Introdução
Isidoro de Sevilha (560-636), bispo espanhol do século VII, foi autor de diversos tratados teológicos (Gilson, 2007), alguns dos quais intentavam marcar uma identidade dos líderes religiosos em relação aos líderes laicos e foram utilizados, inclusive, na formação dos futuros clérigos (Silva & Rainha, 2010). Seu livro das sentenças, um desses tratados, busca a correção dos erros teológicos e a difusão do mal, centrando sua discussão sobre a vida humana na noção de pecado: “A vida humana é o palco da luta das virtudes contra os vícios [...]” (Feldman, 2010, p. 176), aproximando-se de Deus ou dele se afastando a depender de sua espiritualidade ou de sua mundanice. O corpo humano deveria ser rigidamente controlado, reprimido e contido (Feldman, 2010).
Ele produzia seus materiais para serem utilizados nas escolas episcopais e monacais. Ambas eram, em sua grande maioria, espaços de formação de novos membros do clero, sendo a escola episcopal aquela ligada à igreja central e a monacal a que pudesse ser encontrada no interior dos mosteiros. A abertura dessas escolas para o público leigo é um fenômeno dos séculos posteriores na história da educação (ver Hilsdorf, 2012, p. 12 e seguintes).
Sua obra mais famosa é, sem dúvida, as Etimologias, ou as Origens. Elas
[...] formam uma espécie de memento enciclopédico em vinte livros, a que esses dois títulos convém igualmente. Isidoro acredita, e persuadirá a massa de seus leitores, que a natureza primitiva e a própria essência das coisas se reconhecem na etimologia dos nomes que as designam. Quando não se conhece a etimologia natural de um nome, sempre se pode inventar uma ad propositum, para as necessidades da causa. Verdadeiras ou falsas, não raro engenhosas, por vezes ridículas as etimologias de Isidoro se transmitirão de geração em geração até o fim da Idade Média (Gilson, 2007, p. 177).
Se suas etimologias eram um tanto ‘engenhosas’, isso não deixa de se inserir num contexto medieval de relação com o conhecimento e com a linguagem:
É certo que as etimologias medievais não primavam pelo rigor científico. Se a interpretação dada às origens das palavras nem sempre era uma verdade (e, de vez em quando, chegava mesmo ao ridículo), frequentemente era bene trovata. Seja como for, a linguagem funcionava para eles de um modo diferente, parecia-lhes saborosa, portadora de notícias sobre a realidade (Lauand, 2004, p. 2).
As palavras possuem um sabor especial e devem ser degustadas, vagarosamente, para que apreendamos a sua essência. Mas não é apenas uma questão de relação com a língua, como também de educação das pessoas ao seu entorno. Educar, neste caso, significa transmitir (para emular) a cultura antiga para os povos bárbaros. Mas a distância do modo de pensar dos gregos, dos romanos e dos povos germânicos era grande demais e transmitir a cultura antiga significava resumi-la, simplificá-la:
Educador de visão e de aguda sensibilidade pastoral, o Hispalense identifica o problema de sua época: graves necessidades culturais, tanto mais urgentes, quanto mais precária a base de conhecimentos (adquiridos e disponíveis...). E encontra a solução pedagógica na fórmula: opúsculos que condensem o essencial, de modo fácil e acessível para a memória (Lauand, 2002, p. 4-5).
Se nas universidades medievais não se lia mais Isidoro e Boécio como livros-textos básicos (Hilsdorf, 2012), as etimologias de Isidoro ainda eram citadas por Tomás de Aquino (Lauand, 2004; 2005). E tão importante quanto ele ser citado por um autor da Baixa Idade Média é o fato de continuar presente nos manuais de História da Educação, considerando seu nome potencialmente presente na formação dos futuros educadores. Mas de que modo?
Apesar de ser lido e relido ao longo da Idade Média, sobre ele são escritas, talvez como tudo o que se produziu nesse período, poucas palavras nos manuais de História da Educação. Selecionamos alguns exemplos a título de ilustração. No livro de Franco Cambi, por exemplo, Isidoro é alguém que se dedica
[...] à construção de um saber enciclopédico ordenado através do estudo das etimologias, que nos faz conhecer a verdadeira essência das coisas (homem = homo = humus = terra) e valoriza um conhecimento como análise. Além disso, Isidoro delineia uma ‘filosofia da temporalidade’ (Aléssio) baseada no princípio da degradação progressiva, dando-nos assim uma visão pessimista que será típica de quase toda a Idade Média (Cambi, 1999, p. 164, grifo do autor).
Para Lorenzo Luzuriaga, Isidoro é um exemplo notável daqueles autores que escreveram enciclopédias pedagógicas na Idade Média, sendo, “[...] para alguns o representante perfeito da cultura medieval. Criou numerosas escolas e é o autor das famosas Etimologias que serviram de texto nas escolas da Idade Média” (Luzuriaga, 1985, p. 90).
Francisco Larroyo menciona Isidoro como o autor das Etimologias, livro utilizado nas escolas monacais. Para ele, esta obra “[...] era uma verdadeira enciclopédia de todo o saber de seu tempo” (Larroyo, 1970, p. 273). René Hubert (1976) apenas cita-o entre os enciclopedistas do período, enquanto em Manacorda (1989) não encontramos referências diretas.
Os autores citando Isidoro, em geral, ao lado de Boécio (470-525) e Cassiodoro (468-562?), destacam seu lugar como um educador medieval, que, por meio de uma cultura de caráter enciclopédico, cuidava da transmissão da cultura clássica de forma organizada nas suas Etimologias. O que este breve apanhado de manuais da área aponta é o quanto essa unanimidade esconde nosso desconhecimento de sua obra, especialmente se o olhar se dá a partir da História da Educação.
