INTRODUÇÃO
O mentoring é um processo de relação de ajuda no qual uma pessoa mais experiente acompanha de perto um iniciante no caminho do desenvolvimento pessoal, acadêmico e profissional1. Há diversos modelos de mentoring que visam contemplar a realidade de cada instituição. Um desses é o peer mentoring (mentoria entre pares), elencado no caso da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), e faz-se mister sublinhar que a instituição lançou mão, num momento anterior, de uma tentativa de mentoria cuja mediação era feita por professores e não por alunos. A experiência, todavia, não foi exitosa, sendo um dos principais óbices a exiguidade de professores interessados e com perfil alinhado ao projeto. No peer mentoring, o mentor é um discente mais avançado na graduação que acompanha discentes iniciantes ou mentees por meio de encontros periódicos. Nesse formato, há menor disparidade de poder, o que permite o compartilhamento de opiniões, problemas do dia a dia e apoio pessoal e social2. Esse formato permite o aprendizado sobre o ambiente da universidade com o objetivo de apresentar as prioridades, os costumes, os modelos e as estruturas que fazem parte da vida acadêmica e que normalmente só são adquiridos ao longo do curso3.
O projeto apresenta um modelo peculiar: trata-se de uma estratégia de recepção que tem como objetivo proporcionar desenvolvimento pessoal e acadêmico tanto aos ingressantes (mentees) quanto aos veteranos (mentores). Essa atividade que tem caráter facultativo concede certificado com horas complementares e conta com uma coordenação - composta por discentes e professores - que define os temas trabalhados durante o semestre e dá suporte aos tutores e mentores. A escolha dos temas considera as principais dificuldades do processo de ensino-aprendizagem e saúde mental do ingressante, levantadas a partir de pesquisa com os próprios discentes por meio de questionário eletrônico.
No modelo em questão, o professor é denominado tutor e tem a função de auxiliar três mentores (discentes do segundo ao sétimo período) no planejamento das mentorias, além de participar de alguns encontros intentando auxiliar e acompanhar a atuação dos mentores. Os mentees são discentes do primeiro período, organizados em grupos de até 15 integrantes, e participam de encontros quinzenais de até duas horas. Os encontros são conduzidos pelos mentores, sendo sistematizados em três momentos: apresentação do tema e roda de conversa, apresentação de ferramentas e aplicativos que auxiliam na solução do problema apresentado a partir do tema e, por derradeiro, um debriefing, momento final de feedback formativo do encontro4.
O peer mentoring foi instituído como estratégia para integrar os ingressantes ao ambiente universitário no momento de transição para o ensino superior, visando aumentar a inserção/adesão dos discentes à graduação, uma vez que as dificuldades ao entrarem pela primeira vez em uma instituição de ensino superior (IES) e ao longo do curso são fenômenos complexos e individuais, apresentando aspectos e problemáticas distintos5. Nesse diapasão, medidas de prevenção e promoção da saúde mental, que fazem parte do escopo do projeto, são muito importantes para diminuir o estresse e a ansiedade provocados por esse período de transição e adaptação. Sob as assertivas de Medeiros et al.6, a qualidade de vida é considerada ruim para parte significativa dos discentes de Medicina ingressantes, havendo a prevalência de sintomas de estresse, depressão, sonolência diurna e esgotamento profissional. Os autores ressaltam a necessidade de intervenção precoce, pois as exigências e os problemas de saúde mental tendem a se agravar no decorrer do curso7.
Outro aspecto imperativo da recepção e integração adequada do ingressante no curso de Medicina da Ufersa se volta ao modo como o curso é alicerçado metodologicamente, sendo precipuamente a partir de metodologias ativas, com relevo e centralidade para a metodologia Problem-Based Learning (PBL). As metodologias ativas se mostram como processo amplo e possuem como principal característica a realocação do discente, que agora figura como agente principal da sua aprendizagem, comprometendo-se com o próprio aprendizado e sendo responsável por ele8. Por conseguinte, as dificuldades de adaptação ao novo contexto tornam-se desafiadoras, visto que no ensino médio tradicional geralmente há apenas aulas expositivas e o processo de ensino e aprendizagem é centrado no professor, exigindo menos protagonismo e organização de tempo por parte do discente. Ademais, na Aprendizagem Baseada em Problemas (tradução livre de Problem-Based Learning), o discente precisa desenvolver habilidades de comunicação, trabalho em grupo e construção colaborativa. Logo, a adaptação ao novo modelo de ensino traz inseguranças e angústias. Os discentes desse método indicam a necessidade de apoio institucional, do professor tutor e dos veteranos como forma de ajuda nesse processo de transição9.
