Introdução
O movimento imigratório norte-americano para o Brasil, causado pela Guerra de Secessão (1861-1865), se baseou em busca por oportunidades num momento histórico crítico, embora possa também ter sido motivado por valores míticos e religiosos do chamado ‘destino manifesto’1, que muitos dos imigrantes sulistas traziam consigo. A visão idílica do ‘paraíso tropical’ da América do Sul acabou se mostrando mais dura do que o imaginado, dado o intemperismo do meio natural e das características da sociedade e da política aqui encontradas.
Tem este trabalho, por objetivo, o exame das práticas de transmissão de saberes técnicos, estabelecendo uma correlação com o que, posteriormente, foi identificado por Gohn (2010) e Von Simson, Park e Fernandes (2001) como processos educativos não formais, providas por esses imigrantes norte-americanos, quando de sua vinda ao Brasil. Nesse sentido, os termos ‘educação técnica não formal’, ‘educação agrícola não formal’ e ‘educação não formal de cunho técnico e agrícola’ aqui utilizados, significam práticas de transmissão de saberes técnicos análogas à educação não formal.
Buscou-se estudar, em especial, dois sujeitos, representantes do processo, que ocuparam-se com a educação não formal agrícola junto às comunidades da região de Americana e Santa Bárbara d’Oeste, Estado de São Paulo, no período de 1865 a 1915. O recorte cronológico de cinco décadas coincide, incialmente, com a chegada ao Brasil dos agentes das sociedades imigracionistas norte-americanas e, finalmente, com a participação de Robert Lee Ferguson nas práticas de transmissão de saberes técnicos na Escola Agrícola Prática de Piracicaba2.
A hipótese aqui examinada sugere a ocorrência de efeitos educativos e econômicos nas comunidades e cidades afetadas pelas práticas estudadas. Justifica-se o estudo pela importância de se entender processos educativos que ocorrem no entorno de comunidades sempre desejosas de oportunidades de melhoria de vida, mas que não estão necessariamente vinculados à educação oficial ou formal.
A fim de estudar uma das possibilidades desse fluxo imigratório, relacionada a práticas de educação não formal assumiu-se aqui, como fonte histórica do processo educativo, qualquer objeto ou ação que apresente informação sobre o passado pesquisado. Como proposto por Ruiz Berrio (1976), o método histórico empregado foi baseado na coleta de dados conduzida por meio de fontes orais (conversas, narrativas e entrevistas com descendentes), enquanto os dados de fontes documentais primárias (produzidas por observadores ou participantes diretos dos fatos) foram coletados com base em arquivos particulares, familiares e institucionais: documentos escritos na forma de narrativas e crônicas, fontes materiais (lápides de cemitério, pertences pessoais como utensílios, ferramentas de trabalho, móveis, vestimentas) e fontes iconográficas (fotografias). Fontes secundárias foram empregadas em seu papel de informações prestadas, de maneira indireta, por autores que não foram testemunhas presenciais do acontecido (Costa, Melo, & Fabiano, 2010).
Os arquivos e acervos públicos consultados foram o Museu Prudente de Moraes e o Instituto Histórico e Geográfico (IHGP), ambos de Piracicaba - estado de São Paulo além do Centro de Memória e do Museu da Imigração, de Santa Bárbara d’Oeste - SP. Essas instituições contêm, em seus acervos, arquivos de origem privada, doados, mas com acesso público. Também os arquivos particulares, ainda em posse das famílias descendentes dos imigrantes, foram relevantes para este trabalho.
Os acervos das instituições de ensino serviram de fonte de documentação primária e secundária, nomeadamente as bibliotecas do Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL/Americana (obras raras) e do Museu da Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz’ - ESALQ/USP, em Piracicaba - SP.
