1 INTRODUZINDO A TEMÁTICA: CASOS DE ENSINO
Em 2001, comecei a dar aulas [...] Era a primeira experiência de dar aulas em uma instituição de ensino superior [...] Fui contratada numa segunda, e na quarta estava começando. Tudo muito rápido, sem tempo para uma preparação criteriosa. Lembro que fui caminhando para aquele primeiro dia de aula, tensa, preocupada, com um esquema na mão, cópia de uma aula do meu mestrado, em que haviam sido discutidos os conceitos de texto e contexto. Eu havia feito uma prévia em casa, apresentando em voz alta para mim mesma os itens que comporiam minha apresentação, pensando na importância de se discutir logo de cara algumas noções fundamentais da lingüística textual, antes de desenvolver um trabalho mais prático e voltado para a realidade do aluno. [...] Logo que entrei na sala, vi, diante de mim, quase noventa alunos do último ano [odontologia], completamente alheios, distantes, até um pouco hostis. Minha intuição me dizia que não ia ser fácil me comunicar com eles [...] Lembro que testei a minha voz, elevando-a, mas vi que ela não seria capaz de atingir todos os ângulos de uma sala em forma de anfiteatro [...] A garganta secou, os lábios também. Eu não conseguia articular nada de tão seca que a boca estava. Mas eles nem perceberam [...]falavam alto, como se não houvesse ninguém em sala. [...] Desesperada, quis fugir, encerrar a tortura...pedir para sair da sala e conversar com alguém sobre aquela situação. Não podia[...] Por causa do ódio, da raiva, do ressentimento, e da grande mágoa que estavam me causando, no primeiro dia de aula, num momento importantíssimo para mim, me veio à mente um conto da Clarice Lispector, Felicidade Clandestina [...] Quando comecei a fazê-lo, penso que algo em meu rosto se modificou, pois fui encarnando a história em todos as suas nuances, produzindo nuances de vozes para as personagens, reproduzindo suas falas com intensidade e emoção. Aos poucos, vi que se calaram, me olhando com espanto. Descobriram que eu era alguém que possuía emoção, que sentia...[...] Quando terminei com a célebre frase: ‘Ela não era mais uma menina com seu livro, mas uma mulher com seu amante!’, percebi que ficaram atônitos, tocados inesperadamente pela força daquelas palavras, como se presos ao poder encantatório das palavras de bruxa da Clarice. Não esperavam a saída pela literatura! Grande literatura e seu poder mágico! O golpe da graça havia sido dado! Eu me redimi de minha postura de iniciante, iniciada que estava pelas palavras de Clarice! Eles, de seu poder de fogo diante de algo que nem bem sabiam o que era! (Profª Cecília, MUSSI, 2007, p. 276).
Iniciamos a escrita deste texto com fragmentos de um Caso de Ensino3 elaborado por uma docente da Educação Superior a partir de situações cotidianas por ela vivenciadas, para destacar o quanto essa temática é cara para nós, não somente diante de nossa trajetória de estudos e pesquisas, mas diante de nossas próprias teorias pessoais acerca da formação de professores:4: a compreendemos como uma área de conhecimento e de investigação, de produção de teorias pessoais e práxis, que se traduz em um processo singular de aprendizagem profissional, que ocorre em um movimento contínuo ao longo da vida, e, concordando com Marli André (2010, p. 176), “implica envolvimento dos professores em processos intencionais e planejados, que possibilitem mudanças em direção a uma prática efetiva em sala de aula.” Enquanto área educativa, a formação de professores requer um processo contínuo de desenvolvimento profissional, o que envolve dimensões pessoais, coletivas e organizacionais, desenvolvido em contextos históricos, culturais e sociais diversificados, assim como em diferentes comunidades de aprendizagem, constituídas pelos docentes, seus pares, seus alunos, sua equipe escolar, sua comunidade (FARIAS; ROCHA, 2016; HOBOLD; FARIAS, 2020; JARDILINO; SAMPAIO, 2019).
Essa compreensão nos aproxima da premissa defendida por Shulman J. (1992), Shulman L. (1989, 1992), Merseth (1999), Mizukami (2000, 2002), Montero (2005), Nono (2005), dentre outros, de que estudos de casos, definidos como instrumentos de pesquisa e de ensino, desde a análise e a elaboração de casos de ensino, fomentam e iluminam as teorizações pessoais de professores, ou seja, nutrem-se, de fato, do conhecimento expresso pelos professores em situação concreta.
Seguindo diferentes orientações teóricas e metodológicas, as investigações realizadas pelos autores supramencionados destacam o caráter permanente de continuidade do processo de formação, entendido aqui como processos de desenvolvimento profissional docente, uma vez que concebem o professor como um profissional dotado de diferentes e singulares saberes que, por meio da reflexão e da pesquisa sobre a prática pedagógica, é capaz de reconhecer e resolver problemas de sua prática profissional mediante a reflexão, análise e aplicação de conhecimentos específicos da docência, e nesse movimento, (re)aprender. Tais estudos indicam, e concordamos, que tanto em situação de análise quanto em processo de elaboração, casos de ensino oferecem a oportunidade para que professores manifestem seus saberes, crenças, conflitos e analisem, além dos seus, o conjunto de saberes de outros colegas de profissão, o que o torna um dispositivo com importante contribuição para processos de formação e de desenvolvimento profissional docente.