No contexto deste dossiê, que visa evidenciar fontes medievais voltadas para a problemática educacional, optamos por um exercício de leitura das Etimologias de Isidoro a partir da compreensão de que se trata de um texto inserido no espaço-tempo da Espanha Visigoda (e Romana, e Cristã) que, em seu exercício de síntese dos saberes greco-romanos, busca preservar esses saberes com vistas a um processo educativo. Nesses termos, buscamos um mapeamento da obra, optando por uma leitura indiciária sobre os ideais romanos que Isidoro propunha emular numa Espanha Visigoda. Para este artigo, trabalhamos com a tradução inglesa do texto (Barney, Lewis, Beach, & Berghof, 2006).
As etimologias inseridas em um contexto visigodo
O caminho dos visigodos desde a sua entrada em território romano até o seu assentamento e independência foi marcado por vários conflitos e alianças, sendo o saque de Roma por Alarico uma das ações mais famosas desse percurso. Porém, em meio a essas disputas, os visigodos se tornavam cada vez mais romanizados, abandonando seus costumes tradicionais, sua religião (profundamente conectada com seu modo anterior de vida, assim como suas antigas terras) e até mesmo sua língua em favor de algo novo. Na época em que os visigodos finalmente se assentariam em seu novo reino na península ibérica, sua religião era a cristã, sua língua romanizada, e seus costumes políticos e sociais estavam profundamente alterados por conta de sua relação com os romanos (Thompson, 1963).
A península ibérica, apesar de estar sob o domínio dos visigodos, continha ainda uma grande população românica, considerando-se romanos mesmo com a dissolução do Estado romano ocidental, via inicialmente os visigodos mais como um poder dominador estrangeiro do que um governo legítimo. O próprio cristianismo ariano seguido pelos visigodos era uma vertente considerada herética pela maioria nicênica (Thompson, 1962). É nessa situação que se encontram os visigodos, quando pela primeira vez se viam como os governantes oficiais de um território, não mais invasores e imigrantes assentados em terras concedidas como clientela, nem também federados ao império, nesse sentido, teriam que aprender e se adaptar tanto a como organizar seu novo reino, como garantir a legitimidade perante as populações nativas.
Os visigodos adentraram os territórios romanos mais como uma massa de imigrantes do que propriamente invasores, e por conta disso houve vários momentos que a troca cultural, casamentos e alianças entre as famílias romanas e visigodas eram mais a regra do que os conflitos armados. A Adoptio, por exemplo, prática em que nobres famílias romanas adotavam membros de outras famílias, garantindo-lhe seu status como forma de selar alianças, foi utilizada com nobres visigodos, que incorporariam essa prática como sua (Frighetto, 2005). Com o tempo, muitos nobres visigodos iriam se portar mais como patrícios romanos em suas propriedades do que se portaram os seus ancestrais. Os conflitos entre romanos e visigodos se davam cada vez mais por conta da vontade dos visigodos de terem terras permanentes para se assentar e um lugar dentro do império e a resistência deste para garantir-lhes as terras que tanto se viam necessitados, do que propriamente uma guerra em que o vencedor seria destruído, escravizado ou saqueado em prol do vencedor (Thompson, 1963).
Quando transformados em federados, os visigodos não veriam problema em lutar ao lado dos romanos para defender o império contra outros invasores estrangeiros, os mais famosos destes sendo os hunos. Manteriam sua fidelidade ao império até o momento em que o Estado romano estivesse em tal bancarrota que os visigodos considerariam mais vantajoso ter um reino próprio nas terras que ocupavam do que servir a um império que não tinha mais poder real. Porém, mesmo com essa nova independência, os visigodos ainda veriam a civilização romana clássica como o grande modelo a ser seguido.
Uma das ligações que os visigodos tinham com os romanos era a religião cristã. Os visigodos foram se convertendo ao cristianismo gradualmente desde quando adentraram o território imperial, apesar de não se saber hoje exatamente o motivo de terem se convertido ao arianismo e terem permanecido em massa como tal por tanto tempo, supõe-se que a facilidade de relacionar as religiões ancestrais visigodas com um cristianismo que via seu profeta como um homem mortal possa ter sido um fator determinante. Mais tarde, o fato de identificarem-se como arianos pode ter sido uma diferenciação da identidade deles como visigodos perante os romanos nicênicos, já que a diferença da opção religiosa entre arianismo e a igreja nicênica foi uma das únicas formas de diferenciação cultural entre um visigodo e um romano, principalmente na época da independência dos primeiros como um reino.
O cristianismo é uma religião douta, pois necessita que aqueles que busquem a entender saibam ler para entender a palavra divina, não por acaso é chamada de ‘religião do livro’. Após Constantino, ganharam bastante influência dentro das academias e escolas romanas, no ocidente particularmente, os estudiosos cristãos se dedicariam ao estudo das letras e da linguagem, e estariam bem versados no ensino das artes liberais das academias romanas. Os quadros que a igreja e o cristianismo produziram, seriam, portanto, aptos a ensinar e alfabetizar os jovens nobres e patrícios, e servirem em cargos administrativos tanto no Estado romano, como em seus sucessores (Marrou, 1973).
Isso seria verdade também no reino visigodo independente, a igreja estaria presente e auxiliaria na administração do reino, e também como conselheiros reais dos reis visigodos, pois teriam não só quadros indispensáveis para o reino ser propriamente administrado, mas também poderiam ser tutores dos jovens nobres visigodos e dos futuros reis. Essa relação de proximidade permitiria que finalmente o bispo Leandro de Sevilha convertesse, após vários embates ideológicos, alguns, com derramamento de sangue, o rei Recaredo ao catolicismo nicênico, o que tornaria finalmente o reino visigodo oficialmente um reino católico1.