A imigração norte-americana para o Brasil3
A realidade econômica, educacional, comunitária e social que se encontra hoje na região de Americana e de Santa Bárbara d’Oeste, no Estado de São Paulo, sugere que houve alguma influência dos imigrantes norte-americanos, a partir de 1865. Movimento de auto-exílio de cidadãos dos chamados ‘Estados Confederados da América’, essa imigração para o Brasil teve três destinos principais: a região de Americana e Santa Bárbara d'Oeste, no Estado de São Paulo; a região de Iguape, no sul do Estado de São Paulo; e o Estado do Pará4. Finda a Guerra Civil americana, os cidadãos confederados encontravam-se em situação econômica e social deplorável. As cidades e campos estavam arrasados devido ao duro e penoso conflito. O Brasil, com o apoio do Imperador Dom Pedro II, buscava especialistas em algodão, com a expectativa de entrar no mercado de tecelagem dominado pela Inglaterra. Naquele período, os sulistas norte-americanos eram os maiores exportadores de algodão do mundo, dados o clima e solo propícios Estabeleceram sociedades de colonização que enviaram representantes ao Brasil, para conhecerem o país em termos de clima, solo, povo, cultura e oportunidades (Dunn, 1866).
O inglês James Heywood já havia publicado um artigo (em junho de 1864), no formato de relatório, onde tecia um quadro muito interessante sobre o Brasil, em termos econômicos, políticos e sociais. Afirmava que o café, o açúcar, o algodão e o fumo seriam os principais produtos agrícolas do país (em 1852-57 a produção de algodão foi de 620.871 libras, contabilizando 5.518.850 Mil Réis de valor)5. Segundo o autor, a qualidade do algodão brasileiro encontrava-se em deterioração, por falta de cuidados na produção.
Os pioneiros a visitar o Brasil foram Robert Meriwether e H. A. Shaw, além de Charles Gunter e do reverendo Ballard S. Dunn. Este publicou um livro que é referência na divulgação do Brasil para os futuros colonos (Dunn, 1866).
De acordo com Nash (1939),
[...] norte-americanos ‘sulinos’ que, desgostosos com o desfecho da guerra civil, abandonavam a pátria onde o cativeiro acabava de ser abolido e partiam em busca de outras paragens em que ainda florescesse o seu sistema favorito de exploração econômica. Durante a primeira década que se seguiu ao término da guerra de secessão, encontravam-se grupos desses rebeldes insubmissos nas proximidades de Curitiba, em Campinas, no Rio das Velhas, sertão de Minas, na parte inferior do Rio Doce, na Bahia, em Pernambuco e até mesmo no Pará, próximo de Santarém, às margens do Amazonas (Nash, 1939, p. 205-206, grifo do autor).
Conforme destacou Weaver (1961), para os ex-confederados, a emigração dos Estados Unidos para o Brasil não foi uma ação espontânea de homens precipitados, mas o resultado de estudos, reflexão e planejamento deliberado, pois várias bibliotecas sulistas possuíam, em seus acervos, livros sobre o Brasil. Além disso, dois missionários, Daniel Parish Kidder e James Colley Fletcher (o primeiro, metodista e o segundo, presbiteriano), que atuaram no Brasil, publicaram uma obra conjunta, em 1857, que trouxe conhecimentos relevantes àqueles que pretendiam emigrar. Nesse sentido, Weaver (1961) ressalta que aqueles missionários, de início involuntariamente, deram grande impulso ao movimento emigratório do Sul dos Estados Unidospara o Brasil.
De acordo com Zorzetto (2000, p. 33), em 1865, dezenas de agentes de sociedades imigracionistas norte-americanas estiveram no Rio de Janeiro para contatar os seus patrícios aqui estabelecidos, com o intuito de intermediarem relações com as autoridades imperiais responsáveis pela aprovação dos contratos para o transporte dos imigrantes, mediação e demarcação das terras escolhidas, isenção de pagamentos de impostos alfandegários sobre ferramentas trazidas pelos imigrantes e implementos agrícolas, dentre outras vantagens6.
Assim que a ideia de sair do país começou a desenvolver-se entre os Confederados derrotados, eles iniciaram uma intensa leitura desses relatos sobre o Brasil, seu governo, sua população e seus costumes. Novas edições de Brazil and Brazilians tiveram que ser impressas em 1866, 1867 e 1868, e estas incluíam uma seção com informações de especial interesse para os emigrantes (Weaver, 1961).
Também o doutor James MacFadden Gaston, da Carolina do Sul, viajou pela Província de São Paulo, publicando a obra Hunting a Home in Brazil, divulgadora de informações para os colonos (Gaston, 1867). Os coronéis sulistas McMullan e Bowen chegaram a Iguape após uma viagem de grandes dificuldades7. As famílias ali estabelecidas permaneceram por menos de quatro anos no local, quando decidiram subir a serra em busca de outros colonos melhor estabelecidos (Griggs, 1987). Um destes, na região de Campinas - SP, foi coronel e senador do Alabama, William Hutchinson Norris, desembarcado em dezembro de 1865 no porto do Rio de Janeiro e estabelecido às margens do Ribeirão Quilombo, na atual Americana. O povoado ali formado ficou conhecido como ‘Villa dos Americanos’ ou ‘Villa Americana’. Norris será estudado adiante, em sua iniciativa de estabelecer práticas de transmissão de saberes agrícolas.