Estes estudos também sugerem que as estratégias de análise e elaboração de casos de ensino se constituem em um caminho de pesquisa compatível com o reconhecimento dos professores como sujeitos do conhecimento. Argumenta-se que se ensinar é distintivo do profissional docente (ROLDÃO, 2007), o profissional do ensino é o professor que se reconhece e se legitima como protagonista desse processo.
Compartilhando dessa premissa, Shulman L. (1992, 1996) destaca que o uso de casos de ensino possibilita pesquisar e conhecer mais de perto como os professores pensam e compreendem, assim como a fonte de suas principais ideias, princípios e concepções acerca de diferentes assuntos que ensinam e posturas que assumem ao ensinar. O analisar ou elaborar um caso de ensino requer do professor o uso de operações cognitivas, como a crítica, identificação dos pontos de tensão, comparação, atribuição de significados, solicitando o exercício da escolha, da explicitação e da justificativa de suas concepções e tomadas decisões, situadas em contextos históricos e sociais. Tais processos são alimentados por determinados conhecimentos profissionais, ao mesmo tempo em que mobilizam e promovem outros conhecimentos. Noutras palavras, o caso de ensino é um dispositivo de ensino (formação) e de pesquisa que possibilita se aproximar, compreender, analisar e intervir sobre a produção do conhecimento profissional docente.
Shulman (1996) explica que o uso de casos de ensino em processos de formação e de pesquisa, adquire sentido quando a intencionalidade do professor ou do pesquisador considera necessário provocar o uso do raciocínio, do discurso e da memória profissional. E isso pode ser observado no caso de ensino em epígrafe. O caso de ensino elaborado pela Professora Cecília torna público os sentimentos experienciados por uma docente em início de carreira, suas crenças e expectativas, assim como um conjunto de conhecimentos que foi se construindo ao longo de sua trajetória profissional e que foram fundamentais para a sua constituição pessoal e profissional. Revela que a concepção de ensino da Professora Cecília não é uniforme ou previsível. Ela responde de maneira flexível à dificuldade e ao contexto apresentado pelos estudantes, não deixando de lado os seus propósitos educacionais. No caso de ensino apresentado, a docente destaca alguns conhecimentos produzidos a partir da situação vivenciada e analisada:
[...] De minha parte, descobri que posso me socorrer sempre das situações difíceis em sala de aula com a contação de histórias: os alunos, como todos os seres humanos, gostam de ouvi-las - seja lá de que natureza forem - porque podem se identificar com elas, atribuir-lhes novos e insuspeitos significados, re-construir inteirezas perdidas, re-estabelecer novos laços de afeto, encontrar ressonâncias perdidas [...] Descobri também que os planos de aulas precisam ser contextualizados, inseridos em seus universos próprios, distintos para cada grupo, mesmo se forem de uma mesma área. Aprendi a ir construindo com eles uma linguagem própria e me constituindo nela como professora [...] aprendi a ouvi-los antes de já querer ir falando [...] aprendi a ter calma para tê-los e contê-los como indivíduos reais [...] (Profª Cecília, MUSSI, 2007, p. 220).
Podemos observar nesse excerto a perspectiva apontada por Merseth (2018, p. 13), de que “[...] as discussões de casos oferecem aos participantes um ambiente de investigação seguro para ‘experimentar’ novas ideias e abordagens”, sem a preocupação de que a aplicação de suas ideias não funcione, além da oportunidade de construir uma compreensão ao ouvir as interpretações e sugestões dos outros.
Alarcão (2003) destaca que o caso de ensino não se reduz a uma descrição de um fato, mas revela um conhecimento teórico e assume um valor explicativo que vai para além da mera descrição. Essa compreensão também é observada no caso apresentado pela Professora Cecília, que socializa, com a elaboração do caso, a revisão de conceitos e o fortalecimento de conhecimentos que já julgava importantes para o exercício profissional.
Os casos de ensino, enquanto situações de ensino originadas da prática cotidiana da docência, incorporam a maneira pela qual um professor ensinou determinado assunto ou o modo como um professor lidou com dilemas da profissão ou resolveu um problema específico, suscitando reflexão em torno das várias possibilidades de abordagem sobre um determinado problema. Como pode se observar, o caso de ensino produzido pela Professora Cecília caracteriza-se não apenas por trazer descrições de situações escolares, dilemas enfrentados no início da docência, mas também por explicitar discussões e reflexões em torno delas. Revela o quanto episódios específicos de ensino podem contribuir para o seu desenvolvimento profissional, uma vez que possibilitam analisar a experiência vivida, podendo tornar-se instrumento para a prática reflexiva. Trata-se, portanto, de um processo autônomo e singular de construção e reelaboração de conhecimentos que, em nossa compreensão, contribui para processos de formação de professores na perspectiva que defendemos.
Conforme Shulman (1987, p. 12) bem expressa, “[...] ensinar é, essencialmente uma profissão aprendida.” A Professora Cecília confirma esse pressuposto, evidenciando a influência que a elaboração do caso exerceu em seus processos de aprendizagem profissional e a sua potencialidade para gerar processos de reflexão sobre sua prática de ensino.
