Introdução1
Desde meados do século XIV, avançando pelo século XVI, a correspondência privada ou oficial, com função administrativa, artística ou comunicativa, prosperou pelos diversos reinos europeus (Murphy, 1986), fazendo ecoar o prestígio que gozara antes do século XIII. Recorreram ao gênero os mais diversos tipos de escritores, revivendo a tradição retórica clássica, mas flexibilizando as regras da escrita epistolar (ars dictaminis) herdada (Constable, 1976; Kong, 2010). A arte de escrever cartas, sistematizada e regulada em tratados, ganhou novas formas e conteúdos, abrindo espaço para a expressão de inquietações espirituais, para deliberações, para reflexões sobre as ocorrências do tempo e, em parte, para formas particulares de expressão. Além de servir à administração papal e régia2, as cartas desempenharam, entre outras funções, as de: esclarecer, admoestar, aconselhar, repreender ou censurar. O veículo mostrava-se profícuo tanto pelo referido prestígio quanto por suas qualidades. As cartas eram concebidas para serem tornadas de alguma forma públicas - inclusive por meio da leitura ao destinatário - e, além disso, permitiam, como veremos melhor a seguir, expressar angústias em certa medida pessoais, mas com finalidade moralizadora (Kong, 2010). As epístolas, do mesmo modo, podiam ser dirigidas aos mais variados destinatários, como ao rei, ao papa, a parentes, a amigos, a corporações, entre muitos outros.
Foi fazendo uso deste gênero que o teólogo francês Jean Gerson (1363-1429), indicado chanceler3 da universidade de Paris em 1395, expressou seus sentimentos e inquietações em relação às circunstâncias do seu tempo. Gerson explorou seu potencial escrevendo a múltiplos destinatários, como ao seu amigo e antecessor Pierre D’Ailly, aos colegas do Colégio de Navarra (Guenée, 1987; Vial, 2006),4 a teólogos, a superiores de determinada ordem, a eclesiásticos, a familiares - como aos irmãos afastados para a vida monástica e às irmãs a serem orientadas para a vida espiritual -, a destinatários indeterminados, a amigos, à corporação de mestres e alunos da sua universidade. Diversos os destinatários, diversas foram igualmente as funções das suas cartas. Um ligeiro mapeamento deixa ver que, entre mensagens pessoais e públicas, o gênero lhe permitiu: avaliar e criticar livros ou ideias dadas a conhecer no seu tempo; exprimir seus afetos a despeito dos reconhecidos limites das palavras; consolar os aflitos; aconselhar condutas e caminhos da vida espiritual; instruir os neófitos; e, ainda, advertir os colegas.
Sem perder de vista as regras da escrita epistolar, da ars dictaminis, difundidas por tratados e ensinadas nas escolas europeias - primeiramente na Itália, mas depois para além dos Alpes, na França, Inglaterra e Alemanha -,5 o chanceler tocou em diversos pontos embaraçosos da sua época, conferindo especial espaço nas suas reflexões epistolares para aquela que alegorizou como ‘filha do rei’, a Universidade de Paris. Em um sermão posterior ao concílio que frustrou os esforços de pôr fim ao Cisma da Igreja, o Concílio de Pisa de 1409 - que resultou na eleição de três papas - (Swanson, 2002; Oakley, 2003), veio a exaltar a tutela régia da Universidade. O teólogo francês, propalando o ideal de reforma do qual se ocupou no final da vida, atribuía-lhe as nobres missões de ‘buscar a paz’ - em apoio aos governantes - e combater a tirania (Gerson, 1960) - os governos corruptos, não conduzidos tendo em vista o bem comum (Senellart, 2006)6. Àquela universidade, que descrevia como composta de sábios e dotada de membros vindos de ‘todas as partes do mundo’7, reconhecia o potencial de ensinar a ‘verdade’, alimentar o saber e apontar os caminhos da paz universal (Gerson, 1960). Reforçava, pois, nesse momento da sua vida, a missão universal, reformadora e acordada com a do papado, reservada para essa instituição, a saber, de condução tanto da ordem espiritual quanto da vida temporal, dos reinos e de toda a Cristandade (Gilli, Verger, & Le Brévec, 2007; Verger, 2008).
Antes, entretanto, de dedicar-se a esses louvores para apresentá-la como reformadora de si mesma, da Igreja e da sociedade, o célebre letrado ocupou-se de uma profunda avaliação crítica dos rumos que a instituição tomara na virada do século XIV para o XV. Em 1399, aos 36 anos, Gerson impôs-se um exílio na cidade de Bruges, justificado por enfermidades que o debilitaram e pelo desgaste proporcionado pelo cargo. Parte da correspondência pessoal trocada durante o afastamento, que duraria até o ano seguinte, sintetiza um lamento de ordem pessoal, em que o teólogo expõe o conflito moral e devocional gerado pelas demandas do cargo de reitor, para o qual não se julgava apto, dados as direções tomadas pela instituição.
Nas cartas que escreveu quando do seu exílio, de 1399 a 1400, seu olhar de censura, com finalidade claramente regeneradora e manifesto por meio de juízos morais sustentados pontualmente em passagens bíblicas e pensadores antigos, o teólogo incide sobre aspectos cruciais da universidade, incluindo a organização interna, os valores dos membros das corporações e a sua relação com a sociedade. Pelo menos três ângulos das universidades que estavam na ordem do dia são destrinçados pela sua pena: o lugar ou função da instituição na condução e reforma do reino e da Igreja, em confronto com os rumos que vinha tomando; os interesses e apegos dos seus colegas; e, por fim, o perfil dos estudantes e o desprestígio dos valores do passado.
