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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.78 Uberlândia set./dez 2022  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n78a2022-69947 

Dossiê "Educação, produção de subjetividade e cuidado de si: a atualidade de 'A hermenêutica do sujeito'"

Notas sobre o cuidado de si em A hermenêutica do sujeito, de Michel Foucault

Notes on self-care in The hermeneutics of the subject, by Michel Foucault

Notes sur le soin de soi dans L’herméneutic du sujet, de Michel Foucault

*Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: terezaccalomeni@gmail.com

**Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: haroldoderesende@ufu.br


Resumo

O artigo apresenta o curso A hermenêutica do sujeito, de Michel Foucault, destacando, sobretudo, a noção de cuidado de si da filosofia antiga como “ponto de partida” para uma reflexão sobre diferentes concepções de filosofia, de verdade e de sujeito, e, em última instância, de educação.

Palavras-chave: Conhecimento de Si; Cuidado de Si; Filosofia; Sujeito; Verdade; Educação

Abstract

The article presentes the course The hermeneutics of the subject, by Michel Foucault, highlightin, above all, the notion of care of the self in ancient philosophy as a “start point” for a reflection on different conceptions of philosophy, truth an subject and, ultimately, education.

Key-words: Knowledge of the Self; Care of the Yourself; Philosophy; Subject; Truth; Education

Résumé

L’aricle presente le cours L’herméneutique du sujet, de Michel Foucault, mettant en evidence, avant tout, la notion de souci de soi dans la philosophie antique comme “point de départ” d’une reflexion sur différents conceptions de la philosophie, de la vérité et sujet, et, en fin de compte, l’éducation.

Mots-clés: Connaissance de Soi; Soin de Soi; Philosophie; Sujet; Vérité; Éducation

De que modo o mundo, que se oferece como objeto de conhecimento pelo domínio da tékhne pode ser ao mesmo tempo o lugar em que se manifesta e em que se experimenta o “eu” como sujeito ético da verdade? (Michel Foucault)

Em 2022, celebramos os quarenta anos de A hermenêutica do sujeito, o curso proferido por Michel Foucault entre 6 de janeiro e 24 de março de 1982, no Collège de France, seu laboratório de pesquisa e ensino desde Dezembro de 1970. Quarenta anos depois, as instigantes provocações então proclamadas ainda ressoam, nitidamente, em nosso tempo, sugerindo novas reflexões filosóficas e importantes desafios à ética, à política, à educação.

Dividido em doze aulas, cada uma, por sua vez, fracionada em duas horas, o curso oferece aos ouvintes, e aos leitores, depois de sua publicação em 20011, a chance de, mais uma vez, observar Foucault em pleno exercício de seu ofício: bem afinado a seu modo de conceber a filosofia como problematização, ensaio, experimentação, o professor Foucault declara, sem receio ou constrangimento, que ali serão expostas algumas hipóteses de trabalho do pesquisador, “muitos pontos de interrogação e reticências” (FOUCAULT, 2004, p. 16), e não propriamente a certeza de conclusões julgadas definitivas. Nada estranho a um pensador que frequentemente altera seus objetivos e redimensiona suas análises, a um filósofo que não teme tornar público o pulsar incessante de suas inquietações e, diante delas, sem hesitação, mudar de opinião.

No início do primeiro encontro, Foucault alude ao curso do ano anterior, Subjetividade e verdade2, em que investigara a história das relações entre sujeito, ou subjetividade, e verdade a partir de um “exemplo privilegiado”: o “regime de comportamentos e prazeres sexuais na Antiguidade, o regime dos afrodísia (...) tal como aparecera nos dois primeiros séculos de nossa era” (FOUCAULT, 2004, p. 4). A breve alusão vale como um pequeno anúncio do novo curso: em 1982, o recorte histórico-temporal será o mesmo - séculos V e IV a. C, I e II d. C e IV e V d. C. - e a intenção será ainda dedicar-se à história das relações instituídas entre verdade e subjetividade; no entanto, a abordagem será diversa. Em A hermenêutica do sujeito, Foucault deixa de lado a particularidade do “exemplo” e do “material” sobre o qual se debruçara em 1981 e propõe um questionamento “mais geral” “do problema ‘sujeito e verdade’”. (FOUCAULT, 2004, p. 4) Agora, seu plano é pensar a constituição da subjetividade a partir da investigação de práticas de si tal como se manifestam nos antigos, gregos e romanos.

Nessa nova abordagem inscrevem-se um convite e, em última instância, uma provocação. Foucault nos convida a olhar, com outros olhos, a história da filosofia: que outros laços se estabeleceram historicamente entre subjetividade e verdade que não aqueles que estamos acostumados a ver retratados pela “análise histórica habitual” (FOUCAULT, 2004, p. 4) da filosofia? Não é por acaso que o “ponto de partida” (FOUCAULT, 2004, p. 4) do curso é uma noção - sobre a qual havia “dito algumas palavras” (FOUCAULT, 2004, p. 4) no ano anterior - comum à filosofia antiga, mas marginalizada, por razões de ordem moral e epistemológica, no “momento” de constituição da filosofia moderna: se a história “habitual” nos instruiu a seguir a filosofia e, particularmente, a relação subjetividade/verdade a partir da noção de conhecimento de si, a proposta agora é tomar o cuidado de si como uma espécie de lente adequada à procura de outras modalidades de relação entre sujeito e verdade.

Convite “paradoxal” e “sofisticado” (FOUCAULT, 2004, p. 5) nos envia Foucault: por que escolher uma noção claramente presente nos antigos, em Sócrates e Platão, nos estoicos, epicuristas, cínicos e nos primeiros séculos da era cristã, e elegê-la como “ponto de partida” de um curso sobre o sujeito, se a história da filosofia e da cultura em que estamos mergulhados parece sombreá-la, colocá-la à margem, sem dar a ela qualquer “status particular” (FOUCAULT, 2004, p. 5)? Por que problematizar o vínculo entre sujeito e verdade justamente a partir dessa noção “marginal” (FOUCAULT, 2004, p. 5), abafada, quase destruída, francamente desprestigiada pela história da filosofia, se “todos dizemos, todos repetimos, e desde muito tempo” (FOUCAULT, 2004, p. 5), que a reflexão filosófica sobre o sujeito foi “fundada” pelo conhecimento de si?