Entendemos que o uso de casos de ensino na formação e desenvolvimento profissional de professores favorece processos de pensamentos reflexivos, ações reflexivas. Mussi (2007), fazendo menção à Zeichner (1993), destaca que o pensamento reflexivo envolve um estado de dúvida, dificuldade, perplexidade, que gera o ato de pensar, e abrange operações de busca e investigação com vistas a encontrar subsídios que lhe permita dar orientação séria e consecutiva à resolução da dúvida e esclareça a perplexidade. Nesse sentido, a ação reflexiva é um processo que permeia a busca de compreensão e capacidade de intervenção lógica e racional para os problemas.
A prática, por si só, não gera reflexão, é preciso intencionalidade, sentido ao pensar reflexivo. E aí está a sua potencialidade formativa. Como explica Zeichner (1993, p. 18), “[...] a reflexão implica intuição, emoção e paixão; não é, portanto, nenhum conjunto de técnicas que possa ser empacotado e ensinado aos professores, como alguns tentaram fazer.”
Para Shulman (1986), os casos de ensino, ao possibilitar a reflexão sobre a própria prática, tornam-se uma unidade de análise reflexiva que ajuda na organização do processo de reflexão do professor. O uso de casos de ensino na formação e na pesquisa requer a valorização do pensamento reflexivo, do colocar-se no lugar do outro, do ponderar sobre a especificidade do contexto, do momento histórico, da realidade concreta. Trata-se de reflexão intencional sobre as teorias implícitas que conduzem sua ação no contexto da prática experienciada, sobre os dilemas, conflitos, surpresas, incertezas que ocorrem em seu trabalho cotidiano. Nesse sentido, o uso de casos de ensino pode sugerir aos professores a transformação de situações problemáticas em problemas de investigação.
Essa perspectiva aponta o eixo de uma nova tendência a ser considerada nos processos de formação e desenvolvimento profissional da docência: a valorização do pensamento reflexivo do professor como condição que influencia na configuração de sua prática, enfatizando tanto os processos pelos quais o professor produz conhecimentos, quanto os tipos de conhecimento que vai adquirindo ao longo da vida profissional, em diferentes tempos e contextos. É dessa perspectiva que tratamos a seguir na expectativa de reforçar as potencialidades de casos de ensino nos processos de formação e desenvolvimento profissional docente.
2 CASOS DE ENSINO: APRENDER PELA EXPERIÊNCIA
Nós não aprendemos a partir da experiência; nós aprendemos pensando sobre a nossa experiência [...] Um caso toma material bruto de experiência de primeira ordem e coloca-a narrativamente em experiência de segunda ordem. Um caso é uma versão relembrada, recontada, reexperenciada e refletida de uma experiência direta. O processo de relembrar, recontar, reviver e refletir é o processo de aprender pela experiência. (SHULMAN, 1996, p. 208).
Não é recente o interesse pelos processos pelos quais o professor aprende, assim como também não são de hoje as críticas e insatisfações em torno dos modelos e práticas de formação docente. É desse debate que, em meados da década de 1980 e à frente de importante associação científica da área educacional no contexto mundial (a American Educational Research Association - AERA), Lee Shulman destaca a contribuição do uso de casos de ensino para desenvolver, durante a formação profissional, o conhecimento de situações escolares específicas, por ele postulado como primordial para a prática docente. Sua argumentação sinalizava, já naquele momento, para o potencial dos casos de ensino como instrumentos de ensino e de pesquisa no campo da formação de professores.
Desde então, sobretudo na literatura internacional de origem norte-americana e europeia, esta é uma temática que ganhou maior expressão nas ações de formação e de pesquisa sobre o desenvolvimento docente (ALARCÃO, 2003; GARCIA, 1999; MERSETH, 1999; SHULMAN, L., 1992; SHULMAN, J., 1992). No contexto brasileiro, são os estudos de Mizukami (2000, 2002) e de Nono (2001, 2005, 2009) que introduzem o tema no debate e pesquisas em Educação voltadas para a formação de professores.
“Caso de ensino”, ou “casos para o ensino”, ou “método de casos”, são algumas das denominações encontradas na literatura sobre o assunto e, por vezes, associada equivocadamente a outro construto bastante conhecido no campo da pesquisa científica: o Estudo de Caso. Enquanto este último reporta-se a um tipo de pesquisa, tal como indicam Stake (1994, 2005, 2011, 2016), Yin (2001) e André (1984, 2013), o caso de ensino é uma narrativa sobre uma situação peculiar, rica em pormenores, discorrendo sobre circunstâncias reais ou não e que versam sobre ocorrências cotidianas e complexas vividas pelo professor. Narrativas que explicitam dilemas e conflitos profissionais que permeiam o trabalho do professor na escola e na sala de aula ou mesmo em outras situações de sua vida profissional. Casos de ensino pretendem chamar atenção do professor para determinadas temáticas/questões vividas na prática docente, por isso mesmo se propõe a provocar reflexões e a explorar alternativas de como lidar com tais pautas e situações.
No âmbito da formação docente, os casos de ensino têm sua contribuição nas diversas fases profissionais, ao aproximar a realidade escolar à professores iniciantes, mas também ao lançar um zoom sobre a realidade escolar e o que acontece nos processos de ensinar e de aprender. Nesse sentido, favorece dinâmicas reflexivas visando ampliar a compreensão da própria prática e, desse modo, desenvolver bases para a revisão, constituição e consolidação de substratos que sustentam o agir profissional mediante o compartilhamento de saberes-fazeres, tanto para professores experientes como para iniciantes.