A missão de reformar o reino e a Igreja pela ‘filha do rei’
Nesse período de reavaliação dos rumos da universidade, Gerson dirigiu-se em cartas ao mestre e antecessor Pierre D´Ailly, informando seu desagrado quanto às relações políticas e impasses mundanos que envolviam a instituição e travavam a sua missão. Essas ‘dificuldades e calamidades’ experimentadas no ‘ofício de chanceler da Universidade de Paris’, além de o oprimirem pessoalmente, impediam que se dedicasse ao que julgava essencial, o saber. Suas queixas faziam sentido num tempo em que a divisão política da cúpula da Igreja repercutia na Universidade, que assistia à redução de seu contingente de mestres e doutores, os quais, quando partidários do papa romano, retornavam a seus reinos de origem, em represália ao alinhamento da França e da própria Universidade ao papado de Avignon (Pascoe, 1973; Swanson, 2002; Daileader, 2009)8. Desde sua instauração, o Cisma havia produzido uma intensa atividade diplomática de convencimento dos poderes seculares e representantes eclesiásticos locais em favor da adesão a um dos papas, aprofundando rivalidades já existentes e estendendo-se até o âmbito das dioceses e paróquias, com prejuízos à ação pastoral e catequética (Daileader, 2009). Como reitor da Universidade de Paris, Gerson encontrava-se no ponto de cruzamento das mais pronunciadas rivalidades políticas do tempo, sendo obrigado muitas vezes a tomar decisões e posicionar-se levando em conta as obediências, fidelidades e antagonismos que pesavam sobre aquela instituição (Guenée, 1987).
As cartas deixam entrever que a posição de chanceler era especialmente delicada no que dizia respeito à adesão do rei da França ao papado de Avignon e à tomada de posição conciliarista9 da Universidade, posição que de certa forma frustrava tanto a corte quanto o seu pontífice aliado (Swanson, 2002)10. Com a morte de Clemente VII, em 1394, e a eleição do seu sucessor Bento XIII, as autoridades eclesiásticas comandadas pelos doutores de Paris vislumbraram uma boa oportunidade para negociar o fim da divisão, apresentando a proposta via cessionis11 (Daileader, 2009) que exigia a renúncia de ambos os pontífices, o avinhonense e o romano, Bonifácio IX. Com isso, os teólogos representantes da Universidade de Paris, posicionando-se com equanimidade acima da disputa e diante da frustração causada pela negativa do papa, votaram ao lado dos bispos, no sínodo de Paris de 1398, pela recusa de obediência a Bento XIII; rejeição que duraria até 1403 (Pascoe, 1973). A esse impasse que mobilizava prelados e a Universidade, somava-se a tensão no âmbito do poder temporal nos reinados de Carlos IV a Carlos VII, a saber, a guerra com os ingleses e as lutas entre armagnacs e bourguignons, partidários dos duques de Borgonha e de Orléans, que, considerando a incapacidade do soberano, julgado insano, passaram a disputar o comando do reino (McGuire, 1998). Gerson, mais inclinado a uma saída moderada para o Cisma, e também ligado pessoalmente ao círculo do duque borgonhês, que o havia apadrinhado em sua carreira, preferiu abster-se das controvérsias por um período e afastar-se do cargo por algum tempo - quando, de Bruges, teve oportunidade de refletir sobre o que se passava no âmbito da instituição e fora dela, mas a envolvendo.
A persistência dessas contendas ao longo de toda a primeira década do século XV reverberava no seio da Universidade e ecoava no saber ali produzido. Diante do quadro, Gerson pronunciou-se ao rei clamando pela ‘paz espiritual na santa Igreja contra a cismática divisão’; e pela ‘paz temporal no nobre reino da França, contra incerta aflição’, agravada após o referido Concílio de Pisa e a escandalosa eleição de um terceiro pontífice, com a cumplicidade dos teólogos da Universidade - que se colocaram como o terceiro elemento de peso nas decisões. A divisão papal, que em suas cartas Gerson chama de ‘o Cisma odioso’, acentuava, em suma, as dificuldades anteriores enfrentadas pela Universidade para afirmar-se como o terceiro poder, dadas as dissensões sociais e a fragmentação política. Tal contexto afetava profundamente as instituições universitárias, abalando o patronato e, ainda mais grave, reduzindo as receitas de colégios e faculdades, que se viam mais suscetíveis à intervenção dos governos seculares e à ingerência dos papas (Swanson, 2002). Em contrapartida, reforçando a interligação desses poderes, assistia-se igualmente à reivindicação pelos membros das universidades de um maior papel nas decisões da Igreja e nos assuntos civis, com protagonismo da Universidade de Paris e de sua faculdade de teologia, como ocorre no Concílio de Constança, realizado entre 1378 e 1414. No campo das ideias, as autoridades seculares e eclesiásticas passavam a reconhecer e atribuir importância às opiniões dos grandes teólogos universitários no âmbito dos debates públicos e nas grandes questões do tempo. Seu poder de influência já não se restringia, pois, às matérias filosóficas, mas tocava nas questões relativas à condução do reino, da Igreja e da comunidade. Ampliação do foco de atuação que, nos termos do próprio chanceler, não seria algo “[...] de se espantar, pois o seu ofício a isto a impel[ia]” (Gerson, 1960, p. 1100)12.
