INTRODUÇÃO
As relações estabelecidas entre educação escolarizada, gênero e sexualidade instituem preconceitos, discriminações, práticas de hostilização e violências contra sujeitos não heterossexuais, com possíveis impactos na permanência de estudantes LGBTQIA+ 1 nos bancos escolares, dentre eles, os relacionados aos processos de formação no ensino superior (LIMA, 2018). Como apontado por Silva, Lopes e Castro (2021), ao problematizarem experiências de estudantes LGBTQIA+ na universidade pública, faz-se necessário pensar os processos formativos a partir dos modos com que os atravessamentos de experiências no ensino superior produzem nos sujeitos. É preciso pensar nessas experiências constitutivas que incidem sobre corpos LGBTQIA+ “de modo que as universidades são pensadas como espaços em que estão em funcionamento determinados processos de subjetivação e dessubjetivação” (SILVA; LOPES E SILVA; CASTRO, 2021, p. 207).
O trabalho objetivou analisar estudos publicizados na literatura acadêmica da área da Educação sobre o processo de acesso e de permanência de estudantes LGBTQIA+ no ensino superior. Metodologicamente, utilizou-se o levantamento sistemático de artigos socializados nas bases Lilacs, via Biblioteca Virtual em Saúde, e SciELO. Também foi realizada uma busca na Biblioteca Virtual de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)
Após esta introdução, tecemos considerações sobre os fundamentos teórico-conceituais que direcionaram nossas problematizações. Na sequência descrevemos os procedimentos metodológicos adotados. Segue-se a apresentação dos resultados e discussões. Por fim, registramos as referências que nos auxiliaram durante o processo de investigação e de escrita.
DELIMITAÇÃO TEÓRICA
A compreensão do gênero e da sexualidade a partir de análises oriundas das Ciências Humanas e Educação possibilita problematizar o impacto de processos socioculturais de marcação de diferenças no acesso e na permanência desses/dessas estudantes na universidade pública.
No presente texto, buscamos compreender o que a produção científica sobre inclusão e permanência estudantil revela sobre como gênero e sexualidade perpassam a presença na universidade de pessoas LGBTQIA+. Assume-se o conceito de gênero como uma ação linguística, estilizada e repetida, que constrói as bases para a fabricação social de corporalidades e faz parte de uma lógica discursiva que assume a heterossexualidade como um sistema político de organização social (BUTLER, 2003). Nas palavras de Porchat (2012, p. 28) gênero se constitui como “uma categoria política que serve para a investigação sistemática daquilo que pode ser considerado humano e merecedor de reconhecimento”.
Cabe ainda destacar, nesse debate, conforme apontado por Jardim (2018, p. 135), a noção de “cis-heteronormatividade”. Ela permite indagarmos que a cisgeneridade, tanto quanto a heterossexualidade, “constitui um regime político- social que regula nossas vidas [sendo que] o conceito queer de heteronormatividade precisa ser ampliado, de modo a passar a englobar também a cisnormatividade”. Camargo (2020, p. 15) afirma que a “necessidade de explicitar politicamente que existe uma construção de identidades cisgêneras (e não só heterossexuais) evidencia elementos específicos das normatividades que dizem de uma epistemologia de corpo, de biologia, que é diferente da heteronormatividade”.
Já a sexualidade é assumida como um dispositivo histórico (FOUCAULT, 2010) produzido e acionado por discursos institucionalmente legitimados e que afetam os modos de compreensão sobre corpos e prazeres. O desejo não é aqui tomado como fonte de denúncia de uma “verdadeira identidade”. Antes, como ponto de interesse administrativo via saberes médicos e jurídicos, que produzem efeitos em nossas vidas.
Toma-se também o sistema cisheteronormativo como constituinte dos pretensos limites corpóreos que visam a legitimar os sujeitos que serão considerados como válidos. Segundo Butler (2008), os “corpos que importam” para determinado contexto são os que mantêm uma lógica de continuidade entre sexo biológico, gênero e desejo, logo, para o contexto cis-heteronormativo, de coerência e inteligibilidade. Para as demais expressões de existência, políticas de marcação social de diferenças que instituem o rechaço ao considerado como anômalo são instituídas para assegurar a ótica heteronormalizadora e falocêntrica.
