | 59 | (36,4) | 85 | (40,7) | 90 | (40,7) | |
Feminino | 103 | (63,6) | 124 | (59,3) | 131 | (59,3) | |
Estado civil | 0,847 | ||||||
Solteiro | 148 | (91,4) | 189 | (90,5) | 195 | (88,2) | |
Casado / união estável | 13 | (8,0) | 17 | (8,1) | 23 | (10,4) | |
Divorciado ou viúvo | 1 | (0,6) | 3 | (1,4) | 3 | (1,4) | |
Tipo de Instituição | 0,081 | ||||||
Pública | 23 | (14,2) | 48 | (23,0) | 38 | (17,2) | |
Privada | 139 | (85,8) | 161 | (77,0) | 183 | (82,8) | |
Com quem reside atualmente | 0,915 | ||||||
Sozinho | 19 | (11,7) | 34 | (16,3) | 38 | (17,2) | |
Com os pais | 58 | (35,8) | 71 | (34,0) | 74 | (33,5) | |
Com familiares | 35 | (21,6) | 42 | (20,1) | 44 | (19,9) | |
Com outros estudantes | 39 | (24,0) | 52 | (24,9) | 50 | (22,6) | |
Outros | 10 | (6,2) | 10 | (4,8) | 15 | (6,8) | |
Renda | 0,612 | ||||||
Até 3000,00 | 35 | (21,6) | 44 | (21,1) | 48 | (21,7) | |
Entre 3000,00 e 5500,00 | 36 | (22,2) | 51 | (24,4) | 35 | (15,8) | |
Entre 5500,00 e 10000,00 | 36 | (22,2) | 53 | (25,4) | 59 | (26,7) | |
Acima de 10000,00 | 29 | (17,9) | 42 | (20,1) | 44 | (19,9) | |
Não responderam | 26 | (16,0) | 19 | (9,1) | 35 | (15,8) |
(*) Teste Qui-quadrado.
A Tabela 2 apresenta a média dos escores dos questionários que avaliam a saúde geral, sintomas depressivos, dimensões do Burnout, e os componentes físico e mental da qualidade de vida dos acadêmicos das turmas ingressantes no curso nos três anos do estudo. Houve aumento significativo nos escores do QSG, o que indica a presença de Transtornos Mentais Comuns, e da dimensão descrença do MBI-SS, e redução significativa nos escores da dimensão eficácia profissional.
1º período | 3º período | 5º período | p-valor* | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Média | DP | Média | DP | Média | DP | ||
Questionário de Saúde Geral | 3,75 | 2,62 | 5,60 | 3,35 | 5,76 | 2,96 | <0,001 |
Sonolência diurna | 9,68 | 3,47 | 8,86 | 3,87 | 9,22 | 4,16 | 0,314 |
Sintomas depressivos | 9,97 | 7,76 | 8,51 | 8,12 | 8,70 | 8,55 | 0,104 |
Exaustão Emocional | 17,69 | 6,58 | 18,69 | 6,61 | 18,17 | 7,13 | 0,415 |
Descrença | 6,74 | 6,10 | 8,84 | 6,73 | 9,21 | 6,50 | 0,008 |
Eficácia Profissional | 28,67 | 6,10 | 26,54 | 6,89 | 25,00 | 7,68 | <0,001 |
PCS - QVRS | 50,67 | 6,96 | 51,67 | 6,74 | 52,51 | 6,65 | 0,087 |
MCS - QVRS | 43,10 | 10,46 | 42,21 | 10,94 | 41,67 | 10,60 | 0,556 |
(*) Teste não-paramétrico de Kruskal Wallis.
A Tabela 3 apresenta a média dos escores dos questionários que avaliam a saúde geral, sintomas depressivos, dimensões do Burnout, e os componentes físico e mental da qualidade de vida dos acadêmicos das turmas que foram avaliadas a partir do meio do curso nos três anos do estudo. Observa-se aumento significativo nos escores do QSG, e na dimensão exaustão emocional do MBI-SS. Os escores de descrença também aumentaram, mas a diferença não foi significativa. Em relação à sonolência diurna, houve uma redução nos escores entre 7º e o 9º períodos e depois um aumento entre o 9º e o 11º períodos.
