O livro aqui resenhado, Processos midiáticos no campo esportivo, do Prof. Dr. Gustavo Roese Sanfelice, com atuação na FEEVALE - Novo Hamburgo/RS, foi publicado em 2018 e se trata de uma publicação oriunda da sua pesquisa de doutoramento. Conta com uma breve apresentação do próprio autor e prefácio do Prof. Dr. José Carlos Marques, da UNESP/Bauru, pesquisador do campo da comunicação esportiva, sendo constituído por cinco capítulos, mais considerações finais e a seção de referências.
Na apresentação da obra, há todo “mapa” daquilo que teremos ao mergulharmos na leitura do texto. Ali, Sanfelice, de maneira bem sucinta, já manifesta seu interesse em nos ajudar a compreender de forma aprofundada e detalhada as relações entre o campo midiático e o campo esportivo, explicitando, como ele mesmo escreve, “a práxis da produção midiática”, notadamente quanto à figura da ginasta Daiane dos Santos nas páginas da Folha de São Paulo (FSP) e de Zero Hora (ZH), devido à sua participação nos Jogos Olímpicos de Atenas/2004.
Com prefácio de José Carlos Marques (UNESP-Bauru), temos não só a apresentação do livro - que é a pesquisa de doutoramento de Sanfelice - mas também, a síntese da trajetória do autor, de sua monografia de conclusão de curso na UFSM, passando pela investigação de mestrado e culminando com sua tese de doutorado. “Zeca Marques” sintetiza a obra e seu autor, como “produtos” de um campo acadêmico no Brasil, que se articula entre os estudos das ciências da comunicação e as ciências do esporte, mostrando que esse diálogo é útil e necessário para ambos agentes desses campos.
Na Introdução da obra, Sanfelice parte da premissa que é impossível se pensar no campo esportivo sem se pensar no campo midiático, já que este ajuda a engendrar contextos de significação sobre o que atualmente entendemos como esportes. Segundo Sanfelice, o processo de midiatização é responsável por elaborar significações sociais de percepção simbólica, que, segundo o referido autor, são “contratos de leitura” entre o que entendemos pela via do emissor (a mídia em si) e o contexto de recepção (o público - leitor, telespectador, ouvinte, que se transforma em “consumidor”).
Sanfelice (2018, p. 18) afirma que “O discurso midiático é coparticipe da agenda do campo esportivo”, ou seja, há uma relação simbiótica entre esses dois campos. Citando exemplos como o vôlei e o futebol, o autor manifesta o interesse em dirigir seu olhar para outra modalidade, menos popular e menos destacada pela mídia brasileira: a ginástica artística (ginástica de solo), em específico à figura da brasileira Daiane dos Santos durante os Jogos Olímpicos de Atenas/2004. Sanfelice atentou-se às singularidades em meio a um processo que comumente nos colocamos às generalizações (principalmente quando somos dirigidos pelo discurso midiático sobre o esporte).
Assim, seu objetivo foi identificar e analisar como dois veículos impressos - Zero Hora (ZH), com sua identidade local; e Folha de São Paulo (FSP), com sua identidade nacional) - operaram, veicularam e repercutiram discursos em relação à ginasta brasileira supracitada, além de dar destaque à questão étnica, já que, Daiane dos Santos, oriunda do Rio Grande do Sul, uma negra em um contexto de maioria branca, que veio da periferia de Porto Alegre e iniciou sua vida na alta performance esportiva de forma tardia, representou a população afrodescendente naquele momento (eis aí, segundo Sanfelice, outra singularidade observada). Sanfelice elabora um diagrama para apresentar o mapa teórico-conceitual, momento em que apresenta e explicita o processo de transformação de uma “ação social” em um “acontecimento”, auxiliando-nos a melhor visualizar aquilo que o autor chama de “ordem da ação” (as ações e fatos em si) e “ordem do discurso” (o trabalho realizado pelas mídias em midiatizar, espetacularizar e exponenciar sua produção discursiva cotidiana).
No segundo capítulo - As teorias do jornalismo: a construção da notícia esportiva - o autor procura sistematizar a trajetória teórica do jornalismo, mostrando que essa atividade profissional é difícil e complexa. Sinteticamente, Sanfelice contextualiza o campo esportivo como lugar de ressemantização dos jornalistas. Foi possível identificar oito teorias mencionadas por Sanfelice, assim resumidas:
Teoria do espelho: é a teoria do contra poder, em que o produto é apresentado como uma transmissão não expurgada da realidade. O jornalismo se apresenta como uma informação cobrindo a realidade.