Essa conversão permitiria que a igreja se aproximasse muito mais do poder régio visigodo, possibilitando eventualmente que o irmão de Leandro, Isidoro, pudesse ter uma atuação muito mais significativa, duradoura e impactante como conselheiro real e autoridade da igreja na península. Isidoro utilizou essa influência e a dependência que o reino criara da igreja para organizar uma rede de monastérios e escolas de bispo que utilizariam os métodos de ensino das academias romanas para a alfabetização e o ensino das artes liberais, assim como o estudo da palavra cristã, para formar agentes que cumpririam tanto o trabalho missionário da igreja, como auxiliariam o poder régio a se legitimar e melhor se organizar (Silva, 2014).
A península Ibérica possuía grande diversidade de povos e culturas vivendo juntos, e a ‘adição’ dos visigodos a essa mistura não era algo inédito (Feldman, 2007). Porém, com a oficialização do reino como nicênico, acontece uma união e uma ‘homogeneidade’ inéditas, um senso de identidade comum que não era sentido desde os tempos áureos do império romano. Esse senso de identidade será um dos alicerces no qual Isidoro irá trabalhar como bispo (e como conselheiro de reis), para legitimar essa unidade não só religiosa, mas também cultural e até historica (Crouch, 1994).
Assim, com a conversão e o auxílio da igreja, o reino visigodo não teve somente a legitimidade perante as populações românicas católicas, mas uma rede de quadros que permitiria que o poder régio contasse com mais eficiência na administração e resolução de conflitos internos, buscando conseguir uma proximidade com o que outrora foi o Estado romano. Em troca, o reino forneceria à igreja os recursos necessários para manter sua rede de monastérios, igrejas e escolas de bispo. Isso criaria uma relação de co-dependência entre os dois poderes, que faria que eventualmente um não conseguisse existir sem o auxílio do outro.
Leis e Tempos
As etimologias contêm uma ampla gama de assuntos, e aquele que as lesse poderia dizer que teria amplo conhecimento de questões tanto espirituais quanto mundanas, escrita numa tentativa de compilar em uma única obra todo o conhecimento que estaria em poder de Isidoro naquele momento (Barney et al, 2006).
Quando lemos esse texto, podemos perceber que o autor o escreve tomando como pressuposto implícito a relação direta entre a palavra e a essência do objeto que nela está contida, sendo, portanto, possível explicar a origem, significado e importância da palavra e do sentido que ela expressa. Por exemplo, ‘sol’ vem de ‘Solis’, pois este está sozinho no céu, ‘humano’ vem de ‘húmus’ (terra, barro), pois este teria vindo do solo.
A utilização da língua latina atesta a importância que era dada a esta, e à cultura romana clássica como um todo, pois seria a língua mais ‘pura’ existente, com a possibilidade inata desta conter a essência dos objetos em si. O império romano era tido como a império de Deus na terra, o fato de o principado ter se formado na mesma época em que Jesus teria nascido seria não uma coincidência, mas uma providência cuidadosamente planejada no divino. Como será visto a seguir, a concepção de uma providência divina será atribuída também à existência do reino visigodo e de sua tentativa de emular o império romano. É com essa concepção de mundo que a obra Etimologias de Isidoro foi feita, de que serviria como uma ferramenta para um propósito maior, na formação de um reino cristão e que realmente fosse um herdeiro da cultura clássica. Portanto, mesmo sendo escrita em um reino ‘bárbaro’, as leis, costumes, ferramentas, modos de organização, e até pensadores clássicos serão tomados como grande referência. Como lembra Gilson:
Muitos trabalhos foram consagrados às fontes de Isidoro de Sevilha, mas não são as fontes de um pensamento, são as de um dicionário. Ainda assim tais estudos são bastante úteis, na medida em que permitem ver como se constituiu o resíduo dos conhecimentos gerais acumulados pela cultura clássica latina, que devia ser como que o primeiro cabedal com o qual viverá a Europa da alta Idade Média (Gilson, 2007, p. 177).
O livro V: Leis e tempos (Barney et al, 2006, p. 117 e seguintes) é uma boa base para iniciarmos a observação do papel da cultura clássica na Espanha visigoda, e a valoração de Roma dentro do reino. Esse livro parte de definições do que seriam as leis, os tipos destas e sua importância para a sociedade. Aponta os tipos gerais de leis e regras, como ‘leis militares’ por exemplo, que, de acordo com Isidoro, são comuns a todos os povos, apesar das diferenças de seus formatos e aplicações, para mais adiante elaborar tipos de leis mais específicos que seriam produtos romanos, mais elaborados e que serviriam mais apropriadamente para uma sociedade mais complexa. Em primeiro momento, Isidoro reconhece a existência de organizações e administrações sociais em outros povos, não atribuindo aos ‘bárbaros’ uma falta de capacidade nesse sentido, porém ainda coloca como grande referência Roma como tendo alcançado maiores patamares na organização social.
No que se refere a ‘tempos’, há uma extensa linha temporal que se presta a contar toda a história humana até a época ‘contemporânea’ em que Isidoro teria escrito a obra. Inicia com a narrativa bíblica, apontando quando acredita que seriam as datas dos eventos mais importantes, eventualmente apontando também datas importantes da história greco-romana, principalmente após a época do martírio de Cristo, época em que Augusto se tornaria efetivamente o ‘primeiro imperador’. Cria nisso uma continuidade, onde a história do Império Romano é a sequência, por excelência, da narrativa bíblica, repetindo este artifício com os visigodos, apresentando as datas mais importantes de sua entrada nos territórios romanos até seu assentamento na península ibérica e outras datas importantes como reino independente, marcadamente a época da conversão de Recaredo, que marcou a passagem do reino visigótico a um reino católico, o que selaria completamente a existência do poder régio com a existência da igreja2.