7º período | 9º período | 11º período | p-valor* | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Média | DP | Média | DP | Média | DP | ||
Questionário de Saúde Geral | 3,40 | 2,77 | 5,22 | 3,07 | 6,10 | 3,14 | <0,001 |
Sonolência diurna | 10,12 | 4,17 | 8,75 | 4,00 | 10,76 | 4,60 | 0,033 |
Sintomas depressivos | 9,38 | 8,32 | 7,65 | 7,32 | 9,80 | 7,27 | 0,116 |
Exaustão Emocional | 18,57 | 6,12 | 18,76 | 6,26 | 21,43 | 6,39 | 0,002 |
Descrença | 8,12 | 6,49 | 8,54 | 6,48 | 10,20 | 6,53 | 0,099 |
Eficácia Profissional | 26,77 | 5,93 | 27,09 | 5,95 | 26,69 | 6,13 | 0,923 |
PCS - QVRS | 49,92 | 7,95 | 51,59 | 6,32 | 50,41 | 6,75 | 0,424 |
MCS - QVRS | 43,02 | 10,41 | 43,37 | 10,86 | 40,29 | 11,60 | 0,206 |
(*) Teste não-paramétrico de Kruskal Wallis.
Os gráficos 1 a 3 apresentam as linhas de tendências dos escores referentes ao questionário de Saúde Geral, sonolência diurna, sintomas depressivos, dimensões da Síndrome de Burnout, e componentes da qualidade de vida e suas respectivas equações para todo o período do curso médico. Existe uma tendência de aumento dos escores de sonolência diurna e de morbidade psicológica. Em relação às dimensões da Síndrome de Burnout, os escores de exaustão emocional e descrença tendem a aumentar.
DISCUSSÃO
Este estudo permitiu avaliar o comportamento da saúde mental dos estudantes das três escolas médicas do norte de Minas Gerais - durante três anos de graduação - e traz à tona novamente o debate sobre a saúde mental dos estudantes em um momento de importantes mudanças na área da saúde e na estrutura da formação médica, considerando a publicação de novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de medicina, no ano de 2014. Foi possível observar uma tendência de aumento nos escores do questionário de saúde geral, indicativo de Transtornos Mentais Comuns, conforme o avanço da graduação. Também houve tendência de aumento nos escores de exaustão emocional e descrença ao longo do curso, o que, de um modo geral, reflete um agravamento na saúde mental destes estudantes. Isso demonstra que eles passaram a se sentir mais estressados, esgotados e mais descrentes com a carreira médica. Os níveis de descrença foram maiores entre os acadêmicos do 11º período - resultado particularmente alarmante - uma vez que estes acadêmicos já se encontram em fase de internato, e altos níveis de descrença denotam um distanciamento nas relações interpessoais e baixa expectativa em relação ao futuro profissional. Altos níveis de exaustão emocional e descrença correspondem à Síndrome de Burnout; embora esta síndrome não se configure como uma entidade nosológica, identificar a sua presença em estudantes é bastante relevante, uma vez que ela está associada ao contexto em que ocorre, ou seja, alerta para a discussão do quanto o ambiente possa ser desencadeador do sofrimento psíquico.
Estudos transversais que buscaram comparar sintomas que afetam a saúde mental entre períodos do curso apresentaram resultados controversos. Em estudo multicêntrico, que englobou 22 escolas médicas, os acadêmicos do 5º e 6º ano apresentaram os piores escores de exaustão emocional e descrença20. No mesmo sentido, em outro estudo brasileiro, a adição de um semestre no curso predisse um aumento de 0,08 pontos no escore de descrença e uma diminuição de 0,09 no escore de eficácia profissional21. No estudo em faculdade privada de Barretos - São Paulo - a presença de Burnout foi mais frequente nos acadêmicos do 1º ano, quando comparados aos demais. No entanto, estes mesmos autores inferem que esta síndrome é uma condição crônica em que há pouca expectativa de melhora durante toda a graduação22.
No presente estudo, os níveis de sonolência também tiveram uma tendência de crescimento. Pode-se inferir que a chance de cochilar durante o dia, em diversas situações, cresceu devido ao aumento nos níveis de cansaço e estresse destes estudantes. Outros estudos registram índices preocupantes de distúrbios do sono em estudantes de medicina, com sonolência diurna excessiva, mas sem diferenças entre os anos do curso23)-(24.
Com relação aos sintomas depressivos, não houve diferença nos escores entre os períodos. Outros estudos revelam resultados alarmantes entre os estudantes, em qualquer que seja o período do curso. Ao comparar períodos da graduação, os estudos de Bassols et al.25 e Brenneisen Mayer et al.26, ambos realizados com estudantes brasileiros, não observaram diferenças na prevalência destes sintomas. Já em metanálise realizada com estudos de diferentes continentes, a prevalência de sintomas depressivos foi significativamente maior no 1º ano do curso, havendo um declínio nos anos seguintes, até o 5º ano4. Em contrapartida, em estudo de Rezende et al.27, quanto mais avançado o período do curso, piores os escores no IDB. Pesquisa com estudantes de Camarões também observou maior chance de apresentar sintomas depressivos naqueles que estavam no ciclo clínico (4º ao 7º ano) comparados aos que estavam no ciclo pré-clínico (1º ao 3º ano). Baldassin et al.28 sugerem que os próprios cursos podem aumentar os sintomas depressivos entre os estudantes.