Teoria do gatekeeper (ou da ação pessoal, de característica microssociológica): refere-se à compreensão de que uma pessoa, o jornalista ou seu superior, toma uma decisão numa sequência de decisões, ou seja, a produção da notícia passa por escolhas pessoais do jornalista.
Teoria organizacional: considera a organização jornalística, transcendendo a dimensão individual/pessoal do jornalista, ou seja, a adequação do jornalista aos cercos das normas da empresa ao qual se vincula (e aqui começa a aparecer, por exemplo, o espaço da publicidade na produção do produto jornalístico, isto é, o aspecto mercadológico).
Estudos de parcialidade: a parcialidade é entendida como oposto de “objetividade”; consideram que as notícias devem refletir a realidade sem distorção, isto é, teorias que defendem que a posição das notícias são distorções sistemáticas que servem a interesses políticos.
Notícias como construção (teoria construcionista): rejeitando o paradigma anterior das notícias como “espelho”, já que consideram que as notícias ajudam a construir a própria realidade e também a neutralidade da linguagem como sendo algo impossível. As notícias são concebidas a partir de um sistema cultural, como “mapas de significado”, que seria uma identificação social entre acontecimento, notícia e público. Aqui Sanfelice traz o conceito de “enquadramentos” a partir de Erving Goffman.
Teoria estruturalista (com seus aspectos macrossociológicos): reconhece a autonomia relativa dos jornalistas em relação ao controle econômico deles com suas empresas e destas com o campo econômico de modo geral. Trata-se de tornar um acontecimento inteligível a partir das identificações sociais e culturais.
Teoria integracionista: a qual considera as trocas entre os jornalistas na produção de notícias como vitais, além das notícias serem vistas como resultado de processos de integração social.
Agendamento: considera que o público tende a considerar determinados assuntos como mais importantes a partir do que é veiculado pela mídia, pautando à sociedade temas que lhes convêm. A mídia possui uma eficácia em construir a realidade que o sujeito estrutura, ou seja, o agendamento organiza a vida dos sujeitos de fora para dentro, não dizendo “como” pensar, mas sobre “o que” pensar.
Na sequência, Sanfelice tratará quanto ao acontecimento midiático e ao acontecimento esportivo, ainda dentro do segundo capítulo que aborda as teorias do jornalismo.
Tratando sobre o acontecimento, do midiático ao esportivo, o autor procura compreender a lógica midiática de construção das notícias. Diferencia “fato” (entendendo como “ações sociais” que são configuradas pela definição de situação e enquadramento do momento da ação, ou seja, algo do plano do real, que necessita de uma discursividade para se transformar em acontecimento) de “acontecimento” (entendido como algo que é extraído de uma totalidade e que precisa de um enquadramento, portanto, construções discursivas que exigem uma representação).
Para Sanfelice (2018, p. 65), o acontecimento midiático é a via da discursividade, ou seja, é como parte do processo de midiatização, quando as mídias promovem um outro tipo de organização social, com a dramaticidade e as emoções características da produção midiática, sempre necessitando da figura dos heróis.
Em específico quanto ao acontecimento esportivo, Sanfelice o compreende como uma realização física que, em sua essência, já é espetacular, entretanto, com a mídia operando sua discursividade sobre o evento, ela ajuda a construir simbolicamente esse acontecimento, com sua midiatização e espetacularização. Sanfelice (2018, p. 73) complementa: “[...] A disputa esportiva por si só não teria tais características sem a discursividade midiática.”
Já no terceiro capítulo - Dos campos sociais ao campo esportivo - Sanfelice expõe conceitualmente sua apropriação teórica para sua pesquisa e suas reflexões (os dados empíricos propriamente ditos serão trazidos e analisados no quinto e último capítulo). Como explícito no título da obra, ganha destaque o conceito de campo - de Pierre Bourdieu - que é especificado em relação ao campo esportivo e em campo midiático (Sanfelice costuma nomeá-lo como “campo dos media”).
Como sabemos, e como expõe Sanfelice, pensar objetos empíricos a partir da abordagem bourdieusiana de campo é pensar uma configuração específica, um espaço social próprio, que se materializa social e historicamente a partir dos mais diversos agentes, que disputam espaços de poder no interior desse espaço do campo, permitindo com que, desses conflitos, outras condições de possibilidades sejam possíveis, considerando também que a autonomia desses campos são relativas, ou seja, não são totais.
Assim, Sanfelice inicialmente tece comentários quanto ao campo midiático, pelo poder que este atua em relação aos demais campos sociais, com suas construções narrativas e discursivas, como as que ocorrem em momentos próximos às realizações de Copa do Mundo de Futebol e de Jogos Olímpicos. Expõe quanto aos interesses econômicos, políticos e mercadológicos em relação às transmissões esportivas e também o papel dos “especialistas” nas coberturas midiáticas esportivas. Segundo Sanfelice (2018, p. 81): “[...] o campo dos media gere, administra, os dispositivos de percepção da realidade, constituindo, desse modo, a própria experiência do mundo moderno.”