Convite “paradoxal” e “sofisticado” (FOUCAULT, 2004, p. 5) que, no entanto, nos remete à concepção foucaultiana de filosofia; convite estranho que, no entanto, parece abrigar, ainda que modificado, o que dissera Foucault no início de sua trajetória intelectual; convite que, então, já nos alcançara anos antes, em História da loucura na idade clássica, quando, ecoando a voz de Nietzsche, Foucault inaugura seu percurso filosófico com uma crítica da ratio ocidental. Em 1961, já havíamos sido convocados a tecer com ele outro olhar para a filosofia ou outra história da filosofia, da ciência, do saber. Se àquela época, o convite fora exibido no traço de uma arqueologia do silêncio a que é subjugada a loucura pelo modelo de racionalidade prevalente em nossa cultura ocidental, em 1982, inscreve-se precisamente no gesto de adoção do cuidado de si (epiméleia heautoû, para os gregos, cura sui, para os latinos) como “ponto de partida” ou “fio condutor” para uma reflexão sobre diferentes formas de subjetivação (FOUCAULT, 2004, p. 4). A marginalização a que se destina o cuidado de si traz à memória a marginalização da loucura como experiência trágica, que, por sua vez, evoca a marginalização do pathos trágico, apontada por Nietzsche, em O nascimento da tragédia, em 1871. Ressaltadas as imponderáveis diferenças - entre 1961 e 1982, é grande a produção foucaultiana -, tal como a experiência trágica da loucura, o cuidado de si foi posto à sombra, à margem, sufocado e quase soterrado pelo tipo de razão peculiar à nossa cultura, em especial, para Foucault, pela consolidação da filosofia moderna. A posição marginal conferida à loucura em determinado “momento” da cultura ocidental parece alinhar-se à posição marginal atribuída ao cuidado de si. Esse “momento”, nomeado “cartesiano”, é aquele em que se consumam, ao mesmo tempo, a desvalorização do cuidado de si e a requalificação do conhecimento de si.

Para melhor compreender a singularidade de A hermenêutica do sujeito e o desejo foucaultiano de examinar as relações entre sujeito e verdade a partir do recurso às práticas de si dos antigos, seria valioso relembrar, se não todos, ao menos alguns passos e desvios próprios do final da década de 1970 e início dos anos seguintes. Como não é possível, nos limites deste texto, percorrer, cuidadosa e detalhadamente, o caminho trilhado por Foucault nos oito anos que distanciam a publicação, em 1976, do primeiro volume de História da sexualidade, A vontade de saber, da publicação dos volumes seguintes, O uso dos prazeres e O cuidado de si, em 1984, ao menos podemos trazer aqui uma aposta na hipótese de que a noção de governo é crucial à consecução da “reviravolta” ocorrida nos anos 1980, reviravolta no centro da qual se situa o curso de 1982. Em 1976, Foucault já havia operado um redimensionamento, a ampliação do estudo do poder disciplinar com a introdução do biopoder no último capítulo de A vontade de saber, mas as modificações efetuadas, sobretudo, nos cursos de 1978 e 1979, Segurança, território, população3 e Nascimento da biopolítica4 nos parecem decisivas. Particularmente a partir desses dois cursos - mas também a partir da discussão de temas específicos em conferências, por exemplo -, governo é o tema que sustenta e impulsiona as pesquisas da década de 1980. Refletir sobre as “artes de governar” encaminha Foucault à reflexão sobre o “governo de si” e “governo dos outros”, temas para os quais é essencial a contraposição entre cuidado de si e conhecimento de si, noções decorrentes do que denomina, em A hermenêutica do sujeito, “paradoxos do platonismo”.

O curso de 1982 é uma história - genealógica - do cuidado de si organizada em três momentos: filosofia socrático-platônica, o tempo de surgimento da noção como noção filosófica; filosofia helenística e romana dos séculos I e II d. C., a “idade de ouro” do cuidado de si; os séculos IV e V d. C., a travessia para o ascetismo cristão. Também pode ser uma história - genealógica - da contraposição entre conhecimento de si e cuidado de si que nos contempla, como dissemos acima, com uma atraente chave de leitura da história da filosofia e, ao mesmo tempo, nos anima a pensar criticamente nosso presente.

Foucault não se dedica igualmente aos três momentos: depois de analisar dois diálogos platônicos e concluir que o cuidado de si e o conhece-te a ti mesmo alojam-se na esfera da filosofia com Sócrates e Platão, concentra-se no período helenístico-romano, refere-se brevemente aos cínicos, destaca o estoicismo e o epicurismo, em especial o estoicismo, e afirma: na filosofia helenístico-romana, nem o privilégio do conhecimento de si, presente, de certa forma, como “tendência”, em Platão, nem a convergência do cuidado e do conhecimento de si à renúncia de si enaltecida pelo cristianismo, mas o ocupar-se consigo como um fim em si mesmo.

Com a valorização do cuidado de si como “ponto de partida” ou com a contraposição entre cuidado de si e conhecimento de si, o curso nos coloca diante da célebre pergunta pela relação entre antigos e modernos quando nos alerta para a diferença entre duas concepções de filosofia, de verdade e de sujeito. Ao cuidado de si corresponde a vertente filosófica para a qual o sujeito tem acesso à verdade a partir de técnicas, exercícios e práticas que implicam, necessariamente, sua modificação; ao conhecimento de si, a linha filosófica que, assentada sobre a representação, reconhece na estrutura subjetiva a condição do conhecimento. No primeiro alinhamento, a filosofia antiga - a “espiritualidade”, como diz Foucault -, especialmente a do período helenístico-romano, e o “sujeito” antigo, aquele que se autoconstitui por práticas de si e exercícios ascéticos; no segundo, a filosofia moderna e o sujeito cognoscente cujo acesso à verdade se dá pelo conhecimento, sem a exigência de transformação subjetiva.