A defesa do papel condutor da Universidade de Paris, reiterada mais tarde de forma mais positiva, amparar-se-ia, pois, em esforços para convencer os poderes temporais e eclesiásticos a tomarem a universidade como principal conselheira e a acatarem suas propostas de saída diplomática para o Cisma. Segundo apelava Gerson, os teólogos deveriam ser ouvidos. Dirigia-se, assim, à corte régia explanando por que motivo e de que forma cabia à ‘filha do rei’ e ‘mãe dos estudos’, ‘buscar a paz e trabalhar pela paz’: porque, mais do que em qualquer outro lugar, “[...] nela estão os clérigos experientes nas ciências acima ditas, [...] especialmente em teologia” (Gerson, 1960, p. 772-773)13. E, diante daquela corte, acrescentava que “[...] muito mal fazem os que difamam os clérigos que pregam a verdade [...]”14, referindo-se aos príncipes que o faziam e corriam o risco de ignorar a verdade e se entregar à tirania (Gerson, 1960, p. 773). Com o mesmo propósito, em 1407, Gerson endereçou uma carta, assinada também por Pierre D´Ailly - então bispo de Cambrai -, na qual se revelam desapontados com a intransigência do pontífice em não acatar a proposta de renúncia. Nesse documento epistolar, os dois teólogos sugerem a renúncia, concebida no seio da Universidade como a saída mais vantajosa para findar o Cisma, argumentando que este caminho seria para a união e alegria dos cristãos. Denunciavam, assim, a persistência dos pontífices em detrimento dos interesses da Cristandade (Gerson, 1998).
A via cessonis era, nesse sentido, mencionada por Jean Gerson e Pierre D´Ailly como uma dádiva concedida pela Universidade e motivo de contentamento especialmente para “[...] aqueles que estudaram e professaram a sabedoria divina [...]”, já que se esperava que “[...] o seu autor fosse um proeminente professor de teologia [...]”. Proclamam, pois, na referida carta, o combate àqueles “[...] que dizem que os teólogos são inúteis para a direção da Igreja [...]”15, apontando a raridade e a importância destes em tal período turbulento (Gerson, 1998, p. 234). Na visão de ambos, os teólogos eram os mais capazes de tecer julgamentos sobre as querelas de ordem moral, espiritual ou política correntes no seu tempo, já que eram, em tese, os únicos aptos a distinguir entre doutrinas verdadeiras e falsas, os únicos, pois, conhecedores das Escrituras e de toda a herança cristã responsável por reger a ordem temporal e espiritual no mundo.
Para além do Cisma e das lutas seculares, os teólogos justificavam seu papel na apreciação de outros casos controversos e de grande visibilidade pública; como o da veracidade das visões e profecias que se tornavam cada vez mais frequentes desde o início do Cisma e que, segundo defendiam em seus tratados Gerson e outros colegas, deviam ser submetidos à avaliação por parte dos únicos especialistas habilitados moral, intelectual e espiritualmente, isto é, os teólogos universitários (Gerson & Boland, 1959; Anderson, 2011). Esses reivindicavam, portanto, um lugar importante ao lado dos prelados na condução da Cristandade, apresentando-se em ocasiões em que se discutiam assuntos relevantes, como na corte papal que julgou o dominicano Jean de Monzon, contrário ao dogma da Imaculada Concepção. A essa corte, Gerson relatou ter estado presente, “[...] junto com outros excelentes e mais sábios homens enviados como representantes da Universidade” (Gerson, 1998, p. 188)16. Entre o que se defendeu como próprio da sua jurisdição, incluía-se a tomada de decisões administrativas e políticas.
Na análise de Gerson, a primazia da Universidade de Paris na solução de grandes impasses deveria fundar-se particularmente na liderança da faculdade de teologia e dos seus membros (Pascoe, 1973). A Universidade, em contrapartida, não se mostrava, como veremos a seguir, em condições de satisfazer plenamente os anseios do seu chanceler, dadas as divisões internas que entravavam a sua missão.
Mestres pouco devotos, desnorteados e desnorteadores
Os empecilhos para a missão traçada para a universidade não foram, pelo que se deduz de suas cartas, apenas conduzidos pelas relações externas. Os jogos internos para os quais chama atenção o chancelar denunciam que os quadros deixavam a desejar em relação ao que se esperava para esta condutora do reino e dos cristãos, bem como em relação ao saber que deveria proceder da instituição. O primeiro desafio era o de vencer as frequentes sobreposições de interesses particulares aos interesses da corporação e, sobretudo, ao alvo principal do saber, a busca da verdade.
Recordando uma passagem bíblica em que Isaías adverte sobre os desfechos equivocados a que podiam chegar aqueles que, aos caminhos retos, porém difíceis, preferiam os desvirtuados, porque agradáveis17, lastima que os destinados a se conduzir por princípios elevados se submetessem a bajular e a fazer figura de truões (Schmitt, 2005)18 diante daqueles que dispunham de poder, nomeadamente os nobres e os eclesiásticos poderosos. Sugere o chanceler que tal como os falsos profetas da história de Miqueias, os doutores e pregadores de teologia preferiam agradar a defender o que era certo. Esqueciam-se dos ensinamentos dos seus antecessores traçados para a teologia. Tomás de Aquino, por exemplo, dividia em duas partes a missão da teologia, conhecer Deus e estimular a agir segundo ele, ou seja, discernia uma teologia teórica, comprometida com a busca de Deus, e uma teologia prática, orientadora da vida ao bem (Celano, 2016). Para tal missão sublime, não pareciam estar preparados mestres que se dispunham a ‘falar como bufões e animadores’, ou seja, teólogos que, ao contrário de assumirem a preservação das doutrinas como razão da existência da universidade, se dispunham a dançar conforme a música, “[...] alterando e variando suas canções” (Gerson, 1998, p. 165)19.
