Introdução
A partir de 1995, as políticas educacionais apresentaram um avanço com a Constituição de 1998 e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, Lei nº. 9.394/96). No entanto, apesar de os estudos de Haddad e Ximenes (2014) terem apontado um crescimento relacionado à luta pelo direito à educação, com o reconhecimento jurídico e social, suas pesquisas demonstraram também que os resultados da educação de jovens e adultos (EJA), enquanto modalidade, têm apresentado uma crise que vem desqualificando a formação de jovens e adultos e sua busca pela cidadania.
As inquietações que direcionam esta análise refletem a discrepância entre os resultados obtidos em dados inscritos no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e que se coadunam por todo o país com relação à EJA. Somos uma nação com mais de 13 milhões de analfabetos, segundo dados apontados pelo INEP e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Notadamente, um país sem uma política de auditoria com relação aos investimentos e à qualidade da educação – tanto nos espaços escolares quanto nas Secretarias de Educação – e que não leva em consideração a escuta das vozes dos professores e dos estudantes desta modalidade, nega o princípio democrático e de direito à educação.
A erradicação do analfabetismo, que foi apontada desde a Constituição de 1988, continua a ser uma meta difícil de ser alcançada. Uma das razões para esse problema é a falta de políticas públicas adequadas às necessidades da população, bem como a ausência de processos de políticas de formação, auditoria e investimento. Com a democratização do ensino, a presença de alunos das camadas menos privilegiadas da população gerou um desconforto traduzido em termos como “crise da educação” e “fracasso escolar”, visto que a formação dos professores não incluía a diferenciação entre sujeitos oriundos de tantas camadas sociais. Esse desalinho gerou o desafio de construir pesquisas, reflexões e estudos sobre essa falência do ensino e, mais do que isso, utilizar essas pesquisas para repensar as políticas públicas que assumissem o compromisso inadiável da educação: a tarefa de ensinar sujeitos sociais a desenvolverem suas habilidades a fim de participarem ativamente de práticas sociais diversas.
No âmbito nacional, algumas implicações que norteiam esta reflexão dizem respeito aos dados que apontam a região norte com uma das que apresentam pior índice de qualidade na educação. No Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE) revelam-se dados que, apesar de demonstrarem uma queda no quantitativo de analfabetos, ainda são insuficientes para chegarmos a falar de cidadania e educação como direito de todos.
Importante frisar que neste estudo não nos preocupamos apenas com os dados estatísticos apresentados, mas também com o que é feito deles. Mostra-se, dessa forma, uma contradição entre as políticas implementadas e os programas de alfabetização e analfabetismo funcional, assim como da EJA, no Ensino Fundamental e Ensino Médio.
A perspectiva crítica sobre as políticas públicas e educacionais e os conceitos sobre EJA vem de encontro à banalização4 reforçada pela ideologia neoliberal5, enquanto injustiça social, demostrando a negação do direito à educação.
O modelo de sociedade democrática de direitos em uso nos últimos 30 anos no Brasil, a partir da redemocratização social, constitui-se de relações e contradições presentes no contexto inclusivo, estas discrepâncias aparecem nas bibliografias e nos documentos oficiais frente à realidade vivenciada nos contextos de restrição e privação de liberdade.
Portanto, esse estudo discute, em primeiro plano, a EJA e seu reconhecimento legal e, posteriormente, o processo de banalização da educação de jovens e adultos, apresentando uma prévia da modalidade no Amazonas e nos espaços de restrição e privação de liberdade.
Nas considerações finais, apontamos a necessidade de ampliação do atendimento a pessoas em situação de restrição e privação de liberdade, bem como estudos e pesquisas sobre a EJA no Amazonas. Ressaltamos, ainda, a necessidade de criação de fóruns e seminários escolares, estaduais, municipais e de educação de jovens e adultos, com foco nas pessoas em situação de restrição e privação de liberdade, e na construção de políticas públicas pautadas na participação com base em diagnóstico e escuta de professores, alunos e sociedade.
Educação de jovens e adultos (EJA) e o reconhecimento legal
O reconhecimento da educação de jovens e adultos significa também o alcance de desenvolvimento social, político, econômico e cultural da população brasileira. É necessário que esse reconhecimento se traduza em ações de cidadania e que deixe de privilegiar um público específico em detrimento de outro.
