1 Introdução
Os espaços de ensino, por meio de seus participantes, têm reproduzido diversos pensamentos e comportamentos advindos de diferentes estratos sociais ( JUNQUEIRA, 2013; LOURO, 2000). Em se tratando de estereótipos de sexo e género, em ambientes escolares acaba por ocorrer a perpetuação de práticas estigmatizantes que alcançam parte do público estudantil, tendo como exemplo aqueles/as que expressam seu género fora do espetro das normatividades e que estão submetidos/as a episódios de homofobia, lesbofobia ou transfobia. Isto faz que as escolas enfrentem constantes desafios, como a evasão escolar e as consequências psicossomáticas das situações de bullying ( FORMBY, 2015).
Diante disso, importa ressaltar que múltiplas iniciativas vêm alcançando as escolas, promovendo reflexões sobre questões que atravessam o universo da diversidade sexual e de género, numa abordagem transversal e que tem alcance em toda a comunidade escolar. Nesse sentido, uma importante estratégia consiste em compreender as perceções de diferentes participantes escolares, numa tentativa de identificação de discursos e práticas que perpetuam situações hegemónicas de demarcação social, como, por exemplo, o binarismo e a heteronormatividade estruturais, além do conceito de ideologia de género (ALVES; ROSSI, 2017; MADUREIRA; BRANCO, 2015).
Parece, entretanto, não haver consenso entre os espaços educativos no que respeita a implementação dessas práticas reflexivas. Enquanto apenas parte das escolas portuguesas desenvolve projetos e práticas sobre educação sexual, outra parte aplica atividades consideradas incipientes ( ROCHA; DUARTE, 2014). É facto que são muitas as razões de uma não implementação de práticas sobre relações de género e sexualidade, que perpassam desde uma ineficiência sistemática ligada à formação docente até o advento de prováveis constrangimentos que alcançam as equipas escolares e que, consequentemente, refletem-se nos espaços educativos como um todo.
É crucial, portanto, compreender de que forma as relações de género e sexualidade estão a alcançar os ambientes escolares, o que vem sendo alvo de diversas investigações em escala global e cujo principal intuito é clarificar os processos de assimilação do tema, compreendendo-se as trajetórias com início nos diferentes espaços sociais e que reverberam nas escolas mediante a manifestação de pensamentos e práticas ( ARAÚJO et al., 2019 ; ARÍZA-DE-LA-ROSA, 2021; DE-OLIVEIRA-DUARTE et al., 2021 ). Para contribuir com esse entendimento, apresenta-se a seguinte questão: no âmbito de investigações sobre género e sexualidade nas escolas, que instrumentos de recolha de dados vêm sendo utilizados para analisar as perceções dos/das participantes escolares sobre o tema? Com esse intuito objetivou-se o desenvolvimento de uma revisão integrativa da literatura que destaque os instrumentos de recolha de dados usados em investigações sobre relações de género e sexualidade no ambiente escolar.
2 Metodologia
Foi pensada a estruturação de uma revisão integrativa da literatura que, de acordo com Souza et al.(2010), compreende a fusão de múltiplas perceções sobre determinado conhecimento por meio de apurações realizadas mediante importantes investigações. Perspetivando-se uma análise exploratória e apoiando-se na análise de conteúdo ( BARDIN, 2017), caracterizando um conjunto de estudos e a deteção de possíveis lacunas, este artigo foi estruturado a partir da busca por pesquisas divulgadas por intermédio das plataformas de bases de dados SciELO e Scopus. A pesquisa incidiu em publicações que, total ou parcialmente, tratassem da relação entre género e sexualidade na escola e que dessem algum destaque aos instrumentos aplicados na recolha de dados e à elucidação dos problemas de investigação por meio dos resultados.
Quatro palavras/termos-chave foram escolhidas para proceder à pesquisa: “instrumentos”, “escola”, “género” e “sexualidade”, assim como seus correspondentes nas línguas inglesa e espanhola, estando sempre conectadas ao operador booleano “AND”. A escolha dessas quatro palavras/termos-chave foi importante no sentido de que enquadram a investigação pretendida, conectando a questão e o objetivo apresentados na introdução.