Carvalho e Jezine (2016) argumentam que o processo de expansão de vagas no ensino superior, estratégia utilizada para alcançar a meta 12 do atual Plano Nacional de Educação, trouxe consigo novos desafios relacionados às condições de permanência de estudantes no ensino superior público. Compreender a realidade dos estudantes universitários, seus desafios e estratégias elaboradas para se manterem na universidade permite mapear vulnerabilidades e desigualdades por eles/elas encontradas para a conclusão exitosa de seus cursos de graduação. Nesse contexto, a assistência estudantil apresenta um papel crucial na recepção e no acompanhamento da trajetória acadêmica dos/das jovens universitários/universitárias.
Segundo Araújo e colaboradores (2019), o acesso ao ensino superior apresentou um crescimento nos anos 2000 devido à ampliação de vagas nas universidades públicas. Todavia, a permanência dos estudantes na universidade está “historicamente comprometida por condições sociais e econômicas desiguais pelas quais passam a significativa maioria da população brasileira” (ARAÚJO e colaboradores , 2019, p. 729).
Imperatori (2017) ressalta que, apesar dos documentos normativos, a assistência estudantil não é uma política consolidada e passa por um processo que busca por sua legitimação. Argumenta que, embora pautada na noção de “renda” familiar, a classe social não seria o único marcador de construção das “vulnerabilidades” enfrentadas pelos/pelas estudantes. Sobre isso, Araújo e colaboradores (2019), pautados nos dados da IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino Superior Brasileiras, afirmam que as dificuldades elencadas pelos/pelas estudantes para sua permanência no ensino superior público federal passam por:
(…) dificuldades financeiras (42,21%), carga horária excessiva de trabalhos estudantis (31,14%), falta de disciplina/hábito de estudo (28,78%), adaptação a novas situações como cidade, moradia distância da família etc. (21,85%), relação professor(a) – estudante (19,8%), dificuldade de acesso a materiais/meios de estudo (18,33%), relacionamento familiar (18,29%), relacionamento social/interpessoal (17,66%), carga horária excessiva de trabalho (17,45%), dificuldades de aprendizado (16,22%) (FONAPRACE, 2016 apud ARAÚJO e colaboradores, 2019, p. 734).
No que se refere aos dados sobre relacionamento social/interpessoal, adaptação, relação professor/a-aluno/a, relacionamento familiar e dificuldades de aprendizado, podemos problematizar que questões subjetivas referentes a uma autorrepresentação de gênero e sexualidade que afastem os sujeitos da heteronormatividade e binarismos de gênero, podem afetar o processo de formação acadêmica e profissional dos/as estudantes.
Construído este panorama, o presente artigo objetivou problematizar o processo de acesso e permanência de estudantes LGBTQIA+ no ensino superior por meio do levantamento de parte da produção acadêmica da área da Educação. Assim, após esta introdução e uma breve construção do referencial teórico adotado, apresenta-se a metodologia utilizada, resultados, discussão e referências utilizadas.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A tecitura desta pesquisa buscou fundamentos teórico-metodológicos na teoria queer e estudos de gênero em uma perspectiva pós-estruturalista, bem como diálogo com políticas públicas de acesso e de permanência de estudantes no sistema universitário. Para os propósitos deste texto, operou-se metodologicamente com o levantamento sistemático de trabalhos com fins a subsidiar a etapa empírica da investigação, atualmente em curso.
Foram realizadas buscas nas bases Lilacs, via Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Também foi realizada uma busca na Biblioteca Virtual de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Utilizou-se como termos de busca “Ensino Superior” e “Assistência Estudantil” em interface com o operador booleano “ and ” para cruzar dados com os termos “Sexualidade”, “Gênero” e “LGBT”2 . Ainda, para a BVS rastreamos estudos a partir do descritor “Minorias Sexuais”. Restringimos, então, olhares para os trabalhos da grande área “Educação”.
RESULTADOS
Foram encontrados nove (9) trabalhos que tiveram seus títulos, resumos e íntegra do texto lidos. Nossa intenção foi buscar relatos investigativos que focassem, de maneira delimitada e aprofundada, problematizações sobre estudantes LGBTQIA+ e Ensino Superior. O quadro 1 apresenta um panorama geral dos textos encontrados.