Casanova (2008) diz que estamos diante de um clima ideológico no qual se enfraqueceram as propostas de soberania nacional em favor das propostas de “globalidade”, e na qual se obscureceram também os direitos “dos povos” diante dos direitos dos “indivíduos”. Isso inclui a EJA e a dimensão social e educacional enquanto direito de todos.
Ao pensar a educação enquanto direito, não podemos excluir e deixar de enxergar a “diversidade6” que cerca nossa sociedade e suas histórias de vida, tão conexas e ao mesmo tempo diversas. Para isso, é necessário que as políticas de educação de jovens e adultos considerem a importância de homens e mulheres na construção pessoal e social de nossa história.
A “hibridização7” da Constituição de 1988 e da LDBEN nº. 9.394/96 leva à falsa consciência de que o processo de direito é igual para todos e que a educação estará, em pouco tempo, acessível, mesmo que para isso a privatização transforme este legado (tratado com indigência) e os tornem “clientes” neste processo, já que a educação apresenta, nesse modelo, perspectivas de mercado e consumo.
As questões que mais se discutem com professores e alunos da modalidade são aquelas em que as políticas de educação de jovens e adultos geralmente são tratadas no âmbito da educação geral, e nas quais faltam políticas específicas para esta parcela da sociedade historicamente excluída. Desta maneira, as políticas acabam representando esse público de modo incoerente e tratando as questões da EJA de forma fragmentada. Assim, não há registro de um “Fórum de EJA” que trate das problemáticas direcionadas às pessoas em situação de restrição e privação de liberdade no Amazonas, demonstrando que tais discussões ainda estão muito distantes da sala de aula, dos professores e das necessidades regionais da educação em espaços prisionais.
É evidente, portanto, a necessidade de ampliar as vozes e a participação nestes espaços de discussões. Até existem representantes das Secretarias de Educação e Empresários no processo, mas a participação da sociedade como um todo ainda é insuficiente. Este processo de banalização retira da sociedade o poder de discussão acerca das problemáticas sociais relacionadas ao crescimento da violência e ao papel da educação, o que se reforça diante da transformação das pessoas em mutantes sociais (HALL, 2015).
Com frequência, as relações de poder aparecem com discursos variados e carregados da perspectiva de consumo e de educação para o trabalho, discretamente deixando de lado a educação para liberdade de pensamento e de reflexão. Nesse sentido, o consumismo reforça a lógica de servir às necessidades de sujeitos sociais para construir, preservar e renovar as suas individualidades. Logo, a luta pela singularidade acabou por se tornar o principal motor da produção e do consumo e, mais do que isso, essa sociedade de consumo avalia e julga seus membros por suas capacidades e condutas ligadas ao consumo (HALL, 2015). Dessa forma, as políticas públicas e documentos orientadores da Educação de Jovens e Adultos acabam, com o afastamento da sociedade, atendendo aos interesses de uma parcela reduzida de pessoas.
Os estudos de Haddad e Ximenes (2014) apontam a Constituição de 1988, que completou 30 anos em 05 de outubro de 2018, como processo que ampliou o dever do Estado com a Educação e decretou o ensino fundamental gratuito, inclusive para aqueles que não tiveram acesso à educação escolar em idade própria (CF, art. 208, I). No entanto, tal condição que colocou a Educação de Jovens e Adultos em situação de direito constitucional e de dever do Estado, evidentemente deixou de fora a obrigatoriedade da educação de jovens e adultos, permitindo seu acesso apenas por via do direito público subjetivo, e isto acaba por ser remediado nos espaços em situação de restrição e privação de liberdade.
Mesmo a Emenda Constitucional n°. 59 – que ampliou a questão da educação e tornou a educação básica obrigatória e gratuita dos 04 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurando, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria – deixa de fora a obrigatoriedade da EJA e suas especificidades (Redação dada pela Emenda Constitucional nº. 59, de 2009).
A legislação simbólica do direito à educação continua a existir e compor bandeira de luta, mas as minorias e a população que vive nesta periferia social continua a crescer e encontra-se desvinculada de políticas reais de acesso, atendimento e desenvolvimento social.
A educação como direito de todos aparece negada à EJA prisional, pois determina seu oferecimento obrigatório e gratuito para aqueles que se encontram dentro da faixa etária obrigatória e deixa de fora os maiores de 18 anos. O trecho “educação para todos” mostra-se, então, negligenciado e a injustiça social se mantém mesmo na ampliação da Lei, visto que as ameaças presentes em 2018 são de retirada de direito e de existência de documentos oficiais retirando a escola destes espaços de encarceramento.