Portanto, o peer mentoring é uma estratégia que visa diminuir os problemas de saúde mental e adaptação no ensino superior. Assim, é fundamental a realização de estudos para avaliar a perspectiva dos diferentes atores do processo, seus benefícios e suas limitações. Na presente pesquisa, o objetivo foi avaliar a percepção dos mentees sobre sua experiência no peer mentoring e os possíveis benefícios no desenvolvimento pessoal e acadêmico e na saúde mental do ingressante de Medicina.
METODOLOGIA
O estudo se caracteriza como uma pesquisa exploratória, de caráter descritivo e com abordagem qualitativa. A população estudada corresponde aos discentes ingressantes no curso de Medicina, no semestre letivo 2018.1 e 2019.1, maiores de 18 anos de idade, participantes como mentees, que alcançaram no mínimo 75% de presença nos encontros do peer mentoring e regularmente matriculados no curso de Medicina da Ufersa, no período da coleta de dados. Os discentes que abrangiam esses critérios eram 25, entretanto, como cinco não compareceram à entrevista, a amostra final foi de 20 estudantes. A pesquisa abrangeu cerca de 80% dos discentes que atendiam aos critérios estabelecidos, o que mostra a fidedignidade da amostra.
Os mentees foram convidados, via e-mail, para a realização de entrevista semiestruturada audiogravada por aparelho de MP4. Em seguida, realizou-se a transcrição completa de toda a fala gravada nas entrevistas. Inicialmente, três pesquisadores analisaram individualmente as transcrições, e depois os dados encontrados foram debatidos pelo grupo. Os dados foram processados por meio da análise de conteúdo10, especificamente por meio da “análise temática”.
A análise temática de conteúdo é constituída por três principais etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e sua interpretação11. Na pré-análise, fazem-se a leitura do material empírico e a exploração dele. No tratamento dos dados, são identificados os núcleos de sentido, cuja presença ou frequência tiverem significâncias para o objeto analítico, determinando as categorias de análise e realizando a sua interpretação, com inferências articuladas à experiência dos pesquisadores e aos referenciais teóricos11.
A pesquisa seguiu as diretrizes e normas regulamentadoras da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde12 referente à pesquisa com seres humanos, que contempla os princípios basilares da bioética: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 20528319.8.0000.5294.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Os entrevistados consideraram a experiência no projeto peer mentoring positiva, e na percepção deles o projeto auxiliou em seu desenvolvimento pessoal e/ou acadêmico. A partir da análise das entrevistas, foi possível encontrar duas categorias: apoio emocional e social, e planejamento de estudos.
Apoio emocional e social
O processo de peer mentoring em grupo, organizado num primeiro momento em roda de conversa, mostrou-se relevante como apoio emocional e social para os mentees. Observou-se a construção de um lugar seguro, no qual os participantes se sentiram confortáveis para expor suas emoções, seus medos e suas ansiedades. Foram feitos relatos apontando que os encontros também auxiliavam na diminuição do estresse.
Dava um alívio em relação à parte emocional e não sei o que, a gente discutia, brincava, chorava, ria e [...] Isso realmente aliviava e foi uma válvula de escape realmente (E2).
Ter essa visão da experiência dos veteranos contribuiu muito não só para acalmar nossos corações assim, mas também a levar de uma forma mais suave, cobrar menos de si também (E14).
O mentoring era como se fosse quase um desabafo, a gente chegava muitas vezes, chorava por aflições, relatavam que a gente realmente passava por essas coisas [...] e a gente via no outro nós mesmos, a gente passa pelas mesmas experiências e os veteranos diziam é a gente já passou por isso, estamos aqui para ajudar vocês(E17).
Eu acho que foi terapêutico em relação a saber lidar com problemas que eu iria enfrentar, que eu enfrentei (E16).