Tanto a análise quanto a elaboração de casos de ensino em ações de formação de professores colaboram nessa direção, uma vez que se configuram como uma unidade de análise reflexiva que ajuda na organização do processo de reflexão do docente. Em sua dimensão investigativa, os casos de ensino se apresentam como instrumento que possibilita compreender o pensamento do professor, acessar as crenças e teorias pessoais dos professores, o processo de construção dos conhecimentos profissionais e do desenvolvimento do raciocínio pedagógico por ele utilizado.
Shulman (1996), citado na epígrafe desta seção, representando um grupo de estudiosos sobre a temática em foco, nos oferece uma perspectiva valiosa de formação e pesquisa com uso de casos de ensino. Uma vez que concordamos com a premissa de que também aprendemos pensando sobre a nossa experiência, os casos de ensino tornam-se ferramentas potentes para a aprendizagem profissional nos processos de formação de professores, visto que “um caso é a versão relembrada, recontada, reexperenciada e refletida de uma experiência direta. O processo de relembrar, recontar, reviver e refletir é o processo de aprender pela experiência” (SHULMAN, 1996, p. 208).
Aprender pela experiência para a constituição de conhecimentos profissionais requer investimento no conjunto de conhecimentos que o professor necessita para exercer a docência. Com essa perspectiva, Shulman L. e seus colaboradores se dedicaram para desenvolver um constructo teórico que explicasse e descrevesse as características presentes no repertório de conhecimentos que estão na base da docência, denominado de “base de conhecimento para o ensino”, o que inclui a possibilidade de o professor transformar o conhecimento do conteúdo que possui em formas que sejam pedagogicamente eficazes e possíveis de serem adaptadas às variações de contexto e das habilidades já alcançadas pelos alunos. Os casos de ensino como instrumento na formação de professores e na investigação sobre a aprendizagem da docência, considera diferentes percursos do processo de formação e desenvolvimento profissional docente (SHULMAN, 1986, 1987; WILSON; SHULMAN; RICHERT, 1987).
Shulman e seus colaboradores também buscaram elementos teóricos para explicar as características no processo pelo qual os conhecimentos profissionais são construídos, denominado de processo de raciocínio pedagógico. Refere-se a um modelo que explica como os conhecimentos são acionados, relacionados e construídos no processo pedagógico de ensinar e aprender. Concebido sob a perspectiva do professor, envolve seis aspectos comuns ao ato de ensinar: compreensão, transformação, instrução, avaliação, reflexão e nova compreensão. Os autores esclarecem que a compreensão está presente tanto no início como no final do processo de raciocínio pedagógico, sob a forma de nova compreensão do que foi ensinado. Entretanto, cabe ressaltar que não se trata de voltar ao mesmo ponto de origem do processo pedagógico. A ideia mais apropriada é a de um “espiral”, uma vez que a nova compreensão é resultado de todo um processo de análise do ensino (SHULMAN, 1986, 1987, 2014; WILSON; SHULMAN; RICHERT, 1987).
Os casos de ensino são instrumentos fundamentais para investigarmos não só a base de conhecimento para o ensino e o processo de raciocínio pedagógico que o professor faz uso ao ensinar, como também servem para evidenciar as fontes e a natureza desses conhecimentos. Na medida em que os casos de ensino podem garantir o acesso aos conhecimentos que fundamentam a prática docente, tanto aos investigadores quanto aos próprios docentes, o uso da análise e elaboração de casos podem se tornar expressivos na estruturação de atividades de formação que considerem os conhecimentos profissionais dos professores e permitam seu desenvolvimento profissional.
A literatura que se relaciona a casos de ensino apresenta uma diversidade de interpretações, formas, sentidos e propósitos na sua utilização na formação de professores. De acordo com Merseth (1996), a definição mais frequentemente utilizada refere-se ao caso de ensino como um documento descritivo de situações escolares concretas, elaborado para ser utilizado como ferramenta no ensino/formação de professores. Sugere a indicação a uma representação aprofundada de um contexto, dos seus participantes e da situação histórica, retratada concretamente e procura incluir detalhes suficientes e informações necessárias para permitir que análises e interpretações sejam realizadas a partir de diferentes compreensões, possibilitando, inclusive, ao leitor, sentir a complexidade da situação experenciada por outrem. Domingues (2007, p. 31) reforça essa perspectiva na produção de sua pesquisa:
Podemos dizer que os casos de ensino, entre outras possibilidades, quando comparados aos demais processos de aprendizagem da docência, destacam-se pelas suas vantagens formativas. Isso se dá pela possibilidade do seu uso em qualquer momento do processo de aprendizagem docente, na medida em que ilustram e detalham diferentes situações da trajetória profissional, permitindo estabelecer relações entre a teoria e a prática dos professores.
Casos de ensino têm se revelado como um potente instrumento de pesquisa e de formação de professores. Podem ser utilizados para abordar diferentes temáticas relacionadas à atividade de ensinar, a questões implicadas ao exercício profissional e às tarefas de ser aluno, tais como: questões dilemáticas, a exemplo das dificuldades enfrentadas nos primeiros anos de exercício na profissão docente e da complexidade da docência, do ser professor e de sua atuação profissional; incidentes críticos com retratos de situações emblemáticas e contraditórias do cotidiano da docência; para tratar de conhecimentos profissionais específicos para ensinar determinados conteúdos (das diferentes áreas de conhecimento), dos processos de raciocínio pedagógico utilizados para transformar conhecimentos em ensino, assim como de conhecimentos pedagógicos gerais, a exemplo de estratégias de ensino, relação professor-aluno, avaliação da aprendizagem, gestão escolar, concepções pedagógicas, dentre outros; questões sobre processos de aprendizagem dos estudantes e dos próprios professores; processos de formação continuada, cultura institucional, políticas de formação e carreira profissional. Também podem ser usados para processos analíticos sobre os registros diários de aulas como instrumentos de reflexão, sobre a relação escola-família-comunidade e ainda, para processos de identificação e socialização profissional em diferentes comunidades de aprendizagem.