Título | Autoria | Ano | Periódico | Formato |
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A universidade e a diversidade: revisão integrativa da literatura | Letícia Cunha Franco; Thaís dias Venâncio Ferreira; Matheus Henrique Rodrigues da Silva Santos; William Koga da Silva Filho | 2021 | Revista Ibero- Americana de Humanidades, Ciências e Educação- REASE | Artigo |
Exclusão “da” e “na” educação superior: os desafios de acesso e permanência para a população trans | Milena Carlos de Lacerda; Guilherme de Almeida | 2021 | Revista Em Pauta | Artigo |
Expectativas e dificuldades acadêmicas em ingressantes no ensino superior: análise em função do gênero e sistema de cotas | Ana Amália Gomes de Barros Torres; Faria Leandro Silva Almeida | 2021 | Revista AMAzônica, LAPESAM/GMPEPPE/ UFAM/CNPq | Artigo |
Trajetórias escolares de universitários negros e a interseccionalidade entre raça e homossexualidade: uma análise Histórico-Cultural | Gabriel da Silva Brito; Edna Martins | 2020 | Anais do III Congresso Internacional e V Nacional Africanidades e Brasilidades em Educação | Trabalho Completo (Anais) |
Actitudes no homofóbicas en estudiantes villaclareños de ciencias médicas: respeto a la dignidad humana | Blanca Rosa Pérez Obregón; Katia Liset Rodríguez Niebla; Luisa María Sáez Ferrán; Francisca de la Caridad Alcántara Paisán; Mario Luis Castillo Alabalat; María del Carmen Guevara Couto | 2019 | Edumecentro | Artigo |
Preconceito contra Diversidade Sexual e de Gênero entre Estudantes de Medicina de 1º ao 8º Semestre de um Curso da Região Sul do Brasil | Rodrigo Otávio Moretti-Pires; Lucas Ide Guadagnin; Zeno Carlos Tesser-Júnior; Dalvan Antonio de Campos; Bárbara Oliveira Turatti | 2019 | Revista Brasileira de Educação Médica | Artigo |
A luta é coletiva, mas a resistência é individual? Violências vivenciadas e estratégias de enfrentamento construídas pela comunidade universitária de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e outras identidades | Mateus Aparecido de Faria | 2018 | Revista Baiana de Saúde Pública | Resumo de dissertação publicado em periódico |
Actitud homofóbica en estudiantes chilenos de Enfermería | Eduard Antonio Maury-Sintjago; Alejandra Rodríguez-Fernández | 2018 | Edumecentro | Artigo |
Universidade e Diversidade sob o Olhar da Representação Discente | Cláudia Mayorga; Joana Ziller; Luciana Maria de Souza; Fabíola Cristina Santos Costa | 2008 | Pesquisas e Práticas Psicossociais | Artigo |
Fonte: Levantamento (2021)
O artigo “A universidade e a diversidade: revisão integrativa da literatura” (FRANCO; FERREIRA, SANTOS; SILVA FILHO, 2021), publicado na Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, objetivou “evidenciar, e caracterizar, a partir da literatura nacional, a produção científica na área temática “Universidade e a Diversidade” (FRANCO e colaboradores, 2021, p. 85). Os termos utilizados pelos autores para a busca foram “universidade e diversidade” e “educação e diversidade”. Foram selecionadas para análise 29 publicações. Os temas mais abordados nas publicações encontradas foram diversidade sexual e de gênero (mesmo que os títulos das publicações sugiram que a temática foi abordada de maneira generalista) e políticas de cota.
Embora o estudo em questão não foque em um levantamento de relatos de pesquisa relacionados ao acesso, à permanência e à conclusão de cursos de graduação por estudantes LGBTQIA+, aponta para pistas sobre como a temática da diversidade tem sido abordada em estudos acadêmicos. No que se refere a propostas específicas sobre a população LGBTQIA+, das 29 publicações analisadas, apenas duas fazem menção explícita, em seus títulos, sobre homossexualidades e transgeneridades. Dessa maneira, cabe ressaltar a importância de contextualizar o tema “diversidade” para que especificidades acerca de relações assimétricas e opressivas de poder, bem como de resistência frente aos regimes normalizadores, não se percam em análises acadêmicas.
O trabalho “Exclusão ‘da’ e ‘na’ educação superior: os desafios de acesso e permanência para a população trans”, resultante de uma dissertação de mestrado, intencionou “refletir acerca dos desafios que atravessam o acesso e a permanência das pessoas trans, a partir da experiência da Universidade Federal do Tocantins” por meio de pesquisa documental (LACERDA; ALMEIDA, 2021, p. 234). A autora e o autor, por meio de reportagens midiáticas e documentos governamentais e institucionais, analisaram “experiências trans” no ensino superior a partir de dois dispositivos: nome social e uso autorreferido dos banheiros.
