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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.78 Uberlândia set./dez 2022  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n78a2022-65514 

Artigos

A Universidade e o “homo sabius”. Crítica/Crítica1

The University and the “homo sabius”. Criticism/Criticism

La Universidad y el “homo sabius”. Crítica/Crítica

*Doutor em Estudos da Criança pela Universidade do Minho (UMinho). Professor Auxiliar com Agregação da Universidade do Minho (UMinho). E-mail: camilo@ie.uminho.pt


Resumo

O ensaio, em jeito de crítica/crítica, procura olhar para a Universidade na sua dimensão político-organizacional. Através de uma reflexão interpretativa, apoiada na constatação empírica e na literatura - uma metodologia que sai dos cânones de uma metodologia científica de investigação -, tenta “escavar” a Universidade e mostrar dois tipos de homo-politicus que nela existem: o “homo-violentus” (o homem - “violento”) e o “homo-sabius” (o homem - “sábio”). Esses dois tipos de homos (por certo, existem outros tipos) então “encarnados” nos decisores, gestores, professores, investigadores, estudantes etc. Desses dois tipos de homos vamos ter formas de intervenção política, cultural, científico/investigativa, educativo/pedagógico e humana diferenciadas - nas expressões informação, conhecimento, sabedoria - e, com elas, consequentes implicações na missão da própria Universidade.

Palavras-Chave: Universidade; Política; Investigação; Pedagogia

Abstract

The essay, in the form of criticism/criticism, seeks to look at the University in its political-organizational dimension. Through an interpretative reflection, supported by empirical evidence and literature - a methodology that departs from the canons of a scientific research methodology - it tries to “dig” the University and show two types of homo-politicus that exist in it: the “homo-violentus” (man - “violent”) and “homo-sabius” (man - “wise”). These two types of homos (of course, there are other types) then “incarnated” in decision-makers, managers, teachers, researchers, students etc. From these two types of homos we will have differentiated forms of political, cultural, scientific/investigative, educational/pedagogical and human intervention - in terms of information, knowledge, wisdom - and, with them, consequent implications for the mission of the University itself.

Key Words: University; Policy; Investigation; Pedagogy

Resumen

El ensayo, en forma de crítica/crítica, busca mirar a la Universidad en su dimensión político-organizativa. A través de una reflexión interpretativa, apoyada en la evidencia empírica y la literatura - metodología que se aparta de los cánones de una metodología de investigación científica - se intenta “cavar” en la Universidad y mostrar dos tipos de homo-políticos que existen en ella: el “homo-político”. violento” (hombre - “violento”) y “homo-sabius” (hombre - “sabio”). Estos dos tipos de homos (claro que hay otros tipos) luego se “encarnan” en decisores, directivos, docentes, investigadores, estudiantes etc. De estos dos tipos de homos tendremos formas diferenciadas de intervención política, cultural, científico/investigadora, educativa/pedagógica y humana - en términos de información, conocimiento, sabiduría - y, con ellas, las consecuentes implicaciones para la propia misión de la Universidad.

Palabras Clave: Universidad; Política; Investigación; Pedagogía

Introdução

“Não é preciso muito para matar uma pessoa: basta convencê-la de que ninguém precisa do que ela faz.”

Fiódor Dostoiévski

O objetivo deste ensaio, assente numa análise teórico/empírica, é olhar para a Universidade na sua dimensão política, cultural, científico/investigativa, pedagógica e humana e tentar apreender quais os caminhos que, nestes tempos, nela estão plasmados. Não pretendemos ir pelo complexo e profundo caminho da filosofia e da ciência política, tampouco ir pelo caminho partidário/ideológico. Convocaremos, apenas, alguns saberes dessas áreas e encimaremos algumas representações teórico/empíricas.

É um ensaio em jeito de crítica/crítica, no qual colocamos o nosso olhar, um olhar deliberadamente “radical”, mas que, e desde já, gostaríamos de enfatizar, não pode ser generalizável para todas as Universidades.

O ensaio está organizado em três momentos interligados:

Num primeiro momento, abordamos a dimensão política, tendo como galho inspirativo a recente obra de Graeme Garrard e James Murphy intitulada: “Como pensar politicamente” (2021). Trazemos, então, dois tipos de humanos políticos: o político do poder, que inscreve predominantemente o “homo violentus”; e, o político da justiça e da liberdade, que inscreve predominantemente o “homo sabius. Nesses dois tipos-de-humanos vamos encontrar representações e práticas diferenciadas assentes ora na política do poder, ora na política da justiça e da liberdade.

Num segundo momento, olharemos para a Universidade como locus dessas duas representações da política: o poder da política e a política da justiça/liberdade e, consequentemente, os dois tipos de humanos que daí emergem: o “homo violentus” e o “homo sabius. Nesse momento, trazemos para reflexão o modo como os decisores políticos, culturais, científico/investigativos, educativo/pedagógico e humana olham e abordam uma das trilogias estruturantes da vida na Universidade - a informação, o conhecimento e a sabedoria .

Num terceiro momento, prestamos um elogio à Universidade do/no futuro, enquanto tempo e espaço para o “homo sabius” que faz boas escolhas. Escolhas no campo das ideias, do poder, da justiça e da liberdade. Escolhas que conduzam ao conhecimento, à sabedoria e, consequentemente, à presença, à cidadania, à democracia e ao progresso.

Pretendemos, assim, refletir sobre as realidades, responsabilidades e novas possibilidades da/para a universidade, como um tempo e um espaço político, cultural, científico/investigativo, educativo/pedagógico e humano de excelência.

Momento primeiro - A dimensão política

O homem/mulher político/a

O termo política deriva de polis, a palavra grega que designava as antigas Cidades-Estado, sendo a base organizativa da sociedade do mundo grego. O homem é um ser (animal) político - na esteira de Aristóteles. Somos homens/mulheres políticos. Somos homens/mulheres individuais que se relacionam, convivem, conversam, dialogam, argumentam, refletem, discutem, conflituam, conhecem, participam, produzem. É nessas expressões da condição humana que o melhor e o pior de nós são colocados em movimento. Assim, se por um lado, há um sentido político, cujas ideias e ideais têm uma práxis, uma civilidade, em que o sentido democrático2 emerge como a melhor expressão do humano; há, no entanto, um outro lado, onde a violência e a destruição existem e parecem levar a dianteira.