Essa continuidade entre a narrativa bíblica e os tempos do reino visigodo dá a entender que um é resultado direto do outro, uma providência divina agora unindo uma suposta braveza e valor inato dos visigodos à cultura ‘superior e pura’ dos romanos, à revelação da verdade divina. Como um esforço de ‘criação de identidade’ para o nascente reino, marcando que a presença e liderança visigoda, a cultura romana, e a presença cristã da igreja são inseparáveis para a criação de um reino que seria verdadeiramente herdeiro dos romanos e da tradição cristã.
Essa linha do tempo não seria a única elaboração a respeito de uma identidade ‘pró-reino visigodo’ criada por Isidoro, sendo suas exaltações à península ibérica e à Espanha um exemplo bastante claro desta, realizando novamente uma alusão a uma providência o fato dos visigodos terem se instalado nesta região bela e fértil, com clima adequado. Nesse sentido, o povo ideal, para liderar um reino em uma terra ideal, utilizando-se da verdadeira religião, e da cultura mais polida seria uma fusão perfeita para se criar um ‘reino de Deus’.
Paralelo a esta ‘identidade’, criada apelando a uma conexão com três passados distintos, o visigodo, o romano e o bíblico, existiria um projeto, que buscaria fazer valer esta identidade e realmente criar um reino cristão sucessor de Roma, para isso, as leis romanas seriam levadas em grande consideração.
Artes liberais
Sendo quase um ‘manual para o mundo’, feito para formar os agentes do Estado e da igreja, e que permitiria que qualquer leitor pudesse ser educado mesmo que não tivesse acesso a um depósito grande de livros, a obra Etimologias é um reflexo tanto dos valores que se pretendiam ser preservados no contexto em que foi escrita, como em muitos outros nos séculos seguintes. Os primeiros três livros da obra, a respeito das artes liberais, constituem o conjunto das ferramentas por excelência da educação neste período, utilizado para formar os que seriam os agentes ideais do poder régio e da igreja.
Isidoro cita seus autores de forma variada a depender do assunto a que ele se remete, muitas vezes, por exemplo, cita Cícero (passando também por nomes como Aristóteles, Quintiliano) para se referir a questões mais sérias e conceituais a respeito da retórica, filosofia e o modo como estas deveriam ser aplicadas e ensinadas, e passagens de Virgílio e Lucano para demonstrar o uso de palavras cotidianas e mundanas ou descritivas que ele acabara de abordar, por exemplo, a respeito do nome das carruagens que as matronas utilizavam ou para descrições naturais como o posicionamento das estrelas e constelações.
O fato de Isidoro ter acesso a estes trabalhos e os utilizar para fazer a sua própria obra é um indicativo da valorização e a visão lançada sobre estes trabalhos como extremamente necessários, valorização que se reforça com a instituição das escolas de bispo e dos monastérios copistas, que se baseariam nestas obras para reproduzi-las e utilizá-las para criar os agentes ideais tanto do poder régio como da própria igreja.
Como propõe Marrou (1973), o cristianismo se desenvolveu no ocidente como uma ‘religião douta’ por excelência, o saber ler é essencial para entender, ser educado na cultura cristã e apreciar a palavra divina. E a forma como a alfabetização se instalou nesse contexto tornavam necessárias as obras dos autores e filósofos pagãos clássicos, principalmente para os jovens, sendo imprescindível a presença de manuscritos destas obras para ensinar os jovens a ler e a escrever, bem como, fazer dos que estudavam nas escolas de bispo e nos monastérios agentes mais bem preparados. É de se notar que o próprio Isidoro reconheceu que essas obras deveriam ser analisadas e estudadas mesmo que, ao menos, pela necessidade de conhecer para conseguir refutá-los.
Os três primeiros livros discorrem a respeito do que são as artes liberais, qual seu uso e importância e como o mundo pode ser organizado e definido a partir destas. Por exemplo, a matemática se presta a decifrar e entender o funcionamento do mundo natural, e a gramática utilizada para se falar e repassar informações de forma correta.
A partir desses livros, podemos começar a analisar nos escritos de Isidoro um pouco da forma em que o conhecimento seria organizado, valorizado e como seria utilizado tanto na interpretação do mundo como para fazer valer um projeto de um reino estável e próspero a imagem de Roma.
Para isso, o ensino seria de principal importância, tanto pelo status da língua cristã como religião ‘douta’, requerendo que seus adeptos saibam ler para interpretar a palavra divina, mas também para a formação de indivíduos capazes de atuar como agentes eclesiásticos e régios. Os métodos para a alfabetização seriam emulados das academias e escolas romanas, e para tanto seriam necessários os manuscritos dos poetas, filósofos e escritores clássicos, fossem eles pagãos ou não (Marrou, 1973).
O uso de uma herança greco-romana é vista desde as primeiras definições nos primeiros conceitos na obra de Isidoro, utilizando os termos e palavras das disciplinas liberais como base para toda a organização do conhecimento que será feita no prosseguimento da obra. A cultura clássica é colocada por Isidoro como a chave para se ter um conhecimento organizado a respeito do homem, sociedade e do mundo, fornecendo inclusive as ferramentas que permitiriam educar os homens para receber este conhecimento.