O recorte realizado para o artigo ressalta que a utilização do nome social por parte de estudantes trans (travestis e transexuais, no caso do estudo em tela) não é capaz, por si, de transformar o ambiente universitário. Outras medidas precisariam ser pensadas, planejadas e implementadas para fazer valer a garantia e o direito de acesso e de permanência de estudantes trans nas universidades, principalmente públicas, com vistas à construção de condições de possibilidades para que concluam seus cursos com êxito.
Em “Expectativas e dificuldades acadêmicas em ingressantes no ensino superior: análise em função do gênero e sistema de cotas” (FARIA; ALMEIDA, 2021), os autores verificaram que estudantes ingressantes no ensino superior do gênero feminino 3 apresentam médias mais elevadas em relação ao compromisso social e sucesso profissional “perante os problemas sociais, assumindo a sua formação como oportunidade para melhorar a qualidade de vida da sociedade, e assumindo seu ofício como estudante de forma mais consciente e responsável no desempenho das atividades acadêmicas e maior frequência nas aulas” (FARIA; ALMEIDA, 2021, p. 106). No que se refere aos estudantes cotistas, estes/estas apresentaram maiores dificuldades na adaptação acadêmica.
O trabalho “Trajetórias escolares de universitários negros e a interseccionalidade entre raça e homossexualidade: uma análise Histórico-Cultural” (BRITO; MARTINS, 2020), embora não seja relacionado a experiências no ensino superior, traz reflexões acerca do impacto de processo de escolarização no acesso e na permanência de estudantes LGBTQIA+, os quais, por vezes, inviabiliza a presença de determinados sujeitos na universidade pública. O estudo foi conduzido com estudantes negros homossexuais, matriculados em cursos de Humanidades na Universidade Federal de São Paulo e concluiu que o racismo perpassou algumas experiências dos jovens colaboradores, todavia, a inserção em movimentos sociais sinaliza para a construção de resistências relacionadas ao fortalecimento subjetivo e à organização de trabalhos formativos para uma educação anti-opressiva.
Nesse sentido, cabe atentar para que a discussão sobre acesso ao ensino superior da população LGBTQIA+ perpassa debates acerca da presença desses sujeitos na Educação Básica e a garantia que lhes é dada para concluírem esse nível de ensino. Lacerda e Almeida argumentam que “questões envolvendo o acesso e permanência não podem restringir-se à entrada nos portões das universidades, pois esta entrada está atrelada a um percurso anterior, que não envolve somente o cumprimento obrigatório da educação básica, mas as condições objetivas de existência” (FRANCO e colaboradores, 2021, p. 235).
“Actitudes no homofóbicas en estudiantes villaclareños de ciencias médicas: respeto a la dignidad humana” (OBREGÓN e colaboradores, 2019) discute atitudes de homofobia entre estudantes cubanos de medicina e de enfermagem. Participaram do estudo 215 estudantes de medicina e 126, de ambos os gêneros. O estudo aponta baixo índice de homofobia nos estudantes e, dentre as atitudes aparentes, homens são os agentes da discriminação.
Moretti-Pires e colaboradores (2019) em “Preconceito contra Diversidade Sexual e de Gênero entre Estudantes de Medicina de 1º ao 8º Semestre de um Curso da Região Sul do Brasil” atestam que os preconceitos contra a população LGBTQIA+4 são naturalizados e mantidos por diversas instituições. Interrogam as relações estabelecidas entre essa população e a graduação em Medicina. O estudo supracitado objetivou “analisar o perfil de atitude e o preconceito contra diversidade sexual e de gênero entre estudantes de um curso de Medicina” (MORETTI-PIRES e colaboradores, 2019, p. 568). A partir de pesquisa com 391 estudantes, notou- se, diferentemente do que constatado em Obregón e colaboradores (2019), que existe significância nos níveis de preconceito declarado, principalmente entre estudantes do gênero masculino. No total da amostra, “74,9% concordaram que o sexo entre dois homens é errado; 83,9% consideraram homens gays nojentos; 83,9% acreditaram que a homossexualidade masculina é uma perversão; 80,9% afirmaram que o sexo entre duas mulheres é totalmente errado; 83,9% afirmaram que as meninas masculinas deveriam receber tratamento (MORETTI-PIRES e colaboradores, 2019, p. 568).