Com efeito, há algumas décadas, Lee Shulman busca valorizar o desenvolvimento de estudos envolvendo casos de ensino a partir dos conceitos de conhecimento paradigmático ou proposicional e de conhecimento narrativo indicado por Bruner (1986 apud SHULMAN, L., 1992). O primeiro, geralmente relacionado ao conhecimento científico, constituído por proposições, como princípios, normas e máximas que, via de regra, se refere a um tipo de conhecimento lógico, impessoal, abstrato e desprovido de contexto, isto é, não tem relação com experiências anteriores dos envolvidos na situação e não considera o valor explicativo de situações particulares. O segundo, o conhecimento narrativo, de modo geral apresenta características que o identifica: organiza-se a partir da experiência particular do sujeito narrada por uma sequência temporal com começo, meio e fim, possui um caráter específico, local, e oferece informações sobre o contexto da situação representada. Podem retratar situações com traços de imprevisibilidade e semelhança com a vida, ou mesmo, representar cenas específicas já experienciadas. Um conhecimento narrativo é amplo.
Nessa direção, em estudo de 1986, este autor americano alertou para a necessidade de um conhecimento na formação de professores que complementasse o conhecimento proposicional, referindo-se, então, ao conhecimento de casos. Ele elucida que o conhecimento de casos pode oferecer oportunidades para a avaliação e a reflexão sobre a prática, uma vez que um caso exige descrições detalhadas de como ocorreu um evento, completados com informações sobre o contexto, os pensamentos e sentimentos experienciados. O uso de casos de ensino expressa um recurso de transformar formas de conhecimentos proposicionais em narrativas de conhecimentos que podem favorecer os professores no exercício de processos cognitivos, tais como análise e resolução de problemas, revisão de concepções e tomadas de decisão (MIZUKAMI, 2000).
É importante ressaltar que um caso de ensino possui conhecimento narrativo, mas não se restringe a ele. Alarcão (2003, p. 55) explica que nem toda narrativa sobre um fato escolar representa um caso de ensino, mas entende que “[...] as narrativas estão na base dos casos [...]” A pesquisadora destaca que os casos são narrativas elaboradas com o objetivo de dar visibilidade ao conhecimento sobre o ensino envolvido na situação descrita, o que possibilita o uso de casos de ensino tanto em processos de análise quanto de produção de conhecimentos profissionais docente. Nono (2010), com base em Shulman L. (1992), destaca que o caso, enquanto narrativa, apresenta situações escolares detalhadas, devidamente contextualizadas e portadoras de teorias pessoais permite, aparentemente, maior engajamento dos professores em sua análise. Ou seja, os casos são documentados e retratados em situações específicas, devidamente sustentadas por um aparato conceitual de explicação, que, quando analisado, pode ser decomposto, reavaliado e remontado, possibilitando, nesse processo, maior valorização dos conhecimentos teóricos e das percepções pessoais associados à situação (ALARCÃO, 2003; MIZUKAMI, 2000; NONO, 2005, 2010; SHULMAN, L., 1992).
Merseth (1996) distingue três diferentes intenções que orientam a utilização de casos de ensino. Segundo ela, os casos podem ser usados como exemplos, quando o objetivo é desenvolver o conhecimento de uma teoria ou a construção de novas teorias; casos podem também ser utilizados como oportunidades para praticar a tomada de decisões e a resolução de problemas práticos, podendo assim, ajudar os professores a ‘pensar como professores’ pela apresentação de situações escolares das quais a teoria emerge; e casos podem, ainda, ser usados como estímulo à reflexão pessoal, para acentuar o desenvolvimento do conhecimento profissional pessoal, uma vez que permite o desenvolvimento de hábitos e técnicas de reflexão (MERSETH, 1996).
Grossman (1992), assim como Shulman J. (1992), reforçam que casos de ensino podem ser utilizados com diversos objetivos de ensino e pesquisa, dentre os quais: possibilitar o desenvolvimento de entendimentos sobre os dilemas da docência e formas de analisar e refletir a respeito de aspectos relativos ao ensino, estimular o desenvolvimento de estratégias, disposições e hábitos de reflexão específicos da profissão, exemplificar ou testar princípios ou conceitos teóricos, e ainda, podem servir como precedentes para prática e estimular a reflexão sobre a própria prática docente. Em síntese, dentre as diferentes características constituidoras dos casos de ensino para o ensino e a pesquisa, Mizukami, Domingues e Sarmento (2012, p. 3) ressaltam que:
[...] se trata de uma narrativa que possui um enredo; expõe um único ou vários episódios escolares reis ou fictícias; retrata uma situação de conflito; possibilita a construção de pontes entre teoria e prática e a reflexão das teorias pessoais de/sobre ensino; pode ser usada em diferentes etapas da formação (formação inicial e continuada) e em diferentes contextos (ensino presencial e a distância); aborda diferentes temáticas (educação inclusiva, área específicas de conhecimento, educação indígena, etc.); combina muitos elementos: análise, julgamento/avaliação, problematização, planejamento, decisão, etc.; contempla o contexto e/ou processo escolar: gestão, comunidade, aluno, professor, sala de aula, currículo, ensino, aprendizagem entre outros.