Como estratégia de refinamento para o corpus documental, os seguintes critérios de inclusão e exclusão foram considerados: i) artigos desenvolvidos empiricamente; ii) artigos nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola; iii) artigos que apresentassem, total ou parcialmente, estudos no âmbito das relações de género e sexualidade no contexto escolar; iv) artigos que descrevessem adequadamente os instrumentos utilizados para a recolha de dados; v) artigos de acesso aberto; e vi) artigos revisados por pares. Foram considerados para a estruturação do corpus apenas trabalhos encontrados por meio da suprarreferida pesquisa, desconsiderando-se o aspeto exploratório das referências utilizadas pelos/as autores/as.
3 Resultados
Foram encontrados, inicialmente, quarenta e um artigos, sendo três na base de dados SciELO e trinta e oito na base de dados Scopus. Procedeu-se, inicialmente, a uma apreciação flutuante dos resumos e dos estados da arte de cada publicação, o que possibilitou identificar se, de facto, os aspetos pensados para a estruturação dessa revisão integrativa da literatura estavam de alguma forma presentes nas publicações. Depois da primeira análise, foram considerados para a etapa seguinte catorze artigos, sendo dois da plataforma SciELO e doze da plataforma Scopus.
Em seguida, foram considerados os aspetos metodológicos das publicações, considerando caracterização, perspetivas, instrumentos de recolha e análise de dados e público-alvo da investigação, e, neste caso, nenhum dos artigos foi excluído. Quanto ao corpus final, ressalta-se que as publicações foram averiguadas num contexto global, considerando-se principalmente as interpretações e conclusões dos/das autores/as. As análises para triagem, elegibilidade e exclusão dos artigos estão no fluxograma PRISMA apresentado na Figura 1 .
Adicionalmente, o corpus de análise encontra-se na Tabela 1, destacando-se colunas com as seguintes características: i) códigos gerados para cada artigo e correspondente base de dados; ii) referências no formato da edição de 2018 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT/NBR 6023) e organizadas por ordem alfabética a partir do apelido do primeiro autor; iii) instituições-sede das equipas de pesquisa; iv) palavras-chave/termos/descritores destacados nas publicações; v) destaque aos instrumentos utilizados para a recolha de dados.
Códigos e bases de dados | Referências (ABNT/NBR 6023 2018) | Instituições-sede | Palavras-chave/Termos/Descritores | Instrumentos de recolha de dados |
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IEGS01 (Scopus) | BARREIRA, Ivo Manuel; RODRIGUES, Vitor Manuel; ANTUNES, Maria Cristina. Cultura organizacional da família como preditor das atitudes e comportamentos sexuais em adolescentes. Revista de Enfermagem Referência, Coimbra, v. 4, n. 6, p.17-25, jul./set., 2015 |
- Universidade Católica do Porto – Instituto de Ciências da Saúde, Porto, Portugal; - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro – Escola Superior de Enfermagem de Vila Real |
Família; Atitude; Comportamento sexual; Adolescente. |
- Questionário construído pelos autores/as, para recolha de dados sociodemográficos e análise de comportamentos e atitudes sexuais; - “Inventário da Cultura Organizacional da Família”; - “Escala de Atitudes Face à Sexualidade em Adolescentes (AFSA)”. |
IEGS02 (Scielo) | BARROS, Teresa Madalena; RAMALHO, Sónia Isabel; GORDO, Clementina Maria; FRADE, João Manuel; LUZ, Alexandra; MOLEIRO, Pascoal; DIXE, Maria dos Anjos. Atitudes dos alunos adolescentes sobre a sexualidade: construção e validação de uma escala. Revista Paulista de Pediatria, São Paulo, v. 39, p. 1-8, nov., 2020. |
- Center for Innovative Care and Health Technology, Leiria, Portugal; - Instituto Politécnico de Leiria, Leiria, Portugal; - Centro Hospitalar de Leiria, Leiria, Portugal. |
Atitude; Adolescentes; Sexualidade; Escola. |
- Inquérito sociodemográfico; - “Escala de Atitudes dos Alunos Adolescentes em face da Sexualidade (E3AS)” - construção e validação de escala. |
IEGS03 (Scopus) | BETTS, Sherry; PETERSON, Donna; HUEBNER, Angela. Zimbabwean Adolescents’ Condom Use: What Makes a Difference? Implications for Intervention, Journal of Adolescent Health, Filadélfia, v. 33, n. 3, p. 165-171, set., 2003. |