Além da falta de princípios e firmeza na doutrina que julgava predominantes no âmbito das instituições de ensino, Gerson denunciava, entre as mazelas envolvendo os professores na universidade do limiar do século XV, toda sorte de intrigas e conspirações motivadas por interesses pessoais. Se a especulação sobre Deus demandava paz de espírito, não era esta que se via entre os muros da instituição. Em carta do ano de 1400 a destinatários não confirmados - talvez Pierre D’Ailly ou o capítulo de Paris -, ele manifesta que, por tráz dos rumores dispersos nos recantos da instituição, se escondia o pecado, a violação da regra bíblica da reciprocidade: “Tratai os outros assim como quereis que vos tratem” (Mt 7:12)20. O vocabulário religioso, pecado, conjugado ao médico, “[...] rumores que infectavam o lugar [...]”21, concorrem para que exprima a ideia de contaminação, ou seja, de que a prática da difamação ou injúria se encontrava disseminada na Universidade (Gerson, 1998, p. 162).
Como pensador que se dirigia aos tementes a Deus e que defendia uma ética sustentada no Decálogo (Gerson, 1998; Langum, 2016), para descrever tal ambiente universitário infectado que o teria obrigado a se exilar, as analogias bíblicas são o recurso frequentemente usado para tratar do que não convinha ser dito de forma explícita. Os motivos das perseguições sofridas não são evidenciados, todavia, pistas são dadas sobre as diversas pressões que suportava no cargo, como, por exemplo, a de se ver “[...] forçado a favorecer ‘amigos’ [...]” (Gerson, 1998, p. 161)22 e a de ver correrem calúnias sobre si. Entre as técnicas de ataque estavam o uso das suas próprias palavras contra ele e a perseguição pessoal. O quadro que pinta e nomeia é, pois, um quadro, para o qual não pretendia ser arrastado, que define como de “[...] ruína total [...]”23, de diluição dos valores da fé (Gerson, 1998, p. 162, grifo nosso).
Quadro agravado pelo excesso de trabalhos sem quaisquer fundamentos edificantes. O teólogo faz referência a “[...] sermões inúteis [...]”24, que consumiam seu tempo e não traziam frutos (Gerson, 1998, p. 162). Apela a outra passagem bíblica para expressar quão pesada era a tarefa para ser levada por um, quando, na verdade, a propensão da maioria era em sentido outro. Ao que se referia, não se pode deduzir ao certo. Os indícios, todavia, apontam que o predomínio nas universidades das práticas cortesãs pouco compromissadas com a devoção era o que o incomodava. Nessa altura em que o saber universitário tendia a certa secularização (Swanson, 2002), inquietava o chanceler o descuido com as práticas devotas, os impedimentos à assiduidade nas missas e a irregularidade nas práticas de oração. Para um pensador convicto de que o fundamento da ética cristã era a conjunção entre fé e razão (McGinn, 1987), os padrões morais e a forma de ensiná-los deveriam ser motivo de cuidados prolongados, e não de ensinamentos apressados. Recordando Timóteo - “A ninguém imponhas apressadamente as mãos, não te tornes cúmplice de culpas alheias” (1Tm 5:22) -, sugeria que as práticas correntes na universidade eram o contrário do que julgava recomendável para garantia do verdadeiro conhecimento, dados os influxos dos jogos de poder cortesão e as demandas de gratidão (Gerson, 1998); imposições que o levavam a seguir uma maioria persistente no erro.
Os sinais do predomínio do mal e do pecado, na visão do teólogo, manifestavam-se na disseminação dos dogmas perniciosos no campo da doutrina e dos interesses em preservá-los no campo das práticas. Jean Gerson recorda, a propósito, o ensinamento de Platão quanto a evitar os lugares onde prevalece o mal como uma forma de justificar seu afastamento da universidade (Gerson, 1998). Os embates eram de tal forma comuns ao ponto de ser levado “[...] a pecar [...]”, em especial porque o “[...] costume da época [...]” era o de favorecimentos. Promover os desprovidos de conhecimento ou os “[...] moralmente corruptos [...]”, descartando os “[...] mais capazes [...]”, era sintoma dos costumes correntes na instituição (Gerson, 1998, p. 161)25, contra os quais não podia lutar sozinho26. O chanceler lamentava o novo quadro de pessoas que se instalava na Universidade, por sua rusticidade. Com esses precisava conviver e, seguindo os ensinamentos de Paulo (Rm 12:15), compreendê-los, alegrando-se com os que se alegravam27; todavia, assistia ao avanço dos tolos e sentia o risco de degenerar-se em meio a esta ‘nação depravada’28.
