Introdução
Para realizar a apresentação da décima quarta categoria presente na Lógica da filosofia weiliana propomos uma divisão do artigo em três seções. Na primeira, abordaremos a atitude e a categoria, retratando-a nos seus traços essenciais. Na segunda etapa do itinerário, apresentaremos como se dá a possibilidade de compreensão da categoria da violência pura pela filosofia. Essa compreensão só é possível pelo uso da metagoge, o empréstimo à obra de uma linguagem que ela francamente deplora: a filosófica. Se a obra rompe com a coerência do discurso, ela o faz tendo em vista a forma absolutamente coerente presente na categoria que a precede logicamente, o Absoluto, entretanto, se ela assim o faz, ainda assim ela não rompe com o discurso do lógico da filosofia, posto que este, pelo artifício de linguagem mencionado adrede, elabora o discurso coerente da incoerência, de modo que a categoria da violência pura não rompe de modo irreparável com o discurso do lógico da filosofia, pois, em última instância, este dispõe das categorias posteriores à obra, incluindo a categoria da filosofia: o sentido (PERINE, 1987, P. 176). O remate vem com a descrição do homem da obra. Para complementar o retrato traçado na categoria da obra presente na Lógica da filosofia, recorremos ao ensaio Masses et individus historiques, colhendo os traços específicos do chamado líder das multidões desamparadas, em relação às demais tipologias de líderes presentes nesse texto. Ao longo do artigo faremos uso de figuras mitológicas como recurso ilustrativo de alguns conceitos. Essa abordagem não é uma novidade nos estudos weilianos. Caillois considera que a expressão ética é inicialmente mitológico-religiosa. Mas essa linguagem poderia se relacionar com a filosófica? Segundo o autor1, elas são não apenas compatíveis, mas harmoniosas. A própria categoria da obra pode ser representada com o auxílio de uma figura mítica: o diabo2 (1984, p. 218 - 222). Finalmente, algumas das figuras mitológicas utilizadas aqui emergem dos textos do próprio Weil, como Jano e Proteu.
1 - A obra3
A obra põe uma questão incômoda para a lógica da filosofia: é possível que haja categorias irredutíveis, pensadas como tais, mas que não se pensam a si mesmas? Sendo esse o caso, trata-se de compreender como a atitude da violência pura gera uma categoria (PERINE, 1987, p. 171 - 172). É importante que comecemos essa seção, portanto, pela caracterização da atitude e da categoria da obra. É possível traçar uma linha divisória no percurso da lógica da filosofia entre as categorias anteriores ao Absoluto e aquelas que lhe são posteriores. Isso porque as segundas não são mais categorias filosóficas, aquelas que permitem conhecer as diferentes formas do discurso no seu processo de elaboração: a ontologia clássica, a filosofia transcendental, por exemplo. A obra, enquanto tematiza a relação do indivíduo com o discurso, é uma categoria da filosofia, não mais uma categoria filosófica (CANIVEZ, 1993, p. 59). Aqui já desponta um dos traços marcantes da obra: a contradição, isso porque ainda que seja categoria da filosofia, ela, enquanto violência pura, é contra-filosófica (CAILLOIS, 1984, p. 213). A atitude da obra instaura uma nova dimensão da violência sem produzir discurso. Ela inaugura um recomeço extremo e implacável enquanto recusa consciente da razão. Entretanto, a atitude não tem essa consciência de si. E essa recusa é o que caracteriza a atitude. A categoria aflora na linguagem que afirma que apenas a obra importa - e nada mais (KIRSCHER, 1989, p. 308) Weil denomina essa nova forma como violência nua, sendo aquela que recusa todo contentamento na razão, embora obtenha uma satisfação essencialmente passageira e sempre renovada no exercício da violência, na destruição de tudo aquilo que não é violência, valores, sentido, ideias, tradição, que ela busca des-estruturar. O essencial para essa forma de violência será o absurdo, o extremo (2003 B, p. 9 - 10). Observa-se aqui já a vocação da obra para um traço que a define: o movimento. Ora, a obra apresenta um caráter sui generis no aspecto que denominaremos como a sua concomitância:
A atitude exprime uma ‘recusa consciente do discurso absolutamente coerente e da Razão’ que ‘fornece a categoria dessa atitude’. Nessa medida, a categoria da obra está presente na atitude. Por um lado ‘ a categoria importa pouco à atitude (...) que é a obra4’, por outro lado a atitude ‘possui essa categoria’ que se apresenta na sua linguagem (KIRSCHER, 1989, p. 308, grifo do autor, tradução nossa).
Com isso explicita-se o caráter contraditório da atitude da obra. Por um lado, ela reconhece o Absoluto, sabendo que refutá-lo só é possível no seu próprio plano. Por isso ela não se dá a esse trabalho, caracterizando-se por um vazio5 que é desespero mudo. Já que o falar é recusado, a atitude almeja ser apesar do discurso6. Desse modo, sua linguagem se dá em vista do fazer da obra (PERINE, 1987, p. 169 - 171), da sua concomitância. É a recusa do Absoluto que constitui a atitude e que institui e confirma a linguagem da qual ela se vale (PERINE, 1987, p. 172). Essa concomitância se dá porque o essencial para a compreensão da categoria encontra-se já na linguagem que aquele que vive a atitude emprega para realizar a única coisa que importa: a obra. É nessa acepção que se pode dizer que, enquanto categoria, a obra é um monstro, pois ela não cria conceitos, apenas se apropria dos produtos de outras categorias, utilizando tudo que lhe sirva para compor a sua linguagem do imperativo e da missão7 (RICOEUR, 1984, p. 413), de modo que é assim que se entende porque a linguagem empregada pela atitude é sempre uma linguagem alheia (PERINE, 1987, p. 171).