- University of Arizona – Division of Family Studies and Human Development, United States of America; - Virginia Polytechnic Institute and State University – Department of Family and Child Development, United States of America. |
Adolescents; Gender differences; Safe sex; Zimbabwe. |
- Dezoito questões, incluídas nos temas “Género”, “Comportamento sexual” e “Variáveis independentes” extraídas de um inquérito de 140 itens sobre perceções de múltiplos níveis ecológicos, desenvolvido a partir de pesquisas nas Universidades de Arizona e Wisconsin-Madison, Estados Unidos. |
IEGS04 (Scopus) | GOLDBECK, Lutz; SCHMITZ, Tim; BESIER, Tanja; HERSCHBACH, Peter; HENRICH, Gerhard. Life satisfaction decreases during adolescence. Quality of Life Research, Cham, v. 16, p. 969-979, abr., 2007. |
- University Hospital Ulm – Department of Child and Adolescent Psychiatry/Psychotherapy, Germany; - University Hospital of the Technical University Munich – Department of Psychosomatic Medicine, Germany. |
Adolescence; Age effects; Gender effects; Life satisfaction; Quality of life |
- Versão modificada do instrumento “Questions of Life Satisfaction (FLZ M)”, com oito domínios gerais de satisfação com a vida, sendo um dos domínios voltados para sexualidade. |
IEGS05 (Scopus) | HOBBY, Lucy; ULLMAN, Jacqueline; FERFOLJA, Tania. Parental Attitudes Towards Inclusiveness Instrument (PATII): Psychometric evaluation of a new instrument measuring parental beliefs about gender and sexuality diversity inclusions in schools. Journal of School Psychology, Madison, v. 86, p. 222-242, jun., 2021. | - Western Sydney University – School of Education, Australia. |
Construct validity; Exploratory structural equation modelling; Gender and sexuality diversity; Parents; Education. |
- Inquérito sociodemográfico; - O instrumento “Parental Attitudes Towards Inclusiveness Instrument (PATII)”: construção e validação. |
IEGS06 (Scopus) | HOLMBECK, Grayson; CROSSMAN, Raymond; WANDREI, Mary; GASIEWSKI, Elizabeth. Cognitive Development, Egocentrism, Self-Esteem, and Adolescent Contraceptive Knowledge. Journal of Youth and Adolescence, Cham, v. 23, n. 2, p. 169-193, abr., 1994. |
- Loyola University Chicago – Department of Psychology, United States of America. - Georgia School of Professional Psychology, United States of America. - Temple University – School Psychology Program, United States of America. |
- (*) |
- Dados socioeconómicos através do “Duncan Socioeconomic Index”; - Medição de cinco outras variáveis, incluindo “Knowledge and Attitudes About Contraception and Sexuality”, avaliada através de um questionário de 69 itens e “Contraceptive and Sexual Behaviours” através de uma questão estruturada a partir de um conjunto de itens. |
IEGS07 (Scopus) | MARTINS, Christine Baccarat; ALMEIDA, Fabiana Maria; ALENCASTRO, Lidiane Cristina; MATOS, Karla Fonseca; SOUZA, Solange Pires. Sexualidade na adolescência: mitos e tabus. Ciencia y Enfermeria, Concepción, v. 18, n. 3, p. 25-37, 2012. | - Universidade Federal do Mato Grosso – Departamento de Enfermagem, Brasil. |
Tabu; Sexualidade; Adolescente; Saúde do adolescente. |
- Questionário fechado, estruturado pelas autoras, aplicado em sala de aula com questões relacionadas com sexualidade e comportamento sexual. |
IEGS08 (Scopus) | MERA, Rubén Balanta; SALAZAR, Kelly Obispo. Representaciones sociales de la identidad y los roles de género en adolescentes de una escuela secundaria de México. Interdisciplinaria, Buenos Aires, v. 39, n. 2, p. 151-166, ago., 2022. | - Universidad del Magdalena, Colombia. |
Representaciones sociales; Identidad de género; Roles de género; Adolescencia; Escuela. |
- Um instrumento do Instituto Colombiano de Bien-estar Familiar sobre questões de género e sexualidade, composto por dez frases a serem completadas pelos participantes. |
IEGS09 (Scopus) | NWAGU, Evelyn. Alcohol and drug usage and adolescents’ sexual behavior in Nigeria. Health Promotion International, Oxford, v. 31, n. 2, p. 405-413, jun., 2016. | - University of Nigeria – Department of Health and Physical Education, Nigeria. |
Alcohol; Adolescent; Drug abuse; Sexual behavior. |
- Instrumento no formato de questionário desenvolvido pela investigadora, para recolha de informações acerca de perceção da influência do uso de álcool e drogas no comportamento sexual de adolescentes. |