Disciplina e arte: Uma disciplina (disciplina) tem seu nome de ‘aprender’ (discere), que também pode ser chamada de ‘conhecimento’ (scientia). Agora, ‘conhecer’ (scire) vem de ‘aprender’ (discere), porque ninguém de nós sabe, exceto que tenhamos aprendido. Uma disciplina é então nomeada em outra forma, porque ‘a coisa completa é aprendida’ (discitur plena). E uma arte (ars, gen. artis) é assim chamada, pois consiste em preceitos e regras estritas (artus). Outros dizem que essa palavra é derivada dos gregos, da palavra ‘virtude’, αρετε. Platão e Aristóteles falavam dessa distinção entre uma arte e uma disciplina: uma arte consiste de assuntos que podem se transformar de diferentes formas, enquanto uma disciplina cuida de coisas que só tenham um resultado possível. Portanto, quando algo é exposto com argumentos verdadeiros, isso é uma disciplina, quando o que é tratado está meramente assemelhando-se a verdade e com base em alguma opinião, terá o nome de arte (Barney et al., 2006, p. 39, tradução dos autores, grifo dos autores)3.
As chamadas ‘disciplinas liberais’ por Isidoro são assim chamadas por serem baseadas em ‘argumentos verdadeiros’ e só terem ‘um resultado possível’. Ou seja, ao aplicar uma técnica de uma disciplina liberal a determinada situação, haverá somente uma solução possível para esta determinada situação. A matemática é nesse sentido uma disciplina liberal por suas técnicas resultarem em resultados específicos sempre que aplicadas, sendo uma linguagem da ‘verdade’ na interpretação do mundo.
A gramática, ou seja, a forma de corretamente expressar e transmitir ideias como a primeira disciplina a ser analisada não é simplesmente uma arbitrariedade, mas o primeiro passo para efetivamente estabelecer um ‘manual de conhecimento’. Inicia-se com as definições das ferramentas de transmissão de conhecimento, para depois prosseguir para os conceitos que essas ferramentas se prestariam a definir, construir e organizar. Assim como o cristianismo é um caminho onde só há um resultado possível, a salvação e a verdade, as disciplinas, também baseadas em ‘argumentos verdadeiros’, levarão a em um resultado possível. Pode-se imaginar que seria providencial a preservação e a existência destas disciplinas para se construir um reino cristão.
A retórica como arte liberal (livro II) era também vista com grande estima:
Os fundadores da arte de retórica (de inventoribus rhetoricae artis): Essa disciplina foi inventada pelos gregos, por Górgias, Aristóteles e Hermágoras, e foi trazida para a cultura latina por Cicero e Quintiliano [e Titiano], mas tão copiosa e variadamente que é fácil para um leitor pensar a respeito, mas impossível de compreendê-la completamente. Pois quando alguém possui um tratado de retórica em suas mãos, a sequência de seu conteúdo se liga como está a sua memória, mas quando ele é posto de lado, toda a lembrança de seu conteúdo desaparece. O conhecimento concluído dessa disciplina faz de alguém um orador (Barney et al., 2006, p. 69, tradução dos autores)4.
O fato de o próprio Isidoro ter participado de concílios eclesiásticos, e estar sendo um conselheiro real dentro de uma corte altamente competitiva e complexa torna interessante a abordagem a respeito da retórica e sua utilização para uma argumentação coerente. Ao contrário do estereótipo, muitas vezes reproduzido a respeito do período medieval, que se utiliza de conceitos anacrônicos de que a igreja teria uma autoridade quase ‘totalitária’, com qualquer diferença no campo das ideias sendo respondida com torturas, ignorando completamente a complexidade e as modificações que ocorreram ao longo da história medieval e eclesiástica, era presente a tentativa de se criar um ambiente onde a argumentação e a resolução de conflitos fosse o mais próximo possível do senado romano (ou de uma idealização deste), e se distanciarem da tradição guerreira dos visigodos. Os conflitos armados e assassinatos de lideranças e reis visigodos eram tidos como empecilhos à consolidação de um reino forte e próspero.
No que diz respeito à matemática (livro III), esta é uma disciplina liberal e também utilizada para interpretar o mundo no qual os homens estão inseridos. Neste livro são abordados não só questões elementares como questões de ‘par e ímpar’, mas todo um entendimento a respeito do funcionamento cosmológico do universo como era entendido. As quatro artes do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música, Astronomia) tiveram seu espaço nesta parte da obra. No que diz respeito à última das artes nomeadas, a ‘superstição’ denominada de ‘astrologia’ já era combatida pelos próprios pagãos, que a condenavam:
Não somente aqueles estudados na religião cristã, mas também Platão, Aristóteles, e outros dentre os pagãos, foram movidos pela verdade das coisas para concordar em condenar isto em seu julgamento, dizendo que era uma confusão de matérias e assuntos que eram gerados por tal crença. Pois se humanos são forçados para vários atos pela compulsão de sua natividade, então por que devem os bons merecer elogios, e por que devem os maus colher a punição da lei? E embora estes sábios pagãos não foram devotados à sabedoria celestial, eles corretamente combatiam estes erros por conta de seu testemunho da verdade. Mas claramente a ordem das sete disciplinas seculares foi levada pelos filósofos até as estrelas, para que elas pudessem arrastar as mentes emaranhadas na sabedoria secular para longe dos assuntos terrenos e colocá-las em contemplação daquilo que está acima (Barney et al, 2006, p. 107, tradução dos autores)5.
Neste livro, há uma ordem estabelecida e perfeita em tudo e resta aos humanos simplesmente aprender e decifrar esta ordem perfeita estabelecida por Deus. Sendo as ferramentas dessas disciplinas os caminhos mais certos para se conseguir este resultado. Desde os números separados e ordenados em diferentes tipos, até a ordem cosmológica geocêntrica, tudo deve estar perfeitamente alinhado, organizado e estável, mostrando o desejo de se atingir uma ordem e estabilidade, e o conhecimento ordenado um meio para se atingir este fim.