Se a atitude se dá conta que é recusa da razão, essa consciência não se dá no plano do discurso filosófico, ela se expressa extravasando-se na sua imediaticidade de sentimento, sem que a reflexão erga qualquer membrana separando projeto, meios, matéria e qualquer sorte de resultados (KIRSCHER, 1989, p. 308). Essa concomitância apresenta dois elementos importantes para caracterizar ainda melhor a obra. Como primeiro deles, apontamos o caráter aporético de qualquer pretensão a um discurso filosófico na obra. O segundo é a possibilidade de redução das contradições da obra a uma só raiz: o fato fundamental de sua imediaticidade e a tentação de mediação que acompanha o esforço de falar sobre ela (KIRSCHER, 1989, p. 308). A atitude é cinética, devendo ser entendida como obra em ato. Como a atitude é um fazer, um agir, a atitude da obra sequer cogitaria se justificar sobre sua incoerência, que só aparecerá aos olhos do discurso filosófico que compreende o impossível discurso da violência; fato interessante: tem-se do ponto de vista daquele que compreende a obra o discurso filosófico incoerente da recusa do discurso filosófico (KIRSCHER, 1989, p. 308 - 309). Eis sua contradição, que só é compreendida por uma analogia e por um empréstimo discursivo.
A categoria da obra é desprendimento para com o universal do pensamento absoluto. Sua forma normal, ou natural, conforme aponta Weil, é não buscar outra coisa além de ser ela (2012, p. 488 - 489). O discurso absoluto já cumpriu sua função, não tendo mais nada a dizer: “em outras palavras, o discurso está realmente terminado, e querer prolongá-lo é desconsiderar esse fato” (WEIL, 2012, p. 489). Diante do encerramento para a história que o absoluto propõe, aquele que vive na atitude da obra sente um imenso tédio8. Perante essa atitude, a própria ciência do absoluto apenas deixa os indivíduos sem um projeto a lhes oferecer: como entende todas as posições humanas enquanto particularidade, o saber absoluto nada diz que alcance o indivíduo. É possível falar de toda a particularidade sem que uma palavra sequer toque a individualidade concreta. Isso porque, saber que, qualquer que seja a ocupação para a qual o ser humano se volte, ela tem um lugar na ordem do mundo, nada oferece àquele sedento e faminto por um conteúdo concreto para preencher-lhe a existência (SAVADOGO, 2003, p. 173).
Desse modo, o pensamento que compreende a tudo e a si mesmo, lhe é perfeitamente indiferente. É um isso, assim como a própria obra. É nesse horizonte do desprezo por esse pensamento, que a obra se constitui como o outro da razão, não se reconhecendo como Pensamento, mas como a particularidade de um ser que pode ou não ser pensante, que pode ou não rejeitar a razão. Isso porque esse Pensamento encontra-se na humanidade em sua totalidade histórica, não estando, inteiro, no indivíduo particular: este é apenas razoável. Em um par de palavras: ele é livre, pode ou não querer a vida reconciliada nesse pensamento Absoluto, na razão, pode escolher a intransigente afirmação do seu sentimento particular (WEIL, 2012, p. 490 - 491). Temos aqui o famoso binômio weiliano razão e violência9.
O Absoluto não é de forma alguma refutado, e a nova atitude não pensa em refutá-lo. Ao contrário, ele tem razão, e a ele se dá razão: caso se trate de pensar, é preciso pensar no interior do Absoluto. Mas será preciso pensar? Será o homem um ser pensante? Antes do Absoluto, a pergunta não poderia receber uma resposta clara, pois não estava claro o que significavam “pensar” e “pensante”. Agora está: “pensar” é a atitude do Pensamento que ainda não sabe ser tudo, ser o Ser; “pensante” é a atitude da particularidade que encara o universal como seu outro (WEIL, 2012, p. 489).
A ultrapassagem do Absoluto não pode se dar no plano do discurso pois isso seria uma retomada sua10. O abandono do discurso absoluto, portanto, deve se dar a partir de outro plano completamente distinto daquele do plano da compreensão. (KIRSCHER, 1989, p. 304). No pensamento Absoluto a particularidade é compreendida como realização do universal, mas para a obstinação dessa mesma particularidade isso em nada modifica sua própria situação. Ela segue particularidade, ainda que, se olhada da perspectiva do Absoluto, ela seja a liberdade do universal realizada nela; pouco lhe importa que sua liberdade seja o desaparecimento dela mesma no universal. Invertendo essa perspectiva, olhando com a lente daquela particularidade cuja compreensão lhe cobre sem lhe tocar, como uma manta que nada faz contra o frio, essa compreensão da ciência absoluta significa apenas abandono e vazio (WEIL, 2012, p. 491). Esse vazio é uma indiferença perante a Razão. Essa indiferença é também o sentimento da obra, que dirige o fazer e que refuta o discurso: “não há compreensão nem discurso que contem diante do sentimento da obra” (WEIL, 2012, p. 500). Esse sentimento é aquilo que é imediato, o que pode ser entendido da seguinte maneira: o criador está imediatamente em sua obra (WEIL, 2012, p. 500 - 501).
A linguagem da obra pretende subordinar a linguagem do mundo do trabalho, da sociedade e do Estado a uma nova linguagem. Essa empreitada, um dos componentes do fazer da obra - seu movimento contínuo - visa instaurar um vazio e instrumentalizar o tédio resultante naqueles que serão convertidos à obra para que ela possa dirigi-los. Esse tédio, entretanto, não pode ser de tal modo disseminado que impeça o mínimo de organização que a obra necessita para o seu projeto (WEIL, 2012, p. 503 - 504). É de acordo com essa perspectiva que a obra se apropria do mundo da condição: trabalho, sociedade e sua linguagem tornam-se ferramentas da obra (CANIVEZ, 1993, p. 64). A atitude da obra resume em si, pelo seu movimento, toda a política, redesenhando assim o Estado (CANIVEZ, 1993, p. 62 e 64). Com isso a obra representa a atitude do criador radicalizada no plano político, pois o Estado é apenas a matéria cuja forma cabe a esse criador conferir (CANIVEZ, 1999, p. 63). O projeto, portanto, aparece no horizonte da recusa do saber que procura conhecer a realidade como ela é, impondo-se como ato criador que se apropria do mundo em sua totalidade (SAVADOGO, 2003, p. 174).
É importante desfazer a confusão eventual em tomar esse projeto como um plano fruto do pensamento. A obra é projeto no sentido etimológico do termo: lançada para além do tempo presente, o tempo da infelicidade e da geração que fará o sacrifício para a realização do projeto que é anunciado pelo homem da obra (WEIL, 2012, p. 504). De posse desse dado, podemos compreender, portanto, a essência da obra: ela é criação contínua, pois não pode ser concebida como acabada pelo seu criador. Isso nos possibilita distinguir a obra - criação contínua, em essência - dos seus meios de realização: o mundo da condição, aqueles que aderem à fé da obra e contribuem para sua realização (WEIL, 2012, p. 505). Esses colaboradores, importa não perder de vista, não são nunca iguais ao homem da obra, pois ele é essencialmente só, mas sim o material para a obra: a massa (WEIL, 2012, p. 507).