IEGS10 (Scielo) | RIBEIRO, Jorge Manuel; PONTES, Ângela; SANTOS, Luísa Ramos. Atitudes face à sexualidade nos adolescentes num programa de educação sexual . Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v. 13, n. 2, p. 340-355, 2012. |
- Agrupamento de Escolas de Arga e Lima de Lanheses, Portugal. - Unidade Local de Saúde do Alto Minho, Portugal. - Instituto Politécnico de Viana do Castelo – Escola Superior de Saúde, Portugal. |
Atitudes face à sexualidade; Educação sexual; Género; Adolescência; Programas de educação sexual. |
- Questionário de caracterização sociodemográfica; - “Escala de Atitudes Sexuais – versão adolescente (EAS-A)”. |
IEGS11 (Scopus) | TEIXEIRA-FILHO, Fernando Silva; RONDINI, Carina Alexandra; BESSA, Juliana Cristina. Reflexões sobre homofobia e educação em escolas do interior paulista. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 725-742, dez., 2011. | - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Brasil. |
Homofobia e educação; Violência homofóbica; Adolescência; Sexualidade; Homossexualidade. |
- Aplicação de questionário autoaplicável sobre questões de género e sexualidade, adaptado para o contexto da investigação. |
IEGS12 (Scopus) | TORRES, Cibele Almeida; BARBOSA, Stella Maia; BARROSO, Maria Grasiela; PINHEIRO, Patrícia Neiva. Investigando a vulnerabilidade e os riscos dos adolescentes em meio as DST/HIV/AIDS nos seus diversos contextos – um estudo exploratório. Online Brazilian Journal of Nursing, Niterói, v. 7, n. 1, abr., 2008. | Universidade Federal do Ceará, Brasil. |
Adolescente; Sexualidade; Vulnerabilidade; Doenças Sexualmente Transmissíveis. |
- Focus groups com roteiro inserido no tema Comportamentos Sexuais, Infeções Sexualmente Transmissíveis e outras questões no universo das relações de género e sexualidade. |
IEGS13 (Scopus) | TORRES-CORTÉS, Betzabé; LEIVA, Loreto; ANTIVILO-BRUNA, Andrés; ZAVALA-VILLALÓN, Gloria. Between Acceptance and Rejection: How Gender Influences the Implementation Climate of a School Sexuality Education Program. Frontiers in Education, Lausanne, v. 6, p. 1-12, out., 2021. | - Universidad de Chile – Departamento de Psicología, Chile. |
Implementation climate; Sexuality education program; Gender; School; Implementation. |
- Implementação de questões sobre género e sexualidade, no âmbito do Programa Comunal de Educação Sexual, do Departamento de Educação da cidade de Santiago, no Chile. |
IEGS14 (Scopus) | VIEJO, Carmen; TOLEDANO, Noemí; ORTEGA-RUIZ, Rosario. Romantic Competence and Adolescent Courtship: The Multidimensional Nature of the Construct and Differences by Age and Gender. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 17, n. 14, p. 1-17, jul., 2020. | - University of Córdoba – Department of Psychology, Spain. |
Adolescence; Romantic competence; Erotic-affective interest; Questionnaire validation. |
- Questionário para recolha de dados sociométricos; - Construção e validação do instrumento “Adolescent Interpersonal Competence Questionnaire for Courtship” (AICQc). |
(*) Não foram identificadas palavras-chave/termos/descritores no artigo especificado.
Fonte: Produção própria a partir de dados da investigação.
Quanto às características do corpus, ressaltam-se: i) referente aos países-sede das investigações, destacam-se Brasil e Portugal, com três artigos cada, seguidos dos EUA, com dois artigos, e Alemanha, Austrália, Chile, Colômbia, Nigéria e Espanha, com um artigo cada; ii) referente às palavras e/ou termos-chave, foram utilizadas quarenta diferentes, com destaque para “adolescente ou adolescência”, presente em onze artigos, seguida de “sexualidade”, presente em quatro artigos; “escola”, presente em três artigos; e “comportamento sexual”, “género” e “programas de educação sexual”. Que apareceram em dois artigos cada; iii) referente aos espaços para recolha de dados, praticamente todas as investigações foram desenvolvidas em contexto escolar, com a exceção de um artigo; iv) referente ao público-alvo de investigação, em sua maioria, estudantes adolescentes do ensino secundário (ou equivalente ao segmento em outros países), com exceção de um artigo, em que a recolha de dados se fez por meio da participação de pais, mães e/ou encarregados/as da educação.