Esse processo demonstra a ausência de preocupação com os jovens e adultos em situação de restrição e privação de liberdade, pois se trata de uma discussão periférica que cresce no meio populacional na medida em que a compreensão da realidade se fragmenta e que amplia a existência de simulacros e de simulação de mundos ideais (BAUDRILLARD, 2006).
A EJA, como direito público subjetivo, é vítima de uma política e normatização simbólica prescrita na sociedade neoliberal, ou seja, é uma política periférica, sendo visível que seu oferecimento só se dará por pressão da sociedade ou, em geral, por condição da economia e da ideologia neoliberal em um cenário de globalização, a fim de atender às demandas do mercado no sentido que a violência e a carceragem deem retorno financeiro, mas que, na maioria das vezes, não resolve o problema, apenas suaviza socialmente suas consequências para a população e retira direitos sociais de detentos e jovens que cometem atos infracionais.
O poder ideológico do neoliberalismo e da globalização da economia se mostra como elemento preponderante na reorganização da sociedade, porque opera por normativas, regulamentações e políticas de flexibilização. Não há, portanto, uma preocupação com as pessoas, mas com a dinâmica do capital e o desenvolvimento do consumo. A organização das demandas obscurece propositadamente a ideologia, tentando fazer dela um lema de avanço social, utilizada como simulação e simulacro (BAUDRILLARD, 2009).
No entanto, Ricouer (2015) diz que não há discussão na sociedade sobre o modo como opera a ideologia, e isto se reafirma, muitas vezes, na condição de não tornar possível uma política autônoma. Isto é, criam-se políticas de inclusão marcadas simbolicamente pela exclusão social, porque não são oferecidas as condições necessárias ao desenvolvimento, mas se aposta em medidas paliativas de controle social. É nesse cenário que homens e mulheres aprisionados em instituições penais estão invisíveis para a sociedade, fato que se mostra fisicamente pela presença dos muros que demarcam fronteiras, mas também por meio de uma ausência de consciência coletiva ao serem produzidos documentos oficiais que apagam a existência desses espaços, negligenciando essas populações que carecem de políticas públicas.
Nesse sentido, Ricouer (2015) aponta que a ideologia constrói quadros sociais que articulam papéis sociais (híbridos), com determinação de um modelo de posição social que se deve ter em determinado sistema cultural e que passa a ser regulado por políticas, matrizes, diretrizes e legislações que orientam formas combinadas de progressos sociais. Isso resulta em diagnósticos das questões sociais, orientadas pela condição mercantil da educação de jovens e adultos e pela negação da educação para pessoas em situação de restrição e privação de liberdade, gerando uma “cegueira” como ação simbólica8 de combate às mazelas da sociedade.
Michele Alexander, ao discutir o encarceramento da população negra nos Estados Unidos na obra “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa” (2017), lembra que a prisão e o reformatório têm produzido um chocante rastro de fracasso que gera mais criminalidade do que a previne, o que se reafirma, no Brasil, ao negarmos o direito à educação às pessoas dentro do espaço prisional.
O sistema penal emerge como forma de controle social e, ao mesmo tempo, como ato de apagamento de seres marginalizados que, ao retornarem ao convívio social fora dos muros da prisão, se não tiverem oportunidades econômicas e sociais relevantes e, se lhes for negado o direito à educação, estarão mais predispostos a cometer crimes novamente.
Então, qual é o real interesse social das políticas e de quem faz política? De fato, está ligado à ideologia. No caso, se estiver atrelada às políticas de Estado Mínimo e de regulação da educação, seguem-se os ditames econômicos que geram exclusão educacional e social, porque reflete a “consciência” de um grupo que, sob a retórica de um discurso público, manifesta poder expressivo mediado por símbolos sociais de modos distorcidos de perceber a realidade a sua volta.
Processo de banalização e descrédito da educação de pessoas jovens e adultos em situação de restrição e privação de liberdade
Nos estudos de Haddad e Ximenes (2014), analisa-se o processo de desqualificação da educação de pessoas jovens e adultas. Para isso, os autores realizam um levantamento histórico que não cabe aqui repetir. Contudo, é válido realçar que a pesquisa possibilita a compreensão de que as políticas de educação seguem as orientações neoliberais de reforma do Estado num contexto de crise financeira e que, embora as emendas e resoluções pareçam corrigir este descaso, o discurso da inclusão e da educação para todos, na prática, tem significado exclusão e restrição de direitos expressos na Constituição de 1988, bem como na LDB nº. 9.394/96.
