INTRODUÇÃO
Assédio sexual se refere a relações de poder hierárquicas ou de gênero que violam a autonomia sobre o próprio corpo da vítima por meio de constrangimento, intimidação ou chantagem, mediante palavras, gestos ou atos, a fim de obter vantagem ou favorecimento sexual1, podendo ser associado, ou não, ao assédio moral2.
A partir da construção de relações de uma sociedade baseada no patriarcado e em tabus religiosos, o assédio sexual é percebido como um ato institucionalizado e, por estar enraizado culturalmente, configura-se como uma violência silenciosa2 que leva a traumas e consequências importantes para a vítima, como sintomas depressivos, síndrome de burnout, transtornos psíquicos menores e uma série de outros impactos psicológicos, físicos, laborais, institucionais e/ou sociais3, ou seja, problemas de saúde mental que, independentemente de serem provocados ou não por assédio, já são comumente encontrados em estudantes de Medicina4)-(7.
De acordo com um estudo realizado em um hospital do Recife, em 2011, a prevalência do assédio moral nas residências médicas e não médicas foi de 41,9%. Conforme mostrou esse estudo, os profissionais com atuação em atividades clínicas estão mais propensos ao acometimento da violência8. Esse resultado não foi diferente do obtido por um estudo realizado em 2013, em uma escola médica da cidade de São Paulo, que abordou diversos tipos de maus-tratos, como o assédio sexual9. Em 2016, uma revisão sistemática realizada na Cidade do México revelou que casos de assédios não são raros, pois fazem parte de um sistema que afeta diretamente a vítima com intensidades e dimensões variáveis10. Outro aspecto importante refere-se ao fato de a alta prevalência de assédio e discriminação durante o treinamento médico não diminuir ao longo do tempo, apesar das políticas preventivas existentes sobre esse tipo de violência nos locais de trabalho, em escolas médicas e em programas de residências11.
Uma pesquisa realizada na Nigéria também demonstrou que o assédio é uma experiência comum entre os estudantes de Medicina. De acordo com essa pesquisa, trata-se uma questão de violência “transgeracional”, uma vez que sua prática abrange diferentes núcleos e pessoas, em que os médicos preceptores e os residentes se destacam como os perpetradores do assédio12. Outra questão evidenciada em um estudo canadense é a “normatização” da violência dentro do curso, isto é, como muitas vítimas não se reconhecem no contexto de violência e agem como se fosse natural esse tipo de comportamento, tal banalização permite a perpetuação do assédio por torná-lo impune13.
Apesar de os maus-tratos na escola médica serem um problema identificado desde o final dos anos 1980 e o início da década de 199014, é um tema considerado atual e relevante. Em um trabalho de revisão de 2021 que objetivou analisar a metodologia utilizada para descrever as consequências de maus-tratos na vida de estudantes de Medicina, dos 20 artigos analisados, apenas um possuía como foco principal o assédio sexual15. Ademais, não foi encontrado nenhum instrumento metodologicamente validado para identificação desse evento na área médica. Portanto, existe a real necessidade de se elaborar e validar um instrumento para aprofundar a produção de conhecimento científico sobre esse tipo de agravo.
MÉTODO
Realizou-se um estudo metodológico de elaboração e validação de instrumento para a identificação da ocorrência de assédio sexual de estudantes de Medicina com desenho de corte transversal no período de setembro de 2020 a outubro de 2021.
O estudo foi desenvolvido no curso de Medicina da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), uma instituição privada, sem fins comerciais, de natureza comunitária. Além dos estudantes que ingressam pelo vestibular da instituição, a FPS recebe também aqueles oriundos do Programa Universidade para Todos (Prouni), o que corresponde a 10% das vagas oferecidas. O curso de Medicina ocorre de forma presencial com carga horária de 8.710 horas e seis anos de integralização mínima. As atividades teóricas e de laboratórios de habilidades acontecem no campus da FPS, e as atividades em cenários de prática são desenvolvidas na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e no hospital de ensino Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip).
A elaboração do instrumento foi baseada na pesquisa sobre a construção de instrumentos de medida na área de saúde de 201516. Seguiu-se o processo de validação de instrumento sugerido com suas etapas de validação de conteúdo e, posteriormente, validação FACE das propriedades psicométricas.