Quanto às técnicas e aos instrumentos utilizados na recolha de dados, destacam-se: i) a reprodução de versões originais ou modificadas de instrumentos, inventários e escalas já validados (seis artigos); ii) a construção e reprodução de questionários ou instrumentos de autoria própria (cinco artigos); iii) a validação de escala ou instrumento (total de três artigos); e iv) a estruturação de um guião de focus groups (um artigo). Em adição, apenas cinco artigos mencionaram abertamente a recolha de dados sociodemográficos.
Para um entendimento mais organizado do corpus, considerou-se uma alocação dos artigos nas seguintes categorias de análise emergentes: i) instrumentos de análise sobre a influência de contextos intrínsecos e extrínsecos sobre questões de género e sexualidade no âmbito escolar; ii) validação de instrumentos no âmbito da relação entre género, sexualidade, escola e sociedade; iii) transformações temporais acerca das propostas metodológicas empregadas em investigações sobre diversidade e educação sexual.
3.1 Instrumentos de análise sobre a influência de contextos intrínsecos e extrínsecos acerca de questões de género e sexualidade no âmbito escolar
Torres et al.(2008), por meio de estudo de caráter exploratório acerca da disseminação das informações sobre infeções sexualmente transmissíveis, procederam à utilização de focus groups direcionados a estudantes matriculados em escolas brasileiras, onde foi detetado um défice sobre a assimilação de tais informações e que ocorre nos diferentes espaços sociais, incluindo a escola. Teixeira-Filho et al.(2011), mediante um estudo transversal em que se procedeu à aplicação de questionários a estudantes de escolas públicas de uma região do Brasil, refletiram sobre a manutenção, nas escolas, das normatividades de género e sexo advindas da sociedade, legitimando, assim, o espaço escolar como mais um ambiente de institucionalização dessas práticas.
Ainda nesse contexto, Ribeiro et al.(2012), perspetivando compreender a importância de um programa de educação sexual junto a estudantes do ensino secundário de uma escola portuguesa, desenvolveram um estudo quasi-experimental em que procederam à aplicação de um instrumento denominado Escala de Atitudes Sexuais – versão adolescente, verificando que esse programa foi importante na ressignificação de comportamentos de estudantes adolescentes, com reflexo para além da escola. Considerando a influência significativa do contexto familiar como fator de predição para comportamentos sexuais de adolescentes, Barreira et al.(2015) desenvolveram um estudo quantitativo e transversal em que recorreram a um questionário, direcionado a estudantes adolescentes do ensino regular de Portugal, de forma a recolher algumas variáveis, quer sociodemográficas, quer no âmbito da avaliação de comportamentos e atitudes sexuais, ressaltando a importância da implementação de projetos e práticas de educação sexual nos espaços educativos.
Nwagu (2016) desenvolveu descritivamente um estudo para avaliar a influência do uso de drogas e de álcool na manifestação de comportamentos sexuais de adolescentes mediante a aplicação de um questionário aplicado pela investigadora e direcionado a estudantes de uma escola pública na Nigéria. Por meio dele pôde concluir que, num aspeto global, os e as estudantes consideraram que o álcool e as drogas impactavam negativamente na manifestação de comportamentos sexuais. Já Torres-Cortés et al.(2021) desenvolveram um estudo quantitativo com estudantes adolescentes em escolas do Chile no qual, pela utilização de um questionário inserido na temática das relações de género e sexualidade, ressaltaram como o fator género é importante no que respeita a uma aceitação maior ou menor de estudantes sobre a implementação de um programa de educação sexual, tendo constatado uma aceitação maior por parte do público feminino.