Haddad e Ximenes (2014) destacam que a educação, enquanto direito de todos, expressa no art. 205 da Constituição de 1988, precisa ser interpretada de forma mais ampla, e o direito público subjetivo não pode se restringir à obrigatoriedade da educação básica de 04 a 17 anos. A interpretação da lei, pelo viés social, dá-se de maneira ampliada, mas sob o julgo de palavras normatizadas e, assim, restringe-se ao cumprimento de certas demandas que excluem pessoas do jogo social.
E isso se mostra bastante presente nas reformas e projetos do governo com viés neoliberal, como a atual reforma do Ensino Médio, de fevereiro de 2017. No caso das variadas interpretações da legislação da educação é visível a estratégia da distorção comunicacional, com base na ideia de Estado Mínimo, neoliberalismo e globalização. A comunicação que privilegia setores, inclusive deturpando situações do contexto e muitas vezes regulamentando casos que levam à exclusão do trabalho pedagógico dos professores, não é apenas intencional, mas claramente estratégica, tendo em vista uma sociedade notadamente mobilizada pelas leis de mercado.
O que deve ser o trabalho do professor nesta sociedade? Pela “Lei da mordaça”, representa seguir normativas, tal qual se mostra nos documentos e na base curricular, com minimização de discussões e de doutrinação dos conteúdos, remodelados pelas propostas de “educação de liberdade” controlada. Esconde-se, nestas reformas, o direito à educação e sua fragmentação, com um currículo pensado para apresentar resultados que desvirtuam a concepção de trabalho que se pauta no sujeito e dá nova concepção ao processo.
Assim, o panóptico teorizado por Bentham e discutido por Foucault (2014) encontra muito bem o seu lugar na educação. Os sistemas de fiscalização e controle da educação reforçam-se como dispositivos para melhorar o exercício de poder numa sociedade toda atravessada pelos mecanismos disciplinares. E, desse modo, a prática docente configura-se em silêncio do trabalhador em educação, seduzido pelo consumo, por prêmios de gestão e por programas de incentivo à formação para o mercado. O estudo, diante da imobilidade social, requer uma leitura analítica desses pormenores para compreender a mentira institucionalizada e a distorção comunicacional.
Desta maneira, a EJA e a educação de pessoas em situação de restrição e privação de liberdade ficam à mercê de informações desencontradas e carregadas de preconceitos e/ou políticas que levam à banalização, descrédito e fracassos educacionais, mas são aliviados por dados estatísticos duvidosos.
Dejours (2014, p. 64) trata desta mentira, que se institui como estratégia comunicacional, e diz:
A mentira consiste em produzir práticas discursivas que vão ocupar o espaço deixado vago pelo silêncio dos trabalhadores sobre o real e pela supressão do feedback. A mentira consiste em descrever a produção (fabricação ou serviço) a partir dos resultados, e não a partir das atividades das quais eles são decorrentes.
A banalização da educação e do descrédito da EJA está na produção de duplicidade de discursos que não são ingênuos, mas são estratégicos para investimentos em tecnologia e para ocupar mentes com a ideia de manter-se vivo num mercado tão dinâmico. No caso da EJA, desvirtua-se a ideia de trabalho e admite-se a concepção de empregabilidade e de individualidade disfarçadas.
O objetivo apontado pelo Ministério da Educação em vigor no país é de transformar a Educação de Jovens e Adultos em Educação a distância. Esse processo no caso dos alunos em situação de restrição e privação de liberdade retira a possibilidade de socialização que já é contraditória nos espaços de carceragem e na política de desenvolvimento de sujeitos prevista pela sociedade moderna, portanto, a sociedade sem fronteiras dos discursos da globalização caracteriza-se, na realidade, por uma sociedade de classes, que torna cada processo de liberdade dotada de um valor e uma perspectiva econômica pautada no capital social.
A legislação, apesar de se dizer democrática e acessível a todos, parece funcionar como estratégia comunicacional do neoliberalismo, já que a conjuntura na qual a lei é produzida, e seus desdobramentos anteriores e posteriores não devem ficar despercebidos pelos leitores e sociedade. Ou, então, as intenções contraditórias que permeiam os processos de negociações e interesses variados são camuflados, de tal maneira que parece haver características de democracia e aparato social, quando, na verdade, podem gerar exclusão e negação de direitos.