O peer mentoring auxiliou os mentees nos conhecimentos práticos, na apresentação dos costumes e no alerta para possíveis dilemas do ambiente acadêmico. Nessa perspectiva, é um processo que permite o aprendizado sobre o ambiente. Os entrevistados relataram que isso foi muito importante para diminuir as inseguranças em relação à universidade, ao curso e às metodologias ativas de aprendizagem.
Foi uma experiência extremamente positiva [...] muitos sentimentos que a gente tem como calouro a gente acaba suprindo no mentoring, né? [..] então a insegurança, o desconhecimento, o medo do curso, ainda mais por ser um curso de metodologia ativa, todas essas questões são muito bem supridas pelo projeto (E1).
Eu me sentia muito insegura por causa do grupo de tutoria (GT) e a questão da ansiedade também, dificuldade de falar em público, e o mentoring me ajudou bastante nisso (E10).
Alguns entrevistados pontuaram a importância do projeto para a integração social entre os discentes do curso de Medicina, tanto da sua turma como dos veteranos.
Foi uma experiência bacana, porque eu ainda não tinha conhecido muito as outras pessoas do curso e não tinha mais contatos também com outras turmas mais velhas, então achei interessante conhecer, e também aprender métodos pra me enturmar melhor (E6).
Planejamento de estudos
O peer mentoring visa também ao desenvolvimento pessoal e acadêmico de todos os atores do processo, com o objetivo final de promover a autonomia do mentee. Por isso, há temas específicos para discutir e apresentar ferramentas que auxiliem na organização dos estudos e das técnicas de otimização destes. Nesse contexto, muitos estudantes relataram que o projeto auxiliou na transição do ensino médio para o superior e no processo de aprender a aprender.
O peer mentoring foi interessante, no fato que a metodologia PBL quando a gente é novo nela deixa alguns questionamentos [...] o fato de ter um auxílio para entender isso foi muito bom, me ajudou muito no como estudar e como progredir na metodologia aplicada aqui (E13).
Me ajudou muito no início da faculdade [...] e foi muito bom também para administração da ansiedade, do estresse do dia a dia da faculdade (E9).
As ferramentas passadas durante o mentoring me auxiliaram na forma de estudar (E3).
Os mentees também citaram a contribuição do peer mentoring na organização do tempo, tanto da agenda pessoal como dos estudos, e na elaboração de cronograma para estudo individual.
Mudou minha vida, do ponto de vista pessoal, que me ajudou também muito a me organizar também nessa mesma reunião, a gente aprende muito a se organizar em tudo (E4).
Auxiliou bastante, principalmente na parte de cronograma de estudo que eu tinha um problema, eu tinha dificuldade com alguns estudos acumulados […] ajudou na administração do meu tempo e ajudou também eu fazer esportes (E19).
Os vínculos construídos com os membros do grupo e os mentores foi um aspecto citado pelos mentees como facilitador no processo de transição para graduação e no relacionamento com professores, discentes e instituição. Essas características convergem com a pesquisa de um projeto de dual peer mentoring em um curso de Medicina do Teerã que foi ofertado para os alunos do primeiro ano e teve como mentores dois alunos veteranos13. Nesta pesquisa, os participantes citaram que um relacionamento amigável, sincero e empático entre mentees e mentores foi um ponto forte do processo. Por conseguinte, nos dois estudos foi possível observar que o relacionamento de peer mentoring foi um auxílio na diminuição do estresse e estímulo para enfrentar os novos desafios.
No contexto da saúde mental, os principais sintomas relatados pelos estudantes do ensino superior são estresse, ansiedade e depressão14),(15. Observou-se nas falas dos mentees entrevistados a utilização de expressões e termos como “válvula de escape”, “desabafo” e análogos, o que permite inferir que estavam em intenso estresse. Verificaram-se a insegurança em relação às situações-problema e a presença do choro nos relatos dos entrevistados. Portanto, instrumentalizar os estudantes desde o primeiro período visando à autonomia, à integração, ao sentimento de pertença e segurança, à autogestão de sua rotina de estudos e à vida pessoal é fundamental para diminuir esses sintomas e seus danos14),(15.