Por certo essa massa não é absolutamente informe, ela não é uma simples soma de indivíduos; ao contrário, está organizada na sociedade e no Estado, e é do interesse da obra manter essa organização - e não desfazê-la - para dela se servir, mas opondo-lhe ao mesmo tempo o seu mito (WEIL, 2012, p. 507).
Veremos que o traço do mito reúne dois elementos que configuram a obra já mencionados na descrição da categoria e da atitude: a imediaticidade e seu aspecto cinético. O mito é o que permite entender que a obra não está situada na realidade, ela cria uma realidade (CANIVEZ, 1993, p. 60). Será precisamente esse aspecto, a criação de uma realidade, que dá a feição à imediaticidade e ao elemento cinético. A obra é movimento contínuo. Por meio desse fazer ininterrupto, a obra cria sua realidade, estacionar significa a demolição do projeto. Não há base para esse projeto, a base é o movimento. A comparação com Sísifo11 seria exata enquanto ilustração apenas caso a colina do supliciado grego não tivesse fim. Dito isso, acrescentemos que é o movimento da obra que faz com aquele que vive sua atitude seja imediato para si mesmo12, movimento que oblitera toda alteridade (CANIVEZ, 1993, p. 60). Observando isso percebemos como a obra em alguns dos seus traços é um reflexo distorcido da categoria anterior. Assim como o Absoluto busca reduzir a dualidade, a presença na mediação do discurso total, a obra o faz na imediaticidade da atividade criadora sem distinção entre sujeito e objeto: a coincidência na obra é a criação, assim o criador é o sentimento de sua obra (KIRSCHER, 1999, p. 35). “Faces inconciliáveis uma na outra e indiferentes uma à outra, identificadas na sua indiferença, diferentes por sua realização. De um lado discurso, do outro sentimento. De um lado verdade, de outro sinceridade. De um lado razão, de outro violência” (KIRSCHER, 1999, p. 36). A imagem oferecida por Kirscher lembra a figura de Jano, divindade romana de dois rostos já invocada por Weil para ilustrar a ciência13·. Essa duplicidade também é confirmada por Quillien, para quem essa semelhança é também o que impossibilita a comunicação entre as categorias: “Absoluto e obra se opõem como razão e violência. Essa oposição radical não deve mascarar o que eles têm de comum, a sua unilateralidade: somente pensar, somente agir” (1989, p. 117). Caillois sugere a figura de um espelho cuja superfície reflete o seu outro, bem como a de um duplo distorcido que segue a razão como sua sombra (1984, p. 213 - 214).
O mito não deve ser entendido como expressão da obra, ele é sua ação mesma, o que transforma os seres humanos em material para a obra e os separa em colaboradores e inimigos. O mito cumpre assim um papel de desrealização: manobrando com o sentimento de insatisfação da massa, atira-se a incumbência e a negatividade do trabalho aos inimigos, de modo que toda mediação que exprime a relação dos seus colabores - agora, mestres do progresso - com o real é obliterada. A obra oferece uma imagem. Essa imagem não é nada. Ela não é consequência de um sistema ou instrumento de um determinado programa - por ser nada, sua imagem se presta a toda razão que prende seus colaboradores a ela14 (CANIVEZ, 1993, p. 65 - 66). É nesse sentido que compreendemos a definição de Weil dessa forma de violência como um nada que aniquila, um puro mê einai, um não-ser que deve ser rejeitado e que se deve fazer recuar (2003 B, p. 9, 11). Portanto, o mito não é avaliado segundo alguma identificação com a verdade, mas de acordo com sua eficácia sobre as massas (QUILLIEN, 1970, p. 419).
A obra é uma forma radical de revolta que se mostra como o abandono de todo discurso. Assim, a compreensão dessa atitude demanda uma hipótese. Trata-se da existência de uma vontade que não é expressão de um pensamento. A ação decorrente dessa vontade não é a realização de uma ideia que, consciente ou inconscientemente, mostre-se susceptível de ser julgada em função de sua verdade. Trata-se de uma vontade que não tem qualquer pretensão de universalidade, mas que é violência deliberada, pura e simplesmente (CANIVEZ, 1993, p. 60). Admitida essa hipótese, podemos passar à compreensão dessa vontade de violência cabal.
2 - A compreensão da obra
Ainda que o violento não queira nem compreender, nem se compreender, ele deve ser compreensível para a filosofia15, que pressupõe a compreensibilidade de todo ser humano. É no esforço movido para a compreensão da categoria que permanece indiferente ao sentido que refulge a especificidade weiliana16 (KIRSCHER, 1992, p. 33). Essa especificidade reconhece na categoria da obra uma possibilidade humana fundamental, diferente daquela que escolhe o discurso. Mais que isso: trata-se uma possibilidade que permanecerá irrefutável e que segue assombrando até mesmo aquele que escolhe a filosofia (KIRSCHER, 1992, p. 34 - 35). A compreensão da revolta contra o absoluto revela a condição de possibilidade de escolha entre duas orientações extremas que permanecem sempre em aberto, sem constituírem ambas opções que selam o acesso à vereda oposta. A liberdade é compreendida pela filosofia como aquilo que antecede à razão. Essa compreensão mantém diante daquele que a concebe, o filósofo, a própria capacidade de ser violento ou razoável. Acrescente-se a isso que o violento é compreendido não como um ser de outra espécie, de modo que há apenas seres humanos capazes da mesma violência (KIRSCHER, 1992, p. 148). É o lógico da filosofia quem levará a sério a revolta da violência pura contra o absoluto que não aparecerá então como destituída de sentido (KIRSCHER, 1970, p. 385). Violência e razão não são contrários exteriores um ao outro, mas possibilidades contrárias da mesma liberdade. Essa via permanece aberta em ambas as bifurcações para aquela que lhe é contrária, e esse é um caminho que vale tanto para indivíduos como para comunidades (KIRSCHER, 1992, p. 148 - 149).