A figura do Estado Mínimo realça o descrédito e a banalização quando trata a “educação para todos” como privilégio para alguns, porque consegue gerar um nível de competitividade em que as pessoas deixam de lutar pela mesma causa e passam a defender perspectivas cada vez mais individualistas. Dessa forma, gera-se exclusão com brigas pelo poder, minorias, guetos e facções, indicação de ranking e de competências apontadas através de indicadores de avaliação, aplicados de tempos em tempos para justificar o destino de recursos, ou a restrição destes com base nos acordos assinados com os financiadores da Educação, bancos estrangeiros, agências multilaterais e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
A ideia de um Plano Nacional de Educação (PNE) reacende a concepção de democracia e de possibilidade para a educação de jovens e adultos. Mas não podemos esquecer que o plano transcorre em variadas concepções de poder que legitimam ou enfraquecem o poder do Estado e da sociedade, ou legitimam de modo lucrativo as percepções e ações do mercado através de seus financiadores.
O PNE, como instrumento de democracia e participação social, é um dos segmentos de luta e transformação social. Este documento, que encontra sua dinâmica entre Estados, Distrito Federal e Municípios, tem autonomia para tomar suas decisões, mas implica decisões de políticas públicas e, ao mesmo tempo, relações e blocos de interesse que podem modificar e alterar, em igual proporção, a ideia de qualidade e investimento, o que poderá resultar em banalização da educação.
No caso do PNE (2014-2024), o risco da banalização foi evidenciado com o diálogo e a participação da sociedade falseados, de modo a parecer que se trata de cooperação legítima, consciente e reflexiva em troca de prêmios de gestão e de incentivos financeiros a professores e alunos, deixando de lado um grupo de pessoas que vive à margem da sociedade e/ou em cárceres como processo de “segurança social”.
Portanto, discutir qualidade da educação sem financiamento, preparação, formação e condições de trabalho é discurso vazio e significa banalização, desrespeito, descrédito na educação e descaso com a cidadania. É fundamental para uma sociedade em processo democrático conhecer sua realidade e diagnóstico.
Garantir o acesso aos processos de discussão e aos caminhos da transformação da sociedade brasileira é um desafio, visto que todos os segmentos que possuem interesses na “organização” da sociedade estão presentes com propostas e discursos polissêmicos que carregam a ideia de implementar uma política de produção e competitividade mercadológica na educação. Frigotto (2011, p. 251), em suas análises sobre a educação no século XXI, menciona que:
Para o mercado não há sociedade, há indivíduos em competição. E para o mundo da acumulação flexível, não há lugar para todos, só para os considerados mais competentes, os que passam pelo metro que mede o tempo fugaz da mercadoria e de sua realização.
Desta maneira, queremos que as pessoas em situação de restrição e privação de liberdade tenham acesso à Educação de Jovens e Adultos, que foi e é palco de discussão em outras políticas. Tal anseio também se reflete no novo PNE, aprovado pela Lei nº. 13.005, de 25 de junho de 2014, com vigência de 10 (dez) anos, previsto de 2014 a 2024, o qual, para não ser banalizado, a sociedade deve estabelecer formas de fazer valer a cidadania.
Implicações da EJA no amazonas e nos espaços de restrição e privação de liberdade
Ao pensar a Educação de Jovens e Adultos no Amazonas, vários problemas parecidos com a dinâmica nacional, apontada ao longo desta síntese, repetem-se no Estado e nos Municípios e se intensificam tanto pelos custos altos, quanto pela geografia da região, além do número de profissionais sem formação específica para atender a demanda prisional.
O primeiro curso de formação de professores do sistema prisional, de modo efetivo pelo Estado, só foi realizado em março de 2017 pela Secretaria de Estado de Educação em convênio com Governo Federal. A partir de 2016, outras formações deram-se em caráter de parceria e de maneira experimental, por meio da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), na Escola Normal Superior, com atuação de professores do curso de Pedagogia.
Julião (2014) diz que a educação prisional aparece no terreno baldio das políticas públicas, porque atende ou deveria atender a uma demanda que está à margem da sociedade e que necessita de uma educação que vislumbre a questão popular, mas que deixa, muitas vezes, de ser atendida por uma carga de preconceitos e desconhecimento das necessidades da socialização de pessoas privadas de liberdade.