Já os fatores que apareceram com maior frequência, em diferentes literaturas, como facilitadores à adaptação ao ensino superior foram: fornecimento de informações, integração acadêmica, rede de apoio e integração social15. Tais achados foram corroborados pelo presente estudo, pois apareceram como relevantes para a diminuição da insegurança e a adaptação à universidade e ao curso de Medicina no método PBL. Outros fatores de bem-estar identificados nos estudantes de ensino superior são: prática de exercícios físicos, ter pelo menos sete horas de sono, ter relação íntima/namoro satisfatória e bom desempenho acadêmico16. Os mentees relataram que o projeto auxiliou na gestão do tempo e na agenda pessoal, mas não citaram especificamente esses fatores, apenas um dos entrevistados disse estar praticando esportes.
Quanto às especificidades do curso médico, os problemas de saúde mental têm índices maiores entre discentes de Medicina - em comparação com a população em geral -, o que é atribuído às características da profissão médica e do processo de formação17. Observa-se a preocupação dos mentees em relação à gestão do processo de aprendizagem e a outras atividades. Esse aspecto permite inferir, em convergência com outros estudos, que a carga horária intensa e extensa do curso é um fator estressor e que usar mecanismos de autogestão reduz o estresse. Por isso, a saúde mental do discente de Medicina tem sido tema recorrente em pesquisas científicas, e sabe-se que o ambiente educacional é um determinante importante na qualidade de vida do aluno. Ao reconhecerem esse problema, muitas instituições têm utilizado meios de amenizar a problemática com programas de mindfulness, mentoring e apoio psicopedagógico, de modo a contribuir para o bem-estar dos discentes18),(19. O peer mentoring cooperou nesse cenário ao promover apoio emocional e social aos mentees, e, assim, abrolhou um itinerário oportuno para amenizar o sofrimento mental do discente.
Outro aspecto apresentado como estressor pelos mentees foi o fato de o curso ser estruturado em metodologias ativas e exigir que o aluno participe ativamente do próprio aprendizado8. Por conta disso, o aluno se vê obrigado a buscar estratégias eficazes de autoaprendizagem desde o primeiro período, o que, amiúde, pode causar angústia, inseguranças e receios. Em um estudo feito com discentes no método PBL, verificou-se que a maioria deles tem sucesso no estudo autodirigido. Entretanto, o autor sugere a formulação de um guia de orientações de autoaprendizagem visando otimizar o desempenho do estudante20. Nesse direcionamento, pode-se inferir que a gestão da autoaprendizagem será desenvolvida no estudante do método PBL com o passar do tempo. Nota-se, nas entrevistas do presente trabalho, que o processo de peer mentoring auxiliou na diminuição das inseguranças e do estresse do ingressante, servindo também como guia de otimização do desempenho, uma vez que ajudou na autogestão e apresentou estratégias e ferramentas de estudos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os mentees de Medicina avaliaram a sua participação no projeto peer mentoring como positiva, atestando a contribuição para o seu desenvolvimento pessoal e acadêmico. Cabe ressalvar que o projeto auxiliou no processo de acolhimento, na integração e adaptação ao ambiente acadêmico e ao curso, que funciona majoritariamente pelo método PBL. O modelo de mentoria em grupo e entre pares permite uma relação simétrica que é benéfica para a saúde mental e o enfrentamento dos conflitos existentes no processo de transição para a graduação.
Nas entrevistas, foi possível observar que os mentees sentem empatia por parte dos discentes veteranos por eles terem vivido recentemente experiências semelhantes, na mesma instituição e método de ensino, além do fato de estarem em semelhantes condições e ocupando os mesmos espaços. Soma-se a esses fatos que esse formato de mentoria auxilia no desenvolvimento da autogestão e comunicação em grupos, fundamental para os discentes em um curso organizado com metodologias ativas. Percebem-se aqui, com efeito, matizes e ensejos de inovação da realidade.
Atualmente, o projeto foi estendido para outros quatro cursos da instituição, por causa de boa aceitação e dos resultados, e 400 discentes ingressantes já foram alcançados pelo projeto em dois anos de implementação. Por conseguinte, foi incorporado como estratégia institucional apoiada pela pró-reitoria de graduação e reconhecido como uma boa prática de inovação e gestão dos cursos de graduação no ano de 2019 pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Graduação - ForGRAD.