A política sempre foi uma área caótica, governada mais pelo expediente e pelo compromisso do que por elevados ideais e princípios, por muito que estes sejam louvados. É geralmente jogo duro e perverso, uma espécie de “Guerra dos Tronos”, dominado por interesses conflituantes, emoções, riqueza e poder. Durante a maior parte do tempo é um jogo baixo e sujo [...] as manobras políticas mostram-se tão vergonhosas que são em grande parte conduzidas à porta fechada [...] nenhuma pessoa decente quer saber como são feitas nem as salsichas, nem as leis (GARRARD; MURPHY, 2021, p. 11-12).

Encontramos, portanto, sentidos políticos, cujas representações e práticas se apresentam, ora fechadas, controladas, vigiadas, manipuladas; ora abertas. Abertas ao novo, à criação, à inovação, ao respeito, à valorização, à nobreza moral e intelectual.

Apesar da política estar (hoje em particular) contaminada com motivos desprezíveis de baixa intriga, onde o espetáculo vulgar de trapacice e oportunismo tem o seu lugar, ela não deve perder o seu sentido iniciático de campo civilizador da atividade humana [...] a política é capaz de uma nobreza moral e de uma profundidade intelectual que são estranhas aos tempos atuais de telerrealidade e governo por Twitter (GARRARD; MURPHY, 2021, p. 12, grifo nosso).

A política do poder e a política da justiça e da liberdade

Há imensa literatura, em particular na filosofia política e na ciência política, que aborda as várias concepções de política e as várias formas de governo. Vamos, nesta reflexão (inspirados em GARRARD; MURPHY, 2021), trazer uma taxonomia simples, a partir da qual sistematizamos duas concepções da práxis política - já esboçadas anteriormente. Uma, que tem na coerção, na violência, na imposição, a sua matriz, a que vamos chamar - a política do poder; e outra, que tem no diálogo, na argumentação, na democracia, na justiça e, consequentemente, na liberdade, o seu fundamento, a que vamos chamar - a política da justiça3e da liberdade.

Momento segundo - Olhar para a Universidade

Um olhar preliminar à Universidade - pela política do poder e pela política da justiça e da liberdade

A universidade parece constituir-se como um locus destas duas representações da política: o poder da política e a política da justiça e da liberdade e, consequentemente, um locus de dois tipos de humanos: ohomo violentus” e o “homo sabius.

Quando olhamos para a política do poder e a política da justiça e da liberdade na Universidade4, num primeiro momento, poderíamos pensar que esta é um campo onde mora a política da justiça e da liberdade, uma vez - vamos pegar na representação social - que será um local onde trabalham pessoas elevadas em termos de conhecimento e de sabedoria e onde a dimensão ético-política faz parte do seu viver. No entanto, esse fato pode representar uma “pura ilusão”5. Se bem que em alguns casos - em algumas Universidades - esse cenário possa ser verdadeiro, na maior parte dos casos (vamos trazer o nosso olhar empírico e os dizeres de alguma literatura/investigação) estamos perante um cenário onde a política do poder parece ser dominante.

O “homo violentus(a política do poder) consciente e/ou inconscientemente está presente. Essa presença encontra-se, por exemplo, nos interesses pessoais e grupais (tribais), e nos interesses da informação, do mercado e da produtividade. Pelo contrário, o “homo sabius, (a política poder e da justiça) parece constituir-se como uma raridade, mas, e por paradoxal que pareça, ele é - na nossa representação - aquele que sustenta, de forma sútil e discreta o ideário e a missão genuína da Universidade: ele(a) faz com que a criação, a inovação, a originalidade, o conhecimento, a sabedoria, a eloquência, a distinção, saltem cá para fora - “a verdade que salta cá para fora.

Aquele discurso geral/ideal que refere a necessidade urgente dos cidadãos elevarem a responsabilidade no empenho na política e, para tal, a necessidade de estarem informados, mas também precisarem de ser conhecedores e sabedores é, na maior parte dos casos e lamentavelmente, um não fato. A maior parte do poder e as grandes decisões que têm implicações pessoais, profissionais, científico/investigativo, educativo/pedagógica e culturais é exercido muitas vezes de forma “silenciosa”, pouco clara, ambígua - caraterísticas da política do poder. Essa realidade parece estar presente em todos os níveis da estrutura hierárquica e organizacional: macro, meso e micro. Esse fato, como veremos, vai ter implicações nas variáveis que se apresentam como estruturas e substâncias de uma Universidade: a informação, o conhecimento e a sabedoria.

A Universidade: entre a informação6, o conhecimento e a sabedoria

Analisemos o “homo violentus” e o “homo sabius” à luz da trilogia: informação, conhecimento, sabedoria. Uma trilogia, se quisermos, que sustenta a práxis universitária nas suas várias dimensões. Uma definição/sistematização rápida e simples (e por certo incompleta) de cada uma delas:

A informação aparece como um conjunto de números, de ideias, de frases, de símbolos, de figuras. Números, ideias, frases, símbolos, figuras soltas, repetidas, modificadas; números, ideias, frases, símbolos, figuras, ora bem sustentadas, ora menos bem sustentadas; ora verdadeiras, ora falsas. Uma das características da informação é a sua volatilidade e temporalidade que pode ser manipulada, modificada, instrumentalizada. Esse fato é, só por si, um reduto de potencial/real violência.

O conhecimento, por seu lado, aparece como forma de sistematizar, racionalizar, dar sentido e significado à informação. Há um “conhecimento mais sólido”, mais sustentado, estamos a pensar no conhecimento dito científico, mas, mesmo este, pode ser frágil e um “conhecimento mais frágil” assente em crenças e representações individuais e grupais, mas também noutras formas de conhecimento, que habitam a Universidade: a doxa (senso comum), o conhecimento religioso, artístico, sem esquecer as expressões culturais, multiculturais e técnico/tecnológicas.