Segundo Kirscher, compreender as atitudes não significa, pelo fato da compreensibilidade, justificar aquilo que é injustificável, inadmissível, de modo que a compreensão não dispensa a ação sobre si meso, sobre os outros e sobre o mundo, realizando a compreensão e barrando o que a contraria. Tendo como divisa a noção de compreensão apresentada por Kirscher, podemos então considerar que entendemos que a obra revela-se como legitimamente interessante do ponto de vista filosófico17 por, pelo menos, duas razões. A primeira, pois a filosofia weiliana erige-se mirando seu outro - a violência que lhe recusa - como preocupação única (1992, p. 32 - 33). A segunda é explicitar, de forma brutal, é verdade, que a passagem de uma categoria para uma atitude nova é violenta (WEIL, 2012, p. 514). Eis aqui um dos saldos positivos para a filosofia dado pela compreensão da obra. Mencionou-se que a ultrapassagem do discurso absoluto coerente, sendo realizada no mesmo plano do discurso, será apenas uma retomada do Absoluto. Desse modo, tal ultrapassagem deve ser empreendida de um plano totalmente outro em relação ao Absoluto. Ora, essa ultrapassagem do Absoluto pela obra, por sua intensidade solar, tem um papel importante para a compreensão da própria lógica da filosofia. Ou seja, a passagem do Absoluto para a obra desempenha uma função metafilosófica em relação ao pensamento weiliano18. Com isso entendemos a extensão da importância do escândalo da razão ocasionado por essa ultrapassagem. Para a compreendermos em todas as suas cores dramáticas, consideremos mais de perto o processo de ultrapassagem das atitudes-categorias.
A ruptura com uma atitude-categoria anterior precede a elaboração do discurso próprio da atitude nascente e sua compreensão da categoria ultrapassada. Não é diferente então no caso da obra. O que há de especial nesse caso é precisamente o escândalo da razão: como não reconhece nada que não seja a lógica do seu próprio desenvolvimento imanente, ao Absoluto, causa-lhe horror a ideia de qualquer realidade que possa se liberar do domínio do discurso. Essa perspectiva horrorizada do Absoluto lança mais luzes sobre esse princípio metódico da lógica da filosofia: a passagem de uma categoria para aquela que lhe sucede é livre e incompreensível em si mesma. Apenas consumada essa ultrapassagem é que a reflexão filosófica - e ela, apenas - pode compreendê-la (KIRSCHER, 1989, p. 304). “A atitude nova revela a violência de toda atitude enquanto atitude, da vontade de não ser senão atitude, de sua recusa em ser categoria” (KIRSCHER, 1989, p. 304 - 305, tradução nossa). A obra é importante, pois nela esse desejo atinge o paroxismo: se o absoluto é atitude que se quer categoria, a obra é uma atitude que se recusa a ser categoria. É importante observar ainda que é precisamente essa operação de ultrapassagem que a obra se revela como uma espécie de espelho distorcido do Absoluto, pois se este é o absoluto no plano do discurso, a obra é o absoluto no plano da indiferença pela compreensão (KIRSCHER, 1989, p. 305). Além disso, a obra se mostra importante no plano metafilosófico por explicitar outra distinção metódica presente na lógica da filosofia: a necessária distinção entre a doutrina e sua explicação (KIRSCHER, 1989, p. 307).
Agora que determinamos o saldo positivo para a filosofia dessa difícil tarefa de compreender essa atitude, podemos colocar a seguinte pergunta: Se a obra é a absoluta indiferença pela compreensão, mas mesmo assim pode ser compreendida pela filosofia, como se coloca, então, a possibilidade dessa compreensão? “A violência pura é indizível. A filosofia não pode conhecê-la senão obliquamente, indiretamente” (KIRSCHER, 1992, p. 148; tradução nossa). Nessa via oblíqua e indireta da compreensão da violência, destacamos dois componentes: a prosopopéia e a analogia. Comecemos pelo recurso de atribuir à violência uma qualidade que é do seu outro. É por um artifício de prosopopéia (KIRSCHER 1992, p. 148), a metagoge, que é possível compreender a obra emprestando-lhe um discurso que ela não possui (PERINE, 1987, p. 176), mas que possuiria caso oferecesse um discurso sobre a sua recusa do discurso (KIRSCHER, 1992, p. 36). Isso porque a violência não é dotada de um discurso de auto-afirmação ou de autocompreensão (KIRSCHER, 1992, p. 142). Nesse ponto, podemos passar ao segundo componente da via oblíqua de compreensão da violência: a analogia. “A violência não se pensa ela mesma. Destituída de reflexividade, ela não põe para si a questão da sua própria possibilidade, menos ainda a da sua legitimidade” (KIRSCHER, 1992, p. 150, tradução nossa). Como consequência, vem a impossibilidade de a violência compreender a si mesma a partir da escolha livre que é a hipótese fundamental da filosofia. O fundo que constitui a possibilidade da reflexão filosófica é a escolha fundamental entre razão e violência. Essa escolha, enquanto uma hipótese fundamental é pensada como passado hipotético, ou seja, como condição primeira da reflexão (KIRSCHER, 1992, p. 150). “O filósofo, e ele apenas, supõe que sua própria atividade reflexiva repousa sobre uma escolha livre em favor da reflexão e que uma escolha contrária seria possível” (KIRSCHER, 1992, p. 150, tradução nossa). Eis aí a analogia, dada em modo retrospecto.