As práticas de fortalecimento e controle da garantia de direitos básicos, de responsabilidade do Estado, são enfraquecidas quando se encontram em questionamento pela sociedade que não legitima, por meio da opinião pública e da pressão popular, ações afirmativas em torno da questão. Além disso, a educação prisional encontra seus desafios ao tentar pensar uma educação transformadora em um espaço repressor, de silenciamento, ordem e disciplina.
ção enquanto direito, porque apresenta uma função reguladora da sociedade, revestida de democratização que transfere as funções do Estado para a sociedade e para as organizações não governamentais (ONGs).
Com a Secretaria de Educação Estadual do Amazonas (SEDUC – AM) e os seus 62 municípios, fica clara a necessidade de educação e a relevância de sua diversidade, de modo a garantir a EJA enquanto direito, pois é necessário também garantir atendimento, acesso, permanência e qualidade. Assim, quando se pensa em unidades prisionais, a situação de educação não corresponde ao direito de todos, pois só 09 dos 62 municípios possuem unidades prisionais e, entre elas, apenas 06 unidades possuem escola prisional (SEAP, 2018).
Os dados estatísticos apresentados revelam a necessidade de educação e trabalho e de ampliação de políticas de socialização de pessoas privadas de liberdade, que, mesmo amparadas por uma legislação que resguarda juridicamente o direito à educação, ainda requer políticas que criem oportunidades de aprendizagem, desenvolvimento e integração social. Dados expressos na tab. 1 revelam uma queda no número de alunos matriculados em 2014 até os anos de 2017 remediados por uma política de segurança que desencadeia em minimização de atendimento ao direito à educação.
Dados do Sistema Prisional | Municípios | Pop. Em delegacias do Interior | Pop. Das UPs da Capital | Pop. Em UPs do Interior | Pop. Casa do Albergado, em Manaus | Pop. da Policia Militar/Manaus | Média da População Carcerária do Amazonas | ||||||||||
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Manaus | Humaitá | Coari | Tefé | Maués | Parintins | Itacoatiara | Manacapuru | Tabatinga | |||||||||
2014 | Número de presos | 5.634 | 119 | 113 | 137 | 200 | 193 | 339 | 120 | 442 | 2.212 | 5.634 | 1.663 | 477 | 339 | 10.325 encarcerados | |
Número de alunos | 830 | 13 | 0 | 22 | 36 | 16 | 58 | 31 | 72 | 1.078 alunos | |||||||
2015 | Número de presos | 5.921 | 106 | 122 | 131 | 216 | 198 | 348 | 115 | 377 | 1.326 | 5.888 | 1.613 | 717 | 33 | 9.577 encarcerados | |
Número de alunos | 359 | 04 | - | 21 | - | 16 | 17 | 11 | 22 | 450 alunos | |||||||
2016 | Número de presos | 7.529 | 126 | 126 | 131 | 246 | 226 | 355 | 62 | 321 | 1.211 | 6.576 | 1.593 | 900 | 53 | 10.333 encarcerados | |
Número de alunos | 219 | - | - | 18 | - | 12 | 24 | - | - | 273 alunos | |||||||
2017 | Número de presos | 6.329 | 107 | 110 | 131 | 207 | 186 | 256 | 2 | 324 | 1.250 | 5.417 | 1.323 | 868 | 44 | 8.902 encarcerados | |
Número de alunos | 80 | -- | - | 11 | 11 | 19 | 41 | - | 12 | 174 alunos | |||||||
2018 | Número de presos | 3380 | 128 | 146 | 127 | 179 | 194 | 269 | 113 | 300 | 1558 | 6.394 encarcerados |
Fonte: CNJ-SEAP-ESAP/GAED-SEDUC (dados obtidos em abril e setembro de 2018). Disponível em: <www.seap.am.gov.br/noticias/livros-da-seap />; <www.censobasico.inep.gov.br/censobasico/#>;
Segundo relatos de pesquisa de Masagão, Haddad e Catelli Júnior et. all (2015, p. 36):
A qualidade das políticas de EJA, sua orientação e abrangência, são sempre determinadas pelo reconhecimento e pela vontade política de enfrentar as desigualdades sociais, de afirmar os direitos humanos e democratizar as oportunidades de participação social.