*

Inscrita no pórtico do templo de Apolo, em Delfos, a famosa expressão conhece-te a ti mesmo não tem, antes da filosofia socrático-platônica, uma dimensão filosófica nem se constitui, propriamente, como um “fundamento” moral, diz Foucault, na primeira aula, acolhendo a interpretação de Roscher5, segundo a qual, este, assim como outros preceitos, é um tipo de recomendação compatível com a realização do ritual das consultas ao oráculo: assim como não é aconselhável aos consulentes inquirir em demasia, assim como não devem prometer o que não poderá ser cumprido, é conveniente, como uma espécie de preparação, que antes da consulta examinem a necessidade e a utilidade das perguntas idealizadas. Acolhendo ainda a interpretação de Defradas6, Foucault concorda que, como outros preceitos, o conhece-te a ti mesmo, não sendo “um princípio de conhecimento de si” (FOUCAULT, 2004, p. 6), pode ser visto como um “imperativo geral de prudência” (FOUCAULT, 2004, p. 6). Seja qual for a apreciação, o gnôthi seautón é inserido no campo da filosofia com “o personagem de Sócrates” (FOUCAULT, 2004, p. 7), como testemunham Xenofonte e Platão. Desse momento da inserção do preceito no horizonte filosófico, “um momento decisivo” (FOUCAULT, 2004, p. 13), um aspecto é básico aos propósitos do chamado último Foucault, às pesquisas sobre a autoformação da subjetividade, a estilização da existência, a conformação da vida como obra de arte: conhece-te a ti mesmo (gnôthi seautón) é “uma das formas” do cuidado de si mesmo (epiméleia heautoû) e a ele se subordina.

A leitura de dois diálogos platônicos dá início à pesquisa da inclusão do cuidado de si e do conhece-te a ti mesmo no terreno filosófico: Apologia de Sócrates e Alcibíades.

Três passagens da Apologia são significativas para Foucault. A primeira remonta ao “orgulho” de Sócrates e à sua convicção de que não há qualquer motivo de vergonha ao ser condenado aos setenta anos por ter sua vida inteiramente consagrada ao cumprimento de uma missão - exatamente a de estimular os outros ao cuidado de si - a ele confiada pelo deus: “estou tão orgulhoso de ter levado a vida que levei que mesmo se me propusessem indulto não a mudaria” (FOUCAULT, 2004, p. 8). Na segunda passagem, Sócrates “retorna ao tema” do cuidado de si, quando expõe a opinião de que, morrendo aquele que cuida de que os outros cuidem de si, quem perde é a cidade: perdem os atenienses “pois, diz ele, não terão ninguém mais para incitá-los a se ocuparem consigo mesmos e com sua própria virtude” (FOUCAULT, 2004, p. 9). A terceira concerne a algumas considerações sobre a pena a ser imputada:

Que tratamento, que multa mereço eu por ter acreditado que deveria renunciar a uma vida tranquila, negligenciar o que a maioria dos homens estima, fortuna, interesse privado, postos militares, sucesso na tribuna, magistraturas, coalizões, facções políticas? (...) Por ter preferido oferecer, a cada um de vós em particular, aquilo que declaro ser o maior dos serviços, buscando persuadi-lo a preocupar-se (epimeletheíe) menos com o que lhe pertence do que com sua própria pessoa (...). Que mereci eu, pergunto por me ter assim conduzido [e por vos ter incitado a vos ocupar com vós mesmos? (...)] (FOUCAULT, 2004, p. 9-10)

Foucault quer observar “três ou quatro coisas importantes (...)” (FOUCAULT, 2004, P. 9-10); primeira: ao estimular o outro a ocupar-se consigo, Sócrates cumpre, como dissemos, uma missão determinada pelo deus, obedece a uma ordem, desempenha uma função e se põe na posição de “mestre do cuidado de si”; segunda: ao ocupar-se com os outros, Sócrates não se ocupa consigo; terceira: ao instigar os outros ao cuidado de si, assume o papel de despertá-los, como se estivessem imersos num tipo de sono: “O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de permanente inquietude no curso da existência. (...)” (FOUCAULT, 2004, p. 11).

Sócrates, o “mestre do cuidado de si”, é o “tavão”, o inseto que, ao picar alguém, inevitavelmente provoca correria e agitação.

Desde a aula de 6 de janeiro, a análise da Apologia é um recurso notável à verificação do sentido filosófico do cuidado de si e da relação com o conhecimento de si, mas a atenção de Foucault recai, principalmente, sobre o Alcibíades, referido na segunda hora da primeira aula e lembrado ao longo de todo o curso. Portanto, a despeito da relevância da Apologia para a história da relação entre conhecimento e cuidado de si, é Alcibíades o diálogo valorizado como instrumento mais justo à percepção mais clara de que o cuidado de si é “o solo, o fundamento a partir do qual se justifica o imperativo do ‘conhece-te a ti mesmo’” (FOUCAULT, 2004, p. 11). Na conversa entre Sócrates e Alcibíades encontra-se a primeira “formulação teórica” do cuidado. O Alcibíades é, para Foucault, “a primeira teoria e, pode-se mesmo dizer, [entre] todos os textos de Platão, a única teoria global do cuidado de si. Pode ser considerada como a primeira grande emergência teórica da epiméleia heautoû” (...) (FOUCAULT, 2004, p. 58). O diálogo é, então, a grande “referência” do curso de 1982.

A escolha e o privilégio de Alcibíades não se justificam de imediato: por que considerá-lo “referência” primordial para apreciar o vínculo entre conhecimento e cuidado de si na filosofia antiga? A razão da preferência de Foucault é que, além de ser a “primeira grande teoria do cuidado de si” (FOUCAULT, 2004, p. 41-42), uma “teoria completa” (FOUCAULT, 2004, p. 84), o diálogo favorece o entendimento do que será “a grande cultura de si na época helenística e romana”, a “idade de ouro” do cuidado de si. Alcibíades é “uma espécie de introdução” (FOUCAULT, 2004, p. 84), à discussão proposta em 1982, à problematização da produção da subjetividade. Alcibíades é o texto que, nessa ocasião, é o mais adequado à indagação sobre a relação entre filosofia e cuidado de si e, por esta via, à afirmação daquela distinção, acima observada, entre dois modos de considerar a atividade filosófica: no diálogo, encontram-se elementos contundentes para a admissão do cuidado como “fundador” de outra concepção de sujeito, diferente da concepção moderna.