Nos seus queixumes, outras possíveis causas para o avanço da mediocridade e rusticidade nos quadros universitários são divisadas na carta de 1400 aos amigos do colégio de Navarra, nomeadamente: a expansão da universidade e a consequente impessoalidade das relações. Os caminhos para conseguir influir sobre os professores tinham se tornado trabalhosos. Escrever para cada um fazendo uso do selo da Chancelaria mostrava-se tarefa hercúlea, pois já não mantinha, com os seus subordinados, laços de “[...] reconhecimento mútuo ou proximidade” (Gerson, 1998, p. 187)29. Optar, em contrapartida, por escrever a todos coletivamente poderia ser vão, ou porque viria a ser ridicularizado ou “[...] acusado de presunção [...]”30 e de violar direitos (Gerson, 1998, p. 187). Lamenta, pois, o letrado que, para homens excessivamente ciosos do seu saber e direitos, os conselhos tivessem se tornado tão insultantes e até motivo de vingança, quando deveriam ser fonte de elucidação e esclarecimento.
A inquietação com a impermeabilidade dos colegas é reforçada anos mais tarde, em carta a Pierre D’Ailly, de 1405, na qual novamente manifesta desagrado pelo fato de que ‘as palavras prudentes’ só se mostrassem frutíferas quando coadunadas com o que se queria ouvir. Amparado no versículo dos Provérbios, que diz que “[...] o néscio não gosta da discrição, mas de publicar o que pensa”31 (Gerson, 1998, p. 227) (Pv. 18:2), e no filósofo romano Apuleio, Gerson chamava atenção para a obstinação de alguns em torno de equívocos, levados pelo descontrole de suas “[...] paixões e afeições” (Gerson, 1998, p. 227-22832; Rosenwein, 2015; Langum, 2016)33. Louvava, ao contrário, como virtudes indispensáveis aos teólogos a moderação e a modéstia, com as quais se poderiam retomar os procedimentos escolásticos de debate, as chamadas ‘disputas’, que, praticadas com temperança, serviriam para fortalecer o intelecto, ao invés de alimentar animosidades (Gerson, 1998). Tal comportamento modesto, ressalta, é o que “[...] convém à busca da verdade, que aguça e estimula a mente, renova e estimula o estudo, e também estabiliza a posição da verdade, uma vez revelada a falsidade na oposição” (Gerson, 1998, p. 182)34.
Mas é na carta de 1400 também ao seu principal interlocutor, Pierre D’Ailly, que melhor sintetiza as mazelas da universidade como argumento em favor de uma reforma geral. Os temas vão desde a natureza dos ensinamentos correntes até a descompostura entre aqueles que deveriam ensinar. A inutilidade dos conhecimentos praticados é o que abre o rol das suas indignações. Gerson denuncia como infrutífero o desvio do fundamento teológico de busca da salvação, dado que identificava a Teologia com a sabedoria e o apoderar-se de Deus pelo pensamento, tal como ensinava Agostinho (Gilson, 2007). Ao desvirtuarem os princípios teológicos, seus colegas perdiam de vista o fim para o qual todo pensamento virtuoso deveria ser ordenado, por isso o chanceler não se cansa de reiterar que a vida terrestre só se justificava em vista da contemplação celeste, ou melhor, a interrogação das coisas secretas a respeito de Deus, como ele defende no seu tratado De mystica theologia (Gerson, 2008).
Para além da superfluidade como característica do conhecimento dos mestres em atuação na principal faculdade de Teologia (Asztalos, 1996), este defensor das escrituras sagradas como base incontornável do saber mais elevado advertia sobre a adulteração dos ensinamentos das autoridades cristãs, como Agostinho, por exemplo. Seu argumento em favor da ‘regra fixa’ (Gerson, 1998) remetia para uma das principais discussões do seu tempo em torno do papel da experiência e da especulação racional no alcance do fim último da existência. A controvérsia travada com o flamengo Jan Van Ruysbroeck (1293-1381) e outros letrados sobre as formas de acesso a Deus traduz bem o que constituía a regra fixa que, contrariada, resultaria em erro doutrinal (Hobbins, 2009). Ruysbroeck defendia a possibilidade de uma absorção plena da essência divina pela humana na contemplação, revertendo em uma amálgama entre a essência da alma humana e o divino. Tal união mística essencial era um dos exemplos de desvio da regra, devido justamente à negligência do saber teológico dos mestres do passado em favor de uma experiência mística duvidosa (Dupré, 2006; Warnar, 2007).
No âmbito estrito da universidade, estas violações da regra estariam sobretudo ligadas ao desprezo ou desconhecimento dos textos cristãos clássicos, como insistirá detalhadamente nas admoestações aos estudantes35. O mais grave efeito dos desvios era a deslegitimação do discurso daqueles para quem advogara, como vimos, o papel de condutores da Cristandade. Acusados de ‘sonhadores’ e avessos às verdades mais palpáveis e morais, aqueles que gozavam do prestígio de membros da mais prestigiada faculdade, os teólogos, eram desacreditados e ‘ridicularizados pelas outras faculdades’. Seu conhecimento mostrava-se impenetrável e presunçoso aos olhos dos mestres e doutores das demais faculdades, de forma que, ao contrário de gerarem interesse, eram, pelo que se deduz das lamentações do chanceler, considerados obsoletos e dispensáveis. O efeito desse rol de índices de desapreço pelos teólogos era o enfraquecimento da própria fé, dado que seus principais defensores não se mostravam aptos a convencer sobre a unidade de Deus (Verger, 2001).