De clima, solos, algodão e tecnologia agrícola
Para que se possa estudar o papel dos imigrantes norte-americanos na transmissão dos seus saberes agrícolas, é preciso que se entenda a situação que aqui encontraram em termos de clima, solos, culturas agrícolas e mecanização. Os norte-americanos só poderiam prover seus conhecimentos nesses temas se encontrassem condições favoráveis nas suas experiências anteriores nos Estados Unidos. É esta a proposta desta seção.
Chegados ao Brasil, a agricultura passou a ser a atividade principal dos norte-americanos, independente de sua experiência anterior no ramo. Afirma Oliveira (1985) que mesmo os que não eram agricultores foram levados a amanhar a terra, pela necessidade de subsistência. Como mencionado anteriormente, havia o claro interesse das autoridades imperiais brasileiras na vinda dos norte-americanos, a fim de viabilizar a cultura do algodão no país com novas técnicas de plantio - num momento em que essa matéria prima era escassa no mercado mundial, dada à quebra de oferta causada pela Guerra Civil americana (Gussi, 1997)8.
As similaridades entre as condições originais dos Estados Unidos e o que se encontrou no Brasil acabaram por facilitar a empreitada. Segundo Harter (1985) havia, no interior do Estado de São Paulo, precipitação pluviométrica suficiente, chance baixíssima de geada e fertilidade natural dos solos - fatores ideais para a implementação do algodão como cultura comercial. O grupo de norte-americanos que para lá se encaminhou encontrou, na região de Americana e Santa Bárbara d’Oeste, muita semelhança com os seus estados americanos de origem (Alabama, Geórgia e Carolina do Sul).
Em Gussi (1997) há um relato de que as terras vermelhas de Santa Bárbara lembravam aquelas do “[...] Alabama, da Geórgia, do Sul tão querido” (Gussi, 1997, p. 58). A então Província de São Paulo foi descrita como a que melhor reunia condições para o plantio de algodão - dados o clima, a fertilidade do solo e a paisagem que lembravam o Sul dos Estados Unidos (Dunn, 1866; Gaston, 1867). Harter (1985) afirma que parte do sucesso das colônias de Santa Bárbara d’Oeste e Americana foi devido ao solo de ‘terra roxa’ (solo argiloso avermelhado, estruturado, e de excelente fertilidade natural).
Já o algodão tem, no período histórico aqui estudado, importância contextual e seminal. Segundo Hurt (2015), a produção de algodão pelos estados sulistas, durante a Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, teve status de poderio militar, dada sua demanda estratégica pela Inglaterra. Também havia a ideia disseminada no Sul norte-americano, de que ‘a agricultura era um dom de Deus, valorizava a sua terra natal’. O algodão se torna, portanto, objeto de valor diplomático - por todas essas razões.
Segundo Zorzetto (2000), dos 50 proprietários de terra que cultivavam algodão em Santa Bárbara no início dos anos 1870, 40 eram norte-americanos. Quando a migração de sulistas ganhou intensidade, de acordo com Horne (2010),
[...] em alguns setores dos Estados Unidos via-se com apreensão a possibilidade de a indústria algodoeira do Brasil, estimulada pelos exilados sulistas, vir a oferecer séria competição a tal indústria [nos Estados Unidos] [...] O exilado rebelde James Gaston certamente pensava da mesma forma: ‘a colheita aqui é melhor do que nos Estados Unidos’, declarou, ‘e a fibra do algodão é superior à qualidade média cultivada no Sul, o que, somado ao fato de que aqui cresce dois anos seguidos no mesmo caule, dá ao algodão cultivado aqui uma vantagem sobre o plantado nos Estados Unidos’ (Horne, 2010, p. 298-299, grifo do autor)
Canabrava (2011) cita o paulista Carlos Ilidro da Silva, fazendeiro e editor do jornal O Agricultor Paulista, publicado em Itú, que tratava do cultivo do algodão na Província de São Paulo. O referido produtor rural chegou a conduzir experimentos sobre o plantio de várias espécies de algodão em sua relação com os solos de suas propriedades. A autora aponta que o fazendeiro
[...] recomendava as terras siliciosas, vermelhas e negras, sem excluir o barro, à luz da ‘experiência dos agricultores norte-americanos’, com preferência às terras cultivadas muitas vezes. Prevenia-se também contra o plantio nas terras roxas, onde o algodoeiro somente produzia bem nos primeiros dois anos [itálicos nossos] (Canabrava, 2011, p. 207, grifo do autor).
