INTRODUÇÃO
A qualidade da relação médico-paciente resulta, sobretudo, da percepção do médico sobre o indivíduo à sua frente que requer cuidados. Nesse cenário, médicos que experimentam a empatia por seus pacientes conseguem prover uma melhor assistência à saúde do que aqueles que não desenvolveram essa habilidade, haja vista que a capacidade de empatizar aumenta, consideravelmente, a compreensão acerca das vivências, necessidades, preferências e expectativas de cada paciente, e, por conseguinte, contribui para criar vínculos e firmar uma aliança terapêutica1.
Ao longo da história, a mudança de concepção do modelo flexneriano (biomédico), “centrado na doença”, com uma visão superespecializada e fragmentada do indivíduo, que desconsidera a interferência de aspectos individuais no processo do adoecimento, para o modelo biopsicossocial, “centrado na pessoa”, que enxerga a pessoa alvo de cuidados na sua integralidade e explora a experiência pessoal, a dimensão simbólica e psíquica do adoecer, impôs ao médico um olhar muito mais aprofundado acerca das doenças e dos doentes, e uma escuta ativa e refinada2.
Seguindo esse novo modelo, em 2001 foram instituídas as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)3 para o curso de Medicina, tencionando um ensino interdisciplinar, a participação ativa dos estudantes e a formação integral desses futuros profissionais médicos. Em 2014, as novas DCN4, além de reiterarem o ensino centrado no estudante, levantaram a importância dos aspectos humanísticos e socioculturais na prática clínica, bem como expressaram um novo padrão para o que seria o médico ideal: “generalista, crítico, reflexivo, ético, empático, capaz de realizar ações de prevenção, promoção e proteção à saúde, sempre respeitando a dignidade humana”5.
Nesse novo ideal, a empatia, percebida como um construto de natureza multidimensional, descrita pelo filósofo Roman Krznaric6) “como a arte de se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo seus sentimentos e perspectivas e usando essa compreensão para guiar suas próprias ações” (p.10), emerge como um elemento indispensável para um cuidado em saúde de forma humanizada, em que as opiniões, os pontos de vista, os valores e as crenças de cada pessoa são compreendidos, valorizados e respeitados7.
Muito além de uma habilidade social, a empatia destaca-se como um atributo essencial do profissionalismo médico para se estabelecer uma comunicação médico-paciente adequada e efetiva; como o componente humanístico primordial para tecer relações interpessoais satisfatórias para ambas as partes, desenvolver uma boa anamnese, formular diagnósticos mais precisos, instituir condutas terapêuticas apropriadas e com melhores resultados, e conservar as relações médico-paciente5),(8.
Dada a importância dessa temática, em 2001, um grupo de pesquisadores do Jefferson Medical College, na Filadélfia, nos Estados Unidos, liderado pelo professor Hojat, elaborou a Escala Jefferson de Empatia Médica (Jefferson Scale of Physician Empathy - JSPE), que logo ganhou ampla aceitação, sendo largamente traduzida e utilizada em pesquisas nessa área, em âmbito mundial. Sua versão para estudantes (JSPE-vs), consagrada como o instrumento mais empregado para avaliar o nível de empatia no contexto da educação médica, foi adaptada e validada para o português brasileiro em 20128),(9.
Contudo, muito embora a empatia assuma um papel central na relação médico-paciente, alguns estudos acerca do tema realizados pelo mundo têm demonstrado um declínio significativo no escore de empatia dos estudantes concluintes em comparação àqueles ingressantes no curso de Medicina, um fenômeno conhecido como “erosão da empatia”, mais evidente a partir do terceiro ano da graduação, na transição do ciclo básico para o ciclo profissionalizante5),(9),(10.
Fatores próprios de cada indivíduo, como sua personalidade e biografia, e fatores externos, como os anos de graduação, podem influenciar de maneira significativa a atitude empática desses futuros profissionais. Logo, pensar na relação médico-paciente é refletir também sobre como se deu a formação profissional desse médico5),(8.