Finalmente, a sabedoria. Ser sábio é chegar ao “alto”, é chegar à “verdade”. Para Pitágoras a sabedoria só é possível à divindade (“ver a Deusa” - a verdade radical). Mesmo que os seres humanos não consigam alcançar a “verdade” - a limitação da sua condição - podem, no entanto, chegar ao conhecimento, um conhecimento nunca acabado (Prometeu...). Olhando para este sentido da sabedoria, hoje talvez possamos dizer que ser sábio é pegar a informação e o conhecimento e colocá-los ao serviço do bem individual e comum. Colocá-los ao serviço da produtividade, da inovação, da técnica, da construção, mas também da cultura, da ética, da justiça, da liberdade e de uma estética (o bem, o bom e o belo). Ser sábio é convocar formas mais elevadas e profundas de conhecer e compreender a realidade e atuar conforme o bem individual e coletivo. Ser sábio é estimular a criação do novo e do espanto. Ser sábio... “ajuda a respirar”.

Podemos colocar a seguinte questão: como estão a informação, o conhecimento e a sabedoria na Universidade?

“Acabamos por permitir que os mercados e os burocratas tomem as decisões por nós, deixando os cidadãos resignados e alienados da intervenção social e política” (GARRARD; MURPHY, 2021, p. 11).

Pelo olhar empírico e teórico/investigativo, pensamos que a maior parte dos decisores políticos, culturais, científico/investigativos e educativo/pedagógicos estão perto - gostam - da informação. A Universidade está revestida de informação. Assim como estão revestidas as estruturas que a influenciam e a determinam: o estado e a economia. É a informação que alimenta a política do poder, é a informação que alimenta as lógicas de controle e de manipulação burocrática com os seus discursos e práticas quase exclusivos de produção e eficácia.

O conhecimento e a sabedoria na Universidade parecem estar em crise. O próprio conhecimento, em particular o conhecimento científico, a razão positiva de que a Universidade tanto gosta, está prisioneiro da informação. Paradigmático desse cenário é a produção de conhecimento. Se fizermos uma análise atenta, constatamos que este conhecimento, é muitas vezes um conhecimento repetido em quantidades (uma indústria de produção) onde se investigam e utilizam quase sempre as mesmas temáticas, os mesmos problemas, as mesmas metodologias, os mesmos instrumentos, os mesmos autores, as mesmas reflexões, as mesmas conclusões, as mesmas estratégias de produção e divulgação.

Um conhecimento realizado por muitos, sob o lema, diríamos, sob a ideologia, da produção e do trabalho de equipe. Veja-se a listagem de nomes que encimam os artigos e os livros. Artigos que, com frequência, têm de ser pagos (e bem pagos) para serem publicados. É o “cantar” da ciência da produção e do mercado. É óbvio que há muitos artigos e bons artigos de investigação e de reflexão que são publicados noutras revistas não pagas e de muita qualidade, assim como há (vai havendo) produção individual - muito pouca - sem que seja individualista, o que mostra o potencial e o real valor dos docentes/investigadores e estudantes. Só poderá haver um verdadeiro trabalho de equipe, (centros de investigação, programas e grupos de pesquisa etc.) quando a capacidade e a potencialidade de cada um são colocadas em “cima da mesa”. Não, ou não apenas, um trabalho de equipe que serve para legitimar um ou dois “lideres” e, daí, como sabemos, todas as mordomias que se instalam. A realidade é ainda mais triste quando esses líderes são, geralmente - felizmente há boas exceções - homens/mulheres da política do poder que não permitem e expressão da criatividade e do mérito do Outro. Esse fato leva a uma pobreza interna da própria Universidade.

Sociedade produtiva, Estado produtivo, Universidade produtiva

Falar da Universidade é, também, falar de duas estruturas que estão na sua retaguarda e que a sustentam e a influenciam: a sociedade e o estado. Atualmente, e na história do paradigma capitalista (onde nos situamos), a sociedade e o estado estão inscritos no sentido da produtividade. Vivemos hoje num modelo de sociedade globalizada (apesar de “novos ventos” começarem a reclamar o local, a comunidade do perto) assente num processo de mercado, de produção, de eficácia, que tem como foco a informação (controlada/controlável) e a dominação econômica/tecnológica. O estado (um subsistema social) aparece como um dos grandes representantes desse “estado de coisas”. Um estado também prisioneiro da produtividade e da eficácia, parecendo demitir-se da sua responsabilidade maior: o sentido político-nação-cidadão. O sentido político, nesse envolvimento da produtividade, veste-se com a roupagem da política do poder (politicus-violentus) e, com ela, todas as implicações associadas e que no limite entram (podem entrar), no campo da desumanização, da destruição do Outro.

A Universidade aparece como representante/instrumento da sociedade e do estado produtivo não fugindo, ou melhor, até alimentando o modelo social capitalista de mercado. Chauí (2001, 2003) vai chamar a esta Universidade a Universidade Operacional de Servidão Voluntária - bebendo no pensamento de Etienne de la Boétie. Lima (2013, 2014) por seu lado, vai chamar de Universidade Gestionária esclarecendo e aprofundando conceitos como: democratização, autonomia, governação, mercantilização, competição, instrumentalização, produção de conhecimento, entre outros. Aliás, constatamos que a Universidade, apesar da sua “autonomia”, é regida por programas de investigação, pedagógicos, educativos e culturais que são supervisionados pelo “olho” da sociedade e do estado produtivo. Esse fato é agora materializado por uma “nova criação” valorativa e avaliativa (interna/externa) - o afamado ranking de produção e de mercado. Um ranking que gosta de um tipo de excelência: a excelência como produtividade, a produtividade como expressão do progresso. A excelência da invenção moderna, da qual, ao que parece, (“não”) nos podemos libertar. Há como que uma “lei de ferro” implícita e explícita nas sociedades (ocidentais) atuais que não as deixam expressar de outras formas.

Ora, tais padrões, além de impostos, fixos, estandardizados, têm um outro fim implícito: a dimensão econômica e a preparação para o mercado de trabalho. A preparação para o mercado de trabalho (ferozmente competitivo) traz implicações restritivas para uma formação ampla, que o mundo globalizado exige, inclusive à qualidade do trabalho; mas também e, sobretudo, restrições em termos de uma formação humana mais estreita, integra e integral (STEDEROTH, 2020).