Orientado pelo deus, Sócrates aborda Alcibíades, um belo jovem de origem aristocrata, ao saber de sua pretensão de tomar para si a responsabilidade do governo da cidade. Antes de ter em mãos o governo dos outros, pondera o mestre, o candidato precisa saber se está preparado para o confronto com “duas espécies de rivais” (FOUCAULT, 2004, p.45): os rivais “internos”, da própria Atenas, e os rivais de fora, “externos”, “inimigos da cidade”, por exemplo, os espartanos e os persas. Provocativo, Sócrates desafia: é mais rico do que os persas? é mais educado do que os espartanos e os persas? Na educação, Esparta é uma “referência de qualidade” (FOUCAULT, 2004, p. 45); educa para boas maneiras, grandeza da alma, coragem, resistência, para a prática de exercícios, para conquista de vitórias e honras; o príncipe persa é educado por quatro professores: professor de sabedoria (sophía), de justiça (dikaionsýne), de temperança (sophrosýne) e de coragem (andreía) (FOUCAULT, 2004, p. 45). E Alcibíades? Foi educado por Péricles, ou antes, pelo “velho escravo” Zóprio da Trácia, e sua educação - como em geral a educação ateniense - não se pode comparar à dos espartanos e dos persas.7

Ora, se não dispõe da mesma riqueza ou da mesma educação dos adversários, qual seria a “vantagem” de Alcibíades, aspirante ao governo dos outros? Aqui, a primeira alusão ao conhece-te a ti mesmo, mas, para Foucault, ainda como um “conselho de prudência” (FOUCAULT, 2004, p. 46): Alcibíades deve olhar para si mesmo e constatar que sequer tem uma tékhne, um saber, como compensação frente ao que lhe falta. Uma série de indagações denota sua carência: o que é governar bem? Como se pode definir um bom governo? Diante da resposta de Alcibíades - o bom governo se comprova pela “concórdia” entre os cidadãos -, Sócrates insiste: o que é a concórdia? Alcibíades não sabe! E assim, afinal, reconhece sua ignorância e a ignorância de si mesmo. Sócrates o tranquiliza: ainda há tempo de ocupar-se consigo para poder ocupar-se com os outros. Observemos: Sócrates não argumenta que há tempo para aprender a governar bem, mas tempo para tomar-se nas mãos, tempo para ter tempo para si, para olhar para si, haja vista ser inteiramente indispensável ocupar-se consigo para conhecer-se a si e, assim, bem governar a cidade.

Também do Alcibíades, Foucault recorre a duas passagens. A primeira, mencionamos há pouco, é aquela em que Sócrates sugere ao jovem olhar para si e para suas aptidões; a segunda, mais categórica, parece uma espécie de expediente metodológico: o que é o eu, objeto do cuidado de si?, o que é este si mesmo? (autò tò auto)? ou o que é o tu da expressão ocupar-te contigo próprio? O tu é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto: és tu que te ocupas e é de ti que tu te ocupas. Dito de outro modo, o que é o se, a forma reflexiva, do ocupar-se consigo mesmo? Em Platão, esse si mesmo é a alma. Entretanto a concepção de alma de que fala Platão no Alcibíades não é, propriamente, a que se vê no Fédon, no Fedro e em A república; no Alcibíades, alma é “o sujeito da ação” (FOUCAULT, 2004, p. 70), é a “alma-sujeito” e não a “alma-substância” (FOUCAULT, 2004, p. 71). O expediente de Platão, pensa Foucault, é “fazer aparecer o sujeito na sua irredutibilidade” (FOUCAULT, 2004, p. 69), distinto “de todos os instrumentos, utensílios, meios técnicos que ele pode pôr em ação” (FOUCAULT, 2004, p. 69), um tanto “transcendente” “em relação ao que o rodeia, aos objetos de que dispõe, também aos outros com os quais se relaciona” (FOUCAULT, 2004, p. 71). “A alma como sujeito e de modo algum como substância, é nisto que desemboca, a meu ver, a pergunta: ‘o que é si mesmo, que sentido se deve dar a si mesmo quando se diz que é preciso ocupar-se consigo?’” (FOUCAULT, 2004, p. 71). Propositalmente ressaltada por Foucault, essa concepção estará presente nos estoicos, por exemplo, em Epitecto: “ocupar-se consigo mesmo será ocupar-se consigo enquanto se é ‘sujeito de’, em certas situações (...) sujeito também da relação consigo” (FOUCAULT, 2004, p. 71).

Alguns traços vislumbrados por Foucault como próprios do momento socrático-platônico permanecem no período helenístico-romano; contudo, há alterações significativas, sintomas de “uma longa evolução, já perceptível no interior da obra de Platão” (FOUCAULT, 2004, p. 102).

Como vimos, Foucault localiza no Alcibíades três determinações ou condições que caracterizam a necessidade do cuidado de si, delimitando sua razão de ser e sua forma: a primeira circunscreve o campo ou o alvo em que o cuidado de si deve ser aplicado, definindo os indivíduos que devem se ocupar consigo mesmos, sendo, pois, os jovens aristocratas que, por seu status, gostariam de se ocupar em governar a cidade. De modo que a ocupação consigo mesmo se justifica pelo próprio objetivo de exercer o poder ao qual o jovem se destinaria, de forma virtuosa e sensata, sendo esta, a segunda determinação do cuidado de si diretamente ligada à primeira. Já a terceira determinação é aquela que dá forma ao cuidado de si, ou seja, ocupar-se consigo implica conhecer-se, é o conhecimento de si que perfaz o cuidado de si.

O que Foucault, no entanto, observa é que nos séculos I e II de nossa era, essas três condições se rompem8, de modo a ampliar a noção de ocupação consigo. Quer dizer, ocupar-se consigo torna-se um imperativo destinado a todos, o tempo todo e sem determinação por estatuto individual, de maneira que se ocupar consigo passa a se configurar num “princípio geral e incondicional” (FOUCAULT, 2004, p. 103). Essa é, então, a primeira modificação a ser notada: o imperativo do cuidado de si, ainda que não seja expressão de uma “ética universal”, transforma-se em “princípio geral e incondicional”, imprescindível a todos e necessário durante toda a vida, embora o termo todos precise ser posto “entre aspas” (FOUCAULT, 2004, p. 94), porque cuidar de si é possível tão-somente àqueles que podem dispor de tempo e têm certas condições culturais, sociais e econômicas. Se no Alcibíades, Sócrates declara ser o cuidado de si algo imperioso à formação do jovem, sobretudo do jovem que deseja se ocupar da política, nos epicuristas, estoicos e também nos cínicos, o cuidado de si deve ser obrigação de todos e de toda a vida, em especial da idade madura, não só, mas também, como preparação para a velhice. Ao longo da vida, deve-se cuidar de si: na juventude, para “armar-se, equipar-se para a existência” (FOUCAULT, 2004, p. 108) (paraskheué); na velhice, para “rejuvenescer” pela “rememoração” (FOUCAULT, 2004, p. 109).