O estudo acima explicita preocupações com a educação médica e a formação em medicina, visto que constatou que preconceitos motivados pelo gênero e pela sexualidade se encontram presentes entre os/as estudantes. Os autores sugerem que o currículo formal do curso auxiliaria na manutenção de sentimentos negativos para com a população LGBTQIA+5 e que sua reestruturação poderia contribuir para uma mudança de pensamento dos/das acadêmicos/as.
Faria (2018) em “A luta é coletiva, mas a resistência é individual? Violências vivenciadas e estratégias de enfrentamento construídas pela comunidade universitária de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e outras identidades” objetivou identificar e analisar experiências de violência e as estratégias de enfrentamento de jovens LGBT+ 6 no contexto universitário. Por meio de nove entrevistas semiestruturadas, obteve relatos de violências vivenciadas na escola, na família, no trabalho, na vizinhança e nas ruas. As estratégias para resistir aos contextos violentos apareceram na forma de relações de amizade, fato já corroborado por outras pesquisas (PRADO, 2014; QUIRINO, 2018), vínculos religiosos, contexto familiar e ambiente universitário, embora fica explícito na pesquisa que tais instituições, por vezes, agem de forma negligente no enfrentamento da violência LGBTQIAfóbicas. “Actitud homofóbica en estudiantes chilenos de Enfermería” (MAURY- SINTJAGO; RODRÍGUEZ-FERNÁNDEZ, 2018) parte do pressuposto de que a homofobia interfere na prática em saúde no que tange a relação profissional- paciente. Nesse sentido, o estudo objetivou identificar atitudes homofóbicas em uma amostra de 340 estudantes chilenos, de ambos os gêneros, que cursavam enfermagem. 47% dos estudantes demonstraram uma atitude aparentemente respeitosa para com sujeitos homossexuais. No que se refere aos indícios de atitudes homofóbicas, foram explicitados por estudantes homens, sendo os religiosos mais propensos a atitudes preconceituosas, pois “se evidenció que los sujetos que profesan la religión protestante tienen una actitud más homofóbica en comparación con otras” (MAURY-SINTJAGO; RODRÍGUEZ-FERNÁNDEZ, 2018, p. 8).
Mayorga e colaboradores (2008) no estudo “Universidade e diversidade sob o olhar da representação discente” objetivaram “analisar como os órgãos de representação estudantil percebem e se posicionam em relação à diversidade do alunado” (MAYORGA e colaboradores, 2008, p. 51). O foco foi identificar mecanismos institucionais que dificultam o acesso e a permanência das diferenças no contexto universitário. Embora o trabalho sinalize para preocupações com a diversidade, fato evidenciado em seu título, a discussão desenvolvida remete à participação estudantil em instâncias de representatividade como, por exemplo, os grêmios, centros e diretórios acadêmicos com foco em questões econômicas e política de cotas raciais. Assim, não se discute a “diversidade” a partir das questões de gênero e de sexualidade.
DISCUSSÃO
Vistos os resultados apresentados, cabe destacar que, no que se refere aos estudos publicados na área da Educação sobre acesso e permanência estudantil, observa-se certa preocupação com estudantes LGBTQIA+. Todavia, as experiências dos próprios sujeitos que se autorrepresentam como não heterossexuais ainda são pouco evidenciadas nas publicações analisadas. As únicas investigações empíricas em que os e as colaboradoras foram pessoas LGBTQIA+ são os de Faria (2018) e Brito e Martins (2020).
Heringer (2020) ao problematizar as políticas de ação afirmativa e os desafios da permanência no ensino superior nos instiga a pensar que a entrada de estudantes oriundos de setores da sociedade tradicionalmente discriminados em universidades públicas, tanto federais quanto estaduais, apresenta novos desafios para elas. Destacamos que, dentre os desafios, experiências da população LGBTQIA+ no que se refere ao acesso, permanência e conclusão de cursos de graduação talvez configurem “novas problemáticas” a serem enfrentadas pelas pesquisas da área da Educação.