Participaram da fase da validação:
Um painel de especialistas selecionados por conveniência para a etapa de validações semântica e de conteúdo: um médico PhD, coordenador do curso de Medicina; uma psicóloga PhD, especialista em violência contra a mulher e assédio; uma psicóloga PhD, especialista em escalas psicométricas; uma psicóloga PhD, especialista em estudos qualitativos; uma médica PhD, coordenadora do comitê de desenvolvimento docente - todos com experiência em pesquisas qualitativas e validação de instrumentos de aferição -; e um advogado PhD em Teoria da Literatura.
Dois estudantes de cada ano do curso de Medicina selecionados por conveniência, compondo um total de 12, para a etapa de validação FACE.
Os 1.146 estudantes de Medicina da instituição para a verificação estatística da confiabilidade no teste.
Os 350 respondentes do teste para verificação estatística da estabilidade no reteste.
Inicialmente, na realização do teste, o questionário foi enviado via e-mail uma vez por semana, por quatro semanas, para todos os 1.146 estudantes de Medicina da instituição, dos quais obtivemos 350 respostas. Após 15 dias, iniciou-se o reteste com os 350 respondentes do teste, seguindo-se a mesma cronologia de envio, uma vez por semana, por quatro semanas, via e-mail. Nesse segundo envio, obtivemos apenas 69 respostas (Figura 1). A informação dos e-mails dos estudantes foi fornecida pela secretaria acadêmica da FPS, e, para incentivar a adesão, houve a contribuição dos docentes da instituição.
A versão final do instrumento está estruturada em duas partes: a primeira com informações sobre características sociodemográficas e acadêmicas dos participantes, e a segunda com informações sobre as circunstâncias em que o assédio sexual ocorre. Essa versão possui 21 assertivas divididas em três dimensões que tratam das formas de assédio, dos fatores que facilitam a ocorrência do assédio e do perfil do assediador. As assertivas possuem repostas do tipo Likert em cinco níveis de opção: (1) discordo totalmente, (2) discordo parcialmente, (3) não concordo e nem discordo, (4) concordo parcialmente e (5) concordo totalmente (Quadro 1).
Dimensão | Assertiva | CTa | CPb | Ic | DPd | DTe |
---|---|---|---|---|---|---|
1. Formas de assédio sexual | 1. Já me foi exigida uma conduta sexual em troca de benefícios na minha formação acadêmica. | |||||
2. Já me senti incomodado(a/e) mediante insinuações verbais de cunho sexual no ambiente acadêmico. | ||||||
3. Nunca me senti incomodado(a/e) mediante contato físico inapropriado no ambiente acadêmico. | ||||||
4. Já me senti incomodado(a/e) mediante gestos inapropriados de cunho sexual no ambiente acadêmico. | ||||||
5. Já me senti incomodado(a/e) mediante elogios às minhas roupas no ambiente acadêmico. | ||||||
6. Já me senti incomodado(a/e) mediante elogios à minha beleza física no ambiente acadêmico. | ||||||
7. Nunca me senti incomodado(a/e) diante de um olhar inapropriado no ambiente acadêmico. | ||||||
8. Já me senti incomodado(a/e) por receber mensagens inapropriadas de cunho sexual enviadas por pessoas do ambiente acadêmico em redes sociais ou aplicativos. | ||||||
9. Já me senti incomodado(a/e) por receber algum presente sem justificativa no ambiente acadêmico. | ||||||
2. Fatores facilitadores de assédio sexual | 10. As roupas da pessoa não a tornam predisposta a sofrer assédio sexual no ambiente acadêmico. | |||||
11. O comportamento da pessoa não a torna predisposta a sofrer assédio sexual no ambiente acadêmico. | ||||||
12. Os ambientes acadêmicos desta instituição facilitam a ocorrência de assédio sexual. | ||||||
13. Os ambientes do hospital de ensino facilitam a ocorrência de assédio sexual. | ||||||
14. Os ambientes de prática fora do hospital de ensino facilitam a ocorrência de assédio sexual. | ||||||
15. Os plantões e as atividades noturnas facilitam a ocorrência de assédio sexual. | ||||||
3. Identificação do assediador sexual | 16. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de profissionais médicos durante o curso médico no ambiente acadêmico. | |||||
17. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de profissionais médicos durante o curso médico no hospital de ensino. | ||||||
18. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de profissionais não médicos durante o curso médico. | ||||||
19. Nunca sofri nenhum tipo assédio sexual por parte de outros(as/es) estudantes durante o curso médico. | ||||||
20. Nunca sofri nenhum tipo de assédio sexual por parte de pacientes durante o curso médico. | ||||||
21. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de funcionários(as/es) administrativos durante o curso médico. |
CTa: concordo totalmente; CPb: concordo parcialmente; Ic: indiferente; DPd: discordo parcialmente; DTe: discordo totalmente.