Em relação ao campo esportivo, Sanfelice considera a importância que o esporte tem para o campo jornalístico, embora considere que os receptores (público em geral) sejam compreendidos como receptores ativos, por estarem constantemente codificando ofertas midiáticas e produzindo novos sentidos a partir do que lhes é veiculado, ou seja, há negociações culturais entre os envolvidos.
Interessa-nos destacar que o autor em questão nos chama a atenção para observarmos que nosso momento atual nos permite afirmar quanto ao poder que a mídia passou a ter no sentido de transformar a própria lógica interna dos esportes ao fazer sua cobertura midiática, ao ponto de vermos, segundo Sanfelice (2018, p. 88): “[...] que o gosto por um determinado esporte passa necessariamente pelo campo midiático, o que este torna público, agendando-o.”
Ao final do terceiro capítulo, Sanfelice reflete em relação ao esporte enquanto universo simbólico. Para isso, traz o conceito semiótico de cultura de Clifford Geertz, já que a cultura se refere à dinamicidade da produção humana e aos processos de significação que só os seres humanos fazem uso. Assim, Sanfelice articula os exemplos dos eventos esportivos como formas atuais das nações “guerrearem”, sendo que esse universo simbólico é tomado pelas competições esportivas internacionais e envolvem o imaginário social (poder, vitória, status social, mitos etc.) e representações (como do herói esportivo): “Os Jogos Olímpicos Modernos são a materialização do esporte como forma de dominação e guerra simbólica entre as nações.” (SANFELICE, 2018, p. 93).
No quarto capítulo, A midiatização do esporte, Sanfelice procura tratar do conceito de midiatização vinculado ao esporte, compreendendo-a a partir da posição que o esporte ocupa na sociedade contemporânea e considerando, de antemão, que “O papel do esporte na sociedade moderna é de grande relevância.” (SANFELICE, 2018, p. 97).
A midiatização, segundo sua análise, se constitui no poder que a mídia possui em construir sentidos e dar visibilidade aos mais diversos fenômenos e acontecimentos da sociedade. Ainda para Sanfelice, utilizando-se das ideias de Eliseo Verón, a midiatização toma forma no processo de produção do acontecimento.
Assim, considerando o esporte como fenômeno social (dialogando com Wanderley Marchi Junior) e as práticas esportivas como integrantes de um contexto sociocultural que se referem à socialização humana (acionando Silvino Santin), bem como, observando o esporte como uma dimensão do espetáculo (quando cita Guy Debord, para o qual há uma produção e um consumo de imagens do universo esportivo), Sanfelice apoia-se na ideia do esporte espetáculo.
Neste aspecto, Sanfelice enfatiza dois pontos: (1) que a linguagem imagética e simbólica do esporte passa a ser homogênea e universalizante, embora afirme que “A sociedade midiatizada não é homogênea, sendo que os meios penetram e alteram todas as relações sociais, mas não produzem uma homogeneização.” (SANFELICE, 2018, p. 103); (2) o espetáculo esportivo como produção dos veículos midiáticos, ou seja, o próprio processo de agendamento da notícia e dos acontecimentos: “[...] A agenda midiática moldura o antes, o durante e o depois dentro das suas estratégias e lógicas engendradas com os seus leitores, no caso dos jornais” (SANFELICE, 2018, p. 108).
Embora traga constantemente exemplos dos veículos impressos e da televisão, fica a reflexão de como os seus exemplos poderiam ser atualizados pensando na intensificação que a internet, os portais digitais e as redes sociais propiciam quando o espetáculo esportivo contemporâneo ganha foco, como em períodos de megaeventos esportivos, já que o próprio autor considera que os grandes eventos esportivos tornaram-se “realities shows” (SANFELICE, 2018, p. 111).
É no último capítulo que, enfim, temos a discussão empírica da pesquisa realizada por Sanfelice, momento em que ele apresenta A cobertura dos Jornais Folha de São Paulo e Zero Hora - O caso Daiane dos Santos. Trazendo os exemplos coletados e analisados pelos dois jornais, o autor vai mostrando como ocorreu o enquadramento (os frames jornalísticos, a partir da compreensão de Goffman e sua microssociologia) e os mapas de significados (que podem ser compreendidos a partir das fotos, das legendas, dos títulos, das linhas de apoio etc.), foram articulados com as Teorias da Construção da Notícia (Nelson Traquina) para evidenciar as disparidades visualizadas nos dois veículos impressos investigados.