Pelo contrário, ou melhor, em paralelo - pois não podemos excluir essa excelência da produtividade, como facilmente podemos depreender - outras excelências estão “em espera”. A excelência da nobreza humana (razão, inteligência, emoção, afeto); a excelência da nobreza de carácter e de espírito; a excelência de vivermos juntos e com ela a excelência da ética - a verdadeira ética (boa ação) é sobretudo coletiva, onde um máximus ético está presente. Essas são excelências que alimentam o conhecimento e a sabedoria. A Universidade e a investigação, mais do que um campo de produção de informação e conhecimento, deveria ser um campo de cultura e de sabedoria, um campo político onde os direitos cívicos e éticos pela participação se fazem presentes.

De fato, as políticas quase exclusivas de produção na Universidade - a política do poder (homo violentus) parecem estar afastadas da política da justiça e da liberdade (homo sabius) que fazem brotar as boas ideias, a criação, a excelência da formação cultural dos indivíduos e da Nação7. O Estado/Universidade são hoje os representantes do mundo produtivo e econômico. Agamben (2012) considera-o como um órgão estruturado e dinâmico assente num poder (uma biopolítica) que abarca o espírito do mercado capitalizado, no qual se preconiza a instrumentalidade de um padrão de conhecimento competitivo e utilitário. Dessas constatações emergem discursos e urgências “de salvação”. Como afirma Dalbosco (2010, 2015), existe uma necessidade urgente em introduzir caminhos humanizados que mitiguem, por exemplo, as lutas ora latentes, ora manifestas entre áreas/linhas de investigação, programas de graduação/pós-graduação e entre decisores e investigadores que, no “limite”, conduzem a uma barbárie institucional, acadêmica e investigativa.

Há uma urgência na melhoria da qualidade e da missão da Universidade, uma qualidade relacional (pedagógica/educativa), cultural e investigativa. Nesse último caso, além da investigação básica/fundamental/fronteira e aplicada, a investigação necessita de largueza, de originalidade, de criação, de novidade. O mesmo acontece com o ato didático e pedagógico (educativo), que precisa de formação humana.

Sociedade privada, Estado privado... Universidade privada

Como temos vindo a referir, as crescentes transformações nas universidades, resultantes do domínio da ideologia produtiva/econômica, nas suas variáveis de competição, lucro, eficácia, rendimento, tem influência no ato pedagógico, cultural e investigativo. Esses fatos têm implicado uma organização e funcionamento que convoca uma outra grande inscrição - a ideologia do privado (PERONI; LUMERTZ, 2021). Na organização privada existe uma busca insistente e uma preocupação constante de todos os membros que a compõem para garantir a sua sobrevivência e expansão produtiva/económica. No caso das Universidades públicas, parcerias público-privadas, fundações, essas, na sua grande maioria, acabam por se constituírem como corporações empresariais, que exigem formação técnica e pesquisas direcionadas, vislumbrando resultados que tenham rentabilidade econômica - uma mentalidade privada que habita no público e que parece ganhar sempre.

As pessoas, quando elegem os governos, estão elegendo os administradores dos fundos públicos, daquilo que seria um projeto coletivo, mas os governantes eleitos, muitas vezes, ao invés de apresentar projetos para o avanço dos direitos sociais, possuem projetos de privatização pessoais e grupais no seu horizonte. O trabalho pedagógico do professor e os programas investigativos são cerceados e passam a servir aos interesses do mercado, a garantir unicamente que diferentes práticas e concepções pedagógicas fiquem de fora dos muros da Universidade. Perde-se de vista a autonomia pedagógica (e científica) que é de fundamental relevância na construção de uma escola/universidade próspera, democrática e participativa (PERONI; LUMERTZ, 2021, p. 229).

Justifica-se, por isso, mais uma vez, o fortalecimento da comunidade acadêmica, científica/pedagógica, investigativa, cultural, no questionamento ao conjunto político-social que aprisiona - pelos modelos exteriores -, a liberdade e a construção de uma cultura interna de colaboração, autonomia e criação original. Nesse envolvimento Trevisan, Dias e Ferrão (2021, p. 114) referem que “o desenvolvimento econômico é um meio e não um fim, não podendo determinar ao social o que ele deve ser e fazer, a não ser por uma visão economicista e reificada, dentro de uma semi formação cultural”.

Os decisores políticos, científicos e pedagógicos - conhecimento e sabedoria

A informação parece ser a dominante do viver - científico, pedagógico, educativo, investigativo, cultural e profissional na Universidade. A ideia de conhecimento e de sabedoria parecem estar mais mitigadas, apesar do discurso oficial dizer o contrário. De fato, encontramos muitos “especialistas” nas suas áreas de investigação e intervenção, o que implica a compreensão, análise e formulação de teoria(s) e prática(s). No entanto, essa especialidade/especificidade funda-se e sustenta-se (na maior parte dos casos) na informação (repetida), com uma aparente substância de conhecimento e sabedoria. Parece faltar à maioria um conhecimento mais geral (cultural, interdisciplinar) que permita abrir portas ao seu conhecimento específico “da mesmice”.

O conhecimento não tem limites, o conhecimento maduro “sai das suas portas” e vai à procura de conhecimento que enriqueça a especialidade. É a expansão da nossa imaginação sustentada, não sustentada e inusitada acerca do possível que agora está (devia estar) em análise. Porque outros possíveis, outros problemas de investigação, outros olhares educativos, culturais, pedagógicos e didáticos, outras perguntas, podem estar “lá fora”.

Quando dizemos que a imaginação pode ser não sustentada, dizemos de forma deliberada. A universidade não é apenas ciência, ciência positiva. A Universidade é a casa (devia ser) do conhecimento, de todo o conhecimento (uma gnose) e da sabedoria. Aliás, o que tem salvado a humanidade das grandes crises é o conhecimento, a sabedoria e as expressões do humano - a imaginação, a criatividade, a utopia, a curiosidade, o sonho; e isso, ao que sabemos, tem pouco de ciência positiva. Aliás, os problemas e os temas da ciência positiva necessitam desse a priori.