Fonte: Elaborado pelos autores.
Para a elaboração do banco de dados, utilizou-se o programa Excel versão 16, e, para a análise, adotou-se o programa estatístico Stata versão 13. O instrumento foi autoaplicado pelos participantes de modo on-line pelo software livre LimeSurvey e respondido apenas após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Todas as etapas da pesquisa anteriormente descritas foram realizadas de forma remota com o objetivo de manter o distanciamento social estabelecido por causa da pandemia da Covid-19 de 2020. Assim, observamos que essa forma de obtenção dos dados pode ter interferido na adesão e consequentemente na quantidade de respostas ao teste e reteste, reduzindo a população do nosso estudo.
RESULTADOS
Sobre os resultados do instrumento
Na primeira parte do instrumento, sobre as características sociodemográficas dos participantes, obtivemos 350 respostas que apresentaram uma média de 23,06 anos de idade com o máximo de 40 anos e o mínimo de 18 anos. Dessa população, 239 (68,0%) se declararam mulher cisgênero, e os outros 111 (32,0%) se declararam homem cisgênero. Apesar da possibilidade de outras representações de gênero terem sido apresentadas (mulher transgênero, homem transgênero e pessoa não binária), nenhum dos sujeitos da pesquisa se declarou de outra forma. Além disso, no quesito raça/cor, encontramos que 237 (67,80%) se declararam brancos; nove (2,50%), pretos; 103 (29,42%), pardos; e um (0,28%) mencionou ser amarelo, não havendo nenhum indígena entre os respondentes do teste. Por fim, 59 (17,0%) são acadêmicos de Medicina do primeiro ano do curso; 43 (12,0%), do segundo; 59 (17,0%), do terceiro ano; 88 (25,0%), do quarto; 68 (20,0%), do quinto; e 32 (9,0%), do sexto.
Na segunda parte do instrumento, sobre as circunstâncias em que o assédio ocorre, quando se trata da primeira dimensão sobre as formas de assédio sexual, obteve-se um escore médio da dimensão de 1,88, demonstrando que, em sua maioria, os alunos respondentes discordam total e parcialmente das assertivas apresentadas; portanto, a maioria do grupo estudado não sofreu assédio verbal, gestual ou por escrito. Em relação a contato físico e olhar inapropriado, a população estudada teve uma posição de neutralidade. Na segunda dimensão, sobre os fatores que facilitam a ocorrência do assédio sexual, obtivemos um escore médio da dimensão de 2,35, demonstrando que a maioria dos estudantes respondentes discorda parcialmente acerca das assertivas 12 e 13; no entanto, nas assertivas acerca da vestimenta, do comportamento e das atividades noturnas, o grupo respondente concorda parcialmente que são fatores facilitadores para a ocorrência do assédio sexual. Por fim, em relação à terceira dimensão sobre as características do assediador, obtivemos um escore médio da dimensão de 1,59, demonstrando que a maioria dos alunos respondentes discorda parcialmente das assertivas 16, 17, 18 e 21; no entanto, quando se tratou do assédio por outros estudantes e por pacientes, o grupo estudado concordou parcialmente, identificando esses dois grupos como assediadores. Apresentamos ainda uma análise detalhada dos escores médios por assertiva (Tabela 1).