À falta de capacidade de transmitir ideias e ideais por parte dos professores, juntava-se a “[...] ignorância cega ou a negligência preguiçosa”36 (Gerson, 1998, p. 186). Agravadas ambas pelo gosto da adulação. Tal combinação trazia consequências deletérias, pois a fraqueza não permitia que cumprissem a missão de exemplaridade e de corrigir os alunos, por medo de perdê-los, por excesso de soberba ou porque temiam que os limites dos seus conhecimentos fossem desvendados pelos seus pupilos e os levassem ao desregramento, ao atrevimento e aos vícios - como veremos melhor a seguir (Gerson, 1998, p. 185-186). Acerca das falhas morais dos mestres, aponta ainda o teólogo a arrogância manifesta no desprezo pelas autoridades. Articulada à preguiça e ao excessivo apreço por novidades, esse desprezo orgulhoso pelos escritos notáveis do passado levava ao temerário afastamento do essencial (Gerson, 1998). A ânsia por descobertas em detrimento das coisas do passado mostrava-se especialmente inquietante, porque facilmente contaminava as mentes e os corações dos jovens com superfluidades37. Gerson defendia, assim, em alerta aos seus colegas, o apego à tradição e ao passado como fonte inesgotável do saber, alegando ser diminuta a possibilidade de inovar diante de tudo o que já se tinha escrito e com qualidade. Seus colegas, ao contrário, em especial os mais jovens, não cientes dessa verdade irrefutável, deixavam-se seduzir pelas ‘conversas vazias’ e pela exibição vaidosa de erudição.
Estudantes mal instruídos, afoitos e presunçosos
Uma instituição dividida literalmente entre a cruz e a espada - ou melhor, não alheia às disputas envolvendo reis, nobres e a Igreja - e perturbada por mestres negligentes com Deus e fascinados pelos exercícios retóricos de autoglorificação, não poderia resultar senão em aprendizes desnorteados. No que se refere aos alunos, uma das maiores preocupações demonstradas pelo chanceler nas suas cartas era a influência negativa de mestres inaptos. Na referida carta de 1400 aos colegas do Colégio de Navarra, Gerson faz referência aos desvios de conduta moral dos jovens, inclusive no ‘aprendizado mais básico’, devido à inconstância e ignorância de alguns mestres. Sujeitos a exemplos morais condenáveis e mesmo a ensinamentos errados, os estudantes desaguavam em toda sorte de defeitos. Sem que a ‘vara da correção’ os afastasse dos vícios (Pv 22:15) (Gerson, 1998) e os reconduzisse à virtude, eram contagiados pela inação, pela indolência, e eram levados, assim, a contrariar a substância na base dos regulamentos e dos cursos: a busca racional da verdade ou o amor sciendi (Rüegg, 1996). Conhecimentos errados ou ausência deles são combinados com a imoralidade. Unindo professores e alunos, a vida moral escandalosa libertava estes últimos para as contendas e as ofensas (Pascoe, 1973). Sem restrições e limites, os estudantes são deixados ao sabor dos seus apetites e se entregam ao caminho dos vícios, pois não são estimulados a cultivar aquela virtude, a prudência, que determina e oferece os meios e as condições apropriados para se alcançar o fim moral reto (Celano, 2016), ou seja, são privados da possibilidade de aperfeiçoamento da razão, dado ser esta virtude que combina a consideração correta da razão e a retidão do apetite (Celano, 2016).
Das práticas corrompidas dos estudantes, Gerson apontava a predileção pelas “[...] dialéticas argumentativas [...]”(Gerson, 1998, p. 179)38 ou métodos especulativos e racionais ‘sem sentido’, isto é, usados como fins em si mesmos, à maneira dos maus professores. Denunciava tal panorama como fruto da danosa submissão da teologia aos procedimentos das ciências auxiliares, como a lógica, a física e a matemática, que ganhavam espaço em detrimento da primeira, confundindo os métodos e desvirtuando-a (Asztalos, 1996; Hobbins, 2009). O chanceler apontava como inaceitável e até vergonhoso “[...] que as matérias puramente físicas ou metafísicas [...]” e “[...] as questões de lógica [...]” não ficassem claramente distinguidas dos “[...] termos teológicos [...]”39; e mais, que estas disciplinas auxiliares se fizessem fins em si mesmas (Gerson, 1998, p. 181). Na carta de 1400 aos colegas do Colégio de Navarra, recomendava com veemência que a faculdade de teologia resguardasse sua função mestra de preservar os interesses da fé, sem permitir que as outras faculdades se arvorassem por este território, como lamentavelmente então se via (Gerson, 1998).