Cabe destacar que o trabalho de Brito e Martins (2020), além de um dos poucos encontrados que utilizou como estratégia para a produção de dados a condução de entrevistas com homens cis, universitários e homossexuais, possibilita discussões sobre a intersecção entre os marcadores sociais de gênero, sexualidade e “raça”. “A intersecção entre homossexualidade e raça faz parte da materialização do indivíduo dentro do campo social, que é criado no jogo do âmbito escolar (BRITO; MARTINS, 2020, p. 7).
A estratégia dialógica para a problematização de como diferentes marcadores sociais se articulam para produzirem processos de estigmatização e violência é destacada na área dos estudos de gênero como uma problematização não recorrente, porém, necessária (COLLINS; BILGE, 2020; hooks, 2015). Como denunciado por hooks 7 (2015) e McClintock (2010), a categoria gênero, de forma isolada, limita análises aprofundadas sobre processos de produção de desigualdades.
Algumas pesquisas listadas neste artigo aplicaram, como instrumentos para a geração de dados, questionários a estudantes universitários para analisar o que pensavam sobre sexualidades não heterossexuais e como representavam sujeitos LGBTQIA+. É nessa linha de orientação investigativa que Moretti- Pires e colaboradores (2019), Obregón e colaboradores (2019) e Maury-Sintjago e Rodríguez-Fernández (2018) publicaram alguns resultados. O público alvo das pesquisas em tela foram estudantes de cursos de graduação, independentemente de suas autorrepresentações como LGBTQIA+, pois o foco foi identificar o que estudantes universitários pensavam sobre atitudes homofóbicas e discriminatórias para com a população LGBTQIA+. Podemos inferir que a presença de atitudes homofóbicas e discriminatórias por parte de discentes e outros membros da comunidade acadêmica, identificadas nessas pesquisas, pode estar impactando na trajetória universitária da população LGBTQIA+, pela necessidade de enfrentamento de situações de violência simbólica ou até mesmo física, pela limitação de oportunidades dentro e fora dos campi .
Nesse sentido, novos estudos que desvelem se e como esses fatores afetam a vida de estudantes LGBTQIA+ durante suas trajetórias no ensino superior, ou mesmo quais suas estratégias para se sobrepor a atitudes discriminatórias, mostram-se necessárias. Averiguar impressões do próprio grupo sobre vivências e experimentações na universidade, torna-se imperioso. Como apontado por Souza (2013), a relação entre acesso, permanência e “sucesso acadêmico” de estudantes de graduação LGBTQIA+ 8 se relaciona com diferentes fatores, inclusive no que se refere a “passar despercebido” quando o assunto é a sexualidade (aqui nomeamos tal processo como “passabilidade”). A autora investigou algumas dessas relações entre estudantes dos cursos de Medicina e de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e concluiu que as condições socioeconômicas favoráveis, o acesso à educação básica privada e a omissão de sua orientação sexual se mostraram como fatores que favoreceram o chamado “sucesso escolar”.
Ainda, ao refletirmos pesquisas específicas com o público LGBTQIA+, Lima (2018)9 , investigando experiências de jovens estudantes, matriculados em diferentes cursos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nos fornece outros dados sobre o acesso e a permanência dessa população, nos quais os estudantes:
(...) relataram dificuldades enfrentadas pela população LGBT no ambiente familiar
- no qual sofrem constantemente heterossexismo, com relatos de expulsão por parte dos genitores quando aqueles assumem sua orientação sexual -, de acessar a assistência estudantil - em função dos critérios socioeconômicos rígidos -, e quando conseguem acessar a assistência estudantil, particularmente a residência universitária, as dificuldades persistem, pois, o processo heterossexista persiste no âmbito universitário por parte dos outros residentes. (LIMA, 2018, p. 16).
Na pesquisa supracitada, encontramos evidências do impacto de preconceitos sobre essa população na inserção de estudantes LGBTQIA+ em residências universitárias. Outrossim, destacamos a possível dependência econômica dessa população a programas de bolsa com aportes financeiros, decorrente de uma possível ruptura com o círculo familiar devido a terem assumido sua orientação sexual.
Mais uma problematização possível a ser pensada a partir dos dados é que, em sua maioria, os trabalhos encontrados articulam discussões educacionais com a área da Psicologia, sendo que as pesquisas rastreadas, prioritariamente, recorreram a abordagens quantitativas e instrumentos padronizados como, por exemplo, questionários sociodemográficos, questionários estandardizados sobre incidência de preconceito e escalas do tipo likert (MORETTI-PIRES e colaboradores, 2019; OBREGÓN e colaboradores, 2019; MAURY-SINTJAGO; RODRÍGUEZ- FERNÁNDEZ, 2018).