Se essa escolha é compreensível de modo retrospectivo quando se dá a opção pela filosofia, ou seja, quando a filosofia, após ser a vereda escolhida, olha em retrospecto e compreende o que se deu, a vereda da violência - que não comporta nenhum compromisso com a compreensão - só é entendida por um recurso de analogia com o retrospecto do caminho trilhado na razão (KIRSCHER 1992, p. 150). A categoria da obra é passível de aparecer para nós, na ocasião em que sua atitude está em oposição às demais. Dessa maneira, há ainda o desejo de se justificar: aquele que vive nessa atitude, para tanto, se interpreta por meio de uma retomada (WEIL, 2012, p. 488). A obra será então o próprio “contrapensamento, negação universal e absoluta e do absoluto” (WEIL, 2012, p. 488). É importante observar que esse “desejo de se justificar” e essa interpretação por meio de retomadas existe exclusivamente do ponto de vista daquele que deseja compreender filosoficamente a obra19. A obra tem ciência da existência da filosofia, mas lhe é desdenhosamente indiferente e profundamente hostil. Sua relação com a filosofia é, podemos notar, a mesma que mantém com tudo que não é ela mesma - imediata -, mas que expressa aquilo que ela é essencialmente: sentimento, isto é, violência. Tudo será na obra: inimigos ou colaboradores. Ora, notando a existência da filosofia, esta, para a obra, não será “nem verdadeira nem falsa, mas nociva” (WEIL, 2012, p. 509). Invertendo essa perspectiva, a obra aparece como categoria para a filosofia mesmo que aquele que vive sua atitude não queira pensar, de modo que sua categoria não é desenvolvida pela própria atitude, sendo descoberta apenas pelas categorias posteriores, o que a torna indispensável para a filosofia (WEIL, 2012, p. 509 - 510) ao mesmo tempo que acentua de forma desconcertante o radical isolamento daquele que situa-se nessa atitude. A atitude é a obra e apenas ela (WEIL, 2012, p. 513).
Weil revela certa prudência ao caracterizar o homem da obra, aquele que vive sua atitude, pois trata-se de alguém que não “fala de si”, que “não se expressa”, que não é para-si (2012, p. 499). Isso significa que o homem da obra não cultiva qualquer intenção de compreender-se. Dizer que ele não se expressa é algo que evidentemente não deve ser tomado literalmente - lembremos que nada é mais enganoso ao lidar com esse tipo do que tomá-lo por um rústico desprovido de recursos -, mas sim que qualquer linguagem que ele emprega não é fornecida pela maturação do discurso da sua categoria, mas se trata de um utensílio que serve ao propósito da atitude. “O criador não é tão primitivo quanto o discurso desejaria (e deve) retratá-lo. Ele sabe muito bem em que consistem o discurso absoluto, a Razão real, a realidade razoável: se ele os rejeita, é com conhecimento de causa” (WEIL, 2012, p. 511). Esse traço da obra explicita aquilo que formará a sua categoria: a recusa consciente do tribunal da Razão, de qualquer consideração de ordem universal, qualquer consideração com aquilo que esteja fora da própria obra (WEIL, 2012, p. 513). A linguagem da obra aqui já pode ser caracterizada acrescentando-lhe mais um elemento. Do ponto de vista da filosofia, a linguagem da obra é linguagem da violência, pois rejeita toda linguagem da compreensão: trata-se do imperativo. Importa antes de qualquer coisa dizer que não estamos diante de um imperativo moral, de uma Razão prática. É uma linguagem que não quer ser pensada e que serve apenas de instrumento para a realização da obra (WEIL, 2012, p. 512 - 513). A obra para nós pode ser compreendida como sendo essencialmente movimento, pois sua parada a reduziria a um fim, não ao que é essencial (WEIL, 2012, p. 505). Por analogia, podemos entender a obra como uma roda lançada girando sobre seu eixo, cujo movimento é o que permite manter-se de pé. Entretanto, seria mais exato dizer que a obra é a energia que impele a roda20 - seu meio de realização é essa energia: a violência pura.
A essa altura é possível ainda perguntar o que se ganha com a compreensão da obra. Amparando-nos em Kirscher, responderíamos que não se trata de pouca coisa. O sentido do termo ‘violência’ se adquire quando se compreende que o sentido do termo ‘razão’ é o de querer livremente a razão. A compreensão filosófica da violência não é um impedimento para se pôr em questão a própria razão, mas isso se dá apenas em nome de uma vontade filosófica de razão, da exigência filosófica da verdade (KIRSCHER, 1992, p. 39).
A negação da razão é revolta, significando, nos termos weilianos da passagem de uma categoria para uma nova atitude, uma ruptura livre. Weil toma em consideração o indivíduo que não quer o discurso absoluto, interpretando sua recusa como um ato livre. Assim, ao contrário de Hegel, Weil apreende a resistência do indivíduo em relação ao discurso, resistência essa que o discurso absoluto negligencia: todo argumento em favor do discurso pressupõe a opção pelo discurso. Da sua perspectiva, o discurso absoluto pressupõe que deixou a violência para trás (KIRSCHER, 1992, p. 145). Mas ele não alcança a violência que o ultrapassa em uma atitude extrema: nada de tomar o discurso absoluto para si, a violência postada diante desse discurso simplesmente lhe vira o rosto depois de encará-lo. Eis a importância da compreensão da obra: conhecer o homem que vive essa atitude, o homem da obra. Uma conquista importante dessa compreensão é que ele, assim como a categoria, torna-se compreensível para a filosofia por meio de um artifício de prosopopéia (KIRSCHER, 1992, p. 145). Essas considerações são importantes porque para compreender o sentido da rejeição de toda razão é necessário contemplar aquele que dá o que pensar para a filosofia sendo seu mestre involuntário, o anti-Hegel, o puramente violento homem da obra (KIRSCHER, 2003, p. XII).
3 - O homem da obra
“É também assim que um Hitler é compreensível para nós” (WEIL, 2012, p. 501, nota 2).
Na atitude vive um homem. Embora o homem da obra seja o outro da filosofia, ele não é de uma espécie diferente (KIRSCHER, 1992, p. 33). Segundo Kirscher, é no capítulo sobre a obra que tem lugar no sistema weiliano o retrato do violento (1992, p. 34). O homem da obra reconhece que a particularidade desaparece no pensamento universal. Daí vem sua rejeição do pensamento, pois ele não quer pensar, ele quer ser (WEIL, 2012, p. 488). A compreensão que o pensamento Absoluto oferece para o homem da obra é como o alimento consumido por Erisícton ou a fruta na árvore avistada por Tântalo21. É um sentido vazio, que nada lhe diz, que nada tem de concreto, que cresce proporcionalmente ao tanto que sua própria existência tem sentido para o discurso e a ciência Absolutos (WEIL, 2012, p. 491).
Ele pode falar de tudo, porque o discurso engloba tudo, mas tudo falar do mundo já lhe encheu as medidas: ele compreende, ele é compreendido, e nada disso lhe proporciona coisa alguma, visto que ele não pode viver com isso. Ele sabe, agora, o que quer dizer falar, e que todo raciocínio desemboca na Razão, ele sabe que já não tem nada a perguntar se não quiser ser absurdo, sabe estar satisfeito quando se trata de saber e de ciência, sabe que o Pensamento é a própria honestidade, e sente que foi enganado e que é infeliz (WEIL, 2012, p. 491 - 492).