Para que os estudantes se afastassem desses erros tão disseminados, apregoava o chanceler que, não obstante a sua “[...] variedade de acordo com a idade, inteligência e caráter [...]”, o que demandava diferentes tipos de conselhos, os aprendizes de teologia deveriam ter a habilidade de consultar os textos das autoridades que pudessem ensiná-los pela conjugação do conteúdo dos escritos com o exemplo de seus autores, isto é, pela conciliação entre o cuidadoso exercício de leitura e o bem viver, “[...] ao invés de abraçar o ensino de alguém que questiona o rumo dos estudos” (Gerson, 1998, p. 180)40. Deveriam, pois, buscar instrução tanto no âmbito das discussões escolásticas, quanto para a autoedificação, atentando para o modo de vida daqueles que ensinam (Gerson, 1998). Assim, o chanceler batia-se contra a opinião corrente de que as questões básicas da fé, por serem mais simples, ‘corriqueiras e fáceis’, impediam a apreciação de questões ‘mais sutis’ e elevadas. Por isso, prescrevia que as operações complexas fossem equilibradas com o estudo dos textos básicos e fundamentais. Tais ensinamentos, indispensáveis aos estudantes e capazes de edificar de igual modo intelecto e afeto, de unir teoria e prática, eram em especial os de Agostinho, Gregório Magno, Bernardo de Claraval, Ricardo de São Vitor, Boaventura de Bagnoregio e Tomás de Aquino; teólogos que “[...] combinaram de modo claro as matérias especulativas com comparações moralizantes” (Gerson, 1998, p. 182)41. Além disso, ofereceram exemplos concretos para encorajar no seguimento das virtudes, extraindo-os das vidas de santos e outros escritos (Gerson, 1998). Na correspondência trocada com Pierre D´Ailly, afirmava, em suma, que aqueles em formação teológica deveriam “[...] gastar o tempo em doutrinas úteis e na Bíblia” (Gerson, 1998, p. 174).
Jean Gerson dava a conhecer, ainda, que a falta de apreço pelos textos cristãos fundadores levava os jovens teólogos a escreverem e lerem de forma descuidada, a se deleitarem em transcrever o “[...] quanto mais rápido melhor [...]”, tornando “[...] os originais inúteis ou mortos no seu cerne” (Gerson, 1998, p. 179, 192)42. Manifestavam-se essas violações na alteração tanto dos “[...] termos usados pelos santos padres [...]”, quanto da “[...] linguagem de acordo com uma regra fixa [...]”43, o que levava ao enfraquecimento do que já fora feito e acelerava a corrupção do saber ali produzido (Gerson, 1998, p. 172-173). Como vício dos jovens, especialmente, o chanceler destaca que estes se desviavam do estudo dos teólogos do passado por sentirem “[...] vergonha e desprezo pelo que é simples e aversão a todo ensinamento humilde” (Gerson & Ozment, 1969, p. 29), quer dizer, que provêm das Escrituras e dos Padres da Igreja. Aproveitava a circunstância para lembrar que Deus e a verdade são simples e unos, opostos à dispersão e à vaidade inerentes aos postulados numerosos e aos excessos de eloquência (Gerson, 1960).
O estudo dos textos basilares e a consequente efetivação da prática moral pelos estudantes, conduzidos por bons teólogos, seriam os alicerces de uma universidade livre dos efeitos nefastos da curiosidade, a saber: a dispersão e o desvio em relação ao que é fundamental. Derivado do pecado maior do Orgulho, o vício da curiosidade44 era entendido como uma forma de ‘corrupção pela qual o homem rejeita as coisas mais úteis e devotas’, em favor das menos benéficas e que não estão ao seu alcance ou lhe ‘são prejudiciais’, explicava Gerson no seu tratado de 1402, Contra curiositatem studentium, destinado justamente àqueles que julgava mais propensos a essa manifestação do orgulho, os estudiosos (Gerson & Ozment, 1969). Se o orgulho era considerado a raiz de todos os males, a curiosidade foi apontada como a causa dos grandes males da Universidade, fundamento de atitudes como “[...] a discórdia, a obstinação, a defesa do erro, o amor pelo próprio julgamento [...]” ou o apego a “[...] pensamentos perversos” (Gerson & Ozment, 1969, p. 3). A curiosidade engendrava a desobediência, a indisciplina e as conversas vãs entre os jovens, bem como o desvio da atenção para os assuntos mundanos. Estimulava, pois, vícios ameaçadores da contemplação das coisas divinas e que só poderiam ser remediados pelo estudo humilde e pelo ‘silêncio discreto’. Desse modo, o chanceler recomenda ao estudante fazer-se ‘alguém que se recusa a ouvir e um mudo que não abre a boca’ (Gerson, 1998, p. 183). O alvo do combate era a inquirição para além do permitido e não em vista da revelação. Um silêncio discreto e um necessário afastamento de assuntos mundanos, além de descansos intermitentes para favorecerem a paz de espírito, faziam-se assim indispensáveis. Recomendações que visavam, para além de garantir a preservação da finalidade do conhecimento verdadeiro, eliminar as então correntes ‘confabulações’ e indolências que poluíam o ambiente universitário, levando ao desvio do essencial e à perda de tempo (Gerson, 1998). Tal crítica a esse pecado da curiosidade em particular foi desferida no seio da Universidade de Paris e fora dela não apenas por Gerson, mas por outros colegas teólogos, sobretudo pelos nominalistas, cujas vozes a esse respeito o chanceler contribuía para avolumar (Burrows, 1991).
As denúncias do teólogo decepcionado, mas empenhado em reverter o quadro, são oportunidade igualmente para opor vícios correntes e virtudes a combatê-los. Contra essa curiosidade e as invencionices teóricas que seduziam os estudantes conduzidos por mestres inábeis, as armas mais eficazes eram a humildade e a piedade. As duas primeiras, que levavam ‘o espírito à dispersão’ e desnutriam o afeto, maculando-o pelas paixões (Brown, 1987; Gerson, 2008), correspondiam a um exercício vazio e de enaltecimento próprio; as duas últimas eram a garantia da preservação do fundamento do saber: o louvor a Deus. O gosto pelas primeiras alimentava a loquacidade e a retórica vazias, enquanto a ciência do valor das duas últimas era garantia de uma prática moral voltada para o fim supremo (Rorem, 1993).