Dos estudos qualitativos (FARIA; ALMEIDA, 2021; BRITO; MARTINS, 2020; FARIA, 2018; MAYORGA e colaboradores, 2008) se valeram de entrevistas. Ainda, os estudos de Franco e colaboradores (2021) e Lacerda e Almeida (2021), embora de abordagens qualitativas, se caracterizaram como estudos de revisão de literatura e pesquisa documental, respectivamente. Nesse sentido, investigações qualitativas e que se valeram de entrevistas para aprofundamento dos dados a partir de experiências pessoais dos próprios sujeitos LGBTQIA+, no que se refere ao recorte realizado neste artigo, foram menos recorrentes.
O termo “diversidade” foi utilizado para se referir a questões tanto de gênero, sexualidade, classe social, “raça”/etnia, deficiência, dentre outras diferenças que são, cotidianamente, marcadas por certos discursos sociais. Essa imprecisão, a variedade de termos adotados para se referir à população LGBTQIA+, a sua não utilização em formulários das próprias instituições ou a sua não percepção enquanto um grupo específico dificulta a compreensão das especificidades de experiências vivenciadas por essa população, suas conquistas e dificuldades ao longo das suas trajetórias no ensino superior.
Conforme já apontado por Silva (2000), questões sociais que nos chamem a compreender o processo sociocultural de produção de diferenças, encontram na ideia de “diversidade” um problema. Para o autor, nessa perspectiva, as relações de poder que produzem desigualdades a partir de alguns marcadores (a exemplo de “raça”, gênero e sexualidade) não são questionadas em suas “processualidades”, naturalizando e essencializando a ideia de “identidade” e de “diferença”.
Se, por um lado, a utilização desse conceito [diversidade] pode revelar o surgimento de uma inflexão do pensamento social, por outro, a imprecisão ou seu uso indiscriminado pode restringir-se ao simples elogio às diferenças, pluralidades e diversidades, tornando-se uma armadilha conceitual e uma estratégia política de esvaziamento e/ou apaziguamento das diferenças e das desigualdades (RODRIGUES; ABRAMOWICZ, 2013, p. 17).
Também identificamos que parte dos trabalhos encontrados não explicitam o que suas autoras e autores compreendem, conceitualmente, como gênero e sexualidade, não dialogando com referências da área dos estudos de gênero. Apenas um trabalho atentou para delimitar o termo “preconceito”, pautado em bases teóricas referenciais (MORETTI-PIRES e colaboradores, 2019). Segundo Prado (2019), quando operamos com pesquisas se faz necessário que a teoria seja considerada como parte do método investigativo. A explicitação conceitual ou dos “eixos teóricos” que serão acionados para operar junto aos dados produzidos, carecem de explicitação, pois, permitem problematizar o campo de forma específica. O autor defende que “a teoria faz parte do método e deve ser explicitada em trabalhos acadêmicos” (PRADO, 2019, p. 45).
Considerando as especificidades de estudantes LGBTQIA+, os resultados aqui socializados nos instigam a problematizar que a publicação do Decreto n° 7.234 de 19 de julho de 2010 (BRASIL, 2010), que dispõe sobre o Programa de Assistência Estudantil (PNAES), não considerou gênero e sexualidade como temas a serem inseridos em investigações sobre acesso e permanência de estudantes na universidade, em específico, as públicas.
Sobre o documento normativo em destaque, Pinto (2015) ressalta que a política de Assistência Estudantil poderia também atuar na ampliação de oportunidades de permanência na universidade de coletivos historicamente discriminados. Embora sua análise remeta a questões de cor/etnia, indagamos: quais as dificuldades e demandas enfrentadas por estudantes LGBTQIA+ para ocuparem espaços na universidade e terem garantidas oportunidades para a conclusão de seus cursos? A LGBTQIA+fobia interfere em seus itinerários formativos? Para quais segmentos dessa população? Como? Quais estratégias de resistência elaboram para se manterem na universidade? Qual o papel da Assistência Estudantil nesse processo?
O acesso e a permanência da população LGBTQIA+ na universidade podem estar relacionados a diferentes fatores. Santos e Araújo (2018) apontam dificuldades financeiras, assistência estudantil desfavorável e sentimentos de rejeição e exclusão como motivos que devem ser postos em questão para o enfrentamento da “evasão”. Em contrapartida, a forte identificação com o curso de graduação pode atuar como fator positivo e contributivo para a permanência desses e dessas estudantes no ensino superior.