Um currículo dominado quase que totalmente por aspectos intelectuais, científicos e técnicos da aprendizagem, a carga horária do curso e a fragmentação tanto maior do saber à medida que o grau de especialização aumenta podem exercer uma influência negativa nos níveis de empatia dos estudantes. Na contramão disso, a harmonia entre o conhecimento técnico-científico e uma formação humanística, professores e preceptores que sirvam de bons modelos nos quais os estudantes possam se inspirar e a adoção de estratégias educacionais que fogem àquelas convencionais e que reforçam a atitude empática podem exercer uma influência positiva5),(9)-(12.
É certo que existem controvérsias entre vários autores quanto à transmissibilidade da empatia; não obstante, muitos deles defendem que, se a empatia pode ser “perdida”, ela também pode ser “ensinada”, e, portanto, as escolas médicas têm a responsabilidade de trabalhar não somente as competências de cunho técnico-científico, mas também, as habilidades humanísticas desses estudantes. Apesar de não se saber ao certo como proceder, a maioria dos autores sustenta a importância dos ambientes de aprendizagem e da utilização de estratégias de ensino-aprendizagem combinadas e diversificadas, de forma longitudinal, e não pontuais, a fim de fomentar e preservar os níveis de empatia desses futuros profissionais2),(7),(10),(13),(14.
Assim, o presente estudo teve por objetivos investigar como se manifestam os níveis de empatia em estudantes de Medicina de uma instituição privada de ensino superior, situada no Nordeste do Brasil, ao longo da graduação, e correlacionar os resultados obtidos na amostra com o período da graduação e perfil sociodemográfico desses discentes, a fim de verificar quais correlações se mostram significativas para a expressão dos níveis de empatia deles e se há erosão da empatia durante a formação.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de natureza quantitativa, analítica, observacional e transversal que se deu por meio da aplicação de questionários a ingressantes, intermediários (sexto período) e concluintes do curso de Medicina de uma universidade privada, situada na cidade de Maceió, em Alagoas. A amostragem utilizada foi por acessibilidade e conveniência. A coleta de dados se deu entre os meses de outubro e novembro de 2020. Ficaram de fora os estudantes que estavam com a matrícula trancada ou com algum tipo de licença, sem estar frequentando o curso.
Os possíveis participantes foram informados a respeito do objetivo, da justificativa, da relevância do estudo e de seus aspectos éticos por meio do ambiente digital provido pela plataforma Teams. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ou Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), para aqueles menores de idade (sendo necessário também, nesse caso, o assentimento do responsável legal no TCLE - responsável legal), e os instrumentos da pesquisa foram disponibilizados on-line por meio da plataforma Google Forms. Somente após a devida anuência ao TCLE/TALE/TCLE - responsável legal, pôde-se ter acesso aos instrumentos da pesquisa.
O primeiro instrumento utilizado no desenvolvimento da pesquisa foi a JSPE-vs, um questionário de autopreenchimento que possibilita uma visão mais objetiva dos níveis de empatia dos estudantes de Medicina no contexto clínico, predominantemente sob uma ótica cognitiva, mas também aborda aspectos afetivos. Esse questionário é composto por 20 sentenças, e cada uma delas está vinculada a um dos três fatores que compõem a escala: compaixão ou cuidado compassivo (CC), capacidade de se colocar no lugar do paciente (CCLP) e tomada de perspectiva (TP)15.
A JSPE-vs se utiliza de uma escala de resposta do tipo Likert de 7 pontos (de 1 = discordo fortemente a 7 = concordo fortemente), e as pontuações mínima e máxima possíveis são, respectivamente, 20 e 140 pontos para o escore global, que é dado pela soma do escore atribuído a cada uma das sentenças e representa o nível de empatia global do estudante; 11 e 77 pontos para o CC; 2 e 14 pontos para a CCLP; e 7 e 49 pontos para a TP. As respostas às sentenças 1, 3, 6, 7, 8, 11, 12, 14, 18 e 19 possuem escore “reverso” no somatório (de 1 = concordo fortemente a 7 = discordo fortemente), para reduzir o efeito da resposta padrão conhecida como “estilo de resposta de aquiescência”, que seria a tendência de a pessoa concordar com os itens ou discordar deles sem considerar o seu conteúdo15),(16.
Não existe um ponto de corte estabelecido a partir do qual se considere ter ou não nível de empatia desejável ou suficiente. O resultado, portanto, se baseia numa gradação, e, em sendo assim, quanto maior o escore global obtido, mais empático é o estudante que está sendo avaliado15),(16.