Esse vazio que o homem da obra sente precisa ser preenchido por algo. Essa vacuidade que o caracteriza, como o poço das Danaides22, tem a ilusão da substância quando algo se lhe é lançado: como no poço das Danaides, embora o movimento de jogar água não o preencha, causa a impressão momentânea de sustança apenas na duração do ato, por isso este deve ser ininterrupto. Essa necessidade que trespassa o homem da obra o faz coevo de outro tipo23, a cuja categoria pertence sua atitude:
O trabalho liberta da liberdade abstrata do discurso, do tédio da circularidade do particular no Absoluto24, e dá ao homem, se não um conteúdo, ao menos uma explicação para a ausência do conteúdo: o discurso não diz respeito ao homem que trabalha e que, em seu trabalho e graças a ele, sabe o que tem a fazer; se ele não está contente com sua condição atual, tem a certeza do progresso e, nessa certeza, a satisfação no que diz respeito ao mundo. Por isso o homem da condição é ‘contemporâneo’ normal daquele que aqui nos ocupa - fato tanto menos surpreendente quanto, para um como para outro, a linguagem do particular se tornou suspeita e o mundo (seja o que for que eles entendam por essa palavra) é a única coisa que importa para ambos (WEIL, 2012, p. 492 - 493, grifo nosso).
É importante frisar que essa coexistência se dá no plano histórico: não se trata de um retorno filosófico à categoria da condição. Weil fala de um “parentesco histórico que aproxima duas atitudes, não duas categorias” (2012, p. 493). O apelo à condição pelo homem da obra é uma invocação ecoada do seu vazio. “O retorno à condição como forma de vida é, então, retorno consciente, não retorno puro e simples, e é um ato de desespero: já não há nada que possa fazer o tempo passar” (WEIL, 2012, p. 493). O Absoluto, nada lhe traz, não lhe toca, é como um Sol que perdeu o dom de aquecer. Para o homem da obra, ao contrário, o pensamento com minúscula, o raciocínio, servo do trabalho, tem mais a lhe oferecer (WEIL, 2012, p. 494). Desse modo ele se separa do discurso, pois todo discurso foi compreendido por aquele discurso que é absolutamente coerente, que é a Razão. A postura do homem da obra perante a Razão será, conforme salienta Weil, de tédio e desprendimento. Ele sequer a declara inadmissível ou discutível “visto que ela não diz respeito a ele, ele que dela desvia os olhos para se ocupar de si mesmo” (2012, p. 497). Trata-se de um intencional abandono do universal. “Positivamente, é o reino do sentimento e, o que dá no mesmo, da violência” (WEIL, 2012, p. 496 - 497).
Para desfazer aqui um mal-entendido, devemos frisar que esse homem da obra não deve ser confundido com uma simples besta desprovida de linguagem. O caso que aqui nos ocupa a maneja com condão e perícia, mas ele o faz em uma perspectiva instrumental, assim “como se emprega uma ferramenta ou um animal doméstico, sem por isso ser esse animal doméstico ou essa ferramenta” (WEIL, 2012, p. 496). O homem da obra situa a si mesmo como fora da linguagem filosófica, desse modo, ele rejeita a coerência e sua linguagem é indiferente a todas as categorias anteriores. A única exceção poderia ser a linguagem da condição, entretanto, essa relação é descartada, pois nenhuma categoria é reconhecida enquanto tal, ou melhor, sobre o que possa ser uma categoria do discurso filosófico, a obra é perfeitamente indiferente. Seria mais correto dizer que sua linguagem não emprega a condição enquanto categoria, mas a utiliza como ferramenta, a própria linguagem sendo reduzida à condição de utensílio25. Resumamos: o homem da obra não é linguagem, não tem linguagem, ele se serve dela. O uso do termo “serventia” deve vir acompanhado de muito cuidado, pois se torna equivocado caso se queira entender que, ao dizer que o homem da obra se serve da linguagem, que isso significaria que ele possui alguma ideia de concepção anterior ao fazer: a obra é concomitante à sua própria realização (WEIL, 2012, p. 502). É desse modo que se torna compreensível o papel que a retórica desempenha na obra: “se a linguagem desempenha um papel de primeiro plano é porque os homens falam” (WEIL, 2012, p. 503). O homem da obra proíbe que aquilo que diz seja posto em questão confrontando seu conteúdo com o mundo tal como ele se apresenta. Não se trata de ensinar uma verdade, mas de persuadir, buscando a obediência, não a discussão com interlocutores. O homem da obra se põe como individualidade absoluta frente à comunidade humana que é apenas matéria para a obra (SAVADOGO, 2003, p. 175). A linguagem da obra se serve se metáforas cuja escolha é orientada tão somente por sua finalidade prática: o condão que exerce sobre aqueles que devem engajar-se na obra. “Quanto a estes, eles tomarão a metáfora como metáfora e recebê-la-ão sem julgá-la conforme o raciocínio, e mais justificadamente ainda sem recusá-la por seu caráter metafórico: aqueles que raciocinam não são, em caso algum, utilizáveis para a obra e devem ser tratados como inimigos” (WEIL, 2012, p. 505 - 506).
Julgar a obra, avaliá-la e conduzi-la perante o tribunal da universalidade. Não aderir cegamente ao seu projeto26 e, ao invés de impulsionar o seu movimento, almejar apenas compreendê-lo, constituem ambas as posturas daqueles que serão os seus inimigos preferenciais.
Com efeito, o homem da obra considerará sempre a filosofia como a atitude fundamental de seus inimigos, daqueles que recusam a colaboração porque, mesmo que estejam prontos para agir, querem julgar o projeto e, se renunciam ao julgamento, recusam a ação, contentando-se em compreender o que é; inutilizáveis em ambos os casos, ou eles desviam os homens do projeto, ou os desencorajam (WEIL, 2012, p. 509).