Lima (2018) contribui para o debate ao argumentar que quando a população LGBTQIA+ 10 acessa o ensino superior pode depender da assistência estudantil para enfrentar o ambiente hostil em que foram inseridos/as (seria a universidade pública um ambiente hostil?). Isso, levando em consideração que o próprio acesso ao ensino superior para esses e essas estudantes é difícil, pois, em muitos casos, a rejeição por parte da família requer com que as políticas de assistência estudantil acolham e contribuam para suprir necessidades, estas, não somente materiais (LIMA, 2018). A discussão se torna importante para que a permanência dessa população na universidade pública possa ser garantida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O recorte investigativo aqui apresentado problematiza que pesquisas que objetivam identificar processos experienciados por estudantes LGBTQIA+ para acessarem, permanecerem e concluírem com êxito os cursos de graduação, são pouco evidenciadas. Compreende-se que o esforço para a realização de tais estudos poderia impactar no (re)pensar de políticas públicas e institucionais que contribuam para com o acesso e a permanência de estudantes LGBTQIA+ nos bancos universitários, enfrentando possíveis problemas como retenção, evasão e abandono dos cursos.
Visto a busca realizada e os nove trabalhos evidenciados, os dados gerados apontam que temas como implementação e desenvolvimento do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), acesso a bolsa de estudos, políticas afirmativas, inclusão de pessoas com deficiência e análises de programas federais, tais como o ProUni e Bolsa Família, aparecem como preocupações investigativas. Todavia, pesquisas que, de forma específica, problematizem processos experienciados por estudantes LGBTQIA+ para acessarem, permanecerem e concluírem com êxito os cursos de graduação, talvez por se configurarem como “novas questões” para investigações da área da Educação sobre políticas de ingresso e permanência no ensino superior, sobretudo público, sinalizam para uma discussão produtiva que, inclusive, poderia contribuir para ampliar debates sobre políticas de cotas. Cabe ainda destacar que pesquisar sobre experiências de estudantes LGBTQIA+ e Ensino Superior indica que a temática carece de indexação que possa favorecer a busca de trabalhos científicos por meio de descritores claros, em bases de dados.
Os estudos encontrados por meio do método empregado em nossa investigação, em sua maioria, são da área da Psicologia, não explicitam conceitualmente os termos gênero e sexualidade, utilizam o termo “diversidade” de maneira geral, fato que nubla possibilidades de compreensão pormenorizada sobre vivências universitárias de estudantes LGBTQIA+. Também não dialogam com estudos consolidados no campo dos estudos de gênero, Teoria Feminista ou Pós- estruturalismo e recorrem, prioritariamente, a pesquisas de abordagem quantitativa e instrumentos padronizados para a geração dos dados.
Destacamos a existência de poucos trabalhos em que os/as colaboradores/ as que constituíram o grupo amostral se representassem como LGBTQIA+. Nesse sentido, cabe pensar na contribuição de pesquisas qualitativas e que se valham de instrumentos para a geração de dados que permitam produzir conhecimentos aprofundados sobre vivências e experiências de estudantes LGBTQIA+ no ensino superior, em específico no que se refere ao processo de acesso e de permanência na universidade, sobretudo, pública.
A temática da homofobia está presente com alguma frequência nas publicações, mostrando uma preocupação científica em analisar como ela se expressa no meio universitário. Entendemos que compreender seu impacto sobre o percurso universitário e na inserção profissional da população a qual ela se dirige seria um passo importante na produção científica.
As pesquisas encontradas foram socializadas em periódicos de baixo impacto. A temática parece demandar maior atenção acadêmica, visto que a população LGBTQIA+ não compõe as políticas de cotas. Cabe ainda ressaltar que as pesquisas encontradas foram desenvolvidas no Brasil e em outros países da América Latina.
Assim, a análise de produção bibliográfica realizada nesta pesquisa permite concluir que a produção científica brasileira sobre permanência estudantil e população LGBTQIA+ ainda é incipiente, com potencial para crescimento e diversificação de temáticas e recortes metodológicos. Entendemos que novas análises contribuirão para a compreensão dos desafios universitários enfrentados por essa população, qualificando políticas de ingresso e de permanência no ensino superior.