O segundo instrumento utilizado na pesquisa foi um questionário sociodemográfico, contendo um total de 15 perguntas com relação a faixa etária, sexo, estado civil, filhos, religião, renda familiar, tipo de moradia, financiamento estudantil, história de doença grave/crônica na família, doença ou alguma condição de agravo à saúde que considere impactante, nível de escolaridade dos pais, atividade remunerada, motivo de escolha do curso e área da medicina em que deseja atuar.
Os dados foram tabulados e processados pelo aplicativo para microcomputador Predictive Analytics Software (PASW®) Statistic versão 23.0. Para a análise dos dados, utilizou-se apresentação tabular e gráfica das médias, dos desvios padrão, dos intervalos de confiança e das frequências.
Após os dados obtidos serem caracterizados com a utilização de técnicas de estatística descritiva, aplicou-se o teste de aderência de Shapiro-Wilk para avaliar a normalidade das distribuições das variáveis numéricas. A consistência interna dos dados da JSPE-vs foi avaliada pelo teste alfa de Cronbach, com valor mínimo aceitável para o alfa de 0,70.
As variáveis numéricas e nominais ordinais foram relacionadas por meio do teste de correlação bivariada com grau de relacionamento linear observado por meio do coeficiente de Spearman. E por fim, para comparação de diferenças do nível de empatia entre os grupos, para a variável sexo, utilizou-se o teste de Mann-Whitney, uma vez que as amostras calculadas por meio do teste de Shapiro-Wilk não foram normais. As comparações com mais de dois grupos foram realizadas por meio do teste de Kruskal-Wallis, e corrigiu-se a diferença entre os pares por meio do teste post hoc de Bonferroni. Os valores foram considerados significativos para p menores que 0,05.
O estudo seguiu os procedimentos éticos preconizados na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 201217, e foi submetido à apreciação e aprovação na Plataforma Brasil do Ministério da Saúde, com o assentimento do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro Universitário CESMAC.
RESULTADOS
De um universo de 213 estudantes, este estudo contou com 193 participantes, sendo 55 (28,5%) ingressantes, 100 (51,8%) intermediários - em maior quantitativo por existirem duas turmas de sexto período do curso, A e B - e 38 (19,7%) concluintes, porquanto 20 (9,4%) deles não aceitaram participar da pesquisa (não acessaram a plataforma em até 30 dias após o convite). A maior adesão se deu entre os intermediários (92,6%) e a menor entre os concluintes (84,4%). Mais da metade, 110 (57%) participantes, estava na faixa etária entre 18 e 24 anos, e houve predominância do sexo feminino, de 134 (69,4%) mulheres para 59 (30,6%) homens.
O teste alfa de Cronbach, executado a partir dos 20 itens da escala para o grupo estudado, resultou no valor de 0,82, o que revela a validade interna dos dados, uma vez que supera o valor de 0,70 estabelecido como referência.
Na análise da JSPE-vs, foram mensurados os escores global e por fator. No conjunto de todos os participantes do estudo (n = 193), os escores ficaram assim: global (123,56 ± 11,73); CC (72,32 ± 6,23); CCLP (9,49 ± 2,83); e TP (41,76 ± 5,91) (Tabela 1).
95% de intervalo de confiança | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Fator | Itens da JSPE-vs | Pontuação média da JSPE-vs | Limite inferior | Limite superior | Desvio padrão | Valor de p |
Cuidado compassivo (CC) | 1,2,7,8,11,12,14,15,16,19,20 | 72,32 | 71,43 | 73,20 | 6,23 | 0,999 |
Capacidade de se colocar no lugar do paciente (CCLP) | 3,6 | 9,49 | 9,09 | 9,89 | 2,83 | 0,178 |
Tomada de perspectiva (TP) | 4,5,9,10,13,17,18 | 41,76 | 40,92 | 42,60 | 5,91 | 0,687 |
Escore global | Todos (n = 193) | 123,56 | 121,89 | 125,23 | 11,73 | 0,314 |
JSPE-vs: Escala Jefferson de Empatia Médica - versão para estudantes.
Fonte: Elaborada pelos autores.