Assertiva | Escore médio por assertiva |
---|---|
1. Já me foi exigida uma conduta sexual em troca de benefícios na minha formação acadêmica. | 1,12 |
2. Já me senti incomodado(a/e) mediante insinuações verbais de cunho sexual no ambiente acadêmico. | 2,10 |
3. Nunca me senti incomodado(a/e) mediante contato físico inapropriado no ambiente acadêmicoa. | 2,50 |
4. Já me senti incomodado(a/e) mediante gestos inapropriados de cunho sexual no ambiente acadêmico. | 1,97 |
5. Já me senti incomodado(a/e) mediante elogios às minhas roupas no ambiente acadêmico. | 1,68 |
6. Já me senti incomodado(a/e) mediante elogios à minha beleza física no ambiente acadêmico. | 1,78 |
7. Nunca me senti incomodado(a/e) diante de um olhar inapropriado no ambiente acadêmicoa. | 2,83 |
8. Já me senti incomodado(a/e) por receber mensagens inapropriadas de cunho sexual enviadas por pessoas do ambiente acadêmico em redes sociais ou aplicativos. | 1,63 |
9. Já me senti incomodado(a/e) por receber algum presente sem justificativa no ambiente acadêmico. | 1,26 |
10. As roupas da pessoa não a torna predisposta a sofrer assédio sexual no ambiente acadêmicoa. | 1,83 |
11. O comportamento da pessoa não a torna predisposta a sofrer assédio sexual no ambiente acadêmicoa. | 1,83 |
12. Os ambientes acadêmicos desta instituição facilitam a ocorrência de assédio sexual. | 1,72 |
13. Os ambientes do hospital de ensino facilitam a ocorrência de assédio sexual. | 2,47 |
14. Os ambientes de prática fora do hospital de ensino facilitam a ocorrência de assédio sexual. | 2,67 |
15. Os plantões e as atividades noturnas facilitam a ocorrência de assédio sexual. | 3,08 |
16. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de profissionais médicos durante o curso médico no ambiente acadêmico. | 1,23 |
17. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de profissionais médicos durante o curso médico no hospital de ensino. | 1,29 |
18. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de profissionais não médicos durante o curso médico. | 1,37 |
19. Nunca sofri nenhum tipo assédio sexual por parte de outros(as/es) estudantes durante o curso médicoa. | 2,17 |
20. Nunca sofri nenhum tipo de assédio sexual por parte de pacientes durante o curso médicoa. | 2,20 |
21. Já sofri algum tipo de assédio sexual por parte de funcionários(as/es) administrativos durante o curso médico. | 1,28 |
a Indica as assertivas reversas do instrumento.
Fonte: Elaborada por autores.
Sobre a validação do instrumento
Para estudos psicométricos de validação de instrumentos, a literatura orienta utilizar de cinco a dez participantes por item do instrumento a ser validado17. No nosso instrumento, o qual contém 21 itens divididos em três dimensões, o número esperado seria de 105 a 210 estudantes. Durante a sua aplicação e análise, utilizamos 350 respondentes, atingindo a cota necessária.
A confiabilidade e a validade para esse tipo de estudo ocorrem pela: 1. validação de conteúdo pelos especialistas e 2. análise estatística dos resultados do teste e reteste pelo alfa de Cronbach e Kappa ponderado17.
Na validação do instrumento apresentado, evidenciamos a sua confiabilidade pelo teste estatístico alfa de Cronbach, obtendo 0,8163 e 0,7826 para o teste e reteste, respectivamente. Entende-se que a confiabilidade se observa quando os resultados do teste de alfa de Cronbach se situam entre 0,70 e 0,90.
Para a constatação da estabilidade, utilizou-se o teste de Stuart-Maxwell que apresentou um valor de p = 0,126. Adotou-se ainda o teste de Kappa ponderado, em que o resultado de todas as 21 assertivas está contido no intervalo de confiança (Tabela 2).