3.2 Validação de instrumentos no âmbito da relação entre género, sexualidade, escola e sociedade
Em se tratando de instrumentos adaptados e validados de forma a averiguar temáticas no espetro das relações de género e sexualidade nas escolas, Viejo et al.(2020) analisaram a influência dos fatores idade e género acerca das competências de adolescentes sobre relacionamentos afetivos mediante adaptação e validação do Questionário de Competências Interpessoais de Adolescentes para Relacionamentos (do inglês Adolescent Interpersonal Competence Questionnaire for Courtship [AICQc]). Em uma investigação quantitativa, as investigadoras aplicaram e validaram o questionário direcionado a adolescentes estudantes do ensino secundário de escolas espanholas, o qual pesquisa relacionamentos independentemente da orientação sexual, avaliando variáveis como “iniciando relacionamentos”, “promovendo suporte emocional” e “resolvendo conflitos interpessoais”. A conclusão foi de que, quanto ao fator género, as raparigas ofereceram maior suporte emocional a namorados/namoradas do que os rapazes.
Barros et al. (2021), por meio de um estudo exploratório, procederam à estruturação, à validação e à adequação psicométrica da Escala de Atitudes dos Alunos Adolescentes em face da Sexualidade (E3AS), com a aplicação do instrumento a estudantes dos ensino básico e secundário de escolas portuguesas, de forma a averiguar importantes fatores, como, por exemplo, “planeamento familiar e educação sexual”, “primeira relação sexual” e “expressão e identidade de género”. Dessa forma, e por meio da recolha e análise dos dados, a equipa de investigação confirmou a importância desse instrumento numa avaliação global sobre as perceções de adolescentes acerca do tema e na sua fiabilidad e para a reprodução em outros contextos escolares em Portugal, uma vez que questões que envolvem as relações de género e sexualidade são alvo, cada vez mais, de variadas investigações.
Outra validação psicométrica também foi concebida por Hobby et al.(2021) mediante o desenvolvimento e a aplicação de uma escala multifatorial, o Instrumento de Atitudes Parentais em Relação à Inclusão (do inglês Parental Attitudes Towards Inclusiveness Instrument [PATII]), direcionando-se, dessa vez, a pais, mães e/ou encarregados/as da educação de adolescentes estudantes de instituições de ensino do Reino Unido, dos EUA e da Austrália. Avaliando, por meio de questões, diferentes fatores considerados de suporte para o estudo, relacionados, por exemplo, com direitos humanos, justiça social e visibilidade, e fatores considerados de impedimento, como, por exemplo, os valores familiares, religiosos e escolares, puderam proceder à padronização e à validação do instrumento pela análise dos efeitos desses fatores de suporte e de impedimento como preditores para uma maior ou menor perceção sobre a importância de se compreenderem os efeitos da inclusão, quer nos espaços escolares, quer na sociedade.
3.3 Transformações temporais acerca das propostas metodológicas empregadas em investigações sobre diversidade e educação sexual
Ao se observarem, numa escala temporal, as proposições metodológicas dos artigos do corpus selecionado para essa categoria, pode-se dizer que há certa relação consensual quanto aos instrumentos aplicados para a recolha de dados. Holmbeck et al.(1994), mediante a aplicação de escalas adaptadas a partir de instrumentos já validados, analisaram as respostas de adolescentes estudantes do ensino secundário de escolas estadunidenses relativamente a algumas variáveis, como, por exemplo, a autoestima e o desenvolvimento cognitivo, e que estiveram relacionadas com um conhecimento maior ou menor sobre questões que envolvem sexualidade e comportamentos sexuais. Os autores destacaram o género como diferencial nas perceções de adolescentes, com a autoestima sendo fator preditivo para um conhecimento maior sobre o uso de métodos contracetivos para as raparigas e, no caso dos rapazes, fator preditivo ligado a um conhecimento maior sobre atividades sexuais.
A aplicação de um instrumento estruturado pelas próprias autoras ocorreu no artigo de Betts et al.(2003), que averiguou a influência de fatores de proteção ou risco sobre as perceções e atitudes acerca de comportamentos sexuais de adolescentes estudantes do ensino secundário do Zimbábue. As autoras verificaram que existe um enviesamento quanto às perceções dos/das adolescentes participantes da pesquisa sobre determinados conhecimentos, como, por exemplo, infeções sexualmente transmissíveis e HIV/SIDA, com um padrão diferenciado entre rapazes e raparigas, o que implica uma influência desigual de múltiplos fatores em função do género. Já Goldbeck et al. (2007) analisaram de forma global os impactes do período adolescente sobre o nível de satisfação com a vida com a aplicação de um questionário multidimensional, anteriormente validado, a adolescentes estudantes de escolas alemãs, sendo o conjunto parceria/sexualidade um dos domínios percecionados. Após a recolha e a análise dos dados, os autores concluíram que, embora haja um decréscimo nos níveis de satisfação com a vida ao longo dos anos da adolescência, no que respeita ao domínio parceria/sexualidade houve uma resposta ligeiramente contrária, com tal domínio influenciando uma desaceleração do decréscimo desses níveis.