Aqui brota a raiz do caráter antifilosófico da atitude do homem da obra (WEIL, 2012, p. 509) Isso porque Weil salienta “que a violência do criador ameaça, se não a filosofia, ao menos os filósofos em sua existência” (2012, p. 509). É importante ressaltar ainda que a própria linguagem da obra age, é sempre movente, não fim em si mesmo. Se for necessário definir seu conteúdo em uma palavra essa palavra é mito. Esse mito cria para si uma tradição e almeja preparar os colaboradores para serem arrastados pelo movimento da obra. O mito serve, portanto, para detectar colaboradores e adversários: estes serão aqueles que, da perspectiva do homem da obra, lhe opõe seu próprio mito27 (WEIL, 2012, p. 506 - 507). O tema da linguagem também manifesta o caráter totalizante - o avesso do Absoluto - da violência da obra, pois seu objetivo é dominar a totalmente a linguagem do mundo do trabalho, da sociedade e do Estado modernos, a da condição (WEIL, 2012, p. 503). Essa pretensão se traduz para nós que a observamos em uma pergunta crucial: “Como então dominar essa linguagem em sua totalidade, isto é, dominar a sociedade e o Estado?” (WEIL, 2012, p. 503). Ela o faz pelo sentimento. Tudo de que o homem da obra se ocupa é do seu sentimento de si e da realização desse sentimento. Essa será sua obra, e tudo aquilo que existe no mundo - a ciência, a moral, a poesia, a religião, o próprio mundo - será matéria-prima para a realização de sua obra (WEIL, 2012, p. 497). A criação é o modo como o homem da obra se diferencia do universal, pois o que é universal é o comum. A obra, enquanto afirmação de um sentimento violento, é o que lhe é mais pessoal. “O homem só tem sua obra como algo que lhe pertença verdadeiramente, pois a obra depende dele, e ele não depende da obra” (WEIL, 2012, p. 498). Para esse propósito, não há qualquer consideração com o que quer seja além do ato: fazer alguma coisa que não existia antes sem estar sob os auspícios da Razão, substituindo o universal, é o imperativo. Trata-se de criar um mundo (WEIL, 2012, p. 498).
Sim, ele toma o mundo tal como é: o que ele quer fazer, ele o faz conforme as condições do mundo (daí o parentesco entre esta atitude e a da condição); mas ele não está sob a condição, assim como não está dentro desse mundo: está diante de ambos, só, e de forma alguma pronto para entrar numa discussão ou admitir raciocínios que não têm serventia. Nada o vincula aos outros, pois nada o vincula (WEIL, 2012, p. 498).
Desse trecho de Weil podemos extrair a caracterização do homem da obra nos seus três traços essenciais: ele é essencialmente violento, incompreensível e só. Pode causar espanto nos servirmos de uma definição de cunho essencialista para lidar com um caso que é desabridamente indiferente ao Ser. Mas essa impressão se desfaz tão logo nos lembramos que traçar um esboço do homem da obra é um exercício de metagoge. Dito isso, sua preocupação ubíqua com o movimento e sua indiferença frente a tudo que é comum - seu tédio abissal perante a Razão - constituem sua essência violenta28: nenhuma consideração pelo falar, pela moral, pelo gosto, pela fé e lei alheia. Daqui emerge o seu aspecto incompreensível, pois essa atitude de indiferença é, no momento do seu surgimento, encarada pelos outros com perplexidade, portanto, incompreensão, fato que em si nada teria de notável, afinal, lembra Weil, toda nova atitude passa por isso. O que é crucial aqui é que a atitude do homem da obra é incompreensível em si mesma, pois isso é parte de sua pretensão. Essa pretensão encontra sua raiz no fato de o homem da obra ser só: não existe outro para ele, apenas colaboradores ou adversários29. Esse isolamento dinamita qualquer relação de comunidade estabelecida entre ele os demais. Aquilo que é radicalmente isolado é incompreensível30.
Ele é só, só absolutamente, não isolado como alguém que foi eliminado ou se subtraiu de uma comunidade à qual continua a pertencer. Os outros o encaram como um dos seus: pior para eles; ele pode deixá-los nessa opinião, e até confirmá-los nela, assim como pode se mostrar um inimigo irredutível, com o qual “não há como conviver”, que é “louco” ou “genial”: isso depende dele, de sua obra e dos meios que ele julga apropriados para realizá-la. A violência está presente - oculta, confessa, estampada, preconizada, dissimulada -, mas sempre consciente de si mesma (WEIL, 2012, p. 499).
Essa violência é o sentimento da obra, que, por ser o outro da Razão, será total e absoluto como ela:
É esse sentimento que se denomina violência na linguagem dos homens para os quais a verdade da existência é a vida em comum; é o que o homem da obra denomina, assim, ele próprio, se isto lhe parecer indicado; e é uma violência total, não menos total que o discurso, e que nada conhece fora dela mesma, a violência que criou, cria e criará tudo que foi, é e será (WEIL, 2012, p. 500, grifo nosso).
Nosso objetivo agora é comparar brevemente o que foi exposto sobre a categoria da obra com o chamado líder das multidões desamparadas, presente no artigo Masses et individus historiques. Nesse texto, Weil apresenta, após uma caracterização das massas modernas, uma tipologia de líderes dada conforme a relação que cada um dos tipos mantém com essas massas.
O primeiro desses líderes é o chefe conservador, cujo exemplo fornecido por Weil é Churchill (1991 A, p. 306 - 307). Em seguida temos o chefe revolucionário: Lênin e Mao Tsé-toung (WEIL, 1991 A, p. 309 - 311). Segue-se o chefe nacionalista tecnocrata Kemal Ataturk na Turquia (WEIL, 1991 A, p. 314 - 316). Posteriormente temos o ditador, cujos exemplos dados são Salazar e Franco. Esse ditador é também chamado de pseudo-chefe, pois sempre se apresenta como exercendo o poder em nome de outra autoridade. Salazar dirige os assuntos do país em nome do Presidente da República, do qual ele não é, do ponto de vista estritamente legal, mais do que o Primeiro Ministro. Franco apresenta-se como um tenente do rei ou chefe legítimo pelo parlamento. Franco, assim como Hitler, invocava o “grande” e “verdadeiro” passado da sua nação. Esses chefes são fortemente anti-revolucionários Falando às massas, porém opondo-se aos seus dirigentes, o líder oferece proteção contra os chamados horrores da modernização pelo restabelecimento de antigos valores e velhas formas de vida, verdadeiras portadoras da nobreza e dignidade. Daqui resulta a confusão que pode haver entre essa tipologia e o líder das multidões desamparadas: o homem da obra (WEIL, 1991 A, p. 322 - 325).