A discriminação dos escores por período do curso se deu da seguinte forma: global (ingressantes = 124,78 ± 9,85, intermediários = 124,00 ± 11,87 e concluintes = 120,63 ± 13,57); CC (ingressantes = 73,02 ± 5,00, intermediários = 72,40 ± 6,90 e concluintes = 71,08 ± 5,97); CCLP (ingressantes = 10,11 ± 2,53, intermediários = 9,24 ± 3,01 e concluintes = 9,24 ± 2,67); TP (ingressantes = 41,65 ± 5,93, intermediários = 42,36 ± 4,87 e concluintes = 40,32 ± 7,95).
A comparação entre os ingressantes, intermediários e concluintes, realizada por meio do teste de Kruskal-Wallis, evidenciou uma distribuição normal; em contrapartida, verificou-se que não há diferença estatística significativa entre os escores global e por fatores entre os três períodos avaliados.
O perfil sociodemográfico dos participantes está descrito na Tabela 2. Em sua grande maioria, eles são solteiros (88,6%), não têm filhos (93,8%), não possuem atividade remunerada (75,6%) e não têm qualquer doença, nem estão expostos à condição de agravo à saúde que considerem impactante (89,6%). Contudo, 110 deles (57%) afirmaram ter história de doença grave e/ou crônica na família. Mais da metade declarou ser católica (59%), ter renda familiar entre cinco e quinze salários mínimos (56%), e possuir financiamento estudantil (53,9%).
Variáveis | Ingressantes (n = 55) | Ciclo intermediário (n = 100) | Concluintes (n = 38) | Total (n = 193) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
F | % | F | % | F | % | F | % | |
Faixa etária (anos) | ||||||||
< 18 | 3 | 5,5 | 0 | 0 | 0 | 0 | 3 | 1,6 |
18-24 | 38 | 69,1 | 62 | 62 | 10 | 26,3 | 110 | 57 |
25-29 | 7 | 12,7 | 26 | 26 | 22 | 57,9 | 55 | 28,5 |
30-35 | 4 | 7,3 | 10 | 10 | 2 | 5,3 | 16 | 8,3 |
36-40 | 2 | 3,6 | 1 | 1 | 4 | 10,5 | 7 | 3,6 |
> 40 | 1 | 1,8 | 1 | 1 | 0 | 0 | 2 | 1 |
Sexo | ||||||||
Masculino | 16 | 29,1 | 37 | 37 | 6 | 15,8 | 59 | 30,6 |
Feminino | 39 | 70,9 | 63 | 63 | 32 | 84,2 | 134 | 69,4 |
Estado civil | ||||||||
Casado | 6 | 10,9 | 7 | 7 | 4 | 10,5 | 17 | 8,8 |
Separado | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 0,5 |
Solteiro | 47 | 85,5 | 91 | 91 | 33 | 86,9 | 171 | 88,6 |
União estável | 2 | 3,6 | 0 | 0 | 1 | 2,6 | 3 | 1,6 |
Viúvo | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Outros | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 0,5 |
Tem filho(s) | ||||||||
Não | 52 | 94,5 | 93 | 93 | 36 | 94,7 | 181 | 93,8 |
Sim | 3 | 5,5 | 7 | 7 | 2 | 5,3 | 12 | 6,2 |
Religião | ||||||||
Católico | 30 | 54,6 | 63 | 63 | 21 | 55,2 | 114 | 59 |
Espírita | 5 | 9,1 | 6 | 6 | 3 | 7,9 | 14 | 7,3 |
Evangélico | 7 | 12,7 | 10 | 10 | 4 | 10,5 | 21 | 10,9 |
Nenhuma | 11 | 20 | 20 | 20 | 8 | 21,1 | 39 | 20,2 |
Testemunha de Jeová | 1 | 1,8 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0,5 |
Outros | 1 | 1,8 | 1 | 1 | 2 | 5,3 | 4 | 2,1 |
Renda familiar (salários mínimos) | ||||||||
Até 4 | 11 | 20 | 12 | 12 | 4 | 10,5 | 27 | 14 |
5-10 | 15 | 27,2 | 40 | 40 | 13 | 34,2 | 68 | 35,3 |
11-15 | 14 | 25,5 | 18 | 18 | 8 | 21,1 | 40 | 20,7 |
16-20 | 6 | 10,9 | 13 | 13 | 4 | 10,5 | 23 | 11,9 |
> 20 | 9 | 16,4 | 17 | 17 | 9 | 23,7 | 35 | 18,1 |
Tipo de moradia | ||||||||
Reside em república | 1 | 1,8 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0,5 |