Neste estudo, é possível perceber que, no Amazonas, a existência de políticas públicas para a modalidade EJA ainda é insuficiente, afetando também as pessoas em situação de privação de liberdade. Isso mostra que há uma necessidade de compor a identidade própria da modalidade para a região, porque a certificação não pode representar um fim em si mesma, negando reais oportunidades de aprendizagem e socialização. É preciso, contudo, reconhecer que houve avanços com políticas e programas ao longo dos últimos anos, mas não se efetivaram de modo amplo e não garantiram um lugar de prioridade para Educação de Jovens e Adultos e para as pessoas em situação de privação de liberdade.
Tais avanços só se estabelecem mediante críticas, pesquisas e estudos e, no Estado do Amazonas, estas críticas se fazem imprescindíveis. A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI), que foi extinta no governo Temer (2016), referenda a falta de políticas e de banalização da Educação de Jovens e Adultos no Brasil para pessoas em situação de privação de liberdade, porque reduz processos democráticos de discussão em um momento histórico de crise e violência crescente no país.
Nesse sentido, a necessidade da segurança parece ser colocada como algo divergente da necessidade de educação, lógicas que deveriam ser tidas como convergentes com o objetivo de garantir que o jovem e o adulto presente no espaço prisional tenham na educação a possibilidade de trabalho, conhecimento, consciência de si e do outro e, posteriormente, ressocialização.
A violência, em primeiro de janeiro de 2017, é um elemento fundante nas políticas para pessoas em situação de restrição e privação de liberdade, uma vez que as oportunidades de educação e trabalho têm diminuído. Não conseguimos, neste estudo, os dados de matrículas de 2017, visto que a escola, no espaço prisional, está parada para atender questões de segurança regional e nacional, impossibilitando a entrada de professores no ambiente prisional.
No Amazonas, podemos destacar que o resultado da Educação de Jovens e Adultos ainda é insipiente para o que desejamos em nossa sociedade, porque além, dos problemas apresentados acima, temos a negação da modalidade enquanto direito, a responsabilização dos sujeitos da EJA por não possuírem escolarização e o preconceito entre algumas pessoas, setores, escolas, professores e gestores que atuam na realidade. Isso sem contar a ideia de investimento perdido no grupo e da visão da sociedade moldada por um discurso ideológico de competitividade.
Esse processo não pode ser visto como generalização, mas no caso das pessoas em situação de restrição e privação de liberdade há lacunas entre o “discurso politicamente correto” e a “prática”. Para Batista (2012), o papel do Estado é de elemento “fragmentado”, com variadas forças de cunho capital e neoliberal, no qual uma gestão ocorre de modo a minimizar os custos com educação, saúde e aumento de controle de pobres e excluídos da sociedade.
Concordamos com Orwel (2014, p.14) quando diz que o poder procura converter a sociedade civil sob formas de controle e ajuste social, tentando impedir qualquer ato de “manifestação, protesto ou rebeldia”. Trata-se, portanto, de um poder “punitivo” que “mutila” a “privacidade social”, visto que adotar políticas públicas desprovidas de caráter social reconfigura seus conceitos de uma maneira catastrófica e acirra a disputa de indivíduos numa sociedade que poderia criar sujeitos. A negação da educação é um destes elementos de punição e oferecê-la como forma de controle, criando processos que negam o pensamento e a criatividade, colabora para uma sociedade de excluídos.
Estes exemplos se expandem com a política pública de avaliação e certificação do Governo do Amazonas através do Sistema Eletrônico de Avaliação (SEA), que atende número significativo de jovens e adultos em diversas situações. O objetivo da Prova eletrônica/Avaliação (Resolução Nº. 111/2008 – CEE/AM) é a regularização funcional. No entanto, qual o fundamento de tal ação? Garantia de emprego? Acesso à educação de qualidade para aqueles que a ela não tiveram acesso? Tem-se um conjunto de dúvidas necessárias à reflexão, e que apontam a utilização de vários instrumentos acordados com os investidores da educação, como o consumo e a utilização de novas tecnologias. Este processo avaliativo reforça a ideia de individualidade e de atendimento aos estudantes em situação de restrição e privação de liberdade pelo sistema off-line.
O sistema on-line/off-line atende todo o Amazonas, porém, alguns candidatos precisam se deslocar de seus municípios para realizar o exame. Não há infraestrutura suficiente para ampliar o programa como deveria e, dentre os obstáculos encontrados, estão problemas de internet, laboratórios de informática ineficientes e falta de profissionais qualificados. Isso abre amplas possibilidades para novos mercados de consumo e tecnologia aplicados à população por meio de programas de expansão de tecnologias de informática.