Assim, evidencia-se a hipótese de transmissão de saberes práticos agrícolas pelos norte-americanos. No mesmo sentido, Clark (1993) confirma o papel dos norte-americanos como introdutores de sementes de algodão e de arados, e reconhece sua influência sobre a agricultura brasileira como produto da habilidade individual que traziam dos Estados Unidos.
Em relação às práticas agrícolas dos norte-americanos, Henriques (2015) cita o relatório de Capanema (1857), que já descrevia métodos racionais de emprego dos arados e outras técnicas agrícolas. Também Antonio Carlos Botelho (os autores estão retirando a nota 9) (1901) foi incentivador da modernização das técnicas e práticas agrícolas no país, tendo sido o projetista do modelo de desenvolvimento agrícola paulista no início do século XX. Era empolgado pelo modelo norte-americano de agricultura e desenvolvimento. Em declaração dada em uma de suas viagens aos Estados Unidos, disse:
O vosso país deveria ser o modelo principal desse progresso material e industrial do qual o Brasil tanto precisa. A América do Sul, e especialmente o Brasil, deveria procurar excitar a emulação com o adiantamento industrial dos Estados Unidos. Fiquei tão impressionado com essa ideia, que tenciono logo após minha volta ao meu país, propugnar pelo estudo da língua inglesa, não somente para facilitar as nossas relações, mas também para organizar frequentes excursões agrícolas e industriais aos Estados Unidos, para a educação da nossa mocidade ansiosa de aprender (Capanema apud Henriques, 2015, p. 167).
Na apresentação do relatório ao então Presidente do Estado de São Paulo (São Paulo, 1908), Botelho (1901) descreve o agricultor norte-americano como utilizador do arado em qualquer tipo de solo, não esperando pelo estado ideal de preparo do mesmo,ao contrário do agricultor brasileiro, acostumado a explorar novos campos quando se apresentavam os sinais de esgotamento - chamado de sapezeiro. Este não tratava o solo por meio de aração e adubação.
Por definição, um arado (em Inglês, plow ou plough) é um implemento agrícola com uma ou mais lâminas rígidas, que rasgam o solo criando um sulco. O arado de aivecas, introduzido pelos norte-americanos, tem a lâmina curva, com o objetivo de inverter o solo do sulco criado (Bellis, 2019). Os primeiros arados, anteriores aos de aiveca, nada mais eram do que pontas de ferro que riscavam o solo, preparando-o para receber a semente.
Mialhe (1974) define ‘capacidade operacional’ de uma máquina agrícola como sendo a quantidade de trabalho realizada numa unidade de tempo. Como os arados de aiveca norte-americanos podiam trabalhar uma área de terreno maior que os equivalentes nacionais pouco eficientes, aqueles tinham uma capacidade operacional superior e eram muito mais produtivos.
Para Silva (2007), os norte-americanos tiveram reconhecimento regional pela utilização de implementos agrícolas - como os citados arados - no preparo do solo. Como apontado por Dawsey (1995), a imigrante americana Sarah Bellona Smith Ferguson já relatava, em 1865, que arados não estavam em uso nas regiões colonizadas até que os norte-americanos os introduzissem.
Harter (1985) afirma que a região de Santa Bárbara d’Oeste e Americana ainda não adotara implementos agrícolas básicos como o arado, a pá, a grade de preparo do solo ou mesmo o ancinho. Gaston (1867) também relata que o único preparo de solo que ele e os demais agricultores observaram era a enxada (hoe), antecessora dos arados mais eficientes. Gaston (1867) afirma que percebeu pouco interesse da população nativa em modernizar o processo agrícola de preparo de solo e cultivo, já que em toda a sua andança pela Província de São Paulo viu apenas três agricultores empregando o que se poderia chamar de arado. O mesmo autor previu que o emprego de arados em algodão - cultura que já chamava a atenção dos agricultores, dado o momento oportuno para seu plantio e comercialização - poderia aumentar a produção em 50 por cento, por causa da maior facilidade de plantio em linha e pelo melhor enraizamento da planta (Gaston 1867).
