A importância do livro 17 contradições e o fim do capitalismo, de David Harvey, é relativa ao fato de abordar criticamente a questão do capitalismo e suas intensas contradições. Caracterizado pelo próprio autor como o livro mais perigoso que já escreveu, a obra traz elucidações sobre as crises, sobre as cada vez maiores e agudas tentativas de reprodução do capitalismo, sobre capital e trabalho com uma visão bastante atual e com exemplos específicos desses aspectos inseridos na sociedade atual. Trata-se, portanto, de uma obra desafiante, pois cuida de um assunto em movimento, e que caminha a passos largos. Parte da trajetória investigativa do autor, este complementa outros de seus trabalhos, que tratam de acompanhar historicamente os arranjos do capital no mundo contemporâneo.
O autor traz inicialmente elucidações sobre as crises e como elas são essenciais para o capitalismo, para que as instabilidades apareçam, para que as fragilidades sejam revistas, e principalmente pra que sejam analisadas as drásticas mudanças decorrentes dela em todos os segmentos da sociedade, sejam instituições, ideologias dominantes, processos, tecnologia, política, enfim, todo o entorno, o que faz esse trabalho ser ainda mais valoroso no momento presente. “As crises abalam profundamente nossas concepções de mundo e do lugar que ocupamos nele.” (Harvey, 2016, P.9)
A partir daí, após citar Marx (1969), Harvey conceitua contradição para que possa de fato trazer as 17, título do livro, e deixa claro que as contradições não são todas ruins, e que não tem intenção de dar aqui apenas conotações negativas, pois para o autor, elas podem ser fontes de mudanças pessoais e sociais. E frisa “as contradições têm o péssimo hábito de não se resolveram, apenas se deslocarem” (Harvey, 2016, p.17), voltando a esse “princípio” em outros momentos da obra. E dá, como objetivo do presente trabalho, identificar as contradições internas do capital que foram responsáveis pelas crises recentes e que dão a entender que não há saída sem uma devastadora destruição no mundo.
Dividido em três partes, na parte I “As contradições fundamentais”, o autor traz sete delas, sendo 1. Valor de uso e valor de troca; 2. O valor social do trabalho e sua representação pelo dinheiro; 3. Propriedade Privada e Estado capitalista; 4. Apropriação privada e riqueza comum; 5. Capital e trabalho; 6. Capital como processo ou como coisa; 7. A unidade contraditória entre a produção e a realização, e enfatiza que essas “primeiras sete contradições são fundamentais porque o capitalismo simplesmente não funciona sem elas. Além disso, estão ligadas de tal maneira que é impossível modificar substancialmente e muito menos abolir qualquer uma delas sem modificar ou abolir as outras.” (Harvey, 2016, p.25).
E segue, de maneira bem didática, explicando ponto a ponto e trazendo exemplos da vida cotidiana, como por exemplo, ao comentar a saúde e educação, onde o valor de troca predomina cada vez mais sobre os aspectos do valor de uso. Quanto valor de troca, seria necessário para produzir os usos desses itens?
O que o leva à contradição seguinte a respeito do valor social do trabalho e sua representação pelo dinheiro. O valor de troca requer uma medida de “quanto” as mercadorias valem em relação às outras. Essa medida chama-se “dinheiro”, e o usamos sem de fato refletir sobre ele. Assim, o autor destaca que dependemos do trabalho dos outros para obter valores de uso para viver.
Esse “dinheiro”, segundo Harvey , tem três funções, como dinheiro-mercadoria, dinheiro para circulação e dinheiro fiduciário.
Na contradição 3 é exposta a relação jurídica, onde os indivíduos tem direitos de propriedade privada adquiridos e um quadro de leis e costumes para sua proteção, com intervenção do Estado, e na 4 fica evidente que há uma ligação entre a perpetuidade da forma dinheiro e dos direitos de propriedade privada, pois o Estado emite a moeda, meio de troca, o que consequentemente, constitui a base para a formação da classe capitalista, que depende do capital para se reproduzir principalmente através da mercantilização da força de trabalho, o que nos leva à contradição 5.
A sexta contradição, que traz o questionamento do capital como processo ou como coisa, tem na interpretação do autor a visão de que deve ser compreendido como ambos, pois quando a mercadoria é vendida, o capital retorna a sua forma-dinheiro, e nesse fluxo contínuo, o processo e as coisas mantêm uma relação de dependência.
Neste momento, o autor explica a tendência aceleração, a obsolescência programada, o modismo e outros aspectos enraizados na cultura capitalista.
A sétima e última das contradições chamadas de fundamentais pelo autor, refere-se à unidade contraditória entre produção e realização, ou em outras palavras, o valor agregado na produção só se efetiva quando se vende o produto no mercado. A circulação contínua do capital depende da passagem bem sucedida por esses dois momentos: de produção e de realização, onde o autor comenta os detalhes do livro I e II de O Capital (Marx,1976,1978).
Na parte II, tem-se o que o autor chama de “As contradições mutáveis”, onde ele engloba outras 7 contradições, a saber: 8. Tecnologia, trabalho e descartabilidade humana; 9. Divisões do trabalho; 10.Monopólio e Competição: Centralização e Descentralização; 11. Desenvolvimentos Geográficos desiguais e produção de espaço;12. Disparidades de riqueza e renda; 13.Reprodução social e 14.Liberdade e dominação.
Esses tópicos são surpreendentemente contemporâneos e marcados pela face cruel e utilitarista do capital e novamente de forma bem didática e orquestrada, o autor os comenta com exemplos plausíveis dentro da realidade da sociedade em que vivemos. Harvey (2016, p.90) afirma que “as contradições mutáveis evoluem de modo diferente e fornecem grande parte da força dinâmica que está por trás da evolução histórica e geográfica do capital.”