Os decisores políticos, científicos, culturais, educativos e pedagógicos, ao serem pessoas de conhecimento largo e profundo, de sabedoria e cultura (BLOOM, 1985), por certo terão uma reflexão mais profícua e tomarão decisões mais justas e de interesse da própria Universidade. Há assim uma rutura com os interesses pessoais e grupais.

Aquilo que mais precisamos não é de mais informação (e informação falsa/desinformação), mas de mais profundidade, não de mais dados, mas de mais perspectiva, não de mais opiniões, mas de mais conhecimento... e sabedoria (GARRARD; MURPHY, 2021, p. 13, grifo nosso).

Quando dizemos que a universidade está em grande parte habitada por pessoas de “pouca sabedoria, queremos dizer que há pouca gente do/noalto. É a sabedoria a forma mais elevada e profunda da compreensão da realidade. A sabedoria, para ser sábia, é alimentada pelas ideias e pelo conhecimento sustentado, refletido, axiológico, criativo, argumentativo8, envolta no verdadeiro poder - o poder da justiça e da liberdade. A sabedoria faz-nos sorrir - o sorriso Divino. O sorriso que, pela Alegria (Espinosa), torna-nos mais humanos.

Na Universidade a maior parte não ri, nem sorri. Está prisioneira de um sistema burocrático, fechado e muitas vezes injusto - não gosta da ética. Está mais preocupada com a organização hierárquica e com a perpetuação de um sistema produtivo e “hereditário” e nada preocupada com a competência e com a sabedoria que abre futuro.

Tudo na Universidade se joga entre informação versus conhecimento/sabedoria. Mas há “boas ideias” e “ideias menos boas”. No entanto, sabemos que as boas ideias parecem estar ancoradas no conhecimento humanizado e na sabedoria. E as boas ideias não podem deixar de interessar à Universidade. São elas que podem tirar do marasmo uma Universidade cansada, calada.

Momento terceiro - Para uma Universidade do (no) futuro

As ideias, o poder, a justiça e a liberdade - as escolhas

Discutir política, quer a política do poder, quer o poder da justiça e da liberdade, é falar de diversas variáveis/dimensões intrinsecamente ligadas à política. Destacamos quatro dimensões (existem outras): as ideias, o poder, a justiça e a liberdade. Analisemos, de forma sucinta, cada uma dessas dimensões presentes na universidade, e que podem ser objeto de escolha - as escolhas:

i) A política enquanto pensamento e ação necessita das ideias

São as ideias que governam e continuam a governar o mundo. Nem tudo é economia. As ideias desempenham um papel decisivo nas questões humanas, que nunca são puramente práticas. Têm um núcleo, uma origem teórica. As ideias e os conceitos aparecem, assim, como “molas de impulso”, para as práxis sempre renovadas, ou não. As grandes invenções, as grandes obras, as grandes/boas investigações, as grandes revoluções partem sempre de grandes e “boas” ideias, não esquecendo o acaso. Ideias ora complementares, ora contraditórias. Como referem Garrard e Murphy (2021, p. 13) a esse propósito, “ideias de cooperação e conflito, de idealismo e cinismo, de esperança e desespero”.

As ideias não fundam apenas investigação científica e o conhecimento científico. As ideias fundam e desenvolvem outras formas de conhecimento através de um exercício reflexivo, criativo, imaginativo, mítico, metafórico, utópico do ser humano. Por isso, as ideias apresentam-se como fundamentais para a vida em geral, para o conhecimento e para a sabedoria, das pessoas e instituições, e para o pensamento e a prática política.

As ideias, na política do poder, são as ideias fixas, instrumentais, informacionais, burocráticas, que procuram a luta e a vitória a todo o custo. As ideias, no poder da justiça e da liberdade, são ideias livres, procuram o debate, o diálogo, a argumentação, o consenso - as ideias do conhecimento e da sabedoria.

ii) A política enquanto pensamento e ação necessita de poder

A história do poder representará a história de uma realização. O humano foi transbordando os seus próprios limites, procurando sempre mais. Reinventando-se, para continuar a procurar um sentido para as coisas. O poder tem a ver com essa capacidade de invenção, com a consciência dos nossos próprios limites e, nessa medida, com as suas transgressões.

O poder é uma das manifestações mais importantes da política. Ele é procurado, disputado, defendido, exercido, existindo também em todo o tecido social - famílias, prisões, hospitais, religiões, escolas/universidades, fábricas, locais de trabalho etc9. No entanto, o poder supremo está presente nos governos, nos vários poderes, na política ideológica e cidadã. Como afirmamos, o poder pressupõe sempre disputa, luta. Nesse contexto, Garrard e Murphy (2021) colocam a seguinte questão:

Se a política é uma luta de poder, então o que a torna distinta dos animais? Afinal de contas, vemos competição pelo poder, pelo domínio e pela submissão em todo o reino animal. Não passarão as competições políticas de rituais de marradas? Serão os líderes políticos macacos nus a afirmarem o seu domínio? (GARRARD; MURPHY, 2021, p. 16)

Essa disputa poderá, numa taxonomia simples, ter dois sentidos: um sentido em que o poder é exercido de forma brutal, coercivo, sumário, violento - lógicas totalitárias, autoritárias; um outro sentido em que o poder é exercido sob a forma de diálogo, argumentação, cedências - uma diplomacia de influência, representatividade e democracia. Por conseguinte, no exercício do poder, implícito ou explícito, há “vencedores e vencidos” e só num grau de inteligência e sabedoria superior - a ética em ação - saberemos aceitar os dois estados.

O poder na política do poder é um poder fixo, instrumental, informacional, burocrático, procura a luta e a vitória a todo o custo. O poder no poder da justiça e da liberdade é um poder das ideias livres, da procura do debate, do diálogo, da argumentação, do consenso - o poder do conhecimento e da sabedoria.

iii) A política enquanto pensamento e ação necessita de justiça

A justiça apresenta-se como o ponto de elevação do verdadeiro poder, aquele poder que humaniza (HABERMAS, 2004; RAWLS, 1997, 2003, 2005). Dar ao outro o que lhe é devido e o que lhe é devido é aquilo que o torna humano e que, ao mesmo tempo, nos torna humanos. Trata-se daquele sentido de justiça que levou Aristóteles a interrogar-se (na sua Ética a Nicómaco): “Como viver bem em instituições justas?”