Itema | Teste | Reteste | Kappac (IC95%) |
---|---|---|---|
Média ± DPb | Média ± DPb | ||
q1 | 1,22 ± 0,72 | 1,09 ± 0,51 | -0,05 (-0,26 a 0,17) |
q2 | 2,25 ± 1,49 | 2,68 ± 1,67 | 0,12 (-0,10 a 0,35) |
q3 | 2,46 ± 1,70 | 2,46 ± 1,70 | 1,00 (0,76 a 1,24) |
q4 | 2,04 ± 1.45 | 2,20 ± 1,51 | -0,06 (-0,30 a 0,17) |
q5 | 1,80 ± 1,38 | 1,72 ± 1,27 | -0,11 (-0,34 a 0,13) |
q6 | 1,90 ± 1,39 | 1,83 ± 1,25 | -0,10 (-0,34 a 0,13) |
q7 | 3,12 ± 1,77 | 3,12 ± 1,77 | 1,00 (0,76 a 1,24) |
q8 | 1,65 ± 1.27 | 1,67 ± 1,22 | 0,12 (-0,11 a 0,36) |
q9 | 1,23 ± 0,73 | 1,28 ± 0,75 | -0,06 (-0,30 a 0,17) |
q10 | 1,90 ± 1,37 | 1,90 ± 1,37 | 1,00 (0,76 a 1,24) |
q11 | 1,96 ± 1,30 | 1,96 ± 1,30 | 1,00 (0,76 a 1,24) |
q12 | 1,81 ± 0,84 | 1,99 ± 1,12 | -0,02 (-0,24 a 0,21) |
q13 | 2,54 ± 1,23 | 2,78 ± 1,39 | -0,03 (-0,26 a 0,20) |
q14 | 2,87 ± 1,16 | 2,64 ± 1,34 | -0,12 (-0,35 a 0,11) |
q15 | 3,12 ± 1,25 | 3,17 ± 1,32 | -0,09 (-0,33 a 0,14) |
q16 | 1,20 ± 0,63 | 1,57 ± 1,08 | 0,09 (-0,10 a 0,28) |
q17 | 1,36 ± 0,95 | 1,57 ± 1,06 | 0,04 (-0,19 a 0,27) |
q18 | 1,25 ± 0,72 | 1,61 ± 1,19 | -0,03 (-0,23 a 0,16) |
q19 | 2.29 ± 1,65 | 2,29 ± 1,65 | 1,00 (0,76 a 1,24) |
q20 | 2,10 ± 1,53 | 2,10 ± 1,53 | 1,00 (0,76 a 1,24) |
q21 | 1,16 ± 0,66 | 1,32 ± 0,92 | -0,08 (-0,30 a 0,14) |
a Desvio de 1 a 5; b DP = desvio padrão; c Kappa ponderado (ponderação quadrática)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Portanto, como demonstrado, o presente instrumento foi devidamente validado por meio da homogeneidade da distribuição dos escores médios entre o teste e o reteste.
DISCUSSÃO
Uma pesquisa publicada em 2021, em Münster, na Alemanha, demonstrou, como no nosso estudo, uma população semelhante de estudantes de Medicina composta apenas por homens e mulheres cisgênero18. Esse achado nos limita a um grupo específico de pessoas cisgênero; afinal, não houve participantes de outras identidades de gênero. Além disso, também se verificou nesse estudo alemão uma baixa adesão à pesquisa, com 623 (28,8%) participações numa população total de 2.162 discentes18; no nosso estudo, também obtivemos uma baixa adesão de 350 (30,54%) da população total de 1.146 alunos.
A nossa população estudada foi majoritariamente composta por mulheres cisgênero (68,28%), jovens com média de 23 anos de idade e brancas (67,71%). Esse recorte populacional é restrito, pouco diverso e não nos permitiu aferir a prevalência de assédio sexual de outros agrupamentos sociais mais plurais dos estudantes de Medicina.
O perfil sociodemográfico dos estudantes na investigação estudo atual pode ter influenciado nas respostas dadas, uma vez que a maioria pertencia a uma classe com bom padrão social e econômico, e o contexto de exposição deles à questão do assédio pode apresentar características inerentes a esse grupo em particular. No entanto, conhecer a realidade desse grupo perante uma questão tão importante se torna crucial para a elaboração de estratégias que possam contribuir para a redução do problema.
Nesse mesmo estudo alemão, os autores identificaram uma prevalência de 31,8% de assédio sexual por contato físico indesejado e 8,5% de assédio por olhar inapropriado. No nosso estudo, entretanto, o grupo respondente se mostrou neutro quando questionado sobre essas duas formas de assédio.
Um trabalho realizado em um universidade de São Paulo em 2013, envolvendo estudantes de Medicina do primeiro ao sexto ano do curso, com o objetivo de estimar a prevalência de agressões, abusos e maus-tratos nesse grupo, encontrou que a média de idade foi de 22,24 anos (±2,89), 49,0% eram homens e aproximadamente 45,0% eram do ciclo básico. A quase totalidade deles referiu ter sofrido pelo menos um tipo de agressão durante o curso (92,31%). Os tipos de agressão mais comuns foram depreciação/humilhação (73,1%) e agressão verbal (59,99%), tendo sido alta a prevalência de abuso ou discriminação sexual (43,32%), e a violência física foi referida por 13,0% dos estudantes. REF - Barreto, 2015 (Maria T Peres) - ver citação correta.