Ao tratar na contradição 8 que os aumentos drásticos de produtividade são mais um dos polos de movimentos contraditórios, o autor explica que a mudança tecnológica nunca é gratuita ou indolor, que é importante se perguntar quem ganha com a criação e quem arca com o impacto da destruição, citando Schumpeter (1942). Ainda dentro dessa contradição o autor aborda os cinco imperativos tecnológicos dominantes, que são a organização da cooperação e das divisões de trabalho para maximizar o lucro, a necessidade de facilitar a aceleração da circulação do capital, as tecnologias de produção e disseminação do conhecimento para armazenar e recuperar dados, como fundamentais para a perpetuação do capital, as finanças e o dinheiro como domínio crucial para o funcionamento do capital e finalmente a questão do controle do trabalho e da mão de obra.
Na contradição 9, Harvey (2016, p.111), afirma que “o capital se apoderou da divisão do trabalho reconfigurando-a radicalmente” e por isso a incluiu como contradição mutável e não como fundamental como as sete primeiras, pois esta está sempre em revolução. Aqui o autor cita ainda Marx (1981) e Braverman (1987).
Monopólio e competição; centralização e descentralização são a tônica da décima contradição, onde o autor trata da questão da concorrência e diz que “o que falta na discussão sobre o monopólio é o conceito e a realidade de poder de monopólio de classe (poder coletivo do capital), incluídas as rendas do poder de monopólio, como aplicado nos processos econômicos e políticos”. (Harvey, 2016, p. 130).
A contradição 11 trata dos “desenvolvimentos geográficos desiguais e produção do espaço”, onde Harvey reafirma o esforço do capital para produzir uma paisagem geográfica favorável a sua reprodução, e que para isso não prescinde do intermédio dos poderes estatais. E traz exemplos de condomínios, rotas de transporte, a valorização e desvalorização de cidades, tendo como consequência concentrações desiguais regionais de riqueza, poder e influência.
Já na contradição 12, com relação a “disparidades de renda e riqueza”, o autor traz dados de análises de declarações de imposto de renda americanos para tratar da disparidade drástica de renda, que só vem se elevando desde 1970.
A contradição 13, reprodução social, aborda explicitamente a contradição entre as condições necessárias para garantir a reprodução social da força de trabalho e as condições necessárias para reproduzir o capital, que, segundo o autor, sempre existiu, mas nos dois últimos séculos ela evoluiu e tem possibilidades perigosas, complexas, de longo alcance e desiguais. Aqui Harvey cita além de Adam Smith (1996), a teoria do capital humano, de Becker (1994).
A última das contradições mutáveis, a décima quarta, Liberdade e dominação, trata de ideologias e de como elas fortalecem o capital. O autor diz que “esses dois termos antagônicos situam-se nos extremos de uma contradição que adota formas sutis, cheia de nuances, para não dizer disfarces (a dominação pode e mascarar de consentimento, ou e estabelecer por persuasão e manipulação ideológica)”. (Harvey, 2016, p. 196).
Finalmente na parte III, nas chamadas “contradições perigosas”, o autor diz que elas podem ser consideradas potencialmente fatais e mais uma vez cita Marx (1969) ao dizer que este previu que o capital acabaria ruindo sob o peso de suas próprias contradições internas.
Para o Harvey (2016) autor o capital continuará funcionando para sempre, mas provocando uma degradação progressiva da terra e um empobrecimento em massa, aumentando a desigualdade e a desumanização. E, assim, apresenta os três últimos tópicos, as contradições que ele caracteriza como “crescimento exponencial infinito”, “a relação do capital com a natureza” e “a revolta da natureza humana: alienação universal.”
O primeiro deles, crescimento exponencial infinito, a contradição 15, já tem uma explicação no próprio subtítulo, pois o capital gira em torno do próprio crescimento, o que leva o autor a questionar se é possível esse crescimento ser perpétuo. A partir daí trata das análises de renda, juros compostos, taxas.
Na relação do capital com a natureza, a contradição 16, após citar as profecias devastadoras que não se concretizaram, Harvey comenta que sob a pressão do crescimento exponencial contínuo, a degradação cancerosa se acelera, e que a relação do capital com a natureza e com a natureza humana é extremamente alienante e a alienação da natureza é a alienação do potencial da nossa espécie.
A última contradição, de número 17, trata da revolta da natureza humana: a alienação universal, onde o autor admite que não é impossível que o capital sobreviva até aqui, após todas as contradições enumeradas, mas que o custo dessa sobrevivência se tornará inaceitável para a maioria da população. Após conceituar o verbo “alienar”, Harvey diz que o tema da alienação está presente em muitas das contradições já ditas, e dentro desse significado está a forma como as pessoas vão lidar com todos esses acontecimentos e que atitudes tomarão.
“Enfrentar coletivamente as múltiplas alienações que o capital produz é uma maneira convincente de se mobilizar contra o motor econômico engasgado que leva tão imprudentemente o capitalismo de uma crise a outra, como consequências potencialmente desastrosas para a nossa relação com a natureza e com os outros.”( HARVEY, 2016, p.255)
Em sua conclusão, o autor traz as perspectivas de um futuro feliz e controverso a partir do humanismo revolucionário, questiona que tipo de humanismo precisamos para transformar o mundo em um lugar diferente, povoados por pessoas diferentes, por uma ação anticapitalista e complementa que a única esperança é que a humanidade veja o perigo antes que a podridão avance e o danos humanos e ambientais sejam grandes demais para se recuperar. Citando Fanon (1968), diz que sempre há “lagrimas a serem derramadas, atitudes inumanas a serem combatidas, modos condescendentes a serem descartados, homens a serem humanizados.” (Harvey, 2016, p.266).