Reside na casa dos pais | 23 | 41,8 | 33 | 33 | 12 | 31,6 | 68 | 35,3 |
Residência alugada | 6 | 10,9 | 18 | 18 | 7 | 18,4 | 31 | 16,1 |
Residência financiada | 3 | 5,5 | 3 | 3 | 1 | 2,6 | 7 | 3,6 |
Residência própria | 21 | 38,2 | 46 | 46 | 18 | 47,4 | 85 | 44 |
Outros | 1 | 1,8 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0,5 |
Possui financiamento estudantil | ||||||||
Não | 41 | 74,5 | 41 | 41 | 7 | 18,4 | 89 | 46,1 |
Sim | 14 | 25,5 | 59 | 59 | 31 | 81,6 | 104 | 53,9 |
História de doença grave/crônica na família | ||||||||
Não | 32 | 58,2 | 40 | 40 | 11 | 28,9 | 83 | 43 |
Sim | 23 | 41,8 | 60 | 60 | 27 | 71,1 | 110 | 57 |
Tem alguma doença ou está exposto a alguma condição de agravo à saúde que considere impactante | ||||||||
Não | 51 | 92,7 | 89 | 89 | 33 | 86,8 | 173 | 89,6 |
Sim | 4 | 7,3 | 11 | 11 | 5 | 13,2 | 20 | 10,4 |
Nível de escolaridade do pai | ||||||||
Nível superior | 24 | 43,7 | 47 | 47 | 15 | 39,4 | 86 | 44,5 |
Pós-graduação | 13 | 23,6 | 20 | 20 | 6 | 15,8 | 39 | 20,2 |
Ensino fundamental | 5 | 9,1 | 8 | 8 | 2 | 5,3 | 15 | 7,8 |
Educação infantil | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 0,5 |
Ensino médio | 13 | 23,6 | 23 | 23 | 13 | 34,2 | 49 | 25,4 |
Não estudou | 0 | 0 | 1 | 1 | 2 | 5,3 | 3 | 1,6 |
Outros | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Nível de escolaridade da mãe | ||||||||
Nível superior | 23 | 41,8 | 40 | 40 | 18 | 47,4 | 81 | 42 |
Pós-graduação | 26 | 47,3 | 40 | 40 | 14 | 36,8 | 80 | 41,4 |
Ensino fundamental | 1 | 1,8 | 4 | 4 | 0 | 0 | 5 | 2,6 |
Educação infantil | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Ensino médio | 5 | 9,1 | 16 | 16 | 5 | 13,2 | 26 | 13,5 |
Não estudou | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 2,6 | 1 | 0,5 |
Outros | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Você tem alguma atividade remunerada | ||||||||
Não | 44 | 80 | 87 | 87 | 15 | 39,5 | 146 | 75,6 |
Sim | 11 | 20 | 13 | 13 | 23 | 60,5 | 47 | 24,4 |
Motivo de escolha do curso | ||||||||
Contribuição social | 19 | 34,5 | 29 | 29 | 8 | 21,1 | 56 | 29 |
Vocação | 31 | 56,4 | 59 | 59 | 22 | 57,8 | 112 | 58 |
Mercado de trabalho | 3 | 5,5 | 6 | 6 | 5 | 13,2 | 14 | 7,3 |
Influência de terceiros | 1 | 1,8 | 3 | 3 | 1 | 2,6 | 5 | 2,6 |
Vantagem financeira | 0 | 0 | 1 | 1 | 0 | 0 | 1 | 0,5 |
Outros | 1 | 1,8 | 2 | 2 | 2 | 5,3 | 5 | 2,6 |
Em que área da medicina deseja atuar | ||||||||
Área cirúrgica | 22 | 40 | 21 | 21 | 6 | 15,8 | 49 | 25,4 |
Área clínica | 15 | 27,3 | 46 | 46 | 26 | 68,4 | 87 | 45,1 |
Não sei | 18 | 32,7 | 33 | 33 | 6 | 15,8 | 57 | 29,5 |
F: frequência; %: porcentagem.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Cerca de um terço (35,3%) reside na casa dos pais. Quanto ao nível de escolaridade dos pais, em ambos os casos, quase metade, 44,5% dos pais e 42% das mães, tem nível superior, e, desses, 41,4% das mães fizeram pós-graduação em contraponto a 20,2% dos pais. Com relação ao motivo de escolha do curso, 58% afirmaram se sentirem vocacionados para tal. Quase metade (45,1%) pensa em atuar na área clínica, e a outra metade está dividida entre não saber (29,5%) ou seguir na área cirúrgica (25,4%).