É possível que as diferenças de resultados entre os estudos que compararam períodos/anos do curso tenham ocorrido em virtude das particularidades da estrutura curricular de cada escola médica. Desta forma, os períodos mais estressantes, com maior sobrecarga de estudos, podem variar entre as instituições. Fatores externos, como diferenças regionais, também podem contribuir para uma melhor ou pior saúde mental.
Entretanto, a literatura é unânime em registrar que os fatores estressantes estão presentes desde o início da graduação, com prevalência expressiva de distúrbios que afetam a saúde mental em estudantes do primeiro ano2)-(4),(22),(25),(29. Morar longe da família e o impacto, ao se deparar com uma metodologia diferente da que estavam habituados, podem ser possíveis razões para este resultado. As exigências dos cursinhos pré-vestibulares também é outro fator gerador de estresse30. Isto significa que os estudantes já ingressam no curso médico com sinais de sofrimento psíquico; por se tratar de uma graduação que exige alto rendimento, estes estudantes tendem a manter altos os níveis de estresse, que podem culminar em outros transtornos mentais, uma vez que o perfil atual da sociedade demonstra uma dificuldade em lidar com situações de pressão. Neste sentido, o curso médico não é unicamente responsável pelo adoecimento dos estudantes, mas um fator que contribui para potencializar o sofrimento psíquico daqueles que já se encontram mais vulneráveis.
Já nos anos seguintes, existem outros fatores que podem ser responsáveis pela presença de estresse, Burnout e outros transtornos entre os estudantes. Pesquisas mostraram que a empatia tem sido um fator protetivo para o surgimento de Burnout, que contribui para a redução dos níveis desta síndrome a partir do segundo ano, mas que devido à característica multifatorial da SB, o comportamento dos estudantes pode sofrer variações positivas ou negativas22.
Os resultados observados - de um modo geral - sugerem que há uma aparente melhora nos indicadores de saúde mental, especialmente no estágio intermediário do curso (7º período), e estes indicadores voltam a crescer nos anos seguintes que precedem a conclusão do curso. Todavia, como não se trata da mesma turma acompanhada ao longo dos seis anos, mas sim de duas turmas acompanhadas durante três anos, não se pode descartar a possibilidade de que as turmas avaliadas tenham características distintas, e não se sabe como estava o estado emocional da turma do 7º período nos anos anteriores.
São escassas as pesquisas longitudinais que propuseram avaliar a saúde mental dos estudantes. Estudo brasileiro que acompanhou dezoito acadêmicos do curso médico durante os seis anos da graduação e avaliou as dimensões da SB e o estresse observou que o terceiro e o quarto ano foram considerados os mais difíceis, e que os níveis de descrença aumentam no transcorrer do curso29. Estudo que comparou a presença de Transtornos Mentais Comuns entre o início e o final do semestre observou aumento na prevalência deste transtorno31. Em contrapartida, outro estudo observou uma estabilidade na prevalência de transtornos mentais ao longo de dois anos da graduação, com discreto aumento nos níveis de estresse e sintomas depressivos na segunda coleta, e melhor qualidade de vida na terceira coleta, o que demonstra a natureza cíclica de tais transtornos, com aumento de sintomatologia para alguns estudantes e redução para outros32.
As pesquisas internacionais também confirmam uma piora na saúde mental do estudante ao longo da graduação. Em Melbourne, na Australia, o número de estudantes que relatou sentimentos de angústia psicológica aumentou significativamente no final do ano letivo, comparado ao que sentiram ao início e meio do ano33. Estudo longitudinal, com estudantes norte-americanos, registrou um aumento na proporção de estudantes em risco para depressão no terceiro ano quando comparados ao primeiro ano, assim como um aumento no estresse percebido34. Na Holanda, um em cada quatro estudantes desenvolveu problemas de saúde mental durante a graduação, em um período de um ano de acompanhamento35. Estudantes da Índia foram avaliados para sintomas depressivos, estresse e burnout no primeiro ano da graduação e reavaliados um ano depois. Foi observado aumento significativo nos escores de todos os transtornos, com exceção da dimensão exaustão do Burnout. Os autores concordam que aqueles estudantes que possuem uma leve tendência a um humor depressivo provavelmente sofrerão um agravamento dos sintomas no percurso36.