Num estudo com adolescentes de escolas brasileiras, Martins et al.(2012) procederam à aplicação de um questionário fechado, construído pela própria equipa, com perguntas sobre relação sexual e comportamentos sexuais, com o objetivo de identificar determinados mitos sobre sexualidade presentes nos discursos desses/as jovens, como, por exemplo, a influência do álcool e de estupefacientes sobre o desejo sexual e a inexistência do risco de gravidez no período menstrual. Assim, chegaram à conclusão de que existe, nas escolas, a reprodução, pelos/as jovens, de um discurso fortemente conservador sobre questões relacionadas com a sexualidade advindas dos diferentes estratos sociais, mas com leve tendência de mudança nas perceções dos/das adolescentes sobre o tema. Mera e Salazar (2022) analisaram a relação entre a identidade e os papéis de género com as representações sociais aplicando um instrumento já anteriormente validado com frases abertas sobre sexualidade e a identidade, o papel e os comportamentos culturais de género. Tendo como público estudantes do ensino secundário de uma escola tradicional mexicana, os autores concluíram que as conceções sobre as questões de género desses/as participantes estão fortemente ligadas aos respetivos núcleos familiares e, consequentemente, à reprodução de valores e crenças centrais propagados nesse âmbito, o que tem influência direta sobre as demarcações estereotipadas de género assumidas por rapazes e raparigas.
4 Conclusão
O corpus analisado apresentou investigações que, de forma parcial ou total, avaliaram questões relacionadas diretamente com o comportamento sexual de adolescentes ( TORRES et al., 2008 ; NWAGU, 2016; VIEJO et al., 2020 ), enquanto, em menor parte, houve pesquisas acerca da perpetuação das normatividades sexuais e de género no espaço escolar ( TEIXEIRA-FILHO et al., 2011 ). Enquanto algumas investigações averiguaram a importância do desenvolvimento e dos impactes de programas de educação sexual direcionados ao público estudantil ( et al., 2012; BARREIRA et al., 2015 ; TORRES-CORTÉS et al., 2021 ), outros focaram na validação de instrumentos que abrangem a discussão, nas escolas, sobre variados temas, quer na generalidade do espetro das relações de género e sexualidade (BARROS et al., 2021), quer na influência de fatores preditores sobre perceções relacionadas com a importância de espaços sociais mais inclusivos, abrangendo a escola ( HOBBY et al., 2021 ).
Existe uma importante identificação do corpus quanto à aproximação entre as diferentes propostas metodológicas avaliadas, quer pela aplicação de instrumentos próprios ou validados e adaptados para a recolha de dados em um determinado contexto escolar, quer por uma tendência em se investigar, maioritariamente, questões que se aproximam de um entendimento sobre comportamentos sexuais de adolescentes ( BETTS et al., 2003 ; GOLDBECK et al., 2007 ; HOLMBECK et al., 1994 ; MARTINS et al., 2012 ); e, em menor proporção, a influência, na escola, de conceções nucleares e valores normativos de género e sexualidade advindos dos ambientes familiares e de outros espaços sociais ( MERA; SALAZAR, 2022).
Assim, foi importante a verificação de que, ao longo das últimas três décadas, percebe-se uma certa relação consensual quanto aos instrumentos de recolha de dados usados nas pesquisas sobre relações de género e sexualidade nas escolas. Salienta-se, no entanto, que o corpus consiste em investigações que se restringem a estudos sobre as perceções de estudantes do ensino secundário, carecendo, então, de informações sobre outros/as participantes escolares, pensando-se principalmente no público docente. É facto que, embora seja de grande interesse a verificação sobre as conceções e comportamentos de estudantes sobre relações de género e sexualidade, existe a necessidade de serem identificadas pesquisas que tratem propriamente das perspetivas de docentes, no que respeita a pensamentos e práticas pedagógicas, sobre essa temática.