Na esteira de Aristóteles, o que nos distingue dos animais e o que torna a política humana singular é que não lutamos apenas pelo poder, mas pela justiça, onde poder e justiça caminham juntos.

Os outros animais conseguem comunicar prazer ou dor, mas apenas a linguagem humana, somos seres de linguagens múltiplas, consegue expressar as diferenças entre o bem o mau, certo e errado, justo e injusto [...]. Um pensamento político sólido depende de uma compreensão clara das exigências tanto da justiça como do poder (GARRARD; MURPHY, 2021, p. 16-18, grifo nosso).

A justiça na política do poder é a justiça da moral fixa, instrumental, informacional, burocrática, injusta, procura a luta e a vitória/justiça a todo o custo; A justiça no poder da justiça é a justiça livre, ética (a ética como boa ação), procura o debate, o diálogo, a argumentação, o consenso - a justiça do conhecimento e da sabedoria.

iv) A política enquanto pensamento e ação necessita da liberdade

A liberdade é uma das maiores expressões da condição humana e animal. É com ela e por ela que podemos expressar toda a nossa potência em ato, é com ela que podemos dar “saltos libertários”. Podemos encontrar vários olhares sobre a liberdade para lá da distinção (clássica) expressa na liberdade negativa e na liberdade positiva (BERLIN, 2002); para além da liberdade comumente referida e imposta pelos limites da lei racional, da lei moral, e da lei jurídica - “A minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro, há outra liberdade, uma liberdade maior (originária) que gostaríamos de enfatizar: “Eu sou livre quando expando o outro. Essa é uma liberdade radical, uma liberdade que não impõe limites a si própria, porque faz parte do encontro autêntico. Uma liberdade que acolhe o Outro na sua hospitalidade, reconhecendo-lhe o rosto (o rosto é a primeira entrada para a identidade), respeitando-o. Estamos no campo da radicalidade do/ao Outro, estamos no campo da alteridade, do personalismo, da empatia10.

A política é muito mais do que um simples choque de interesses, do exercício do poder pelo poder. A política genuína tem como campo de alcance o vivermos juntos, o vivermos juntos na pólis. Todos esperamos que o poder seja exercido com justiça e liberdade ética e que a justiça controle o poder (relação de vigilância). A atividade política é também a tentativa de impor uma concepção de justiça - mesmo tendo a necessidade de convocar muitas vezes atitudes coercivas ao poder. Se os seres humanos fossem perfeitamente bons, a lei apenas precisaria de nos dirigir para aquilo que está certo e é justo; mas, em virtude da recalcitrância egoísta da natureza humana, a justiça legal tem de depender também de sansões coercivas (GARRARD; MURPHY, 2021, p. 17).

Quem desconhece o que é a verdadeira liberdade desconhece o verdadeiro poder, desconhece a justiça, a ética e as ideias primeiras.

A liberdade na política do poder traduz-se numa liberdade não livre, numa da moral fixa, instrumental, informacional, burocrática, muda. A liberdade no poder da justiça é uma liberdade livre, ética, que procura o debate, o diálogo, a argumentação, o consenso - a liberdade do conhecimento e da sabedoria.

As ideias, o poder, a justiça e a liberdade - podemos escolher?

A Universidade da presença, da cidadania e da democracia

Sabemos que não é fácil abordar a presença, a cidadania e a democracia nesse “novo mundo” complexo, dinâmico, multicultural, multieconômico e, agora, multibélico, e, na continuidade, olhar e defender a presença, a cidadania e a democracia no Campo (us) Universitário. Os vários motivos e forças em presença na Universidade, que temos vindo a referir, ajudam-nos a ilustrar esta afirmação.

Independentemente dessa constatação e dificuldade, não deixamos de ser impelidos para o campo da idealização (romantismo, utopia?). Nesse sentido, há uma urgência em olhar para a Universidade nos seus constituintes investigativos, culturais, pedagógicos, educativos, sociais, políticos etc., como um locus de construção da democracia e da produção de conhecimento. Um conhecimento que sirva ao social e não apenas às elites econômicas e de poder (externos e internos) com seus fins lucrativos. Não nos esqueçamos que parecem ser esses sistemas - como já enfatizamos - que comandam o ato investigativo, pedagógico, educativo, cultural, minando muitas vezes as potencialidades intelectuais, morais, éticas e estéticas dos seus professores, investigadores e estudantes. Minam o sentido cooperativo, colegial, criativo, original, dialógico, dos vários autores/atores, num espaço onde a autenticidade e a ética se fazem (deviam fazer) presentes - a política da justiça e da liberdade é a política que constrói ohomo sabius. Na esteira de Wood (2007, p. 418), afirmamos: “Toda prática humana que possa ser convertida em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático”.

Para que esse sentido democrático se possa efetivar, é importante o reconhecimento do Outro - o estudante, o professor, o investigador -, enquanto potência e ato, enquanto ser de liberdade, de sentido racional, reflexivo, de sentido crítico; sem esquecer as dimensões relacionais e morais/éticos - o afamado Eixo da Roda do saudoso Adriano Moreira. Trazer significado e sentido para a sua práxis pedagógica, educativa e investigativa e cultural numa expressão individual, coletiva, social e colaborativa parecem ser os carris necessários para se aceder à dimensão democrática. Carris de significado e sentido assentes nas relações de autenticidade, de verdade no exercício profissional e na produção/criação de conhecimento e sabedoria.

Assim, a produção e a criação do conhecimento, o ato pedagógico, as expressões culturais que sustentam um caminho democrático, devem estar assentes num conhecimento útil, renovador, liberto, educativo, maduro, autônomo, inovador, criador. Um conhecimento que brote da riqueza interna da Universidade e da riqueza social (a ideia de Nação), desamarrando-se dos ditames excessivos do mercado e da economia. Há necessidade de uma brecha de fuga11 para que a Universidade cumpra o seu desígnio. Na linha de pensamento de Trevisan, Dias e Ferrão (2021), uma universidade que privilegia o “Ser”, enquanto movimento que representa a fluidez da vida do sujeito.