A educação não formal como processo: a educação agrícola provida por dois agentes norte-americanos em Santa Bárbara d’Oeste e Americana - SP
Tendo analisado as variáveis mais técnicas condicionantes do estudo aqui conduzido, empreende-se, agora, uma prospecção relativa às questões educativas envolvidas. Suscita-se, assim, a possibilidade de identificar, no processo de transmissão de saberes, uma analogia com a educação não formal, sobretudo quando se investigam as práticas de capacitação agrícolas. Esses conhecimentos foram oferecidos por norte-americanos imigrantes dos Estados Confederados da América9 e seus descendentes de primeira geração, ainda muito associados às aptidões e competências praticadas por seus antepassados da América do Norte, aos brasileiros das regiões enfocadas neste estudo.
Das diversas possibilidades de educação na sociedade, existem as que não se realizam no espaço e tempo da escola, embora possam ser complementares às mesmas. Tais aprendizagens ocorrem pelas vivências e experiências. Nesta linha de reflexão pode-se definir a ‘educação não formal’ como todo processo educativo que extrapola os muros da escola - instituição oficial a representar os conhecimentos historicamente sistematizados pela sociedade (Von Simson et al., 2001). Sugere Gohn (2010) que a educação não formal pode criar oportunidades de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais.
O conceito de educação envolve mais do que pensar em escolas e formalidade. Assim,
[...] por educação formal, entende-se o tipo de educação organizada com uma determinada seqüência e proporcionada pelas escolas enquanto que a designação informal abrange todas as possibilidades educativas no decurso da vida do indivíduo, constituindo um processo permanente e não organizado. Por último, a educação não-formal, embora obedeça também a uma estrutura e a uma organização (distintas, porém, das escolas) e possa levar a uma certificação (mesmo que não seja essa a finalidade) diverge ainda da educação formal no que respeita à não-fixação de tempos e locais e à flexibilidade na adaptação dos conteúdos de aprendizagem a cada grupo concreto (Fernandes, 2009, p. 78).
Quando se considera, como no caso deste trabalho, diferentes campos de propostas (inclusive comunitárias), vê-se que, em tais possibilidades, existe o compromisso com questões que são importantes para um determinado grupo - ponto fundamental para o desenvolvimento do trabalho educacional não formal. Isso é até mais importante, em determinados momentos - como o que foi examinado neste estudo - do que qualquer outro conteúdo pré-estabelecido por pessoas ou instituições (Fernandes & Garcia, 2006).
Na análise aqui realizada, as situações educativas providas pelos norte-americanos imigrantes e seus descendentes imediatos são processos mediadores de relações de aprendizagem, com o objetivo de ensino ou exercício de técnicas e/ou habilidades, encetadas num processo de transmissão de saberes análálogo ao da educação não formal. Para Fernandes & Garcia (2006), quando se pensa em quem são os profissionais ou educadores responsáveis por tal especificidade da educação, pode-se questionar suas experiências anteriores e a forma pela qual eles buscam e garantem a formação proposta. Essas autoras afirmam que a formação profissional específica nem sempre é exigida num processo educativo não formal. E Fernandes (2017) comenta que os trabalhos práticos dos profissionais-educadores podem revelar indícios de suas vivências anteriores - o que é o caso, na proposta dos norte-americanos.
As perspectivas da educação não formal evidenciam, portanto, a importância das experiências educativas e formativas paralelas à formal, permitindo que se afirme ser, a primeira, mais uma possibilidade de vivência educativa, que atua em setores em que a educação formal não atua, sem competir com ela, mas visando complementá-la (Park, Fernandes, & Carnicel, 2007).