A correlação dos resultados da JSPE-vs obtidos na amostra com o período da graduação e com os dados sociodemográficos que se mostraram significativos para a expressão dos níveis de empatia dos estudantes, a saber, faixa etária, sexo, renda familiar e motivo de escolha do curso, está disposta na Tabela 3. Ressalta-se que a opção de resposta “outros” para a variável “motivo de escolha do curso” foi detalhada conforme as respostas dos participantes.
95% de intervalo de confiança | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Variáveis | Frequência | Porcentagem (%) | Pontuação média da JSPE-vs | Limite inferior | Limite superior | Desvio padrão |
Período da graduação | ||||||
Ingressantes | 55 | 28,5 | 124,78 | 122,12 | 127,44 | 9,85 |
Intermediários | 100 | 51,8 | 124,00 | 121,64 | 126,36 | 11,87 |
Concluintes | 38 | 19,7 | 120,63 | 116,17 | 125,09 | 13,57 |
Faixa etária (anos) | ||||||
< 18 | 3 | 1,6 | 126,33 | 113,59 | 139,08 | 5,13 |
18-24 | 110 | 57,0 | 123,25 | 121,13 | 125,36 | 11,21 |
25-29 | 55 | 28,5 | 124,18 | 120,85 | 127,51 | 12,33 |
30-35 | 16 | 8,3 | 125,00 | 118,46 | 131,54 | 12,27 |
36-40 | 7 | 3,6 | 117,43 | 101,98 | 132,88 | 16,70 |
> 40 | 2 | 1,0 | 129,50 | 34,20 | 224,80 | 10,61 |
Sexo* | ||||||
Feminino | 134 | 69,4 | 124,69 | 122,78 | 126,60 | 11,18 |
Masculino | 59 | 30,6 | 121,00 | 117,71 | 124,29 | 12,61 |
Renda familiar (salários mínimos) | ||||||
Até 4 | 27 | 14,0 | 125,15 | 120,42 | 129,88 | 11,95 |
5-10 | 68 | 35,2 | 123,84 | 120,66 | 127,02 | 13,14 |
11-15 | 40 | 20,7 | 122,30 | 118,58 | 126,02 | 11,62 |
16-20 | 23 | 11,9 | 122,70 | 118,78 | 126,61 | 9,06 |
> 20 | 35 | 18,1 | 123,80 | 120,11 | 127,49 | 10,73 |
Motivo de escolha do curso** | ||||||
Vocação | 112 | 58,0 | 125,88 | 123,93 | 127,83 | 10,41 |
Contribuição social | 56 | 29,0 | 122,45 | 119,77 | 125,12 | 9,99 |
Mercado de trabalho | 14 | 7,3 | 117,07 | 108,71 | 125,44 | 14,49 |
Influência de terceiros | 5 | 2,6 | 116,40 | 93,68 | 139,11 | 18,29 |
Desejo | 1 | 0,5 | ... | ... | ... | ... |
Vocação, contribuição social e mercado de trabalho | 1 | 0,5 | ... | ... | ... | ... |
Eu gosto | 1 | 0,5 | ... | ... | ... | ... |
Vantagem financeira | 1 | 0,5 | ... | ... | ... | ... |
Contribuição social e mercado de trabalho | 1 | 0,5 | ... | ... | ... | ... |
Total | 193 | 100 | 140 |
JSPE-vs: Escala Jefferson de Empatia Médica - versão para estudantes.
Nota 1: Sinais convencionais ... a variável é constante, com apenas uma resposta.
Nota 2: *Teste U de Mann-Whitney significativo; **teste de Kruskal-Wallis significativo.