O sentido da presença, da cidadania e da democracia desenvolve-se, assim, no desvelar de relações frutíferas e de discursos e práticas humanas autênticas, de novas narrativas, num caminho genuinamente colaborador, cooperativo, favorecendo a ressignificação das relações e representações entre os membros da Universidade e da comunidade escolar, assim como os discursos que os perpassam. Sabemos que são discursos, representações, narrativas muitas vezes contraditórias, opostas, mas é aí, é precisamente aí, que está o ponto de ligação e comunicação: saber-ser, saber-aprender, saber-perguntar, saber-ajudar, saber-pesquisar, saber-ensinar, saber-cooperar, saber-escutar, nas objetividades, mas também nas subjetividades e nas intersubjetividades.

Outras excelências e considerações finais

Ao longo desta reflexão, discutimos a Universidade sob o ponto de vista político e constatamos que existem “dois tipos de humanos politicus” que inscrevem em cada um desses tipos formas de política: a política do poder, na qual se encontra predominantemente o “homo violentus- o representante da sociedade, do mercado, da produtividade, da eficácia; e a política da justiça e da liberdade, onde se encontra predominantemente o “homo sabius- o representante da presença, da cidadania e da democracia. Também trouxemos à reflexão o modo como os decisores políticos, científicos, pedagógicos, educativos e culturais, olham e abordam a trilogia estruturante da vida na Universidade - a informação, o conhecimento e a sabedoria. Finalmente fizemos um elogio à Universidade do/no futuro, enquanto tempo e espaço para o “homo sabiusque faz boas escolhas, escolhas no campo das ideias, do poder, da justiça, da liberdade; que faz boas escolhas que conduzam ao conhecimento e à sabedoria.

Tentamos, assim, refletir sobre as realidades, responsabilidades e novas possibilidades para a Universidade como um tempo e um espaço político, investigativo, cidadão e educativo de excelência.

Repomos o pensamento atribuído a Fiódor Dostoiévski: “Não é preciso muito para matar uma pessoa: basta convencê-la de que ninguém precisa do que ela faz”. Não cremos (ainda) que a Universidade esteja a “matar” os seus professores, investigadores e estudantes. Não cremos que possamos dizer que o que fazemos (quando não está no caminho da produtividade, da eficácia, do ranking, dos interesses grupais e de alguns “lideres”) não é preciso.

Precisamos dizer aos seus professores, investigadores e estudantes, que aquilo que fazem, produzem, investigam, constroem de forma única, criativa, original, faz falta à Universidade, à sociedade, à política e à vida individual e coletiva. Tudo o que fazem de bom é preciso, e o bom é por certo construir pessoas, que procuram um conhecimento “vivo” que as ajudem a terem uma vida boa em todos os níveis.

Precisamos dizer aos seus professores, investigadores, estudantes que existem outras possibilidades - tradicionais e de agora - no campo teórico e investigativo. Precisamos dizer que todas as formas de conhecimento dizem a condição humana. A Universidade não é só ciência. “A ciência pode alguma coisa, mas não pode tudo” (ideia escutada a Licínio Lima numa outra matéria). Vemos muitos professores, investigadores, estudantes (contaminados), com o discurso radical da ciência, mas isso não chega.

Precisamos dizer aos seus professores, investigadores, estudantes que não podem esquecer a necessidade urgente da Universidade recuperar outras excelências que intrinsecamente lhe interessam e a consubstanciam na sua missão:

i) a excelência como nobreza de carácter e de relação.

Aquela excelência cantada pela Paideia e Aretê Grego, aquela excelência cantada pela Humanitas Romana, pela Bildung Alemã (metáfora da caminhada cultural ao longo da vida), ou mesmo pela Educação Moderna no tocante ao elogio e à recuperação da ética individual e do viver coletivo;

ii) a excelência como expressão do espírito, nobreza de espírito.

Num primeiro momento, pode pensar-se que estamos a entrar num campo místico. Um místico/espiritual que não entra (pelo menos de forma explícita, visível) na Universidade com a sua presunção racional. Mas, não, a excelência espiritual, antes de ser do campo do religioso, do místico, da racionalidade, da cultura, é um dado ontológico, é do campo do indizível, é um sentimento. A excelência espiritual diz respeito ao ser, diz respeito a uma tensão do corpo, a uma força da alma, a um desejo individual e coletivo que se reinventa. A excelência espiritual mergulha na imanência: isto é, mergulha na ação, mergulha numa prática. A transcendência na imanência, como refere Chardin (2012) na sua Antropologia dinâmica. A espiritualidade é muito mais do que orar, fazer um retiro, praticar yoga, passar um fim de semana num mosteiro, ou viver mesmo num mosteiro. É muito fácil ser “santo” dentro de um mosteiro. Estes são, por certo, pequenos caminhos. Mas a verdadeira espiritualidade tem a ver com a ação, a prática da boa ação, a ação autêntica, a ação verdadeira. Estamos no campo da radicalidade ética, da empatia e da alteridade. Quando colocamos em ação toda a nossa potência, toda a nossa capacidade (intelectual, moral, espiritual), toda a nossa qualidade em nós e na relação com os outros (uma conversa de corredor, uma conversa com os alunos, auxiliares, uma aula, um congresso, um seminário) e com o mundo, estamos a Ser Seres Espirituais. A qualidade da relação diz a qualidade do humano. A Universidade é um lugar privilegiado para tudo o que é humano; e tudo o que é humano/natureza não nos pode ser estranho. O “homo sabius”?!

Referências

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1Homo sabius” — é uma adaptação nossa em relação ao termo “homem sábio”, que em latim seria homo sapiens. Desse modo, evitamos a associação para a designação da espécie humana e reforçamos (é nossa intenção) a ideia de sapiência inerente, pelo menos teoricamente, ao homem acadêmico.

2 Derrida e Dufourmantelle (2008) vão olhar para a democracia como um verbo. Nenhuma democracia (liberal, social etc.) pode ser definitivamente estável ou absoluta, está sempre por-vir porque, enquanto houver injustiças, temos de continuar a aprofundar a abertura. Recuperar o político é um primeiro passo para a política que-vem; recuperá-lo sem dogmas, nem discursos vazios, conscientes dessa tensão criativa entre o possível e o impossível.