No Canadá, uma pesquisa realizada em 2019 observou que os principais assediadores são os pacientes (40,4%), os outros estudantes de Medicina (39,65%) e, em menor proporção, os professores e preceptores (20%)13. No nosso estudo, os participantes mencionaram que sofreram assédio sexual por parte de outros estudantes e de pacientes. No entanto, quando questionados sobre assédio sexual praticado por profissionais médicos, tanto no contexto acadêmico como na prática hospitalar, por profissionais de saúde não médicos e por funcionários do setor administrativo da instituição, o grupo referiu discordar total ou parcialmente de já ter sofrido assédio sexual por esses grupos de profissionais.
Em contrapartida, vale ressaltar que, em diversos trabalhos, os médicos preceptores e/ou residentes foram identificados como os principais assediadores10),(12),(14),(19, o que vai de encontro aos resultados do nosso estudo.
Em relação à ocorrência de assédio sexual verbal, gestual e por escrito em redes sociais e aplicativos, os nossos dados relataram que os respondentes discordam total ou parcialmente das assertivas apresentadas; portanto, a maioria do grupo estudado não sofreu essas formas de assédio. Entretanto, na literatura pesquisada, encontramos que há a ocorrência dessas formas de assédio, mais especificamente 10,9% de assédio gestual e 4,7% de assédio por mensagens inadequadas em redes sociais13, e, sobre o assédio verbal, é relatada a ocorrência de 41,3% em ambos os gêneros18, e, em outra pesquisa, encontramos 10% na população masculina e 61,5% na feminina14.
Ainda no estudo realizado em Münster, na Alemanha, a maioria dos casos de assédio sexual ocorreu nos ambientes de prática clínica (58,6%), enquanto a menor parte aconteceu nos ambientes acadêmicos (24,5%)18, levando a entender que os hospitais e outros lugares da prática médica são fatores que facilitam a existência do assédio sexual, seja porque é uma violência normalizada na prática ou porque é estrutural do meio médico. No nosso trabalho, entretanto, os respondentes não concordam que os ambientes acadêmicos (como salas de aula, tutoria, biblioteca etc.) ou os ambientes de prática clínica (como hospital de ensino e locais fora do hospital) sejam fatores facilitadores da ocorrência do assédio.
O nosso grupo estudado concorda que a vestimenta, o comportamento da vítima e os plantões e as atividades noturnas são fatores facilitadores da ocorrência de assédio sexual. Em concordância com os nossos resultados, verificou-se na Alemanha que as roupas e o comportamento estão relacionados com a ocorrência de assédio sexual e o avanço na carreira profissional (11,9%)18 sobre as atividades noturnas, entretanto não encontramos dados para reafirmar o que o nosso estudo demonstrou. Esses dados evidenciam como o machismo está enraizado na nossa cultura patriarcal. Ainda estamos culpabilizando a vítima pelo assédio, numa tentativa equivocada de justificá-lo por meio das roupas e do comportamento da vítima.
Até o término deste estudo, como não conseguimos identificar na literatura pesquisada um instrumento validado com o mesmo objetivo do nosso, não podemos realizar comparações dos resultados da validação na discussão.
LIMITAÇÕES DO ESTUDO
Identificamos uma limitação na força do estudo causada pelo fato de a pesquisa ter ocorrido durante a pandemia da Covid-19, e, para manter o distanciamento social, foi necessário aplicar o instrumento de forma remota, o que pode ter interferido na adesão e consequentemente na quantidade de respostas ao teste e reteste, reduzindo a população do nosso estudo.
Deve-se ponderar ainda que, pelo fato de a amostragem no estudo atual ter sido por conveniência e não probabilística, aqueles que responderam à pesquisa podem ter um perfil específico capaz de configurar o viés de aferição, ou seja, nas respostas dadas ao instrumento utilizado.
CONCLUSÃO
Como o instrumento validado se mostrou confiável e estável, pode ser utilizado em escolas médicas para a identificação do assédio sexual em estudantes de Medicina. Esse instrumento deve auxiliar na identificação desse comportamento violento e inaceitável, contribuindo para a sua erradicação no meio acadêmico e em todos os ambientes da prática clínica na educação médica.