Ao lado desses devaneios em prejuízo da erudição devota, um outro inimigo ganhava força entre os estudantes: a pressa. A instrução frágil dos estudantes, “[...] estabelecida com muita rapidez, imperfeição ou ineficiência [...]”45 -, poluía o corpo da Universidade e levava-os a armarem-se “[...]pela destruição do bem [...]”46 (Gerson, 1998, p. 186-187): “[...] nuvens arrastadas pelos ventos sem dar água, árvores sem frutos no outono, duas vezes mortas e desenraizadas” (Judas 12). A preocupação manifesta, neste caso, era já não com os andamentos internos da instituição ou com o esquecimento dos fundamentos da teologia, mas com os prejuízos futuros para a comunidade, dado que “[...] a concessão de um diploma acadêmico [...]” não apenas não eliminaria “[...] o mal [...]”, mas o faria mais forte (Gerson, 1998, p. 187)47. A doutrina falha era alimento para a insegurança e falta de solidez daqueles que viriam a atuar no âmbito do reino e junto à comunidade. Assim, ao lamentar aos colegas do Colégio de Navarra a respeito dos desvios dos universitários em prejuízo da instituição e da sociedade como um todo, Gerson sintetizava as tendências que considerava que a encaminhavam para fins que não eram aqueles para os quais, especialmente a faculdade de teologia, tinha sido projetada.
Advertia o chanceler, por um lado, sobre o esquecimento da fé, da piedade, como condutora de todo saber, recordando assim o papel de Deus como artífice do conhecimento e como finalidade; por outro, rememorava que esta finalidade, manifesta na forma do bem no plano das ações, era o que garantia a prática virtuosa a ser preservada (Jensen, 2010). Nas suas palavras, “[...] a mais sólida e confiável tradição vem não daqueles que se lançam em dialéticas argumentativas, ou daqueles que vivem vidas baixas, sórdidas e perdidas, mas dos homens mais piedosos e bem treinados, que praticam o que pregam” (Gerson, 1998, p. 179)48. Fé, saber e prática virtuosa eram, pois, a tríade a ser aprendida pelos alunos - assim como cultivada pelos mestres - para que a universidade assumisse e fizesse jus a seu papel de condutora do reino e da Cristandade. Tríade cujos fundamentos, vale lembrar, eram o amor reverencial a Deus e a humildade, símbolos da adesão do espírito à superioridade do Criador (Gilson, 2007) e garantidores da conjugação entre: especulação e boas obras; capacidade especulativa e sentimento religioso (Burrows, 1991).
Considerações finais
As cartas que Jean Gerson escreveu ao longo da primeira década do século XV, quando se dispôs a refletir sobre a ‘mãe dos estudos’ - primeiramente censurando seus rumos, depois, planejando sua missão grandiosa - são, como vimos, fontes privilegiadas para compreendermos, por um lado, o que se esperava das universidades de um modo geral, da Universidade de Paris acima de todas e da Faculdade de Teologia especificamente; por outro, para examinarmos os desafios e os obstáculos enfrentados por estas instituições de ensino em um momento em que, ainda relativamente jovem, ela já tinha se afirmado como um poder fundamental e, em parte, se desvirtuava de certos caminhos para os quais tinha sido pensada. A missão que lhe estava reservada é definida pelo chanceler como de irrefutável grandeza, deslizando do louvor a Deus à garantia de uma sociedade piedosa e virtuosa.
Nas palavras do teólogo, a universidade era “[...] como um brilhante sol espiritual que brilha sobre a estrutura da igreja, vencendo as sombras escuras do erro com seu resplendor purpúreo e reluzente” (Gerson, 1998, p. 185)49. Além de associá-la à luz, cuja simbologia remetia ao comando divino por seu intermédio, ele a associava ao alimento da terra, por meio da analogia bíblica do rio do paraíso, cujos quatro braços eram capazes de regar toda a face da terra (Gn 2:10) (Gerson, 1998). Mas se a missão era grande, era preciso, como registra o chanceler em suas cartas do início do século XV, correção e melhoria, pois era sabido que não estava “[...] abençoada em todas as suas partes” (Gerson, 1998, p. 185)50. O chanceler diagnostica e, em seguida, propõe os remédios para reconduzi-la ao seu caminho. A propósito das relações externas, recomendava que, ao contrário de buscar privilégios junto aos poderosos ou agradá-los em suas demandas ilícitas, se empenhassem os seus membros em dissolver conflitos, como aquele envolvendo o papado e os interesses dos reinos. Para isso, era preciso, no âmbito interno, reverter do erro professores afeitos à bajulação, tendentes à indolência e desvirtuados dos princípios da fé e da moral cristãs. Do mesmo modo, era preciso cuidar dos estudantes seduzidos por superfluidades e pouco preparados para desvendar os mistérios das Escrituras com a devida dedicação, sem afobamento e sem preguiça. O lema para a recondução da instituição, em síntese, pode ser sintetizado por uma passagem de Aristóteles retomada por ele próprio em uma das cartas: “[...] estar atento às demonstrações ou declarações daqueles com experiência, que são mais velhos ou prudentes” (Gerson, 1998, p. 179)51 e evitar toda e qualquer forma de arrogância. Só assim os caminhos da sabedoria não seriam emaranhados.