Natureza, homem e sociedade
No que diz respeito à natureza, temas abordados nos livros XII, XIII, XIV e XVI (‘Animais’, ‘o Cosmos e suas partes’, ‘a Terra e suas partes’ e ‘Pedras e metais’ respectivamente), o geocentrismo e a percepção de que cada detalhe no mundo está colocado e relacionado de forma perfeita por uma providência divina, se juntam às definições etimológicas de Isidoro em que haveria uma relação essencial da palavra e do objeto. Há aí uma conexão providencial nas palavras que definiriam a criação, se o cosmos é uma criação perfeita e exata de um Deus perfeito, as definições de suas essências e conceitos devem buscar ser igualmente perfeitas e exatas. Aos ouvidos de hoje, as concepções de Isidoro podem parecer de certa forma ‘poéticas’ quando observamos o modo como o universo é constituído. Por exemplo, o Sol ao se pôr, choca-se com o oceano, viajando debaixo da terra, e se ‘alimentando’ de suas águas, por isso que ao nascer, saindo do oceano, temos orvalho espalhado pelos campos. Temos de nos ater, porém, que entender que esse é o ‘caminho do sol’ é simplesmente uma maneira coerente que a observação empírica poderia produzir naquele contexto, e que esse ‘caminho’ seria apenas uma peça de uma arquitetura perfeita montada providencialmente pelo divino.
Nisso, tanto o nome do próprio Sol (solis, pois está sozinho), como o nome do caminho que ele percorre (a via Lactea - pois é uma via branca) refletem a concepção de que tais objetos ocupam um espaço específico e arquitetado, refletido em seus próprios nomes e palavras que se referem a seus respectivos objetos. O mundo natural, os animais, as partes do mundo e como este se constitui também serão analisados e nomeados por palavras que contêm em si a essência do objeto, refletindo seu lugar providencial na arquitetura divina.
O livro dos animais trata-se a respeito principalmente da relação dos animais com os humanos e como os primeiros são utilizados pelos últimos. Não por acaso que ‘gado e bestas de carga’ é o primeiro item deste capítulo. Animais que não são utilizados por seres humanos serão descritos e quando possível analisados no âmbito do dano que podem causar aos homens. É evidente a mescla que faz tanto das definições e das origens greco-latinas dos termos expostos com a religião cristã, sendo os nomes latinos e gregos não contraditórios com o fato de se acreditar que Adão deu nome a todos os animais da criação. A existência de bestas mitológicas parece, a partir das descrições de Isidoro, tão real quanto os não mitológicos, portanto, dragões e leviatãs ocupam o mesmo espaço no imaginário do real desses indivíduos que um cachorro ou um boi.
Ao tratar-se dos variados tipos de pedras e metais, Isidoro o faz de forma que tenham tanto um lugar na cosmogonia cristã, quanto uma utilidade na sociedade humana, como tal metal é refinado e em que é utilizado.
Dado que a própria nomeação dos itens mencionados neste capítulo faz menção a alguma forma da utilização deste, atrelando a sua existência ao seu uso, pode-se correr o risco de cair em uma visão anacrônica ao associar um aparente ‘utilitarismo’ na nomeação destes itens, já que, por exemplo, o ferro e o ouro não existem como elementos ‘independentes’, mas sim para serem utilizados pelo ser humano, e a própria nomeação destes materiais se dá por sua ‘utilização’. Porém, a este livro não é totalmente diferente nos anteriores no que se refere a apenas explicar a existência das coisas que existem no mundo e a origem de suas palavras, e segue o mesmo princípio de que, se algo existe, é porque Deus colocou este algo ali, para algum propósito maior, como ser utilizado na fabricação de ferramentas.
Nisso, diferente de uma simples visão ‘utilitarista’, a concepção que se faz aqui presente é que esse mineral existe justamente para cumprir um propósito, assim como todo o restante da criação, portanto, saber sobre ele, como utilizá-lo e como nomeá-lo é dever do homem como também sendo criação divina e seu instrumento para realizar a Sua vontade.
A descrição que Isidoro realiza a respeito da natureza tem a ver justamente com a relação desta para com o homem, qual o lugar deste dentro da criação divina, e como este pode interpretá-la da melhor maneira. Nesse sentido, vemos que o propósito das definições de Isidoro ainda continua o mesmo, o de nomear e analisar as existências e as essências dessas partes da natureza, analisar a relação direta entre o objeto e a palavra, e entender como eles se encaixam dentro da arquitetura providencial divina.
O ferro existe para que o homem possa dele fazer ferramentas, para isso que Deus o fez e o colocou à disposição, ele é aplicado, de outras maneiras para os outros minerais, e essa será, no fim das contas, a mesma lógica utilizada ao se referir aos animais:
Ferro (De ferro): Ferro (ferrum) é assim nomeado pois ele enterra o grão (far) da terra, isso é, as sementes das plantações. É também chamado chalybs (‘espada’, lit. ‘aço’.) do rio Chalybs onde o ferro é temperado para ter o melhor gume. Enquanto o material em si também é livremente chamado de chalybs como em (Virgílio aen. 8446): E o aço (chalybs) que inflige ferimentos. O uso de ferro foi descoberto após aquele de outros metais. Depois, esse tipo de metal foi transformado em um símbolo de opróbrio, pois muito tempo atrás por ferro a terra era arada, mas agora por ferro sangue é derramado (Barney et al, 2006, p. 331, tradução dos autores, grifo dos autores)6.