A partir da introdução tecnológica e de know-how proporcionada pelos norte-americanos, considerar-se-á, agora, o processo de transmissão de saberes, análálogo ao da educação não formal. Tentar-se-á justificar a hipótese deste trabalho - a de que foi ofertado este tipo de transmissão de saberes na região de Santa Bárbara d’Oeste e Americana no período de tempo compreendido entre 1865 e 1915, com influências educativas e ecônomicas nas comunidades do entorno. O conceito de educação não formal se aplica ao caso tratado neste estudo (os autores estão retirando a nota 12) por tratar-se, aqui, de educação realizada em campo autônomo e independente do formal (escolar), sem vínculo com quaisquer aspectos da educação sob o aval do Ministério da Educação - que dita as normas da educação formal.
Seguem-se dois estudos de caso de sujeitos que podem dar um suporte vivencial ao tema aqui desenvolvido: Robert Lee Ferguson e William Hutchinson Norris.
Filho de Green Ferguson e de Minerva Charlotte Rowell, naturais do Condado de Chester, Carolina do Sul, Estados Confederados da América (Oliveira, 1978). O pai foi soldado na Companhia L das Tropas Estaduais da Carolina do Sul, durante a Guerra de Secessão, e lutou contra o general Sherman na sua marcha para o mar. Com o final do conflito, rendeu-se em Columbia, Carolina do Sul, em abril de 1865. Em Zorzetto (2000) encontra-se a informação de que Green Ferguson teria adquirido 24 acres de terra de sapé, consideradas estéreis, em Santa Bárbara d’Oeste, São Paulo. Ele queimou o sapé, aplicou o arado puxado por cavalo e plantou algodão e milho. Isso mostra o empreendedorismo norte-americano face a condições consideradas desfavoráveis pelos brasileiros nativos da região.
Robert Lee Ferguson nasceu no Brasil em 9 de junho de 1871, em São Paulo, e faleceu em 24 de junho de 1958, na cidade de Santa Bárbara d’Oeste, onde está sepultado no Cemitério do Campo. Foi casado com Mary Elizabeth Cullen e trabalhou na Escola Agrícola Prática de Piracicaba (1903-1914).
De acordo com Dawsey e Dawsey (1995), Lee Ferguson foi administrador da Fazenda Modelo da Escola de Agronomia idealizada por Luiz de Queiroz, que tinha o objetivo republicano de mostrar a possibilidade da eficiência agrícola no Brasil. De fato, Perecin (2004) trata da Fazenda Modelo como sendo uma das unidades fundadoras da Escola, junto com o Posto Zootécnico. A autora cita que, em 1902, o ensino de agricultura ficava a cargo da 4ª Cadeira, tendo sido contratado o mestre de culturas Pierre F. Gelas, formado em Agronomia, Irrigação e Drenagem. Todavia, este foi dispensado por Milton M. Underdown em 1903 (que havia sido contratado em dezembro de 1902, nos Estados Unidos, como diretor autônomo da Fazenda Modelo). Conforme Perecin (2004), Gelas foi substituído por Lee Ferguson.
Acontece que também Underdown acabou afastado, por desentendimentos com o diretor da Escola Agrícola. Foi substituído por John William Hart, professor da Universidade de Illinois, que assumiu o cargo no segundo semestre de 1905. Enquanto o novo diretor da Fazenda Modelo não assumia, Lee Ferguson administrou interinamente a unidade10.
Emrelação a esse período e a esses fatos, há, no acervo da ESALQ, um registro, no mínimo curioso, no relatório do diretor da escola à Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, a que a Escola Agrícola estava subordinada na época. O diretor afirma que o responsável pela Fazenda Modelo teria informado não haver ninguém habilitado para participar do concurso de aração do Estado (evento muito valorizado, na época, pelos agricultores e produtores rurais), o que causou estranheza, por se tratar de uma fazenda modelo. Ora, Lee Ferguson trabalhava na Fazenda e era competente, como diz Perecin (2004, p. 278): “[...] era exímio arador, descendente dos confederados transferidos ao Brasil em meados do século XIX. A tradição oral de sua família lembra que prestara serviços à escola, instrumentando a aparelhagem mecânica, principalmente os aratórios”.11 Isso nos leva a crer que poderia ter sido indicado para a atividade, mas o clima pesado na instituição acabou por impedi-lo.