Em relação à qualidade de vida, não houve diferenças significativas em nenhum dos dois componentes. É possível que estes estudantes percebam seu esgotamento acadêmico, mas tenham uma visão particular do que é qualidade de vida, visto que se trata de um conceito abrangente e subjetivo. Além disto, o instrumento utilizado para mensurá-la tem particularidades com ponderações diferenciadas para cada um dos itens avaliados que podem ter influenciado na percepção da qualidade de vida por parte do grupo, mesmo com diferentes níveis de escores nas escalas de QSG, Burnout e sonolência diurna. Por exemplo, o componente mental é mensurado a partir da soma de algoritmos que são acrescidos distintamente para cada um dos itens do questionário, inclusive para os itens sobre função física, aspectos físicos, dor e saúde geral18. Neste sentido, como o componente físico demonstrou pequena melhora ao longo dos três anos, é possível que o escores nestas questões tenham influenciado na somatória do componente mental.
É importante salientar que - apesar de não ter havido diferença nos componentes da qualidade de vida entre os três anos da graduação - os escores em todos os anos não foram altos e denotam que a qualidade de vida dos estudantes é influenciada negativamente pela graduação, independente do semestre que o acadêmico cursa. Outros estudos também observaram prejuízos na qualidade de vida dos estudantes de medicina9),(37. Em pesquisa qualitativa realizada com 56 estudantes de seis escolas médicas de várias regiões do Brasil, os estudantes elencaram uma série de fatores que diminuem sua qualidade de vida, que incluem competição, professores despreparados, excesso de atividades, horários que demandam dedicação exclusiva38. Estudo longitudinal realizado com estudantes coreanos observou que as mudanças na qualidade de vida são impactadas significativamente pelo suporte social que os estudantes recebem39.
De uma forma geral, os resultados encontrados neste estudo chamam a atenção para a necessidade de se adotar estratégias que sejam efetivas no intuito de minimizar os fatores estressantes e o sofrimento emocional dos estudantes. A escola médica se constitui como um estressor por si só4, e os estudantes, em geral, têm consciência de que o curso seria cansativo; no entanto, enquanto alguns conseguem lidar naturalmente com tal situação, outros precisam recorrer ao suporte psicológico, devido às características pessoais e aspectos da personalidade que interferem na capacidade que o indivíduo tem de lidar com o estresse40.
Uma vez que a empatia está correlacionada positivamente com a eficácia profissional e negativamente com a descrença, ambas dimensões da SB, e que escores mais altos de otimismo estão associados a escores mais altos de eficácia profissional41, desenvolver estes sentimentos pode ser uma das alternativas para contribuir na redução do esgotamento profissional entre os estudantes. Em contrapartida, estudo revelou que somente um terço dos acadêmicos com a SB procuraram ajuda42. Apesar do fato de que muitas escolas médicas atualmente já contarem com o apoio de profissionais da Psicologia para oferecer este suporte aos estudantes, é preciso repensar as maneiras de garantir a adequado acompanhamento aos estudantes mais necessitados e mesmo adesão dos mesmos às terapias.
Algumas escolas médicas têm reorganizado a estrutura curricular com o objetivo de criar as denominadas “áreas verdes”, que consistem em períodos livres destinados a atividades de lazer43. Entretanto, os resultados do presente estudo demonstram que as áreas verdes não são suficientes para minimizar o estresse dos estudantes, ou não estão sendo bem aproveitadas. Sabendo que os transtornos apresentados pelos estudantes têm causa multifatorial, as intervenções também devem ser múltiplas ou de caráter mulifacetado. Alguns autores destacam a prática de mindfulness como estratégia capaz de promover o bem-estar mental dos estudantes em ensaio randomizado controlado44.
O estudo deve ser considerado à luz de algumas limitações. Não foi possível obter taxa de resposta de 100% dos estudantes dos períodos selecionados devido às recusas em participar. As escolas estão localizadas em uma região específica do país, e os resultados podem traduzir particularidades dessa região. É importante considerar ainda que alguns resultados - autodeclarados - não traduzam a condição real dos estudantes, que podem se sentir constrangidos a se manifestarem com sofrimento mental, mesmo de forma anônima. Ainda assim, os resultados retratam uma realidade até então desconhecida para a região, que deve servir de alerta aos gestores dos cursos de medicina.
CONCLUSÕES
Os resultados do presente estudo demonstram uma tendência de aumento nos escores do questionário de saúde geral, indicativo de Transtornos Mentais Comuns, conforme o avanço da graduação. Também houve tendência de aumento nos escores de exaustão emocional e descrença ao longo do curso, com uma aparente melhora no meio do curso, mas que, de um modo geral, reflete um agravamento na saúde mental destes estudantes.
A adoção de estratégias que auxiliem os estudantes a enfrentar situações estressantes devem ser consideradas, como suporte psicológico, projetos esportivos, prática de mindfulness, além da reorganização curricular com os períodos livres durante a semana para o lazer.