Portanto, em grande medida, ao analisar a natureza, Isidoro analisa ferramentas que Deus disponibilizou aos homens para que fossem utilizadas (e os homens podem fazer mau uso, corrompendo sua mais correta aplicação). Assim sendo, vidro e cunhagem de moedas entram na mesma lista que ferro e ouro, itens que são ora refinados, ora criados e forjados pelos homens a partir dos elementos da terra para sua utilização.
Outro grupo de livros das Etimologias pode elucidar a respeito do tema ‘homem’ e como este era concebido neste período. Nesse sentido, tanto ao falar a respeito do homem em si, como dos ofícios que ele ocupa em variados setores da sociedade, Isidoro demonstra novamente que há uma ‘ordem providencial’ na forma como a sociedade deve se encaixar, utilizando justamente das essências supostamente contidas nas palavras que definem tanto partes do corpo humano, ofícios e produção de artefatos, ferramentas, utensílios domésticos e até mesmo navios para explicar a forma que os humanos se organizam, e os supostos motivos disto.
A arquitetura divina, na qual tudo se encaixa no cosmos, no mundo natural e na terra, é emulada e reproduzida nas partes do corpo humano, na relação entre os sexos, e na posição entre os ofícios dentro da sociedade.
A essência desses termos está contida nas palavras, já que ‘natureza’ seria assim chamada por causar o nascimento de algo, (natura, nasci), sendo por meio desta que as coisas se engendram e são criadas. ‘Natureza’, portanto, é algo que faz nascer e cria vida. Por sua vez, vida é nomeada justamente por ser ‘vigor’ e ter o poder de nascer e crescer. Tudo que nasce e cresce é, portanto, vivo e por sua vez pertence à natureza. Pode-se imaginar que a partir desta argumentação, de que algo ‘natural’ e ‘vivo’ é o que faz nascer e criar algo, com a narrativa bíblica de Sodoma e Gomorra, desenvolveu-se a associação da relação homossexual como algo ‘não natural’ por ‘não reproduzir’, e, portanto, não ser algo abarcado pela ‘força (vis) da vida’. Quando fala do corpo humano, Isidoro traz Cícero e Paulo de Tarso juntos para poderem explicar a etimologia da palavra mão:
A mão (manus) é assim chamada pois ela é o serviço (munus) de todo o corpo, pois ela serve comida para a boca e ela opera tudo e administra tudo; com sua ajuda nós recebemos e nós damos. Com uso certo, manus quer também dizer um ofício ou aquele que o pratica - já que nós derivamos a palavra para salários (manupretium, literalmente: ‘preço da mão’). A mão direita (dextra) é assim chamada por ‘dar’ (dare), pois ela é dada como uma súplica de paz. É tida como um signo de boa fé e de saudação; e este é o sentido em Cicero contra Catilina 3.8: ‘Ao comando do Senado eu dou a saudação de proteção’, isso é, sua mão direita. Já o apóstolo [diz (Gálatas 2:9) ‘eles deram suas mãos direitas para mim’]. A ‘mão esquerda’ (sinixtra, sinistra) é assim chamada como se a palavra fosse derivada de ‘sem a mão direita ‘(sine dextra), ou como se fosse ‘permitido’ a algo acontecer, pois sinixtra é derivada de permitir (sinere) (Barney et al., 2006, p. 235, tradução dos autores, grifo dos autores)7.
Chegando às definições do que é o ser humano, começa-se pelo fato deste ter vindo do solo (humus), portanto, ser humano é ter ‘vindo do solo da terra’. Este e outros termos como a ‘alma’ são derivados diretamente de termos gregos e latinos em conceitos pagãos, porém, ao contrário da astrologia, Isidoro não argumenta contra esses conceitos, mas os adapta a própria interpretação cristã do que é o ser humano, do que é a alma etc. Assim, Ou seja, por não entrar em plena contradição e serem perfeitamente adaptáveis ao entendimento cristão, até mesmo conceitos pagãos greco-romanos são preservados para explicar e definir o homem e o mundo a sua volta. Nesse sentido, essa adaptabilidade poderia ser vista também como uma ‘providência’.
Finalmente, há os livros que tratam a respeito da forma como a sociedade se organiza, como as cidades e o reino estariam dispostos para que esta possa funcionar, e a respeito de vários elementos que constituem a movimentação que existe dentro desta sociedade. Esta seria compreendida de acordo com as concepções de uma arquitetura perfeitamente estruturada, novamente podendo conceber alusões a uma suposta providência divina. Nisso a sociedade romana é o grande exemplo para o funcionamento cultural e social. Era um sinal divino o Império Romano ser consolidado na mesma época do nascimento de Jesus. Roma seria a materialização do império divino e cabia aos visigodos emulá-lo.
A partir desta interpretação, haveria uma forma ‘correta’, diríamos até mesmo ‘natural’, que uma sociedade se consolidaria e formaria, sendo ela também o resultado de várias peças e partes se encaixando. Quanto mais próxima da perfeição, um corpo social meramente emularia certas leis e conceitos tidos como ‘certos’ para que prosperasse.
Os livros que tratam sobre o campo e suas construções e a cidade e suas partes são bastante reveladores no quesito de como uma sociedade se organiza. Seja no campo ou na cidade, o homem vive em um lugar que foi por ele construído e remodelado. Uma sociedade forte e organizada seria aquela onde as habitações dos homens estão devidamente organizadas e relacionadas. E o saber dos antigos ajuda a garantir a riqueza dos campos:
O cultivo dos campos (De cultura agrorum): Cultivo (cultura) é o meio pelo qual colheitas, safras e vinhos são obtidos com grande trabalho, assim chamados de ‘habitarem’ (incolere, colere, cultus, ‘cultivar’). A riqueza dos antigos herdada de duas maneiras: bom pastoreio e boa lavoura. A cultivação de campos envolve cinzas, arado, deixar em descanso, queima de palha, adubar, utilizar a enxada e capinar (Barney et al., 2006, p. 337, tradução dos autores, grifo dos autores)8.