3São muitos os pensadores que olharam para a política no sentido do seu poder (o poder pelo poder) — um poder estratégico, instrumental, coercivo, sórdido; mas também existem outros pensadores que olham para a política como uma ação nobre e humana. Tomando como referência uma cronologia histórica, desde o início da cultura ocidental, damos alguns exemplos da política enquanto poder. O poder da política: Santo Agostinho (354-430); Nicolau Maquiavel (1469-1527); Thomas Hobbes (1588-1679); Friedrich Nietzsche (1844-1900); Mao Zedong (1893-1976). A política enquanto justiça e liberdade: Platão (428-347 a.C.); São Tomás de Aquino (1225-1274); John Locke (1632-1704); Jean-Jacques Rousseau (1712-1778); Thomas Paine (1737-1809); Immanuel Kant (1724-1804); John Stuart Mill (1806-1873); John Rawls (1921-2002); Martha Nussbaum (1947-...). Recomendamos a leitura da obra de Graeme Garrard e James Murphy intitulada: “Como pensar politicamente”, na qual os autores realizam uma síntese histórica, apresentando outros autores e onde estes sentidos e representações estão também enunciadas.

4De forma simples, talvez possamos dizer/definir uma Universidade como qualidade do que é universal — universalidade. A universidade é uma instituição de ensino superior pluridisciplinar e de formação de quadros profissionais de nível superior, de investigação, de extensão e de domínio e cultivo do Saber. A Universidade tem como grande missão produzir,guardar” e divulgar conhecimento e cultura. Há uma considerável literatura sobre a Universidade e sobre a sua função e missão, onde aparecem, entre outras, questões relativas: à investigação, extensão, pedagogia, relação público-privado, autonomia, liberdade, poder, ética, formação, economia, mercado, cultura, globalização, novas tecnologias, novos problemas e temas de pesquisa, identidade, estado, burocracia, democracia, qualificação, trabalho, sociedade, conhecimento etc.

5Gostaríamos também de ser realistas. Além de um plano idealizado, as instituições em geral, e a universidade em particular, são organizações complexas e não vinculam os lados morais e éticos nas suas práxis. Aliás, a própria competição (diferente do cooperar), o lucro, o mercado podem ser/são avessos a essas dimensões. Não se vinculam necessariamente com a manutenção das democracias, formas de governos, e formas de vida ética.

6Acrescente-se, a montante, a questão dos dados — o dataísmo, conforme sugere Yuval Harari, na sua obra “Homo Deus” (2017). A extração e agregação de dados que, depois de tratados, formam um conjunto de informações relativas ao que quer que seja. Um quer que seja cada vez mais amplo, a caminhar para o infinito.

7Há uma diferença profunda entre a ideia de Nação e a ideia de Estado. A Nação emerge enquanto língua, cultura, memória, tradição, identidade; a Nação tem os seus mitos, os seus heróis, as suas realidades e os seus sonhos... a Nação é uma ideia atemporal (arquétipo, forma, ideia perfeita — pegando nos conceitos de Platão). O estado, pelo contrário, é uma organização política, ideológica, econômica, que vai e vem e que a todo o momento é substituído, modificado. A universidade parece estar mais preocupada com a glorificação e justificação dos deuses macroeconômicos e do Estado, em vez do dever moral e ético de engrandecer e respeitar a Nação.

8A política, como forma de gerir sociedades humanas através da argumentação — bons argumentos — e não pela mera força, surgiu há relativamente pouco tempo na história humana e poderá muito bem desaparecer no futuro. Temos assistido a uma substituição dos cidadãos pelos consumidores, ao mesmo tempo que os burocratas substituem os líderes sábios (os estadistas). As sociedades humanas poderão estar (já estão) a ser governadas por uma qualquer combinação de mercados e reguladores da informação.

9O filósofo e sociólogo Michel Foucault (1991) tratou muito bem das relações de poder. Interessou-se pelas prisões, pelos manicômios, pelas escolas e hospitais — utilizando a metáfora do “Panóptico”. Observando a sua organização, estudou como o poder age e que relação há entre este e o saber. Esse e outros autores, como Agamben (2012) ou Esposito (2010), referem que entender a política é também falar de biopolítica. A biopolítica analisa a relação entre a política e o poder. Esses autores entendem que a política tradicional não fez mais do que construir os contextos para que o poder se exerça cada vez mais de modo invisível e naturalizado sobre os nossos corpos. Defendemos uma outra estrutura, onde o invisível se torne visível e onde o diálogo e a argumentação estejam presentes.

10É necessário, como propõe Levinas (1988, 1991), que o Outro seja uma exterioridade irredutível ao sujeito. Abrir-nos a ele é ir contra nós próprios. A hospitalidade não resolve a questão do outro, mas ensina-nos a desapegar-nos do nosso eu, do nosso ego. Assume que o nosso vínculo com o outro é impossível; ressignifica essa impossibilidade na possibilidade de nos transformarmos a nós próprios, de entender que, em definitivo, todos somos estrangeiros. Todos somos outros. Também Derrida e Dufourmantelle (2008), ao referir-se ao outro (de forma negativa/positiva), afirmam que o verdadeiro outro não é aquele de que me aproprio, mas, sim, um radicalmente outro, pois escapa a qualquer parâmetro. É o incompreendido, o que me ultrapassa. O insuportável. O outro é sempre “um monstro”. O monstruoso expressa, melhor do que qualquer outra coisa, a ideia do que não encaixa. Receio ver-me invadido, desapropriado, saído do próprio.

11Podemos perguntar como fazer essa brecha de fuga. A resposta seria fácil se houvesse, por exemplo, uma “renovação” do corpo docente e de investigadores que fossem criativos, originais, arejados, autênticos. Porém, parece ser difícil quando, por exemplo, na Universidade habitam gestores, docentes e investigadores que ocupam (há anos, décadas) lugares de decisão e de inovação, mas que estão deliberadamente prisioneiros do sistema e sobretudo deles mesmo, um conforto de poder e controle, um locus de interesses pessoais e instrumentais.

Recebido: 26 de Abril de 2022; Aceito: 26 de Outubro de 2022

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