As formas de utilização dos casos de ensino descritas na literatura também variam. Mizukami e Nono (2002) destacam que a utilização de casos de ensino em investigações sobre o professor e em processos de formação de professores tem sido realizada com base em duas perspectivas: os professores podem ler, refletir e analisar casos anteriormente elaborados, assim como redigir casos relacionados a experiências pessoais vividas em situações de ensino. As análises de casos podem fundamentar reflexões individuais e/ou coletivas acerca de aspectos diversos relativos ao ensino e aprendizagem. Wassermann (1993) considera importante ter questões que acompanhem os casos de ensino, com o objetivo de focalizar a atenção de quem analisa o caso nos aspectos mais importantes, orientando suas análises e estimulando o estabelecimento de relações entre conhecimentos teóricos e a situação prática descrita e o levantamento de hipóteses em torno dos acontecimentos. Essas análises também podem ocorrer em pequenos grupos e, em seguida, ser discutidas em grupos maiores.
Na metodologia de casos proposta e utilizada por Shulman (2002), também denominada por Merseth (2018, p. 14) de “método de instrução de casos”, inicialmente os professores examinam casos já existentes na literatura para poderem compreender o que é um caso de ensino. Em seguida, um conjunto de atividades orienta a elaboração de casos pelos próprios professores. Encontros entre formadores e professores possibilitam que o caso inicialmente descrito se torne cada vez mais aprimorado, com mais elementos que permitam sua análise por outros professores e com um maior aprofundamento do professor em torno de sua prática. Em um momento final, os casos elaborados são discutidos entre os professores.
Ao elaborar um caso sobre uma situação experienciada, o professor precisa avaliar e definir sobre o que incluir, assim como o que omitir, de modo a assegurar ao leitor a possibilidade de análise da situação a partir de diversos pontos de vista, exercitando processos reflexivos críticos e intencionais (MERSETH, 1990, 1996; MUSSI, 2007; NONO, 2005). Para tanto, Nono (2005, p. 92) destaca que geralmente são utilizadas algumas estratégias pelos pesquisadores para fundamentar a elaboração de casos:
[...] os estudantes lêem casos escritos por professores e escrevem um esquema inicial e dois esboços do caso, antes da versão final. Os esboços são lidos por instrutores e devolvidos aos autores com considerações que lhes permitam refinar o caso descrito, incluindo elementos que tenham sido omitidos. Os casos são também trocados entre pares de estudantes para que cada um leia e analise a produção do colega. Os estudantes também participam de duas conferências de casos, nas quais eles apresentam oralmente suas produções para um pequeno grupo de colegas, coordenado por um instrutor. Ao elaborar casos de ensino, dessa maneira, os estudantes estariam aprendendo a pensar como professores.
Nesse contexto, a elaboração de um caso de ensino implica identificação de problema, seleção de eventos, identificação de personagens, revisão da situação vivida, entre outros procedimentos que qualificam o processo e tornam o uso de caso em processos de análise e elaboração, um processo singular, autônomo, autoral, sensível e desprovido de censura.
Wassermann (1993) contribui para a compreensão do uso de casos de ensino na pesquisa e na formação de professores, ao descrever estratégias que podem orientar a elaboração de casos pelos docentes e sugere um conjunto de questões que permitem orientar os pensamentos do professor ao descrever uma situação conflitiva por ele vivenciada com seus alunos, auxiliando-o na transformação de uma situação vivida em sala de aula em um caso de ensino.
Em relação às estratégias que podem orientar a elaboração de casos pelos professores, Wassermann (1993, p. 197) indica que, primeiramente, se faz necessário “escolher uma situação significativa ou crítica.” Ao desejar escrever sobre um determinado evento, a pessoa deve nortear a escolha da situação por alguns critérios, tais como: observar se a situação o incomoda, se desperta emoções ao pensar sobre ela e se a situação apresenta um dilema que gera algum tipo de insegurança quanto a sua resolução. Em seguida, é importante “descrever o contexto”, fornecendo pistas para a compreensão do acontecimento, inserindo a situação em um contexto mais amplo e detalhado. Também é importante “identificar os personagens do contexto”, informando os papéis assumidos por cada personagem envolvido na situação. A autora destaca que é importante a apresentação dos sentimentos, dos objetivos, das expectativas de cada pessoa envolvida no caso de ensino, incluindo o próprio professor que narra o incidente. Outra estratégia importante é “revisar a situação e a forma como agiu diante dela” (WASSERMANN, 1993, p. 198), relatar o fato, as reações do professor, seus pensamentos diante do contexto, os sentimentos e riscos experienciados na tomada de decisões, as dúvidas, os constrangimentos e, se possível, identificar os valores/princípios que subsidiaram as decisões tomadas. Igualmente potente é na elaboração de casos é a estratégia de “examinar os efeitos de suas atitudes.” (WASSERMANN, 1993, p. 199). Cada atitude do professor resulta em uma série de reações. Quais foram, no evento descrito, algumas das reações em face das atitudes tomadas pelo docente e que impacto(s) sofreram os estudantes diante da decisão assumida? Se possível, descrever ainda, quais foram as consequências da decisão tomada sobre o próprio professor. Outra estratégia fundamental no processo de elaboração, se refere a revisitar a situação, o que implica analisar, ao transformar o evento em caso de ensino, visualizá-lo de diversas maneiras, buscando identificar as suas percepções sobre si mesmo como docente. Cabe destacar a importância de uma redação que estimule a discussão inicial e a apresentação da trama de múltiplos temas e que possibilite uma variedade de pontos de vista e níveis de análise (MERSETH, 1990, 2018; WASSERMAN, 1993).