A presença da cidade está tanto na história greco-romana quanto na narrativa bíblica, e Isidoro faz questão de listar cidades que são importantes em ambas as tradições. Essa presença pode dar a entender, para alguém num contexto onde essas tradições seriam suas grandes referências, que a cidade seria um resultado natural da organização humana, necessitando por sua vez de uma disciplina e organização rígidas para funcionar de forma mais apropriada. A seguinte lógica se impõe com esta visão: humanos inevitavelmente constroem cidades, mesmo os campos sendo conectados a elas, toda cidade precisa de organização, ainda mais se essa se expandir em um reino ou império:
Construções Públicas (de aedificiis publicis): Uma cidade (civitas) é uma multitude de pessoas unidas sob um laço de comunidade, nomeada por seus ‘cidadãos’ (civis), isso é, dos residentes da cidade (urbs), [porque ela tem jurisdição sobre e ‘contém as vidas’ (contineat vitas) de muitos]. Agora urbs (também ‘cidade’) é o nome para as construções da cidade, enquanto civitas se refere não às pedras, mas aos habitantes.
De fato, existem três tipos de comunidade (societas): famílias, de cidades (urbs), e de nações (gens). Cidade (urbs) é de ‘circulo’ (orbis), porque antigas cidades eram feitas circulares, ou de ‘arado’ (urbus), uma parte do arado com o qual seria marcado o local das muralhas. A respeito disso (Virgílio, Aen. 3.109 combinado com 1.425): E ele escolheu um local para seu reino, e marcou seus limites com um sulco (Barney et al., 2006, p. 305, tradução dos autores, grifo dos autores)9.
Reinos e impérios, ao se constituírem agrupamentos de cidades e campos, precisam de disciplina e ordem. Nada melhor para isso do que ser regida por homens ordenados e disciplinados, e a melhor forma de se conseguir isso é treiná-los nas disciplinas e artes que o farão ser capazes de criar e manter uma ordem duradoura.
Nesse sentido, as disciplinas liberais, e as tradições clássicas e cristãs, e a junção destas como formas organizadoras poderiam ser lidas como um resultado inevitável da humanidade. A providência divina teria levado a humanidade a produzir estas formas puras de organização, expressão de conhecimento e disciplina para poder criar uma sociedade ordenada e organizada, assim como o resto do mundo natural (afinal, este era criação divina). O homem seria um instrumento da obra divina, e o exemplo para essa recriação estaria em todo o ambiente natural em sua volta.
Ao discorrer sobre a sociedade, Isidoro não menciona simplesmente como ela funciona em seu estado ‘ideal’ ou ‘harmônico’, também mencionando questões que acha problemáticas para seu funcionamento, mas estão de qualquer forma presentes, como o teatro e os jogos esportivos violentos, que via com maus olhos por estarem associados de acordo com ele à prostituição ou terem uma procedência pagã. Trata até mesmo das guerras e questões militares como parte integral da sociedade, pois, se olharmos especificamente para o contexto da antiguidade tardia onde viveu Isidoro, isso era particularmente verdade. Sociedades rivais competem entre si, e mesmo dentro delas mesmas existem disputas e conflitos, inclusive, o fato de Roma ter aprendido a regular seus conflitos internos por intermédio de suas leis seria um dos motivos desta ser vista como um importante exemplo a ser seguido.
Justamente, no que se trata de conflitos internos, Isidoro abarca-os no mesmo livro que trata sobre guerra, e se tratando a respeito destes, mais especificamente, conflitos regulados por uma lei romana, traz elementos que constituem as negociações e conflitos jurídicos por excelência. As ferramentas que poderiam permitir que a sociedade pudesse funcionar internamente sem derramamento de sangue podem ser vistas com um olhar extremamente favorável por Isidoro, tendo em vista que a política interna visigoda era particularmente sangrenta, com o próprio Isidoro sendo conselheiro de vários reis, pois eram constantemente assassinados.
Considerações finais
Isidoro inicia sua obra falando a respeito das artes liberais, pois seriam as ferramentas perfeitas criadas pelos sábios do passado para que o conhecimento e a cultura que permitiam a sociedade funcionar de forma mais elaborada pudessem ser transmitidos, não em vão ele fala sobre os supostos ‘criadores’ e ‘fundadores’ de cada arte e disciplina, sendo a maioria grega ou romana. O ‘mito de fundação’ de cada arte liberal se funde com o ‘mito de fundação’ do próprio reino, todos herdeiros de uma cultura vista como superior e ‘providencialmente escolhida’, e que estaria na visão desses homens, acessível a eles também por meio da graça divina.
O fato de essa graça ter disponibilizado o acesso a esse grande arsenal cultural tornou mais tolerável a utilização de autores pagãos no ensino de jovens cristãos que seriam os agentes eclesiásticos e régios, pois estariam com eles aprendendo a língua ‘mestra’ que permitiria a realização do reino de Deus na terra. A preservação e a continuação daquilo que fora produzido pela civilização romana seriam de extrema importância não somente para a continuidade da igreja e seu trabalho missionário, mas também para a consolidação do reino ‘bárbaro’ que fora instaurado, sendo inclusive parte integrada à própria noção de identidade que o reino estava criando. Apesar do reino visigodo como tal não sobreviver por muito tempo, o legado educacional do trabalho de Isidoro sobreviveria, o desenvolvimento social, político e religioso no processo de consolidação dos outros reinos cristãos certamente não seria o mesmo sem ele.