Outra política em vigor no Amazonas é o Centro de Mídias, projeto de atendimento educacional em que as aulas são transmitidas para os municípios através de estúdio de TV e os professores atendem um número significativo de alunos, extrapolando o que seria atendido em sala de aula.
Neste programa, a EJA encontra-se também organizada, seguindo, no entanto, não uma sistematização própria, mas o mesmo desenho da escola regular de ensino fundamental e médio. Tal fato representa uma contradição, visto que a população que necessita desse direito à educação tem características próprias e diferentes que variam de município para município. E, se for pensada a condição de privação de liberdade, as necessidades se modificam constantemente.
Esses programas e políticas ainda carecem de maior investigação para sua ampliação e atendimento à sociedade. Porém, até o momento, não há informações suficientes para fazermos uma análise aprofundada dessas questões, pois os dados educacionais, apesar da Lei da Transparência, ainda são altamente burocráticos para se ter acesso pleno.
Considerações finais
Durante esse estudo, buscamos analisar o reconhecimento da Educação de Jovens e Adultos (EJA) para pessoas em situação de restrição e privação de liberdade, bem como seus significados para o alcance de desenvolvimento social, político, econômico e cultural da sociedade. Percebemos que esse reconhecimento, infelizmente, ainda não se traduz em cidadania. Os processos, apesar de apresentarem avanços, até então, camuflam interesses de produção e consumo, além de oferecerem formação e qualificação duvidosas para trabalhadores e pessoas que não tiveram acesso à educação em idade própria.
A análise evidencia uma educação de privilégios, não para os mais necessitados, mas para um grupo de investidores que financiam a educação. Nossas considerações finais apontam que, mesmo com avanços significativos, ainda nos permeiam as injustiças sociais e educacionais, e, junto com elas, nossa população vem sendo “organizada e regulada” por políticas semeadas em discursos polissêmicos.
Notou-se que a distorção comunicacional é um dos instrumentos utilizados como estratégia de manipulação e regulação da sociedade. Nas variadas interpretações da legislação da educação, é visível o ardiloso artifício da distorção comunicacional, com base na ideia de Estado Mínimo, neoliberalismo e globalização.
O estudo mostrou, ainda, que a comunicação que privilegia setores – inclusive deturpando o contexto, e, muitas vezes, regulamentando situações que levam à exclusão do trabalho pedagógico dos professores – não é apenas intencional, mas estratégica, tendo em vista uma sociedade mobilizada pelas leis de mercado. Premiar, nesta sociedade, portanto, ganha o sentido de notoriedade, estimula o ter sem se preocupar em como obter, ignorando se é lógico, se é ético, se é correto.
A EJA, no Amazonas, representa nossa bandeira de luta pela educação enquanto direito. Por isso, apontamos aqui a necessidade de o Estado e os Municípios promoverem educação de qualidade, mediante os altos custos, a diversidade da geografia e da cultura local. E é imprescindível que isso ocorra de maneira que nos desafie a formar pessoas como cidadãos, sujeitos atuantes numa sociedade em constante construção.
Assim, a necessidade de repensar a EJA para pessoas em situação de restrição e privação de liberdade precisa ultrapassar preconceitos e a ideia de punição. Tais obstáculos até permitem criar meios para a socialização dos estudantes em situação de privação de liberdade, mas não abrem totalmente os verdadeiros caminhos de aprendizagem e de relações com o reaprender a lidar com a sociedade. Isso se reforça ao percebermos que as rotinas no interior das unidades prisionais ainda se caracterizam pela sua natureza punitiva, com ameaças, falta de privacidade, negação de acesso a livros, etc., reduzindo a capacidade preventiva e ressocializadora desses espaços.
Neste aspecto, reforçamos a necessidade de pesquisa neste tema em nossa região, bem como de ampliar a discussão dos diversos olhares, vozes e escutas da Educação de Jovens e Adultos nos espaços formais, informais e nas várias possibilidades de educação e convívio social. Há, portanto, grandiosa premência de investigação das políticas públicas e educacionais, além da imperiosa urgência de implantação de processos de auditoria das contas públicas relacionadas à educação, e, da mesma forma, uma apuração permanente do processo educativo em espaços de educação para pessoas em situação de restrição e privação de liberdade.