Segunda modificação, o princípio do cuidado de si é alicerce para o exercício filosófico, mas agora não mais se subjuga a nenhum fim exterior, como a educação ou a política, o governo dos outros. Se no Alcibíades a estrutura do cuidado de si apresenta uma certa complexidade na medida em que o objeto do cuidado se situa no eu, mas sua finalidade encontra-se na cidade, lugar em que o eu figura apenas como um elemento, de outra forma, na cultura neoclássica, o eu assume um duplo caráter, tanto de objeto como de finalidade, de maneira que a reflexão do ocupar-se consigo abrange tanto a relação com o objeto como com o objetivo, caracterizando o cuidado de si como uma prática autofinalizada - cuida-se de si por si mesmo e não por um objeto exterior ao eu. Na “idade de ouro”, o cuidado de si é, então, ele mesmo, a meta inapelável, o fim, o bem autossuficiente. Não se trata de cuidar de si para superar uma carência ou para completar a lacuna deixada por uma educação insatisfatória, insuficiente e inapta, ou para se criar um bom governante. O eu de que se deve cuidar é a finalidade única do imperativo do cuidado: “Por que se cuida de si? Não pela cidade. Por si mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 103).

Terceira alteração, o cuidado de si não é mais determinado unicamente pelo conhecimento de si que, de certa forma, acaba por se acomodar em um múltiplo conjunto de práticas; o conhecimento de si integra-se ao “conjunto bem mais vasto” (FOUCAULT, 2004, p. 104), o das práticas de si.

*

Interessante que o ocupar-se consigo “tem sempre necessidade de passar pela relação com um outro.” Em sua análise, Foucault observa que o outro, que a mediação de um outro é indispensável às práticas de si. O outro é condição sine qua non para que a prática de si atinja o eu visado por ela. Toda a mobilização do indivíduo na prática de si necessita do outro.

Foucault identifica e enumera, a partir de uma visão de conjunto, particularmente no Alcibíades, como, em geral, nos diálogos socrático-platônicos, três tipos de mestria: primeiro, a mestria do exemplo, na qual o outro figura como modelo, como exemplo de comportamento a ser transmitido ao mais jovem; depois, a mestria da competência que consiste na transmissão, aos mais jovens, de conhecimentos, aptidões, habilidades; e, por fim, a mestria socrática, cujo desenvolvimento se dá através do diálogo. Sublinhando que a mestria socrática pode ter sido preponderante em relação às outras duas, Foucault argumenta não serem importantes as diferenças entre essas três modalidades de mestria e observa que todas elas são fundadas num jogo que se estabelece entre a ignorância e a memória. Ora o jovem necessita mirar-se em exemplos que respeita, precisa adquirir habilidades, princípios, técnicas, conhecimentos, precisa saber que não sabe, assim como precisa saber que sabe mais do que não sabe.

Estas mestrias são movidas pela ignorância e pela memória, na medida em que se trata, quer de memorizar um modelo, quer de memorizar e aprender uma habilidade ou familiarizar-se com ela, quer ainda descobrir que o saber que nos falta é afinal simplesmente encontrado na própria memória e que, por consequência, se é verdade que não sabíamos, é também verdade que não sabíamos que sabíamos. (FOUCAULT, 2004, p. 159)

De todo modo, é na dinâmica do jogo entre ignorância e memória que a mestria se move, de maneira que a memória é que permite a passagem da ignorância para o saber, da ignorância para a não-ignorância, ou seja, a ignorância por si não avança de si mesma, só é possível passar da ignorância para o saber pela memória. Nesse sentido, Foucault destaca que a mestria socrática é interessante, haja vista que o papel de Sócrates é mostrar que a ignorância ignora que sabe e que, de certa forma, o saber pode advir da ignorância mesmo. Contudo Foucault afirma que a existência de Sócrates, assim como a necessidade de seu questionamento, comprova que o outro é imprescindível, quer dizer, o movimento que instaura a relação memória-ignorância-saber só é possível mediante o outro, com a mediação do outro.

A relação com outro, no período helenístico e romano, é tão necessária como no período clássico, de tal modo que essa necessidade se assenta ainda (e sempre) no patamar da ignorância. Mas também e, principalmente, em outros elementos que estão ligados à formação do indivíduo ou, melhor dizendo, à sua deformação, de tal modo que a prática de si, nesse aspecto, se impõe sobre os erros, as falhas, os vícios, os maus hábitos. Trata-se da correção, mais até que da própria formação, posto que se deve, de modo especial, estabelecer a correção, corrigir algo que já está instaurado de forma errônea. Nessa perspectiva, o indivíduo pode se emendar, se endireitar, se corrigir e se tornar aquilo que nunca foi e o que poderia ter sido.

O fundamento dessa correção está na maleabilidade do espírito humano. Citando Sêneca, Foucault diz que “a qualidade da alma só pode vir depois da imperfeição da alma”, de sorte que, uma formulação que entra nessa definição vai dizer que aprender as virtudes é desaprender os vícios. Estamos, pois, diante da noção de desaprendizagem, cujo início deve ser dado no limiar da prática de si na juventude. Essa desaprendizagem diz respeito a uma reforma crítica de si mesmo, a uma espécie de revisão dos hábitos adquiridos e estabelecidos, a uma operação feita para desbastar o ensino recebido a fim de corrigi-lo em suas faltas ou excessos.