Sanfelice nos mostra, entre outras questões importantes, que houve um forte agendamento em relação às expectativas de vitória e de medalha de ouro quanto à atleta Daiane dos Santos, tendo em vista que suas próprias ações no campo esportivo permitiam potencializar a discursividade que, ao longo do tempo, foi dando visibilidade e ganhando atenção por parte dos espectadores brasileiros quanto a uma modalidade até então pouco midiatizada:
[...] Daiane é favorita pelos seus resultados anteriores em etapas de Copa do Mundo de ginástica que antecederam os Jogos Olímpicos de Atenas 2004. Entretanto, a partir do discurso midiático sobre o seu favoritismo, temos a midiatização do resultado da atleta brasileira, que passa a ser construído a partir dos frames de cada jornal. ZH e Folha operam simbolicamente a atleta dentro de suas lógicas locais e globais. (SANFELICE, 2018, p. 132).
Na discussão realizada, Sanfelice destaca que o Jornal Zero Hora construiu sua discursividade - tanto pelos enquadramentos, como pelos mapas de significados - a partir da identidade local da “gaúcha” Daiane dos Santos, o que se contextualiza por uma característica bastante peculiar da identidade gaúcha em valorizar seus símbolos e marcas regionais (hino, chimarrão, indumentária, linguagem etc.), além de focar em elementos considerados como “emotivos”, cujo adjetivo se pautou pela “Gaúcha de Ouro”. Já a Folha de São Paulo, sendo um jornal de circulação nacional, apresentou elementos objetivos (quantificações objetivas e lineares) em relação aos acontecimentos que não confirmaram a medalha de ouro à “brasileira” Daiane dos Santos, sendo chamando-a pelo seu nome: “[...] Não há marcas identitárias no texto da Folha. Em alguns momentos, o jornal refere-se à Daiane como brasileira, mas em grande parte a chama pelo seu nome.” (SANFELICE, 2018, p. 128).
Nas Considerações Finais, Sanfelice retoma a ideia da mídia como operador de sentidos, a qual transforma fatos e ações sociais em acontecimentos midiáticos, através de enquadramentos e mapas de significados. Assim, há tanto uma processualidade - que é explicitada via processos de agendamento e tematização - como também posicionamentos que estabelecem “molduras” para esses fatos ocorridos que são reverberados a partir das mais diversas discursividades, cada qual identificada ao conjunto de leitores/telespectadores (público em geral) que se alinha àquele veículo midiático. Sanfelice (2018, p. 139) afirma que “A oferta de Daiane como campeã do mundo de ginástica foi vastamente reiterada durante a cobertura dos jornais, ao passo que quanto mais próxima a final, mais elementos relativos a adversários vinham à baila na cobertura.”
Além disso, Sanfelice tece breves considerações quanto à natureza espetacular do esporte, evidenciando esse caso de Daiane dos Santos nos Jogos Olímpicos de 2004, tanto em relação às ações da atleta em suas disputas no campo esportivo, como em relação à ordem do discurso das mídias em suas produções narrativas (que no caso evidenciaram enquadramentos diferenciados entre Zero Hora e Folha de São Paulo): “[...] A gauchinha de ouro ou o sucesso mercadológico, assim se faz a construção midiática de Daiane dos Santos, ‘apenas’ uma atleta.” (SANFELICE, 2018, p. 142).
Finalizando, podemos considerar que ler a obra de Gustavo Sanfelice - Processos midiáticos no campo esportivo - ajuda-nos a melhor compreender as mais diversas estratégias que o campo midiático opera em relação às questões do campo esportivo. Em ano olímpico, como agora em 20201, em que teremos 32ª edição dos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio/Japão, com a novidade da inclusão de cinco novas modalidades, poderemos observar como outros esportes, como surfe, skate, beisebol/softbol, escalada e caratê terão suas discursividades elaboradas e veiculadas pelas mídias, no sentido de, como Sanfelice, procurar observar se há alguma “zona de passagem” entre o habitual midiático e possibilidades de trazer outros elementos que amplificam questões dos mais variados campos sociais a partir do campo esportivo.
Passados dezesseis anos dos Jogos Olímpicos de Atenas 2004, momento em que esse fenômeno analisado por Sanfelice ocorreu, ou seja, já tivemos três edições olímpicas acontecendo, podemos afirmar que outros exemplos como os da exposição e midiatização ocorrido com Daiane dos Santos e com a ginástica artística sinalizaram uma “passagem” no modus operandi da mídia em relação às coberturas esportivas? Os Jogos de Tóquio/2020 estão aí... atentemo-nos!