Em período imediatamente anterior ao vínculo de Lee Ferguson com a Escola Agrícola, o diretor da Fazenda São João da Montanha (futura ‘Escola Agrícola Prática de Piracicaba’ e atual ‘Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz’’), Léon Alphonse Morimont (1896) admite a falta de aradores na localidade e afirma que fazendeiros vizinhos costumavam visitar a Escola para pedir emprestados os aradores qualificados. Gussi (1997, p. 96-97) reconhece que os norte-americanos eram muito bons aradores e puderam ensinar o seu manuseio dos arados em fazendas da região, o que gerava renda suplementar aos detentores de tal competência. Eis aqui, portanto, uma atividade técnica não formal de caráter comunitário.
William Hutchinson Norris nasceu em 17 de setembro de 1800, na cidade de Oglethorpe, Geórgia, Estados Unidos, e morreu em 13 de julho de 1893 na cidade de Santa Bárbara d´Oeste, Estado de São Paulo. Desembarcou no Brasil em 27 de dezembro de 1865, sendo, portanto, um dos primeiros imigrantes norte-americanos a chegar ao país.
Subindo a Serra do Mar com seu filho Robert (veterano da Guerra Civil) em direção a São Paulo, acabou por se interessar por terras na região da planície que ia de Campinas até Vila Nova da Constituição (atual Piracicaba). Ali adquiriu uma fazenda, na sesmaria de Domingos da Costa Machado, às margens do Ribeirão Quilombo. De acordo com Zorzetto (2000), essa propriedade tinha 300 alqueires paulistas de área12.
De natureza empreendedora e dotado de grande experiência agrícola, Norris iniciou atividades de capacitação em aração e outros tratos agrícolas junto aos agricultores locais e da região. Jones (2015) informa que Norris ganhou dinheiro ensinando a outros fazendeiros a técnica de uso do arado:
Muitos vieram ver como os americanos plantavam suas terras, outros quiseram aprender. Sem dar pela coisa, logo o coronel tinha uma boa escola prática de agricultura. Os alunos trabalhavam na lavoura do professor enquanto este os ensinava a manejar os burros e segurar o arado firme no chão; e ainda pagavam pelo privilégio (Jones, 2015, p. 154).
Os norte-americanos acabaram sendo a base de fornecimento de novas tecnologias aos produtores brasileiros, dadas as vantagens tecnológicas e de know-how: a fabricação e importação de arados, a confecção de rodas com aro de ferro e raios de madeira, os troles e os carroções. A autora afirma que os arados trazidos pela família Norris, já em 1866, geravam resultados tão bons que, em pouco tempo, os agricultores da região se interessaram e os Norris passaram a ensinar as novas técnicas de cultivo que empregaram em suas terras, oferecendo à comunidade capacitações agrícolas práticas.
Frank Goldman (1972, apud Dawsey & Dawsey, 1995) também reconhece a participação - notadamente técnica - dos imigrantes norte-americanos na economia regional, pelo status obtido na exploração agrícola, contribuindo para o progresso local com seus conhecimentos.
Mesquida (1994) descreveu a prática de educação técnica agrícola não formal oferecida pelos imigrantes aos agricultores já moradores do espaço geográfico ao qual se refere este estudo.
A regiãose encontrava em decadência devido ao esgotamento causado pela cultura da cana-de-açúcar acabou passando por um renascimento econômico,dados os conhecimentos e as práticas agrícolas inovadoras trazidas pelos americanos, além da transmissão de savoir-faire, difusão de espírito empreendedor e de novas ideias, e sua forma única de educar.
O autor confirma que “Os Norris dedicaram-se com êxito ao cultivo do algodão empregando técnicas ‘inovadoras’ para trabalhar a terra e aumentar a produção” (Mesquida, 1994, p. 42, grifo do autor). Essa atitude acabou por incentivar a aglutinação de outros imigrantes na região de Santa Bárbara d’Oeste.
Neeleman and Neeleman (2016) contam que os Norris compraram mulas que foram treinadas para trabalhar os arados que tinham trazido dos Estados Unidos. Tiveram que fazer isso sozinhos, pois ninguém tinha prática com esse tipo de serviço na região. Segundo Dawsey (1995), Norris chamou a atenção da comunidade do entorno de sua propriedade devido ao arado de aiveca (ou ‘arado americano’, como era chamado localmente), que era mais eficente que o ‘arado brasileiro’ ou mesmo o ‘arado leto’ utilizado pela comunidade imigrante da Letônia, instalada na atual Nova Odessa. O arado de aiveca teria dado aos norte-americanos superioridade de produção e também possibilidades de outros tipos de receitas financeiras13
Norris adicionou receita ao orçamento da famíliaquando ministrou cursos práticos de aração aos produtores da região. Segundo Mesquida (1994), ele informou a seu filho Frank (que havia permanecido nos Estados Unidos) que juntou 5 mil dólares num único ano ministrando cursos agrícolas. O autor considera esta informação a base para afirmar que Norris foi, portanto, pioneiro do ensino agrícola na região.