*Valores significativos p < 0,05; **valores muito significativos p < 0,001.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Com o objetivo de relacionar a pontuação média da JSPE-vs obtida por período da graduação com os dados que se destacaram no questionário sociodemográfico, foi aplicado o teste de normalidade (Shapiro-Wilk), o qual revelou distribuição não normal para a amostra (p < 0,05). Em sendo assim, aplicaram-se os testes de Mann-Whitney e de Kruskal-Wallis para a variável sexo e para comparar os pares de respostas entre os grupos, respectivamente.
Não foi observada uma diferença significativa na pontuação média da JSPE-vs com relação ao período da graduação. E no tocante aos dados do questionário sociodemográfico, observou-se uma diferença significativa para as variáveis sexo e motivo de escolha do curso. Para o motivo de escolha do curso, a diferença entre os pares foi corrigida por meio do teste de post hoc de Bonferroni. Na Tabela 4, estão apresentados os valores de p encontrados na análise da diferença entre os pares da variável “motivo de escolha do curso”.
Motivos da escolha do curso | Valor de p |
---|---|
Contribuição social versus vocação | 0,328 |
Contribuição social versus mercado de trabalho | 0,597 |
Vocação versus mercado de trabalho | 0,028* |
Influência de terceiros versus vocação | 0,346 |
Influência de terceiros versus contribuição social | 0,999 |
Influência de terceiros versus mercado de trabalho | 0,999 |
Teste de post hoc Bonferroni; *p < 0,05.
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
À medida que o modelo biomédico, com foco na doença e no seu processo diagnóstico, totalmente destituído de um potencial interativo e do alcance da experiência individual de “estar-paciente”, foi se mostrando insuficiente para as necessidades emocionais e subjetivas das pessoas, cresceu a busca por um modelo em que o paciente fosse o protagonista e participasse ativamente da condução do seu estado de saúde e da definição do seu plano terapêutico2.
Desse modo, a formação de excelência desse futuro médico passou a exigir também a aquisição de altos padrões morais e éticos, a estruturação sólida de uma atitude empática e a integração dos saberes técnico-científicos com a medicina-arte. O que era “não se envolver” e “não sentir nada” passou a dar espaço à aproximação, à adoção da perspectiva do outro e a ser capaz de entender e acolher a dimensão do ser humano acometido pela doença, e, aos poucos, foi ganhando legitimidade na prática, humanizando o cuidado e criando a base para uma relação médico-paciente singular, com respeito à autonomia, aos direitos individuais e à dignidade humana18),(19.
No presente estudo, o escore global de empatia e o dos três fatores analisados na JSPE-vs não sofreram variação significativa entre os ingressantes, intermediários e concluintes do curso de Medicina investigado, e, de maneira geral, os participantes do estudo mostraram níveis de empatia próximos daqueles referenciados para os escores global e por fator, não se replicando, portanto, a tendência de queda dos níveis de empatia e o endurecimento dos estudantes no decorrer da graduação, como demonstrado em alguns estudos5),(9),(10.
A inserção na matriz curricular, do curso de Medicina em questão, da disciplina de Psicologia Médica, no módulo de Saúde Mental, ministrado no quarto período do curso, exatamente quando se dá a transição do ciclo básico para o ciclo clínico, tendo como foco o autoconhecimento, a gestão das emoções e o treinamento das habilidades humanísticas, utilizando metodologias de ensino que propiciam uma aprendizagem significativa, e programas de extensão, cenários extramuros e o incentivo à formação de ligas acadêmicas, como a Liga Acadêmica de Slow Medicine de Alagoas (LASMAL), que, ao longo da graduação, fazem desse um aprendizado vivo, são alguns dos pressupostos para manutenção dos níveis de empatia observada nos participantes desse estudo.
O fato de a variável sociodemográfica “sexo feminino” ter sido predominante em nossa amostra também pode ter provocado um impactado positivo nos resultados deste estudo, tendo em conta que, no já consagrado contexto cultural e social, nos papéis apontados para homens e mulheres em nossa civilização, desde os primórdios, cabe às mulheres o papel “natural” de cuidar da prole e da família, o que favorece o desenvolvimento nelas de uma maior capacidade e habilidade empática para lidar com o outro e, por conseguinte, com seus pacientes. E talvez, também por isso, tenhamos um processo de feminilização da profissão demonstrado em estudos de demografia médica9),(20),(21.