Foucault destaca que esse desbaste se volta, de início, às aprendizagens da primeira infância, quando a criança, na mais tenra idade, já suga erros com o leite que a alimenta, tornando essa primeira educação problemática e viciosa, ao ponto de deformar o espírito da criança. Dessa forma, um conjunto de críticas é posto em visibilidade: crítica da formação pedagógica dos mestres, crítica da primeira educação, crítica das condições em que a educação da primeira infância se desenvolve e tudo de negativo que pode acarretar na aprendizagem, assim como a crítica à família com seus efeitos educativos pela imposição e transmissão de valores que, para Foucault, corresponderiam, na nossa atualidade, a uma certa “ideologia familiar”. Ele aponta que, na prática de si por ele analisada, a necessidade de mediação do outro se funda na ignorância, mas também em outros elementos que se ligam à formação; entende, pois “que o sujeito é menos ignorante do que malformado” (FOUCAULT, 2004, p. 160), ou seja, o problema não se situa totalmente na sua ignorância, naquilo que ele não sabe, mas sim na formação que pode ter lhe imputado vícios, hábitos ruins, defeitos que o deformaram. Por isso o indivíduo não deve tender para um saber que possa substituir sua ignorância, mas para um status de sujeito que, até então, jamais foi atingido ao longo de toda a sua existência, de sorte que esse status de sujeito terá sua definição consubstanciada pela plenitude da relação de si para consigo. “Há que constituir-se como sujeito e é nisto que o outro deve intervir” (FOUCAULT, 2004, p. 160).

A esse ponto Foucault atribui grande importância para a história da prática de si e, de maneira mais ampla, para a subjetividade ocidental:

Doravante, o mestre não é mais o mestre de memória. Não é mais aquele que, sabendo que o outro não sabe, lho transmite. Nem mesmo é aquele que, sabendo que o outro não sabe, sabe mostra-lhe como, na realidade, ele sabe o que não sabe. Não é mais neste jogo que o mestre vai inscrever-se. Doravante, o mestre é um operador na reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito. É o mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito. (FOUCAULT, 2004, p. 160)

O sujeito não pode mais operar a sua transformação por si mesmo e é no espaço dessa impossibilidade que a necessidade do mestre se inscreve. Foucault exemplifica essa necessidade do mestre tomando uma passagem da carta 52 de Sêneca a Lucílio, na qual há a evocação à stultitia como situação ou estado em que o pensamento do indivíduo se encontra em agitação, diante de uma irresolução, sem que seja capaz de se fixar em algo ou encontrar prazer em alguma coisa, o que indica a necessidade de intervenção de alguém para que possa emergir desse estado ou dessa situação de embaraço. Precisa de alguém que, estendendo-lhe a mão, o arranque dessa condição.

O stultus é o indivíduo que não quer o eu, é aquele que nega a si mesmo e cuja vontade não se dirige para o eu como objeto que se pode querer livre e absolutamente. Não há, pois, uma conexão entre a vontade e o eu, de modo que a saída da stultitia é o estabelecimento dessa conexão, é querer a si mesmo, é querer o eu. Contudo essa saída não pode ser efetivada pelo próprio indivíduo, há o mister do outro na intermediação, como uma espécie de chave de intervenção. É necessário que haja intervenção entre o indivíduo que nega seu próprio eu e o que estabelece uma relação de posse de si, de prazer consigo mesmo, já que a vontade da stultitia não almeja o cuidado de si que necessita da presença do outro. “A constituição de si como objeto suscetível de polarizar a vontade, de apresentar-se como objeto, finalidade livre, absoluta e permanente da vontade, só pode fazer-se por intermédio de outro. Entre o indivíduo stultus e o indivíduo sapiens, é necessário o outro” (FOUCAULT, 2004, p. 165).

Assim, Foucault ressalta, ainda se referindo à carta de Sêneca, a necessidade do outro no cuidado de si como alguém que vai operar a intermediação, a intervenção, como alguém que, com sua presença, vai se inserir na relação do sujeito consigo, conduzindo-o. Ao mesmo tempo, chama atenção para o fato de que esse outro não é um educador ou, pelo menos, que não se trata de um educador no sentido estrito, tal qual o denominamos em nossa atualidade, como o indivíduo que ensina princípios, “verdades”, dados; tampouco trata-se de um mestre de memória. Não se trata de um trabalho de instrução, de educação na acepção tradicional em que estaria em questão a transmissão de conhecimento teórico ou de alguma habilidade técnica. Como diz Foucault, não se trata de educare, mas sim de educere, o que significa dizer que se refere à condução para fora de si mesmo, ao gesto de estender a mão e impulsionar o movimento do indivíduo para fora de si. Diz respeito a uma certa ação efetivada sobre o indivíduo para quem a mão será estendida e que o fará sair do modo de vida em que se encontra, alcançando um outro status. Não é a ocupação de um saber no lugar da ignorância, mas a incidência de uma certa operação na maneira de ser e de viver do próprio sujeito.

Diante dessa função mediadora ou, ainda, dessa ação necessária do outro sobre o indivíduo para que seja, ao mesmo tempo, arrancado de si e alçado a si mesmo, Foucault estabelece algumas indagações:

A questão que se coloca é a seguinte: qual é, pois, a ação do outro que é necessária à constituição do sujeito por ele mesmo? De que modo vem ela inscrever-se como elemento indispensável no cuidado de si? O que é, por assim dizer, esta mão estendida, esta “edução” que não é uma educação, mas outra coisa ou uma coisa mais que educação? (FOUCAULT, 2004, p. 166)

Aquele que se impõe e se interpõe na construção da relação do sujeito consigo mesmo, aquele que estabelece a mediação do sujeito com a verdade, o operador que efetiva a ação sobre o sujeito, sobre o si mesmo, arrancando-o de si e, a um só tempo, impelindo-o ao seu eu, transpondo-o da estupidez à sabedoria, é o filósofo. Segundo Foucault, essa ideia, ou seja, a atribuição do filósofo como operador, como aquele a quem cabe dirigir os outros, é recorrente em todas as vertentes filosóficas da época:

o filósofo se apresenta, ruidosamente, como o único capaz de governar os homens, de governar os que governam os homens e de constituir assim uma prática geral do governo em todos os graus possíveis: governo de si, governo dos outros. É quem governa os que querem governar a si mesmos e é quem governa os que querem governar os outros. (FOUCAULT, 2004, p. 167)