O autor faz o mesmo comentário no parágrafo seguinte, quando se refere ao já citado descendente Robert Lee Ferguson como tendo sido administrador da fazenda da Luiz de Queiroz, em Piracicaba - SP, tornando-a uma fazenda-modelo para servir de exemplo a visitantes da região. Eis aqui um engano histórico, de inversão de fatos e datas. Como apontado anteriormente, o seu ancestral homônimo Robert Lee Ferguson trabalhou numa unidade da Escola Agrícola Prática de Piracicaba, chamada de Fazenda Modelo, em período posterior ao falecimento de Luiz de Queiroz. Parece-nos que existe um certo exagero propagado pela tradição familiar, que surge em alguns textos que tratam dos norte-americanos e seus descendentes. Este nosso comentário é de fundamental importância para os propósitos deste trabalho, como é fácil concluir.
Neeleman e Neeleman (2016) afirmam que muitas pessoas vinham em busca de aulas práticas de agricultura de campo, nas quais Norris mostrava como controlar as mulas e manter o arado firme no chão (os alunos pagavam por este tipo de instrução). William Norris deixou, então, os cuidados da propriedade ao filho, para ministrar cursos de agricultura na Fazenda Ibicaba, em Limeira - SP, cujo proprietário - José Vergueiro, foi o maior produtor de algodão do país. Também Harter (1985, p. 69, tradução nossa) comenta o fato de que “[…] seu primeiro ano no Brasil foi um sucesso financeiro. Ele recebeu o equivalente a cinquenta mil dólares, sendo que parte deste valor foi ganho com consultoria agrícola provida pelo coronel”14.
O secretário da agricultura do Estado de São Paulo, Carlos Botelho, incentivou o emprego dos arados norte-americanos por agricultores brasileiros e encaminhou pessoal a ser capacitado para a ‘Villa Americana’, dada sua fama (Dawsey, 1995). O autor relata que o governo republicano brasileiro enviou jovens norte-americanos para ministrar capacitações em aração país afora. Eis aqui, novamente, o registro de educação técnica agrícola não formal provida pelos norte-americanos.
Outra referência ao trabalho de capacitação local dos norte-americanos encontra-se em Jefferson (1928). O autor fala das qualidades dos arados norte-americanos nas colinas férteis que se tornaram o local de agricultura dos georgianos. E que um deles afirmara ter ganho dinheiro para a aquisição de sua própria fazenda prestando trabalhos para vizinhos e os capacitando nas artes agrícolas.
Considerações finais
Após a análise documental, oral e bibliográfica aqui conduzida, pode-se concluir que os norte-americanos imigrantes da região de Americana e Santa Bárbara d’Oeste - SP, no período histórico de 1865 a 1915, de fato ofereceram educação não formal de cunho técnico e agrícola para as comunidades nas quais se inseriram após sua chegada ao Brasil. Por serem competentes aradores e agricultores, foram requisitados para trabalhos de capacitação em práticas agrícolas inovadoras.
A atuação dos dois sujeitos estudados, Robert Lee Ferguson e William Hutchinson Norris,comprovam esses acontecimentos, ratificados pelos seus contemporâneos, que reconheceram a perícia dos norte-americanos no domínio do arado e que eles transmitiram a sua expertise aos fazendeiros da região envolvida neste estudo, o que produziu renda suplementar aos detentores de tal competência.
Afirma-se, assim, que a hipótese deste trabalho se verificou, já que os imigrantes norte-americanos influenciaram as comunidades do entorno de suas propriedades adquiridas no Brasil, especificamente nas regiões que hoje encontram-se as cidades de Americana e Santa Bárbara d’Oeste, garantindo incremento de qualidade e quantidade nos processos agrícolas, por meio de educação não formal.
Independente de ter sido a imigração norte-americana para o Brasil um esforço premeditado ou aleatório, ela certamente contribuiu com as iniciativas e empreendimentos locais no que se refere ao contexto e ao tema deste estudo.