O líder das multidões desamparadas é o criador de uma nova história, não somente no presente ou no futuro, mas no passado. Ele explica os eventos passados reconstruindo a história da nação sobre novos fundamentos, frequentemente sobrepondo o seu projeto ao que é histórico, reelaborando o passado a partir de uma origem heróica, obsoleta depois de muito tempo, ou mesmo toscamente inventada, tendo por propósito inspirar as massas desorganizadas, emotivas e agitadas por paixões negativas: uma fé cega no líder e um ódio intenso dirigido contra aqueles que são apontados como os verdadeiros responsáveis - ou culpados - pela situação precária das massas. O líder se aproveita de um ensejo para a tomada do poder. Quando uma crise econômica atira na insegurança certos grupos sociais que se beneficiavam da evolução econômica do país, eles se acham incorporados à condição de massa que tanto desprezavam. Esses grupos são compostos tanto de operários quanto de grandes capitalistas, sendo estes particularmente sensíveis ao chamado do líder, contrariamente aos estratos sociais inferiores. A razão disso, é que esses setores sensíveis julgam que sua tragédia não é apenas econômica, o que os faz mais susceptíveis à linguagem do líder (WEIL, 1991 A, p. 319 - 320). Vemos aqui a importância que a utilização da linguagem da condição como ferramenta tem ao se dirigir ao tédio e frustração daqueles que serão os colaboradores da obra. Consoante com esse discurso vem a necessidade de uma fé inquebrantável e total no líder, de modo que o pensamento deve ser alvo de perpétua suspeita. Todas as ideias, programas e doutrinas não passam de meios e o único universal reconhecido pelo líder é o poder irrestrito. O fim que o líder oferece é instável, muda com vertiginosa celeridade: o único aspecto permanente nesse projeto é a mudança cambiante, que prevalece sobre qualquer pensamento - temos aqui o aspecto amorfo da obra, a incompreensibilidade essencial do homem da obra e a repulsa à filosofia -, incluindo a racionalidade calculadora, técnica, que é apenas um meio. Weil encerra afirmando que é sob essa tipologia de líder que é possível compreender líderes como Hitler e Mussolini (1991 A, p. 321 - 322). Desse modo, concluímos que essa tipologia é um dado importante por fornecer o tipo histórico sob o qual é possível encontrar a atitude da obra concretamente, nos seus traços desconcertantes.
Considerações finais
O paralelo com os mitos dos supliciados gregos permite extrair dois traços do homem da obra: a indiferença - no mito, perante os deuses, para o que nos interessa, perante a razão -; o vazio - no mito, a causa é a Fome em relação ao alimento, na obra, a causa é o sentimento violento em relação à razão. O cotejamento também permite uma ilustração de três elementos componentes da singularidade da obra: a violência - no mito é revolta contra os deuses, na categoria, contra o Absoluto -; o movimento perpétuo - no mito ilustra-se pelo Tonel das Danaides e pela roda de Íxion, na obra, pela energia que retira dos conflitos - e a autofagia - no mito aparece como suplício de Erisictão, na obra trata-se da vocação para o fracasso.
O mito da obra divide o mundo entre ‘nós’ e ‘eles’, e a sua compreensão revela que o violento não é um tipo exógeno à humanidade, o que tanto denuncia o elemento da revolta contra a razão que separa os “verdadeiros” humanos daqueles que são considerados ratos, pragas, seres inferiores, como apazigua os sentimentos violentos de superioridade moral. Karl Jaspers vê com horror os sentimentos de superioridade moral e alerta que em todas as partes, grupos violentos se apossam do poder na primeira oportunidade para propósitos brutais baseados nessa superioridade (2018, 90 - 91).
A dupla vereda nunca selada entre razão e violência, ilustrada pelo deus de duas faces Jano, vale tanto para o indivíduo como para a comunidade (KIRSCHER, 1992, p. 149), pode oferecer uma perspectiva de compreensão para o caráter crucial da influência que o homem da obra é capaz de exercer sobre as massas. Weil observa que em um Estado moderno de uma sociedade materialista, calculista e racional31, cuja produção de bens se não produz em si uma vida sensata, na ausência destes, entretanto, tal vida se torna impossível. O perigo é que para uma existência vivida como insensata, no tédio fundamental, a violência desponta como único contraponto possível (1991 B, p. 385). A hipótese fundamental da livre escolha da razão enquanto passado hipotético cuja confirmação permanece sempre a ser atualizada e sua extensão por analogia para a compreensão da violência, vale tanto para indivíduos quanto para comunidades, do ponto de vista reflexivo. Surge aí a importância de uma razão enquanto possibilidade da vida em comum para a comunidade como enfrentamento da violência desagregadora que fornece a matéria-prima para o movimento da obra. Como vivemos em uma história que é produto da ação humana e que, a despeito dos vários traços sensatos que apresenta, pode a todo o momento cair na violência pura, permanece para o ser humano o imperativo nunca anulado de realizar a possibilidade da vida em comum (WEIL, 1970 B, p. 363 - 364). Portanto, a importância em compreender a categoria da obra está também, talvez, sobretudo, em não esquecer que a violência permanece sempre como uma possibilidade humana originária, radical e irredutível (QUILLIEN, 1970, p. 407), sempre uma potência na realidade política, dando provas que o homem pode recusar o discurso coerente e retornar à barbárie (QUILLIEN, 1970, p. 402). Importa não esquecer o caráter sempre passível de atualização da violência pura e o cultivo de uma espécie de héxis em direção à razão que a filosofia exorta (KIRSCHER, 1992, p. 34 - 35). Isso é imprescindível, tendo em vista os perigos da obra como possibilidade. A obra é sempre latente. A obra quando atualizada em um determinado país o encerra ao redor de um muro e atira a chave fora, fechando todos, prisioneiros e carcereiros32.
Finalmente, a compreensão da violência pura permite uma compreensão da própria razão - daquilo que a limita, a nega, a fonte de onde brota e que constitui o mundo no qual habita -, a violência é assim enquanto o outro da razão, o seu duplo invertido que, por se mostrar à razão naquilo que é, mostra o que a razão não é, portanto, o que não deve ser. A violência se constitui como um imperativo, um dever-ser negativo, ou dever-não-ser.