A ampliação do cuidado de si suscita, então, algumas consequências; destacamos aqui apenas aquela a que nos referimos acima: no momento helenístico e romano, alia-se ao “elemento formador” presente no princípio do cuidado de si a função crítica: crítica de si, dos outros, da cultura. Embora não mais comprometido com a conquista de um saber ou com a assunção de um cargo público, o papel formador é mantido, mas agora importa “formar” o sujeito para “suportar” as adversidades, os infortúnios, os acidentes da vida, dotá-lo de uma “armadura protetora”, paraskheué, para os gregos, instructio, para Sêneca (FOUCAULT, 2004, p. 115). Esse caráter formativo, como vimos, não se desvincula de um aspecto corretivo: trata-se, também, de corrigir “erros, (...) maus hábitos, (...) deformação e dependência estabelecidas e incrustadas” (FOUCAULT, 2004, p. 116). Mesmo sendo rígidos ou duros, podemos mudar para o que nunca fomos: “Tornamo-nos o que nunca fomos, este é, penso eu, um dos mais fundamentais elementos ou temas desta prática de si.” Trata-se, pois, de “desaprender”, noção importante nos estoicos e nos cínicos, noção que, até certo ponto, também expressa, como vimos, uma certa crítica à educação recebida na primeira infância, ao meio familiar, aos hábitos e valores.

*

Ora se o princípio do cuidado de si é tão importante à cultura antiga, por que, na história da filosofia, permanece marginal, à sombra do conhece-te a ti mesmo? Por que se atribui privilégio ao conhecimento de si e se deixa “na penumbra” o imperativo do cuidado? Foucault relaciona uma série de razões possíveis.

Pode ser que o imperativo do cuidado de si abrigue algo perturbador. Pode ser que ocupar-se consigo soe “mal aos ouvidos”, como se fosse equivalente à exaltação de si próprio, à incitação ao “culto a si mesmo”, como se fosse uma “espécie de desafio e de bravata, uma vontade de ruptura ética” e, assim sendo, não pudesse desfrutar de valor positivo. Mais do que isso, pode ser que seja visto como um sintoma ruim, de melancolia ou tristeza, como a única alternativa para aquele que se sente inapto ao convívio em coletividade e prefere se recolher, se refugiar, fugir, postar-se num modo individualista de viver. Para a nossa cultura, pode ser que cuidar de si assemelhe-se ao traço de um egoísmo inaceitável. Não à toa, inserido “num tempo de exaltação do não-egoísmo”, o cuidado de si foi fortemente violado, tanto “pela moral cristã quanto pela moral moderna não-cristã” (FOUCAULT, 2004, p. 17-18) , “seja sob a forma cristã de uma obrigação de renunciar a si, seja sob a forma ‘moderna’ de uma obrigação com os outros - quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria, etc.” (FOUCAULT, 2004, p. 17-18).

Para Foucault, o “grande” motivo da desqualificação do cuidado de si encontramos no quarto momento apontado no curso como “momento cartesiano”. Nele ocorrem dois movimentos, ao mesmo tempo: o desprestígio cuidado de si e a extrema valorização - ou a “requalificação” - do conhece-te a ti mesmo. Esse é o “momento cartesiano”, mas, é claro, Foucault não atribui única ou propriamente a Descartes a responsabilidade de ofuscar o brilho do cuidado de si. Descartes é o emblema de uma concepção de filosofia, de verdade e de sujeito, diferente daquela a que Foucault se refere no curso de 1982 como “espiritualidade”. De qualquer forma, é o momento em que o conhece-te a ti mesmo, como princípio do “procedimento filosófico”, é o veículo de acesso do sujeito à verdade e em que se retrai o prestígio do cuidado de si.

Como dissemos, o curso de 1982 nos leva a pensar duas concepções de filosofia, registradas por Foucault como “espiritualidade” e “filosofia”.

Chamemos “filosofia” a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade. Pois bem, se a isto chamarmos “filosofia”, creio que poderíamos chamar de “espiritualidade” o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade. (FOUCAULT, 2004, p. 19)

Na “espiritualidade”, a filosofia antiga, a verdade não é entregue ao sujeito; tal como é, a ela não tem direito nem capacidade de acessá-la; não é o “ato de conhecimento” ou a estrutura subjetiva o que garante a conquista da verdade. Ao contrário: o sujeito paga um “preço”, tem que se transformar, tem que ser outro para adquirir o direito à verdade. A “espiritualidade” exige conversão - pelo amor (eros) e pelo “trabalho de si para consigo” (FOUCAULT, 2004, p. 20), pela elaboração de si mesmo, pela ascese (áskesis). Amor e ascese abrem caminho em direção à verdade, o que produz, como efeito, o “‘retorno’ da verdade sobre o sujeito” (FOUCAULT, 2004, p. 20). Na “espiritualidade”, a verdade “ilumina” o sujeito e salvaguarda sua tranquilidade, a ataraxía (FOUCAULT, 2004, p. 21), indispensável à felicidade, a eudaimonía.

O pensamento moderno separa as duas questões “como ter acesso à verdade?” e “quais são as transformações no ser mesmo do sujeito necessárias para ter acesso à verdade?” (FOUCAULT, 2004, p. 21-220), unidas na filosofia antiga. O “momento cartesiano” é, para Foucault, um signo da ruptura desse vínculo:

podemos dizer que entramos na idade moderna (quero dizer, a história da verdade entrou em seu período moderno) no dia em que admitimos que o que dá acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade, é o conhecimento e tão-somente o conhecimento. (...) Isto é, no momento em que o filósofo (...), sem que nada mais lhe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso. (FOUCAULT, 2004, p. 22)9

A filosofia moderna é, pois, o tempo de inauguração da história mais comum da relação entre sujeito e verdade: “A partir deste momento (...), desde que, em função da necessidade de ter acesso à verdade, o ser do sujeito não esteja posto em questão, creio que entramos numa outra era da história das relações entre subjetividade e verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 23), aquela a que aludimos no início do texto, usando a expressão foucaultiana: a história “habitual”.

A confusão entre cuidado de si e egoísmo, ao longo do tempo, talvez (?) tenha nos tirado a chance de ver a preciosidade da “espiritualidade” e do ocupar-se consigo.