Selma Wassermann também elenca um conjunto de questões que podem orientar processos de reflexão do professor em torno do caso já descrito por ele. São questões que buscam oferecer subsídios ao docente para que, ao término de sua elaboração, eles procurem analisar sobre os motivos da escolha da situação apresentada, bem como das aprendizagens que tal situação lhes proporcionou. Sugere ainda, se possível, uma etapa destinada à socialização dos casos elaborados pelos sujeitos, momento em que os casos construídos e os casos estudados são analisados pelo grupo de professores participantes dos processos de pesquisa e formação.
Nesse sentido, Kagan (1993, p. 719 apud NONO, 2005, p. 90) contribui para a compreensão acerca das potencialidades do uso de casos de ensino na pesquisa e na formação de professores quando pondera que:
Essas novas formas de utilização de casos de ensino podem também refletir significativas mudanças em nossa percepção da pesquisa educacional: como definimos pesquisa, seus propósitos, sujeitos, tipos de dados obtidos através dos estudos. Refiro-me à crescente crença de que um objeto importante da pesquisa educacional sejam as percepções subjetivas e a linguagem dos professores (Berliner, 1986), além do reconhecimento do valor das pesquisas que os professores realizam a partir de suas próprias práticas (Carr & Kemmis, 1986; Daiker & Morenberg, 1990; Johnston, 1990; Lytle & Cochran-Smith, 1990; Oja & Smulyan, 1989). Alguns autores estão começando a sugerir que o mais apropriado papel do pesquisador do ensino é aquele de colaborador que auxilia os professores a examinar suas próprias crenças e práticas (e.g. Beck & Black, 1991; Connelly & Clandini, 1990; Louden, 1991).
O uso de casos de ensino em educação, abre espaço para uma nova perspectiva de ensino e pesquisa ao promover, entre outros importantes processos, que os professores expressem seus saberes e analisem os saberes de outros colegas de profissão. Uma perspectiva de pesquisa que considera que é possível propiciar condições aos sujeitos para pensar sobre seus conhecimentos, explicitá-los, revisá-los, debatê-los, organizá-los, considerando as diferentes dimensões de sua atividade profissional.
De fato, consideramos urgente a necessidade de se refletir crítica e amplamente sobre nossas concepções e percepções acerca da produção de pesquisas em educação. Há a necessidade de considerar as subjetividades diante das mudanças ocorridas no mundo e nas pessoas. Hoje, contamos com contextos diferenciados de produção de saberes e que precisam ser levados em conta quando discutimos ensino e pesquisas em educação. Concordamos com Hargreaves (1998), quando chama a nossa atenção de que qualquer mudança só é efetivada quando se compreende o sentido e se deseja mudar. Como bem salienta Farias (2006, p. 44),
A mudança é uma práxis. [...] um processo de ressignificação da prática. Ultrapassa as modificações sobre a vida organizativa da instituição e aplicação de tecnologias, envolvendo um novo modo de agir, alicerçado em novos valores, símbolos e rituais: ela não se constitui isoladamente nem ocorre através de imposição. Trata-se de um processo demorado, delicado e sensível, que compreende as interações consensuais e conflituosas que perpassam as relações internas e externas da organização.
O processo de ressignificação da prática é demorado, sensível, implica o envolvimento pessoal, mas implica também o comprometimento institucional com políticas educacionais que valorizem o professor, a sua profissionalidade, e consequentemente, a educação. Nenhuma mudança ocorre num contexto, se todo o contexto não é levado em consideração. O uso de casos de ensino pode, inclusive, contribuir para a produção de políticas educacionais mais próximas da realidade de trabalho dos professores, a partir da escuta atenta do que os professores sentem e precisam para exercer a profissão comprometida com a transformação social, dentro do processo histórico no qual se insere.
Portanto, e com base nos autores supracitados nesse estudo, podemos reafirmar que os casos de ensino representam uma estratégia profícua na pesquisa e na formação de professores, possibilitando um novo olhar sobre os sujeitos desse processo, e sobre o próprio decurso de formação de professores. Se entendemos que o desenvolvimento profissional docente é contínuo e ininterrupto, resultante de cada experiência vivida, significada, sentida, refletida, compreendemos a necessidade de se valorizar uma nova perspectiva sobre o ensino e a pesquisa na formação de professores, e uma delas, a qual consideramos fundamental, é com o uso de casos de ensino, estratégia metodológica que valoriza a mobilização de conhecimentos profissionais e possibilita, mediante um processo analítico e investigativo, abrir brechas para fluir a mentalidade aberta, dinâmica e metacognitiva para que o docente assuma lugar de destaque nos processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência.