Os resultados de uma pesquisa conduzida pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, publicado na revista acadêmica Proceedings of the National Academy of Sciences, em novembro de 2018, que contou com mais de meio milhão de pessoas, sendo apontada como a maior pesquisa já realizada acerca dessa temática, ou seja, sobre as mulheres serem mais empáticas e os homens mais racionais, corroboraram essa suposição. Segundo os autores, a “teoria da diferenciação sexual baseada em empatia” pode se dar em razão de condições genéticas, da influência da exposição hormonal a que as mulheres estão sujeitas e também da experiência ambiental22.
Afora o sexo, outra variável sociodemográfica que se mostrou significativa para a expressão dos níveis de empatia no nosso estudo foi “motivo de escolha do curso”. Mais da metade dos participantes afirmaram ter escolhido cursar Medicina por se sentirem vocacionados para tal, e, neles, os níveis de empatia se mostraram significativamente maiores quando comparados aos daqueles que optaram por fazer o curso visando o mercado de trabalho.
É sabido que a escolha pelo curso médico se dá por inúmeros fatores, muitos deles já pesquisados por diversas escolas médicas em vários países, e outros que ainda vêm sendo debatidos e examinados, com o intuito de se conhecer o motivo pessoal que levou à preferência por esta ou aquela opção profissional. É importante salientar que esses fatores, conscientes e inconscientes, ligados também às características particulares e à personalidade de cada indivíduo, ao seu contexto pessoal e familiar, e ao desejo de ascensão financeira e conquista de status social, estão em permanente conjunção influenciando essa tomada de decisão23.
O conceito de “vocação”, embora controverso, é dito como uma propensão inata do indivíduo para realizar algo, o que o torna mais habilidoso para praticar determinado ofício. A concepção da existência de uma “vocação médica”, quer precoce ou tardiamente, é o que gera, em muitos estudantes, uma identificação profissional, o reconhecimento com o “ser médico”. A crença nessa habilidade natural e aspiração em ser útil à sociedade ajudam a encarar a profissão sem o manto da idealização, a driblar a dissonância entre expectativa e realidade, a superar os desafios do cotidiano, a ser resiliente de mente e coração, a conservar a empatia e o interesse genuíno pelo paciente e por aliviar o seu sofrimento23),(24.
Ademais, em geral, para estes estudantes, a realização econômica é considerada uma consequência natural do bom exercício profissional e não o principal objetivo a ser alcançado23),(24.
CONCLUSÃO
Embora muitos estudos mostrem a diminuição do nível de empatia nos estudantes de Medicina no decorrer da graduação, em especial quando se dá a transição do ciclo básico para o ciclo clínico, outros referem melhora da empatia, e isso, supõe-se, deve-se a um currículo que privilegia também a formação humanística desses futuros profissionais5),(9)-(12.
Não se verificou em nosso estudo uma diferença significativa dos escores de empatia, global e por fator, entre os ingressantes, intermediários e concluintes do curso de Medicina investigado, no entanto, apesar de não observarmos um “endurecimento” desses estudantes no percurso da sua formação, segue premente a necessidade de continuamente tratarmos dessa temática, considerando a importância do construto empático no desenvolvimento da identidade profissional.
E uma vez que a empatia é moldada por diversas variáveis, as características próprias do indivíduo e as externas a ele, que podem interferir positiva e negativamente na expressão da sua atitude empática perante o paciente, também precisam ser observadas.
O achado cada vez mais frequente de estudantes de Medicina continuamente empáticos no decorrer das mais diversas etapas do curso pode ser um indício de que as instituições estejam seguindo na direção correta, e, do contrário, pode sugerir a necessidade de se investir no humanismo e no profissionalismo médico, no aprimoramento do currículo, na capacitação de professores e no uso de novas abordagens para se trabalhar essa habilidade.
Mais estudos devem ser realizados para melhor pesquisar os aspectos que podem influenciar positivamente os níveis de empatia dos futuros profissionais médicos durante a graduação, tendo em vista a importância de uma postura técnico-científico-humanística equilibrada para a prática de uma medicina de excelência.
Esperamos que este trabalho possa corroborar a proposição de estudos adicionais, bem como servir para despertar o interesse em trabalhar estratégias de ensino-aprendizagem que venham favorecer a transmissão, o desenvolvimento e a consolidação do construto empático nos estudantes de Medicina e, sobretudo, evitar a sua perda.