*

Ora, que contribuição se pode ver nas ponderações de Foucault que, como genealogista, vai ao passado a partir de uma questão do presente, que toma distância de sua atualidade retornando aos antigos para nos lembrar ou nos alertar que a história não se fecha numa solução de evolutiva continuidade, mas, ao contrário, marcada por rupturas, modificações, irrupções, diferenças, por isso mesmo, nela, nada está dado de modo definitivo, e mais, que tudo pode ser modificado, tudo pode ser diferente do que é e do que está posto? Se Foucault nos adverte sobre outros modos de existência, sobre outras formas de vida, sobre outras formas de ser o que somos, talvez seja interessante ou mesmo pertinente o estabelecimento de correlações com aquilo que hoje nos acontece, especialmente com aquilo a que somos submetidos e também com aquilo a que submetemos os outros nas relações que travamos na convivência social.

Se pensarmos, por exemplo, na questão da mestria na atualidade, se recorrermos aos modos como nos constituímos e às mediações que intervêm nessa constituição, se refletirmos sobre o cuidado de si, pensamos: como efetivar o cuidado de si em nossos dias? Onde “buscá-lo”? Essas são questões que podem ser evocadas a partir das provocações feitas por Foucault ao recorrer ao mundo antigo e suas formas de vida. Mas, de forma mais específica, se atualizamos a noção de mestria e a recolocamos no âmbito singular da escola e do ensino, na constituição do aluno como sujeito, como aquele indivíduo (assim como o professor) em pleno processo de ocupação de si, podemos perguntar: que “exemplo” lhe é oferecido? Que práticas ligam o pensamento e as ações de seu mestre? Que saberes lhe são “proporcionados”? Que habilidades técnicas ensinadas lhe conferem conhecimento para “preencher” o seu eu? Que saberes lhe são dados a acessar para acessarem a si mesmos e se situarem e atuarem no mundo em que vivem? Que problematizações sobre si e sua relação com o mundo lhe são “ofertadas”? Que espelho os olhos do educador a eles dispõem? Que estratégias são desenvolvidas para que aluno avance de sua “ignorância” para a “sabedoria”? Como o acesso à verdade é dinamizado? Que relação com a verdade a escola proporciona ao educando? E que verdade é essa?

O convite e a provocação de Foucault assim se esclarecem: podemos pensar as formas de subjetivação do nosso presente a partir do reconhecimento da possibilidade de criação de novas formas de relação conosco e com a verdade. A visita aos antigos tem aí uma de suas justificativas: destruidor de evidências, Foucault não vai ao passado para nele encontrar uma fórmula a ser repetida, mas para chamar atenção para outras possibilidades, diferentes das que habitualmente conhecemos, de modo que assim temos como pensar novas formas de subjetividade que não aquela que empurra o sujeito à sujeição por poderes instituídos por uma lógica calcada numa razão instrumental, mas como construção a partir de práticas que o façam sair de si para se encontrar a si mesmo, transpondo a stultitia e atingindo a sapientiae.

Na volta aos antigos, Foucault reencontra uma forma de filosofia ou de filosofar, até certo ponto, estranha ao nosso tempo, mas, nesse reencontro de Foucault, talvez encontremos uma sugestão, pertinente e oportuna ao nosso tempo que, além de inventar e reinventar artimanhas e ardis para conformar, violentamente até, nossa subjetividade, teima em nos distanciar dessa tarefa tão imperiosa quanto intransferível e imponderável: a experimentação do cuidado de si como “atitude” ética e política que, inspirada na estética, nos permita a construção permanente de nossa subjetividade.

Referência

DEFRADAS, J. Les thèmes de la propagande delphique. Paris: Klincksieck, 1954. Cap. III: La sagesse delphique. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Salma Tannus Muchail e Márcio Alves da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2004. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. [ Links ]

ROSCHER, W. R. Weiteres über die Bedeutung des E [ggua] zu Delphi und die übrigen grammata Delphika, Philologus, 60, 1901. DOI: https://doi.org/10.1524/phil.1901.60.14.81. [ Links ]

1Na França, o curso foi publicado em 2001 por Éditions du Seuil. A tradução brasileira, por Salma Tannus Muchail e Márcio Alves da Fonseca, professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi publicada em 2004 pela editora pela Marins Fontes.

2Publicado na França em 2014, pela Gallimard e Éditions du Seuil, e no Brasil, com tradução de Rosemary Costhek Abílio, em 2016, pela editora Martins Fontes.

3FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

4FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

5ROSCHER, W. R. Weiteres über die Bedeutung des E [ggua] zu Delphi und die übrigen grammata Delphika, Philologus, 60, 1901.

6DEFRADAS, J.Les thèmes de la propagande delphique. Paris: Klincksieck, 1954. Cap. III: La sagesse delphique.

7Em Alcibíades, o cuidado de si é estreitamente associado à questão política, condição do bom governo dos outros, mas é também vinculado ao reconhecimento de uma “insuficiência da educação”. Ao admitir que Alcibíades não foi bem educado por Péricles ou pelo escravo a quem foi entregue, Platão traz à luz sua crítica à educação ateniense. No diálogo, o cuidado de si “inscreve-se (...) não somente no interior do projeto político, como no interior do déficit pedagógico”; o cuidado de si “eclode de uma urgência”. O Alcibíades expressa, mais claramente, a relação entre filosofia e educação e entre filosofia, ética e política, uma vez que o que ali é dito vincula-se à “insuficiência da educação” ateniense para o exercício da política e à necessidade de ocupar-se consigo para o bom governo da cidade. Reunidos, cuidado de si e conhecimento de si vinculam-se à questão ético-político-pedagógica.

8Foucault observa que esse rompimento não acontece de forma peremptória ou subitamente como se, de repente, o cuidado de si assumisse novas forma e tudo se transformasse; ao contrário, é na solução de um longo processo de transformação que as modificações se realizam, permanecendo, contudo, a observação de que no Alcibíades, no período em que ele busca situar sua análise, há o desaparecimento das condições que caracterizavam a necessidade do cuidado de si.

9Foucault adverte: esse vínculo não foi rompido “por um golpe de espada”. Antes de Descartes, o rompimento vinha sendo lentamente produzido: o marco inicial desse processo está na teologia. Por outro lado, na modernidade, julga Foucault, há traços característicos da “espiritualidade” — ao menos de modo implícito — e, portanto, do cuidado de si. Pode-se pensar em Spinoza, Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heidegger ou mesmo no marxismo e na psicanálise. O problema é que tais características são escondidas ou mascaradas no campo das investigações sociais.

Recebido: 10 de Janeiro de 2023; Aceito: 22 de Março de 2023

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