3 O QUE APRENDEMOS AO ESTUDAR CASOS DE ENSINO?
Arriscaria a afirmar que o prazer de dizer-se ou contar-se, e em alguns casos, o fato de dispor de uma escuta ou leitura atenta por si contribui para que o indivíduo, aluno/professor inicie a reflexão sobre a sua história e os processos formadores. O prazer de narrar-se favorece a constituição da memória pessoal e coletiva inserindo o indivíduo nas histórias e permitindo-lhe, a partir dessas tentativas, compreender e atuar. (CATANI, 2000, p. 29, grifo do autor).
Iniciamos esta seção com a epígrafe de Catani (2000), uma vez que consideramos que o uso de casos de ensino na pesquisa e na formação de professores representa uma nova perspectiva aos processos de formação e de desenvolvimento profissional docente enquanto processo contínuo e ininterrupto de aprendizagem, resultante de cada experiência vivida, significada, sentida, refletida. Uma perspectiva que valoriza a história singular de cada um, chama para a conversa, se dispõe a escuta sensível e cuidadosa, possibilita a leitura atenta de si, permitindo-se rever-se, cuidar-se, valorizar-se. Indo além, descortina dilemas que muitas vezes são comuns, mas quase nunca socializados, analisados, dissecados, corporificados, reavaliados.
Compreendemos que o uso e a elaboração de casos de ensino refletem um processo formativo que ocorre por dentro da profissão, favorece que sejam efetivados os processos de raciocínio pedagógico e de construção de conhecimentos sobre a docência, pois é na prática, nas vivências e interações que a formação do professor se completa, é onde o professor pode trazer a teoria para sua prática, recorrendo a seus referenciais e aos de seus pares para desvendar e solucionar situações reais.
Os estudos e pesquisas acessados para a produção desse artigo e que envolvem casos de ensino, revelam que é na reflexão e na análise crítica sobre a prática que as teorias emergem, não somente podendo observar e verificar os conhecimentos teóricos que se apresentam na prática, mas com a consciência de uma ação educativa que produz conhecimentos teóricos. Ao possibilitar ao professor a explicitação de suas crenças e conhecimentos, consideramos que os casos de ensino promovem a necessidade de revisão de tais crenças, ou mesmo o seu fortalecimento.
Os casos permitem que sejam explorados os diversos aspectos envolvidos tanto no exercício da profissão quanto na constituição profissional e que se discuta o papel dos conhecimentos profissionais no ensino, na atuação e na formação de professores. Dentre diferentes possibilidades, o uso de casos de ensino pode favorecer a compreensão do conteúdo a ser ensinado; a transformação desse conteúdo em ensino, levando-se em conta recursos didáticos e metodológicos disponíveis, possíveis analogias e exemplos, características dos alunos, clima institucional, relação entre os pares, políticas educacionais de valorização e carreira docente; a instrução, ou seja, as formas como conduziram as atividades em classe; os processos de interação e socialização de conhecimentos valorizados em situações de ensino e de pesquisa; a avaliação que realizaram durante e depois da instrução; os processos de reflexão envolvidos no ensino e, ainda, novas compreensões que permitiram a retomada - ou a intenção de retomar - às atividades então desenvolvidas.
O uso de casos de ensino na pesquisa e na formação de professores também ajuda os professores a aprender como olhar para o mundo sob múltiplas perspectivas, inclusive as dos alunos, cujas experiências são muito diferentes da do professor, e a aplicar esse conhecimento. Reafirmamos também que o uso de casos de ensino é um dos instrumentos que podem ser utilizados em investigações e favorecer o acesso a processos reflexivos em suas diferentes dimensões.
Ao tratarmos de processos de formação de professores, entendemos que deve ser levado em consideração a valorização de diferentes tipos de conhecimentos profissionais, que se relacionam entre si, e que irão influenciar e orientar as práticas escolares assumidas. Nesse sentido, cabe destacar a necessidade de se fazer uso de diferentes estratégias na abordagem de conhecimentos, de modo a promover processos de desenvolvimento profissional de professores. Neste estudo, defendemos o uso de casos de ensino como uma estratégia de investigação e de promoção de tais processos.
A literatura disponível e valorizada nesse escrito evidencia para nós que, ao se pensar em processos de pesquisa e formação de professores, deve ser levado em consideração a intencionalidade presente na forma pela qual o professor estabelece suas relações com o domínio de sua área de conhecimento e com as complexidades enfrentadas no cotidiano escolar e que influenciam as escolhas que ele assume para o desenvolvimento de sua prática pedagógica.
Tais considerações implicam na necessidade de compreender que a docência traz marcas das condições concretas de vida e de trabalho como condicionantes da ação do professor, uma vez que reiteramos que são sujeitos históricos, situados em um tempo e espaço determinados, sob dadas condições sócio-político-econômicas que influenciam suas possibilidades de exercício profissional (MUSSI, 2007).
Também é importante destacar que consideramos fundamental a necessidade de investimento em pesquisas e estudos com casos de ensino. Ainda temos poucos estudos em que os professores são foco de investigação, especialmente sobre os conhecimentos que subsidiam suas tomadas de decisões por ações no contexto da prática educativa. Indicamos o uso da metodologia de casos, uma vez que evidenciamos sua potencialidade investigativa e formativa, esboçando neste ensaio um caminho possível, mas temos clareza da necessidade e possibilidade de ir mais além, pois há muito mais a ser revelado, compreendido e refletido para que possa ser compartilhado.